Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
6105/21.7T8ALM.L1-6
Relator: VERA ANTUNES
Descritores: IMPUGNAÇÃO PAULIANA
MECANISMO DE ASSISTÊNCIA MÚTUA
COBRANÇA DE CRÉDITOS TRIBUTÁRIOS NA UNIÃO EUROPEIA
COBRANÇA DE CRÉDITO CONSOLIDADO
LEGITIMIDADE DO MINISTÉRIO PÚBLICO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I O MºPº tem legitimidade, que advém da representação da autoridade competente, tal como determina o Dec.-Lei 263/2012, para a presente acção.

II– Nos termos do art.º 7º, alínea c), do Dec.-Lei 263/2012, há dois tipos de actuações previstas: ou a cobrança de um crédito que já consta consolidado num título executivo ou a adopção de medidas cautelares prévias, destinadas a garantir a futura cobrança do crédito.

III– A presente acção tem lugar no âmbito do que dispõe o art.º 23º do Dec.-Lei 263/2012, mais especificamente no que prevê o seu n.º 2.

IV– Nos termos do art.º 611º do Código Civil não era ao A. que se impunha o ónus de provar a existência de outros bens ou créditos ou que o dinheiro alegadamente recebido com as vendas em causa deu entrada no património da devedora, mas às RR., o que manifestamente não fizeram.

V–Quanto às intenções e consciência do prejuízo causado, é normal e lógico que tais factos não resultem de uma prova directa efectuada nos autos, tratando-se de uma actuação que visa defraudar os credores, pelo que na prova de tais circunstâncias tem na maior parte das vezes o Tribunal que se socorrer de presunções judiciais, nos termos do art.º 349.º do Código Civil.


(Sumário elaborado pela Relatora)


Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível da Relação de Lisboa:


I–Relatório:


O Ministério Público, em representação do Estado Português, intentou a presente acção de impugnação pauliana contra:
1.- «F...Lda.»,…;
2.- «N...Lda.», …;
3.- «D...Lda.»,…;
4.- «FIM...Lda.»,….

Pedindo:
a)-Julgar-se procedente a impugnação da alienação pelo 1.º réu do terreno para construção inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de C____, S____, descrito na conservatória do registo predial sob o n.º …;
b)-Julgar-se procedente a impugnação da alienação pelo 1.º réu da embarcação matrícula …;
c)-Julgar-se procedente a impugnação da alienação pelo 1.º réu das máquinas e equipamentos de serralharia e soldadura;
d)-Julgar-se procedente a impugnação da alienação pelo 1.º réu do mobiliário e equipamentos de escritório;
e)-Sejam os 2.º, 3.º e 4.º réus condenados a restituir, respectivamente, o imóvel, a embarcação e máquinas e equipamentos de serralharia e soldadura e mobiliário e equipamentos de escritório, na medida necessária à satisfação integral da dívida ao autor, de forma a permitir a respectiva execução no património dos réus.
f)-Declarar-se que o autor pode executar os bens no património do 1.º réu e tem o direito de praticar sobre os mesmos os actos de conservação da garantia patrimonial legalmente autorizados, nos termos dos art.ºs 610.º a 617.º, inclusive, do Código Civil.

Para fundar aquelas suas pretensões, invoca o autor:
  • O processo de execução fiscal n.º 2..............2 tem por base título executivo uniforme, emitido por Estado Membro, no âmbito do mecanismo de assistência mútua na cobrança de créditos tributários no seio da União Europeia.
  • Por carta de 22/09/2019, a 1.ª ré foi citada no processo de execução fiscal n.º 2..............2, para pagar a quantia de € 824.026,33.
  • À data da instauração do processo de execução fiscal contra a 1.ª ré, a mesma era proprietária de:
o Terreno para construção inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de C____, S____, descrito na conservatória do registo predial sob o n.º …;
o Embarcação matrícula …;
o Máquinas e equipamentos de serralharia e soldadura;
o Mobiliário e equipamentos de escritório.
  • Após a citação nos autos de execução fiscal, em 17/10/2019, a 1.ª ré vendeu à 2.ª ré o terreno para construção inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de C____, S____, descrito na conservatória do registo predial sob o n.º …, pelo valor de € 170.000,00.
  • A compradora 2.ª ré tinha como sócia gerente MS, que vivia em união de facto com FJ, administrador da 1.ª ré.
  • Em 26/09/2019, a 1.ª ré vendeu à 3.ª ré a embarcação matrícula …, pelo valor de € 15.000,00.
  • A 3.ª ré tinha como sócio gerente FJ, administrador da 1.ª ré.
  • Em 31/10/2019, a 1.ª ré vendeu à 4.ª ré máquinas e equipamentos de serralharia e soldadura no valor de € 38.000,00 e mobiliário e equipamentos de escritório no valor de € 17.000,00.
  • A 4.ª ré tinha como sócio gerente FJ, administrador da 1.ª ré.
  • A 1.ª ré e gerência sabiam da existência dos referidos créditos desde 22/09/2019, tendo tomado conhecimento da pendência do referido processo, pelo menos, desde a citação.
  • À 1.ª ré não são conhecidos outros bens penhoráveis cujo valor seja suficiente para satisfação do seu débito.
  • Os factos mencionados foram praticados para obstar e subtrair património ao pagamento da dívida, cujo processo corria termos contra a 1.ª ré.
  • Os réus actuaram conscientes do prejuízo que os ditos negócios causavam ao credor.
  • Na verdade, o administrador da 1.ª ré, que a representou nos actos de alienação do património, é quem detinha poderes para, nesses mesmos atos, representar as sociedades rés adquirentes dos bens.
  • A 1.ª ré ficou, assim, sem bens suficientes que permitam o pagamento coercivo total da dívida, impossibilitando a satisfação do crédito.
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Nas suas contestações, entre o mais, invocaram as 1.ª, 2.ª e 4.ª rés que o autor é parte ilegítima nesta acção, porquanto o Estado Membro requerente é a Bélgica, sendo este e não o Estado Português o titular do crédito invocado cuja garantia se visa assegura nesta acção; impugnaram os fundamentos da acção, defendendo que não estão reunidos os pressupostos da impugnação pauliana, tanto mais que as vendas em causa foram a título oneroso, tendo a sociedade que alienou património recebido a respectiva contrapartida pecuniária, do que não decorreu prejuízo para o credor, inexistindo má fé das partes.

A 3.ª ré não contestou a acção.
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Ouvido o autor, pugna o mesmo pela sua legitimidade, dado estar em causa acção tendente a assegurar a garantia de um crédito fiscal, que constitui o objecto de título executivo uniforme de que é titular um estado-membro (a Bélgica), cuja assistência para cobrança desse crédito foi solicitada ao Ministério das Finanças (Estado Português), representado pelo Ministério Público, sendo aplicáveis as disposições do ordenamento jurídico-nacional estabelecidas para os  créditos relativos aos mesmos impostos ou direitos ou, na sua ausência, a impostos ou direitos similares, nas quais se inclui o regime legal subjacente à acção de impugnação pauliana.
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Teve lugar a realização da audiência prévia, no decurso da qual se procedeu ao saneamento dos autos, proferindo-se a seguinte decisão relativamente à excepção de ilegitimidade, após a elaboração de relatório, similar ao supra descrito:
“Excepção de ilegitimidade do autor: (…)
Cumpre apreciar.
A ilegitimidade de alguma das partes constitui excepção dilatória de conhecimento oficioso (que, no caso, foi invocada), a qual deve ser apreciada nesta sede e que determina a absolvição do réu da instância (cfr. art.ºs 278.º, n.º 1, alínea d), 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º, alínea e), 578.º e 595.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil).
É no art.º 30.º, do actual Código de Processo Civil (correspondente ao anterior art.º 26.º), que, consagrando a tese de Barbosa de Magalhães, se há-de buscar a noção legal de legitimidade singular.
No que respeita à legitimidade activa, o autor é considerado parte legítima quando tem interesse directo em demandar, o qual se exprime pela utilidade resultante da procedência da acção, pois a sua eventual procedência pode conduzir à produção de desvantagens para o réu.
No que concerne à legitimidade passiva, o réu é considerado parte legítima quando possui interesse directo em contradizer a pretensão formulada pelo autor, pois a sua eventual procedência pode conduzir à produção de desvantagens para o réu.
Não havendo disposição legal que a tal obste, consideram-se titulares do interesse relevante (para efeito de apreciação da legitimidade) os sujeitos da relação material controvertida, tal como é configurada pelo autor.
Como melhor expõe Miguel Teixeira de Sousa (“As Partes, o Objecto e a Prova na Acção Declarativa”, Lex, Lisboa, 1995, pág. 47), “A legitimidade processual é a susceptibilidade de ser parte numa acção aferida em função da relação dessa parte com o objecto daquela acção. A legitimidade processual (ou ad causam) é, assim, sempre relativa a uma determinada acção e a um certo objecto. (…)
A legitimidade visa assegurar que o autor e o réu são os sujeitos que podem discutir a procedência da acção. E esses sujeitos são aqueles que podem ser beneficiados com a decisão de procedência ou de improcedência da causa.”
Já no que tange à legitimidade activa e passiva plural, sob a epígrafe “Litisconsórcio voluntário”, prescreve o art.º 32.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que, se a relação material controvertida respeitar a várias pessoas, a acção respectiva pode ser proposta por todos ou contra todos os interessados, mas, se a lei ou o negócio forem omissos, a acção pode também ser proposta por um só ou contra um só dos interessados, devendo o tribunal, nesse caso, conhecer apenas da respectiva quota-parte do interesse ou da responsabilidade, ainda que o pedido abranja a totalidade.
O n.º 2, do citado art.º 32.º, estabelece que, se a lei ou o negócio permitir que o direito seja exercido por um só ou que a obrigação comum seja exigida de um só dos interessados, basta que um deles intervenha para assegurar a legitimidade.
Por outro lado, preceitua o art.º 33.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Litisconsórcio necessário”, que, se a lei ou o negócio exigir a intervenção dos vários interessados na relação controvertida, a falta de qualquer um deles é motivo de ilegitimidade.
Dispõem o n.º 2 e o n.º 3, do precedentemente aludido normativo, que, é igualmente necessária a intervenção de todos os interessados na acção quando, pela própria natureza da relação jurídica, ela seja necessária para que a decisão produza o seu efeito útil normal, o qual é granjeado sempre que, não obstante a decisão não venha a vincular os demais interessados, possa regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente ao pedido formulado.
Por fim, o art.º 39.º, do Código de Processo Civil, dispõe, sob a epígrafe “Pluralidade subjectiva subsidiária”, que “É admitida a dedução subsidiária do mesmo pedido, ou a dedução de pedido subsidiário, por autor ou contra réu diverso do que demanda ou é demandado a título principal, em caso de dúvida fundamentada sobre o sujeito da relação material controvertida.”
A legitimidade, em sentido processual ou adjectivo (distintamente da legitimidade substantiva, necessária à procedência da acção), exprime uma relação entre um determinado sujeito e o objecto do processo.
Diversamente da personalidade e da capacidade judiciárias, a legitimidade processual não se trata de um atributo do sujeito, considerado em si mesmo, mas reflecte antes o interesse (em demandar ou contradizer) do sujeito processual, em relação a uma determinada acção, com um certo objecto (delimitado pelo autor).
A legitimidade é, portanto, a susceptibilidade de se ser parte numa acção judicial, avaliada em função da relação da pessoa com o objecto processual configurado pelo autor nessa acção, e destina-se a assegurar que os sujeitos que impulsionam o processo irão coincidir com aqueles em cuja esfera jurídica a decisão judicial vai produzir os seus efeitos.
Tomando em atenção a configuração que o autor conferiu aos fundamentos da sua pretensão (os quais ficaram precedentemente expressos) e às várias soluções plausíveis da questão de direito que lhe está subjacente, urge clarificar que importa ponderar que, na presente acção de impugnação pauliana, cujo regime se encontra consagrado nos artigos 610.º a 618.º, do Código Civil, visa-se apurar da existência (temporal) de um crédito e da correspondente dívida, que recaía sobre aquele ou aqueles que dispuseram, por acto gratuito ou oneroso, de determinados bens, através dos quais se pretendia obter a satisfação do crédito e cuja cobrança foi afectada ou posta em crise por aquele acto.
Em concreto e retornando ao caso que nos ocupa, sabemos que o autor invoca que o processo de execução fiscal n.º 2................2, no qual figura como executada a primeira ré, tem por base título executivo uniforme emitido por um Estado Membro (a Bélgica) no âmbito do mecanismo de assistência mútua na cobrança de créditos tributários no seio da União Europeia, previsto na Diretiva 2010/24/EU, transposta pelo Decreto-Lei n.º 263/2012, de 20 de Dezembro.
Nesse âmbito e ao abrigo do art.º 23.º, n.º 1, do citado Decreto-Lei n.º 263/2012, de 20 de Dezembro, o Estado Membro requerente Bélgica dirigiu ao Estado Membro requerido Portugal um pedido de cobrança de crédito, o qual constitui o objecto do referido título executivo uniforme.
Veja-se que o art.º 7.º, do Decreto-Lei n.º 263/2012, de 20 de Dezembro, consagra os seguintes tipos de mecanismos que podem ser empregues na assistência à cobrança que o Estado português fica obrigado a prestar a pedido das autoridades competentes de outro Estado-Membro, bem como a que pode requerer a essas autoridades:
a)-Troca de informações para efeitos da cobrança dos créditos a que se refere o artigo 3.º;
b)-Assistência à notificação de documentos respeitantes a créditos a que se refere o artigo 3.º;
c)-Cobrança de créditos objecto de um título executivo uniforme ou adoção de medidas cautelares para garantia da cobrança.
Nesta acção declarativa constitutiva de processo comum não vem logicamente pedida a aplicação de medidas cautelares ao abrigo do disposto no art.º 26.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 263/2012, de 20 de Dezembro, e art.ºs 362.º e seguintes, do Código de Processo Civil, pelo que nada importa considerar nesse âmbito, porquanto nenhum procedimento cautelar foi instaurado nem a acção de impugnação pauliana reveste tal natureza.
Não estando em causa a adopção de medidas cautelares (como não está), verifica-se antes que o art.º 23.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 263/2012, de 20 de Dezembro, preceitua que «O título executivo uniforme, que acompanha o pedido de cobrança, constitui base jurídica apta e suficiente para a execução da cobrança ou a adoção de medidas cautelares em território nacional».
No que toca a Portugal, a autoridade competente para efeitos de aplicação do regime de assistência mútua à cobrança é o Ministério das Finanças, tendo em atenção a disposição do art.º 5.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 263/2012, de 20 de Dezembro.
E é consabido que a Autoridade Tributária e Aduaneira constitui um serviço simples da administração directa do Estado, integrada, hierarquicamente, no Ministério das Finanças (art.º 4.º, alínea f), do Decreto-Lei n.º 117/2011, de 15 de Dezembro), a qual não dispõe de personalidade jurídica e, consequentemente, se mostra destituída de personalidade judiciária (cfr. art.ºs 11.º, 12.º e 15.º, do Código de Processo Civil).
Assim, é o Estado Português que é representado em Juízo pelo Ministério Público, conforme claramente deflui do disposto no art.º 24.º, do Código de Processo Civil, em conjugação com os art.ºs 2.º e 4.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto.
E, de acordo com a estatuição do art.º 28.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 263/2012, de 20 de Dezembro, não podemos deixar de considerar, para o que ao caso em análise importa, que «Na execução da cobrança de créditos ou na adoção de medidas cautelares solicitadas por uma autoridade competente de outro Estado-Membro são aplicáveis as disposições do ordenamento jurídico-nacional estabelecidas para os créditos relativos aos mesmos impostos ou direitos ou, na sua ausência, a impostos ou direitos similares».
Conforme ficou já mencionado, o recurso à acção de impugnação pauliana visa a conservação do património dos réus, enquanto garantia do crédito de que é titular o Estado Membro requerente, cuja assistência para sua cobrança foi solicitada ao Estado Português, e tem por fundamento a alegada prática de actos mediante os quais os réus dissiparam o património que garante a satisfação desse direito de crédito, por forma a impossibilitar ou a dificultar relevantemente a satisfação integral dos créditos de impostos em apreço.
Na situação vertente, tendo aplicação as disposições do ordenamento jurídico interno (nacional) estabelecidas para os créditos relativos aos mesmos impostos ou direitos, a utilização da acção de impugnação pauliana pelo Estado membro requerido, representado pelo Ministério Público, para conservação do património dos réus ou para a obtenção de um título executivo contra terceiro adquirente, insere-se no âmbito da assistência solicitada ao Estado Português para lograr a cobrança do crédito fiscal em apreço e não configura, portanto, a excepção de ilegitimidade activa do autor e muito menos a excepção de falta de interesse em agir, sendo patente que os réus confundem a legitimidade adjectiva do autor, enquanto pressuposto processual, com a legitimidade substantiva, enquanto condição de procedência da pretensão que o autor contra eles formula nesta acção.
Assim, perante a configuração dada pelo autor à relação material controvertida, é este efectivamente o seu sujeito do lado activo, pelo que é, consequentemente, parte legítima nesta acção.
Pelos mencionados fundamentos de facto e de direito, julgo improcedente, por não provada, a excepção dilatória de ilegitimidade activa.”
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No despacho saneador foi ainda delimitado o objecto do litígio, fixados os temas de prova e admitidas as provas requeridas pelas partes.
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Da decisão sobre a legitimidade recorreu a R. FIM, Lda..., recurso que não foi admitido, por intempestivo.
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Teve lugar a realização do julgamento, tendo a final sido proferida Sentença onde se decidiu:

“Pelo exposto, julgo a presente ação parcialmente procedente, por provada em parte, e, consequentemente, decido:
a)-Julgar ineficaz, em relação ao autor, os seguintes actos:
I.–Compra e venda celebrada em 17.10.2019, mediante a qual a ré «F...Lda.» declarou vender à ré «N...,Lda.», que declarou comprar-lhe, o terreno para construção inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de C____, S____, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..... sob o n.º …, pelo preço de € 170.000,00 (cento e setenta mil euros);
II.–Compra e venda celebrada em 26.09.2019, mediante a qual a ré «F...Lda.» declarou vender à ré «D...,Lda.», que declarou compra-lhe, a embarcação matrícula …, pelo preço de € 15.000,00 (quinze mil euros).
III.–Compra e venda celebrada em 31.10.2019, mediante a qual a ré «F...Lda.» declarou vender à ré «FIM,Lda... », que declarou comprar-lhe, máquinas e equipamentos de serralharia e soldadura, pelo preço de € 38.000,00 (trinta e oito mil euros) e mobiliário e equipamentos de escritório, pelo preço de € 17.000,00 (dezassete mil euros).
b)-Declaro que o autor tem direito a executar directamente no património respectivo das rés os bens descritos na alínea a) que antecede e a praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei;
c)-Julgo improcedente o pedido de restituição do bens descritos na precedente alínea a), ao património da primeira ré;
d)-Custas a cargo do autor e das rés na proporção dos respectivos decaimentos, que se fixam em 1/5 para o autor e em 4/5 para as rés.”
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Desta decisão recorreu o MºPº, Concluindo:
1.–No que respeita aos efeitos da impugnação pauliana, determina o art. 616º, nº 1, do C. Civil «Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei».
2.–Na al. e) do pedido constante da petição inicial, o M. Público limitou-se a pedir a restituição de coisas móveis e imóveis na medida necessária à satisfação integral da dívida ao autor de forma a permitir a respetiva execução no património dos réus, ou seja, a pedir o reconhecimento dos efeitos da impugnação pauliana (art. 616º, do C. Civil).
3.–O M. Público não formulou um pedido de restituição material e efetiva dos bens ao património do devedor.
4.–A restituição dos bens a que alude o citado art. 616º, nº1, não será, em regra, uma restituição ou retorno efetivo dos bens ao património do devedor, mas sim uma restituição meramente formal ou abstrata no sentido de restabelecer a garantia patrimonial do crédito que havia sido perdida com o ato impugnado e legitimando a afetação desse bem à satisfação do direito do credor apesar de o bem em questão já não se encontrar na titularidade do seu devedor.
5.–Como explica Cura Mariano (Impugnação Pauliana, 2.ª edição, 2008, Almedina, pág. 242-243) «A expressão utilizada ‘direito à restituição’ não deve ser encarada no sentido de uma viagem de regresso entre patrimónios.
6.– A sentença recorrida violou o disposto no art. 616º, nº 1 do C. Civil.”
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Interpuseram igualmente recurso as RR. FIM, Lda...; F...Lda. e N...Lda., formulando idênticas Conclusões:
1.–As presentes conclusões começam por dizer respeito ao recurso da decisão interlocutória proferida no despacho saneador.
2.–Na presente situação não estão verificados os requisitos que permitam a prática de medidas cautelares.
3.–A sua admissão vem prevista nas al. a) e b) do n.º 1 do art.º 26º, do Dec. Lei n.º 263/2012, de 20.12, e que no presente caso não têm aplicação, dado que, em primeiro lugar não existe qualquer pedido à prática de medidas cautelares por parte do Estado-Membro requerente; em segundo lugar, mesmo que existisse esse pedido, e de acordo com o previsto no n.º 1 do art.º 26º, apenas seria válido mediante a verificação de alguma das circunstâncias indicadas nas alíneas a) e b) do corpo do n.º 1 daquele artigo.
4.–E quanto a esta parte, não se verifica nenhuma daquelas circunstâncias, uma vez que o crédito objecto do respectivo título executivo naquele Estado-Membro nunca foi objeto de contestação, em nenhum momento processual, e muito menos no momento em que o pedido foi efetuado (1);
5.–E quanto à previsão da al. b), esta aqui não tem aplicabilidade, uma vez que seria aplicável a situações em que ainda não existe título executivo (2), o que não é o caso.
6.–A Ré F…Lda. não concorda com a interpretação feita pelo Tribunal relativamente ao entendimento sobre o significado jurídico de “medidas cautelares” no âmbito do referido diploma.
7.–O conceito da terminologia - “medidas cautelares” – ínsitas no próprio D.L 263/2012. de 20.12, abrange todas as medidas de natureza cautelar, quer sejam preventivas, conservatórias, e afins, independentemente da forma que assumam na legislação portuguesa, ou do meio utilizado para a sua concretização.
8.–O referido diploma é a transposição para a ordem jurídica interna da Directiva n.º 2010/24/EU, do Conselho de 16 de março de 2010, o que significa que a utilização e emprego dos termos de conteúdo jurídico na legislação europeia, é feito o mais extensivamente possível em termos literais, uma vez que a directiva é de âmbito genérico de aplicação (e de integração normativa) em todos os países da União Europeia.
9.–O que tem como consequência que cada um dos Estados, quando faz a integração para o seu ordenamento jurídico, tenha de ter liberdade de adaptação e de aplicação dos conceitos e figuras jurídicas previstas dentro do seu próprio sistema àquela terminologia, deixada propositadamente genérica.
10.–Por isso - e propositadamente - os legisladores (da União Europeia) fazem consagrar conceitos jurídicos com sentidos semânticos mais abrangentes, de modo a que cada país, os integre e adeque às medidas jurídicas que se encontram previstas na legislação de cada estado, e no seu ordenamento - dado que, as tais “medidas cautelares” assumem formas e procedimentos distintos de país para país, e têm nomenclaturas distintas em cada Estado.
11.–Não se pode por isso restringir e reduzir ao conceito de medidas cautelares – somente às providências cautelares que estão previstas no nosso ordenamento, como entendeu o Tribunal de 1ª Instância.
12.–A este propósito caberá mesmo referir que no leque destas medidas cautelares, já assistimos noutros processos de pedidos de assistência mútua, ao entendimento extensivo dos Tribunais portugueses sobre o enquadramento de pedidos que o Estado requerente entende tratar-se de uma medida cautelar, e que não reveste a forma de providência cautelar tal como vem consagrada e prevista na legislação portuguesa, designadamente as previstas nos artigos 135.º e seguintes e 214.º do CPPT, ou seja, o arresto e o arrolamento.
13.– Conforme consta nas alegações, os Tribunais superiores já aceitaram a integração de outras figuras jurídicas no conceito de medidas cautelares ao abrigo deste diploma – para além das providências cautelares.
14.– Sendo essencial nesta interpretação, e na busca de respostas a esta questão, que se tenha em conta o objectivo que se pretende com determinado processo, ou procedimento judicial – ou se quisermos – o objectivo que se pretenda com a medida cautelar praticada.
15.–Claro está que nesta interpretação (e neste caso), temos sempre de procurar qual a finalidade dos actos praticados pela AT em representação do Estado requerente, para dali se poder retirar a conclusão sobre a natureza do próprio acto.
16.–E por isso dizemos que a impugnação pauliana, tem uma natureza de medida cautelar (não de providência), uma vez que visa a integridade da garantia patrimonial.
17.–Como meio de conservação da garantia patrimonial, confere ao credor a possibilidade de reagir contra os actos praticados pelo devedor que diminuam o activo ou aumentem o passivo do seu património
18.–Ora, se estamos na presença de um instrumento jurídico que permite a um credor interpor a correspondente acção judicial tendo em vista a conservação patrimonial dos bens do devedor - claro que teremos de concluir que este instrumento assume uma natureza de medida cautelar.
19.–O interesse que move o próprio Autor neste processo, é o de conservar os referidos bens na esfera patrimonial da devedora, e por isso até promoveu o registo desta acção no que se refere ao bem imóvel objecto da impugnação.
20.–Portanto, o que se pede que seja objecto de análise e de interpretação no presente recurso, é que seja aceite que esta acção de impugnação pauliana, configura – atento o seu objecto e finalidade - a conservação do património em causa, tratando-se por isso de uma medida cautelar no sentido do seu desiderato, e até latu senso.
21.–Temos de atender à finalidade daquela acção, ou de um determinado procedimento em causa, em vez de nos atermos apenas à forma ou o meio utilizado (porque isso será abrir a tal janela, à porta que se fechou).
22.–Necessário será que se procure integrar qual a finalidade que se visa com a medida praticada e peticionada.
23.–Sobre a finalidade deste processo, aquilo que o A. quer, é precaver e premunir que hajam bens susceptíveis de serem objecto de penhora em sede de execução.
24.–O que se impunha que o Tribunal tivesse feito, era focar-se naquilo que são os objectivos que o A. pretende alcançar com o recurso à acção pauliana.
25.–Isto é, validar se aquilo que o A. deseja alcançar, tem ou não tem, os mesmos efeitos de outras figuras de natureza cautelar - onde se integram as providências cautelares, a prestação de garantias, e figuras afins.
26.–E pensamos que dúvidas não haverá de que o objectivo final visado será a conservação de património susceptível de ser executado, tal como se passa nos arrestos e arrolamentos.
27.–Por isso quando olhamos para a situação somente atendendo à forma de processo aqui em causa, estamos precisamente a permitir que o A. vise alcançar os mesmos objectivos que afinal lhe estão vedados, pelo facto de não estarem reunidos os requisitos para a prática das medidas cautelares.
28.–No nosso ordenamento jurídico as medidas cautelares podem assumir várias formas, e ser de natureza distinta.
29.–E sobre esta matéria dúvidas não devem haver, desde logo porque resulta cristalino qual é a intenção do A., devidamente exposta na sua PI..
30.–E independentemente do que lhe “chamem” – passe a expressão – ninguém pode negar que o objectivo desta acção pauliana não será de natureza conservatória, e por isso mesmo ter a pretensão de acautelar a garantia da cobrança dos créditos em causa.
31.–Por isso ainda que esteja em causa uma acção declarativa constitutiva de processo comum, ou mesmo é dizer-se que nesta acção vem peticionado que se declare um direito que tem como objectivo final a impugnação de vários actos de alienação, tendo em vista a declaração do autor poder executar os bens no património do 1º R..
32.–Sendo esta análise que deveria ter sido feita, e não apenas a constatação da natureza do processo quanto à sua forma e espécie.
33.–Devendo ser feita a interpretação de que, no leque (até de certo modo vasto) de medidas cautelares no nosso ordenamento jurídico, a impugnação pauliana cabe nesse conjunto de medidas.
34.–E por força dessa qualificação - e tratando-se de uma medida cautelar, não poderá esta ser praticada no âmbito do presente processo, por não estarem reunidos os requisitos para a prática de medidas cautelares no âmbito do Dec. Lei n.º 263/2012, de 20.12.
35.–Tendo como consequência a absolvição do próprio pedido, na justa medida em que, não estando reunidos os requisitos previstos no referido decreto, nenhuma qualquer outra entidade – designadamente o Estado Belga – poderá vir instaurar um processo de objecto idêntico tendo pedido a assistência.
36.–Caso assim se não entenda vem ainda o presente recurso interposto da Sentença proferida.
37.–A Apelante considera que a sentença recorrida não ajuizou correctamente segundo o Direito aplicável, e também não se conforma com a matéria de facto que foi dada por assente, impugnando-a de forma expressa, de acordo com as alegações supra desenvolvidas.
38.–O Facto 15. dado como provado, deverá passar a ser dado como Não Provado.
39.–O Facto 16. dado como provado, deverá passar a ser dado como Não Provado.
40.–O Facto 17. dado como provado, deverá passar a ser dado como Não Provado.
41.–O Facto 18. dado como provado, deverá passar a ser dado como Não Provado.
42.–O Facto 21. dado como não provado, deverá passar a ser dado como Provado.
43.–Não existem no processo elementos documentais nem resulta do depoimento das testemunhas, que permitam concluir que as RR. agiram com a intenção de obstar e subtrair património ao pagamento da dívida, e que tenham actuado conscientes que dos negócios causavam prejuízo ao credor.
44.–Mormente no caso da R. N…Lda., que contrariamente às outras RR. não era gerida pelo mesmo gerente da devedora F…Lda.
45.–Não existe qualquer elemento probatório que permitisse ao Tribunal apurar que a gerente da N...Lda., agindo na representação daquela sociedade, sabia que a F…Lda. era devedora ao Estado Belga.
46.–Não existe qualquer elemento probatório que permitisse ao Tribunal apurar que a gerente da N…Lda., agindo na representação daquela sociedade, sabia que estaria a causa prejuízo ao credor.
47.–Assim como não existem no processo elementos que permitam afirmar com todo o rigor, que a sociedade deixou de ter bens suficientes que permitissem satisfazer o crédito, após a transmissão dos referidos bens imóveis e móveis a terceiros.
48.–A sociedade devedora manteve nas suas contas o produto das vendas, e tinha créditos a receber sob terceiros.
49.–Não se pode dar como provado que a sociedade FIM…Lda. não tinha bens de valor substancial, porque a AT através do que foi declarado pela testemunha TT, afirmou não ter obtido resultado e sucesso nas penhoras que realizou, tanto mais que essas tentativas somente ocorreram já no decurso do ano de 2020, ou seja no ano seguinte à citação da execução e à concretização dos negócios.
50.–O depoimento da testemunha TT, Técnica Superior responsável pela condução do processo de averiguações levado a cabo pela AT, não depôs no sentido de acrescentar alguma coisa relevante, além da informação contida nos documentos que já se encontravam junto aos autos.
51.–Teve até uma intervenção susceptível de colocar em causa o modo como esse procedimento foi levado a cabo pela AT, tendo dito ao Tribunal que não houve necessidade de verificar os fluxos financeiros entre as empresas na sequência das compras e vendas, por considerar não ser relevante ao caso em concreto.
52.–Estamos na presença de uma impugnação pauliana, em que a sua procedência depende da verificação de determinados requisitos, e estando em causa negócios onerosos, claro está que estes elementos eram fundamentais que fossem averiguados, contrariamente ao afirmado pela testemunha.
53.–Como não foram averiguados quer este elemento, quer outros de especial relevância como fosse a verdadeira relação entre os intervenientes, e aquilo que cada um saberia relativamente à dívida da F…Lda.
54.–E por isso o processo remetido ao Ministério Público chegou “coxo”, e a presente acção deu entrada com os elementos que dispunha, e baseado no parecer do Chefe de Divisão da Direcção de Finanças de Setúbal.
55.–Formulando a mesma construção fáctica, que basicamente consistiu na enunciação de factos (baseados em documentos que titulam as transmissões), e partindo logo de seguida para as conclusões baseadas na sua convicção, mas que não chega para dali se promover a impugnação.
56.–Precisamente porque falta a parte essencial que é do preenchimento dos requisitos, e se estamos na presença de um acto oneroso - caberia ao A. demonstrá-los no processo, a saber:
- A má fé do devedor e a dos terceiros adquirentes, entendida como a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor;
- O devedor tem bens penhoráveis de igual ou maior valor:
57.–E nesta parte surge cristalino que não está demonstrado logo o primeiro requisito deles, na justa medida em que o credor não está apenas obrigado à demonstração do facto constitutivo, mas a provar a má-fé do devedor e dos terceiros adquirentes.
58.–E quanto a esta parte, e ainda que se entendesse de modo muito esforçado que a N...Lda. era uma entidade das relações da F, …Lda. por causa do conhecimento entre os seus gerentes, a verdade é que não existe no processo qualquer elemento que permita concluir que a N…Lda. por intermédio da sua gerente, agiu com má-fé.
59.–Nem sequer resultou provado que a N…Lda. conhecesse a dívida do devedor perante o Estado Belga.
60.–Não existem documentos que nos demonstrem isto.
61.–Não existem testemunhas que o tenham referido.
62.–Mas até se percebe porque é que este trabalho de recolha de elementos não foi feito. Afinal a testemunha teve ocasião de esclarecer que nem sequer consideraram necessário verificarem se houve fluxos financeiros.
63.–Portanto, é absolutamente natural que não tivessem tido também o trabalho de buscarem saber o que a gerente da N…Lda. sabia ou não, sobre esta dívida.
64.–Está claro que o procedimento da AT não andou de mãos dadas com a necessidade de preenchimento dos requisitos da impugnação pauliana.
65.–Cabe ainda referir, que mesmo que o tivessem feito o resultado seria o mesmo. Ou seja, concluiriam que a gerente da N…Lda. nada sabia sobre a invocada dívida da F…Lda., e que por isso, nenhuma ponta de má fé poderia ter presidido no seu espírito quando adquiriu o imóvel.
66.–Quanto ao ónus que cabia às RR. no sentido da demonstração da F...Lda. ter ficado com bens de igual ou maior valor para suportar a cobrança destes créditos, haverá a referir antes de tudo o mais, que a R. F...Lda. nunca teve ao longo da sua existência, sequer bens daquele valor aproximado.
67.–Portanto este requisito deverá ser adaptado ao caso concreto, e com isso devemos dizer que, apesar da F...Lda. nunca ter disposto na sua esfera patrimonial de bens daquele valor, a realidade é que, apesar das vendas terem sido feitas, ficou com dinheiro nas suas contas.
68.–Pelo que temos exposto não podemos concordar com o plasmado na Sentença a fls. 25, quando se interpreta que pelo facto da gerente da N...Lda. ter apresentado IRS conjunto com o gerente da F...Lda., seria o crédito “logicamente conhecido de todas as rés”.
69.–Encontramos a par e passo estes juízos conclusivos, sem que se tenha percorrido todo um itinerário lógico para ali se chegar, pois é manifestamente insuficiente concluir que a N...Lda. sabia da existência do crédito, e do prejuízo que causava ao credor, partindo apenas da premissa de que os gerentes apresentaram IRS conjunto em 2017.
70.–A gerente da N...Lda. nunca teve qualquer contacto ou ligação às empresas geridas por FJ.
71.–Parece-nos muito excessiva e muito esforçada a interpretação feita a este respeito, uma vez que de permeio, no percurso do itinerário cognitivo - carecia o Tribunal de estar munido de mais elementos concludentes, mas que não foram obtidos, apesar de ser um ónus que incumbia ao A..
72.–Verifica-se que não se mostram preenchidos os requisitos da impugnação pauliana quanto à demonstração do conhecimento da dívida ao Estado Belga por parte da N...Lda., e da consciência do prejuízo que, eventualmente, estaria a causar com a aquisição do terreno.
Termos em que, pelo que antecede e pelo muito que V. Exas. haverão doutamente de suprir, deve ser dado provimento ao presente recurso:
1–Revogando-se a decisão proferida no despacho saneador quanto à matéria vertida na primeira parte do recurso, e ser declarado que não se verificam os requisitos para a prática de medidas cautelares pelo A. (Ministério Público), determinando-se a absolvição das RR. dos pedidos,
2–Revogando-se a sentença recorrida e, em consequência, julgar totalmente improcedentes os pedidos deduzidos pelo A., designadamente por não resultar provado o preenchimento dos requisitos da impugnação pauliana quanto ao negócio em que interveio a R. N...Lda..”
*

Contra-alegou o MºP relativamente aos Recursos interpostos pelas RR., Concluindo de modo idêntico:
1.–No caso de Portugal, a autoridade competente para efeitos de aplicação do regime de assistência mútua à cobrança é o Ministério das Finanças (art. 5º, nº 1 do DL 263/2012). A Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) constitui um serviço simples da administração direta do Estado, integrada, hierarquicamente, no Ministério das Finanças (art. 4º, al. f) do DL 117/2011, de 15/12), sem personalidade jurídica e, consequentemente, destituída de personalidade judiciária (art. 11º, conjugadamente com os arts 12º e 15º, todos do CPC).
2.–O Estado, porque é do Estado que se trata enquanto entidade jurídica, é representado em juízo pelo Ministério Público, conforme decorre, quer do artigo 24º do CPC, quer do art. 2º, conjugado com a alínea b) do nº 1 do art. 4º, ambos da Lei 68/2019, de 27/8 que aprovou o Estatuto do Ministério Público.
3.–De acordo com o art. 28º, nº 1 do DL 263/2012, «Na execução da cobrança de créditos ou na adoção de medidas cautelares solicitadas por uma autoridade competente de outro Estado -Membro são aplicáveis as disposições do ordenamento jurídico -nacional estabelecidas para os créditos relativos aos mesmos impostos ou direitos ou, na sua ausência, a impostos ou direitos similares».
4.–A ação de impugnação pauliana não é uma providência cautelar (art. 26º, nº 1 do DL 263/2012 e arts. 362º e seg., do CPC).
5.–A utilização da ação de impugnação pauliana para conservação do património dos réus/obtenção de título executivo contra terceiro adquirente não configura a exceção de ilegitimidade ativa do autor, falta de interesse em agir ou uma providência cautelar.
6.–A modificação da matéria de facto só terá pleno cabimento quando haja um erro evidente, na sua apreciação. Sendo que a valoração da prova testemunhal assenta no principio da livre apreciação (art. 396º do C. Civil).
7.–A prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, mesmo quando conjugada com as regras da lógica, experiência comum e normalidade, é manifestamente insuficiente para fundar o proferimento   decisão sobre a matéria de facto nos termos pretendidos pela recorrente.
8.–As respostas dadas aos factos 15º a 18º e 21º foram devidamente motivadas, tendo por base a prova resultante tanto dos documentos juntos, quanto dos depoimentos das testemunhas, e ainda pela respetiva conjugação, encontrando-se as mesmas isentas de reparo, pelo que não devem ser alteradas.
9.–Encontram reunidos no caso concreto os requisitos legais previstos no art. 610º, alíneas a) e b) do C. Civil para a procedência da ação.
10.–Decidindo como decidiu, a Mª Juiz a quo fez uma adequada e correta aplicação do Direito.”
*

Colhidos os vistos cumpre decidir.
***

II.–Questões a decidir:

Como resulta do disposto pelos artigos 5º; 635º, n.º 3 e 639º n.º 1 e n.º 3, todos do Código de Processo Civil (e é jurisprudência consolidada nos Tribunais Superiores) para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, o objeto do recurso é delimitado em função das conclusões formuladas pelo recorrente.
Deste modo no caso concreto, por uma questão de facilidade de exposição e raciocínio ir-se-ão apreciar as seguintes questões sucessivamente:
- Da legitimidade do MºPº para a interposição da presente acção;
- Da reapreciação da matéria de facto;
- Se da mesma resulta fundamento jurídico para alterar a decisão recorrida;
- Do lapso na decisão de improcedência de um dos pedidos formulados pelo MºPº.
***

III.–Da legitimidade do MºPº.

Nas suas alegações de Recurso, insurgem-se os Recorrentes contra a decisão proferida no Despacho Saneador, que julgou o MºPº parte legítima para intentar a presente acção.
Alegam para tanto e em resumo que se deve entender que a presente acção integra as acções previstas pelas al. a) e b) do n.º 1 do art.º 26º, do Dec. Lei n.º 263/2012, de 20/12, e que no presente caso não têm aplicação, dado que, em primeiro lugar não existe qualquer pedido à prática de medidas cautelares por parte do Estado-Membro requerente; em segundo lugar, mesmo que existisse esse pedido, e de acordo com o previsto no n.º 1 do art.º 26º, apenas seria válido mediante a verificação de alguma das circunstâncias indicadas nas alíneas a) e b) do corpo do n.º 1 daquele artigo, o que no caso não se verifica.
Invocam ainda que se deve considerar a presente acção como uma  “medida cautelar” – ínsitas no próprio D.L 263/2012. de 20.12, que abrange todas as medidas de natureza cautelar, quer sejam preventivas, conservatórias, e afins, independentemente da forma que assumam na legislação portuguesa, ou do meio utilizado para a sua concretização.
Vejamos.
Dispõe o art.º 30º do Código de Processo Civil que:
1–O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2–O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3–Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.”
Decorre do n.º 3 desta norma que é na Lei que se deve procurar, antes de mais, o fundamento para a legitimidade da parte.
No caso, o MºPº actua invocando o Decreto-Lei n.º 263/2012 de 20 de dezembro, que transpõe a Diretiva n.º 2010/24/UE, do Conselho, de 16 de março de 2010, relativa à assistência mútua em matéria de cobrança de créditos respeitantes a impostos, direitos e outras medidas, definindo os termos de aplicação do regime de assistência mútua à cobrança a que fica sujeito o Estado Português.
Como se pode ler no intróito deste Dec.-Lei, com o mesmo visa-se introduzir “(…) profundas alterações em matéria de assistência mútua na cobrança entre Estados-Membros, visando dar resposta à ameaça que o aumento da fraude constitui para os interesses financeiros da União Europeia (UE) e dos Estados-Membros e para o bom funcionamento do mercado interno, bem como salvaguardar, de forma mais adequada, a competitividade e a neutralidade fiscal no espaço europeu.
Refira-se que a revisão desta diretiva relativa à cobrança de créditos, com o objetivo de aperfeiçoar as regras existentes, estimular o recurso à assistência mútua na cobrança e facilitar a sua aplicação prática, vinha sendo, desde há algum tempo, apontada pela Comissão como uma das medidas de uma estratégia coordenada na luta contra a fraude ao IVA a nível da UE.
Tendo em vista alcançar tais objetivos, foi alargado o âmbito de aplicação do regime de assistência mútua aos créditos respeitantes a impostos e direitos ainda não abrangidos pela assistência mútua à cobrança. (…)”
De acordo com o art.º 3º, n.º 1, a) deste Diploma, “1 - Ficam abrangidos pelo regime de assistência mútua à cobrança previsto no presente decreto-lei, os créditos relativos a: (…) a) Todos os impostos e direitos, independentemente da sua natureza, cobrados diretamente ou em seu nome por um Estado-Membro ou pelas suas subdivisões territoriais ou administrativas, incluindo as autoridades locais, ou em nome da União Europeia; (…)”.
Nos termos do art.º 5º, n.º 1 do Dec.-Lei 263/2012, a autoridade competente para efeitos de aplicação do regime de assistência mútua à cobrança é o Ministério das Finanças.
E aqui, como pode ler-se na decisão agora posta em crise, “E é consabido que a Autoridade Tributária e Aduaneira constitui um serviço simples da administração directa do Estado, integrada, hierarquicamente, no Ministério das Finanças (art.º 4.º, alínea f), do Decreto-Lei n.º 117/2011, de 15 de Dezembro), a qual não dispõe de personalidade jurídica e, consequentemente, se mostra destituída de personalidade judiciária (cfr. art.ºs 11.º, 12.º e 15.º, do Código de Processo Civil).
Assim, é o Estado Português que é representado em Juízo pelo Ministério Público, conforme claramente deflui do disposto no art.º 24.º, do Código de Processo Civil, em conjugação com os art.ºs 2.º e 4.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto do Ministério Público, aprovado pela Lei n.º 68/2019, de 27 de Agosto.”
Está desta forma assegurada uma das vertentes da legitimidade processual para a instauração da presente acção; legitimidade indirecta ou extraordinária porquanto o credor não coincide com o autor da acção, tal como pode ler-se no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/11/2018, Proc. n.º 1499/13.0T2AVR.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt [numa acção de impugnação pauliana, tratando-se de um crédito de instituto público e tendo sido instaurada execução fiscal, mas cuja fundamentação jurídica tem paralelo com a presente acção]: Trata-se de uma situação que traduz a atribuição de legitimidade indireta ou extraordinária decorrente de lei específica, em termos que se encontram genericamente acautelados no nº 3 do art. 30º do CPC.” -
Mas para além desta legitimidade que advém da representação da autoridade competente, tal como determina o Dec.-Lei 263/2012, é necessário ainda que o MºPº actue dentro dos limites previstos neste diploma.
Ora, nos termos do art.º 7º do Dec.-Lei 263/2012, para o que aqui interessa: “A assistência à cobrança que o Estado português fica obrigado a prestar a pedido das autoridades competentes de outro Estado-Membro, bem como a que pode requerer a essas autoridades, respeita aos seguintes mecanismos: (…)
c) Cobrança de créditos objeto de um título executivo uniforme ou adoção de medidas cautelares para garantia da cobrança.”
Há assim dois tipos de actuações previstas nesta alínea c): ou a cobrança de um crédito que já consta consolidado num título executivo ou a adopção de medidas cautelares prévias, destinadas a garantir a futura cobrança do crédito.
Tal resulta claro da Secção III, onde se prevém os dois tipos de actuações – as Cobranças de créditos objeto de título executivo uniforme (previstas nos artigos 23º a 25º) e as Medidas cautelares (previstas nos artigos 26º e 27º).

Não há dúvida que a presente actuação do MºPº não respeita a nenhuma medida cautelar, prevista pelos artigos 26º e 27º:

“Artigo 26.º
Medidas cautelares a pedido de outro Estado-Membro
1–A pedido de uma autoridade competente de outro Estado-Membro, as autoridades nacionais a que se refere o artigo 5.º adotam as providências cautelares admitidas nas disposições legislativas nacionais para garantir a cobrança de qualquer dos créditos abrangidos pelo artigo 3.º, caso se verifique alguma das seguintes circunstâncias:
a)- O crédito em causa ou o respetivo título executivo naquele Estado-Membro tenham sido objeto de contestação no momento em que o pedido é efetuado;
b)- O crédito não tenha ainda sido objeto de um título executivo, mas o direito interno e as práticas administrativas do Estado-Membro requerente admitam a adoção de medidas cautelares nesta situação.
2–O pedido de adoção de medidas cautelares pode ser acompanhado de outros documentos respeitantes ao crédito em causa, emitidos pelo Estado-Membro requerente.
3–Nas circunstâncias a que se refere a alínea b) do n.º 1, o documento relativo à aplicação de medidas cautelares no Estado-Membro requerente é anexado ao pedido de adoção de medidas cautelares, não estando sujeito a nenhum ato adicional de reconhecimento, completamento ou substituição em território nacional.

Artigo 27.º
Pedido de medidas cautelares
1–As autoridades nacionais a que se refere o artigo 5.º podem solicitar à autoridade competente de outro Estado-Membro a adoção de medidas cautelares com vista a garantir a cobrança de qualquer crédito abrangido pelo artigo 3.º, desde que as providências cautelares requeridas sejam admissíveis nos termos e nos limites previstos nas disposições legislativas nacionais.
2–O pedido de adoção de medidas cautelares pode ser acompanhado de quaisquer outros documentos respeitantes ao crédito em causa emitidos por autoridades nacionais.”

A presente acção visa garantir que o crédito objecto de execução fiscal, com fundamento em título executivo, seja satisfeito.
Insere-se assim no âmbito do que dispõe o art.º 23º do Dec.-Lei 263/2012, mais especificamente no que prevê o seu n.º 2:
“Cobrança de créditos a pedido de outro Estado-Membro
1–A pedido de uma autoridade competente de outro Estado-Membro, as autoridades nacionais a que se refere o artigo 5.º promovem a cobrança dos créditos abrangidos pelo artigo 3.º que sejam objeto de um título executivo uniforme.
2–O título executivo uniforme, que acompanha o pedido de cobrança, constitui base jurídica apta e suficiente para a execução da cobrança ou a adoção de medidas cautelares em território nacional.”

Ou seja, a impugnação pauliana, não cabendo no âmbito do que são as medidas cautelares dos artigos 26º e 27º - que hão-de corresponder no nosso ordenamento jurídico ao que são procedimentos cautelares, de âmbito mais estrito - não há dúvida que se enquadra nas medidas cautelares destinadas à cobrança do crédito já consolidado pelo Título executivo, referidas no n.º 2 do art.º 23º.
Veja-se o que se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça supra citado, cuja fundamentação jurídica, mais uma vez, é susceptível de ser transposta para o caso concreto que aqui nos ocupa:
“Decidiu a Relação que ainda que ao Estado fosse reconhecida legitimidade ativa para as execuções fiscais, tal não determinaria a atribuição de legitimidade ativa para a instauração da presente ação de impugnação pauliana.
Tal objeção não encontra fundamento legal.
Reconhecida ao Estado legitimidade promover as execuções fiscais, a qual se configurava logo na ocasião em que foram instauradas ou, de qualquer modo, por via de alteração legal posterior, tal implica necessariamente que se reconheça legitimidade para acionar os mecanismos processuais tendentes à conservação da garantia patrimonial dos créditos exequendos, de modo a tornar possível a cobrança coerciva da dívida exequenda através da execução de bens que foram alienados com o intuito de os retirar da esfera der atuação do exequente.
Sendo agora da exclusiva competência do Estado - Autoridade Tributária promover o cumprimento coercivo das obrigações que o R. contraiu perante o IMT, IP, não poderia deixar de se reconhecer igualmente legitimidade ativa para instaurar ações, como a ação de impugnação pauliana, tendo em vista satisfazer a garantia patrimonial dos créditos correspondentes a tais obrigações.
Deste modo terá que proceder a revista, considerando que o Estado-Fazenda Nacional, no caso representado pelo Ministério Público, tem legitimidade para instaurar a presente ação.”

A transposição da Directiva e os termos adoptados, pela sua confusão, com utilização da mesma referência a “medidas cautelares” pode não ter sido a mais feliz, mas o seu sentido encontra-se na análise sistemática do diploma.
Veja-se a diferença entre o art.º 26º, n.º 1, e o que se estipula no art.º 24º:”Pedido de cobrança de créditos
1– As autoridades nacionais a que se refere o artigo 5.º podem solicitar à autoridade competente de outro Estado-Membro a cobrança de qualquer crédito abrangido pelo artigo 3.º que seja objeto de um título executivo no território português.
2– O pedido referido no número anterior só pode ser apresentado quando, relativamente ao crédito ou ao título executivo, não estiver pendente reclamação graciosa, impugnação judicial, recurso judicial ou oposição à execução, sem prejuízo do disposto no n.º 4 do artigo 30.º
3– O pedido só é admissível após terem sido esgotados os procedimentos de cobrança voluntária e coerciva previstos nas disposições legislativas nacionais, salvo quando se verifique qualquer uma das seguintes circunstâncias:
a)- Seja patente que não existem ativos no território nacional ou que aqueles procedimentos não são passíveis de conduzir ao pagamento integral do crédito, e as autoridades nacionais competentes dispuserem de informações específicas indicando que a pessoa dispõe de ativos em outro Estado-Membro;
b)- O recurso a esses procedimentos em território nacional implique dificuldades desproporcionadas.”

É assim acertada a fundamentação da decisão em causa na parte em que refere: “E, de acordo com a estatuição do art.º 28.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 263/2012, de 20 de Dezembro, não podemos deixar de considerar, para o que ao caso em análise importa, que «Na execução da cobrança de créditos ou na adoção de medidas cautelares solicitadas por uma autoridade competente de outro Estado-Membro são aplicáveis as disposições do ordenamento jurídico-nacional estabelecidas para os créditos relativos aos mesmos impostos ou direitos ou, na sua ausência, a impostos ou direitos similares».
Conforme ficou já mencionado, o recurso à acção de impugnação pauliana visa a conservação do património dos réus, enquanto garantia do crédito de que é titular o Estado Membro requerente, cuja assistência para sua cobrança foi solicitada ao Estado Português, e tem por fundamento a alegada prática de actos mediante os quais os réus dissiparam o património que garante a satisfação desse direito de crédito, por forma a impossibilitar ou a dificultar relevantemente a satisfação integral dos créditos de impostos em apreço.
Na situação vertente, tendo aplicação as disposições do ordenamento jurídico interno (nacional) estabelecidas para os créditos relativos aos mesmos impostos ou direitos, a utilização da acção de impugnação pauliana pelo Estado membro requerido, representado pelo Ministério Público, para conservação do património dos réus ou para a obtenção de um título executivo contra terceiro adquirente, insere-se no âmbito da assistência solicitada ao Estado Português para lograr a cobrança do crédito fiscal em apreço e não configura, portanto, a excepção de ilegitimidade activa do autor e muito menos a excepção de falta de interesse em agir (…)”.
Pelo exposto, inexiste fundamento para alterar o que ficou decidido sobre a legitimidade do A. em sede de Despacho Saneador, improcedendo nesta parte o Recurso.
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IV.–Fundamentação de Facto.

São os seguintes os factos provados na 1ª Instância:
1)-A ré «F...Lda.» assumiu, sucessivamente, a natureza de sociedade por quotas, de sociedade unipessoal por quotas, de sociedade anónima e novamente de sociedade por quotas.
2)- O processo de execução fiscal n.º 2..............2, no qual a ré «F...Lda.» figura como executada, tem por base título executivo uniforme, emitido pelo Estado Membro Bélgica, no âmbito do mecanismo de assistência mútua na cobrança de créditos tributários, no seio da União Europeia, nos termos constantes do documento de fls. 15 verso e 16, cujo teor se dá por reproduzido.
3)- Por carta remetida em 22.09.2019 e recebida em 24.09.2019, a ré «F...Lda.» foi citada no processo de execução fiscal n.º 2..............2, para pagar a quantia de € 824.026,33 (oitocentos e vinte e quatro mil euros e vinte e seis euros e trinta e três cêntimos).
4)-Na data da aludida citação, FJ era administrador da ré «F...Lda.», sendo o seu actual gerente.
5)- À data da instauração do mencionado processo de execução fiscal contra a ré «F...Lda.», a mesma era proprietária de:
a.- Um terreno para construção inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de C____, S____, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..... sob o n.º …;
b.- Uma embarcação com a matrícula …;
c.- Máquinas e equipamentos de serralharia e soldadura;
d.- Mobiliário e equipamentos de escritório.
6)- Após a citação nos referidos autos de execução fiscal, em 17.10.2019, a ré «F...Lda.» declarou vender à ré «N..., Lda.», que declarou comprar-lhe, o terreno para construção inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de C____, S____, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..... sob o n.º …, pelo preço de € 170.000,00 (cento e setenta mil euros).
7)- À data da precedentemente referida aquisição, a ré «N...,Lda.» tinha como sócia gerente MS.
8)- Em 01.06.2018, MS e FJ apresentaram conjuntamente declaração de rendimentos - IRS - Modelo 3, relativa aos rendimentos obtidos por ambos no ano de 2017, declarando, para esse efeito, que viviam em união de facto.
9)- Em 26.09.2019, a ré «F...Lda.» declarou vender à ré «D...,Lda.», que declarou comprar-lhe, a embarcação matrícula …, pelo preço de € 15.000,00 (quinze mil euros).
10)-A ré «D..., Lda.» tinha como sócio gerente FJ, então administrador e actual gerente da ré «F...Lda.».
11)- Em 31.10.2019, a ré «F...Lda.» declarou vender à ré «FIM, Lda... », que declarou comprar-lhe, máquinas e equipamentos de serralharia e soldadura, pelo preço de € 38.000,00 (trinta e oito mil euros) e mobiliário e equipamentos de escritório, pelo preço de € 17.000,00 (dezassete mil euros).
12)-A ré «FIM, Lda» tinha como sócio gerente FJ, então administrador e actual gerente da ré «F...Lda.».
13)- A ré «F...Lda.» e gerência sabiam da existência dos referidos créditos desde 24.09.2019, tendo tomado conhecimento da pendência do referido processo de execução fiscal, pelo menos, desde a citação.
14)- O então administrador, actual gerente, da ré «F...Lda.», que a representou nos actos de alienação do património descritos em 9) e 11), é quem detinha poderes para, nesses mesmos actos, representar as sociedades rés «D..., Lda.» e «FIM, Lda... », adquirentes dos bens.
15)- À ré «F...Lda.» não são conhecidos outros bens penhoráveis cujo valor seja suficiente para satisfação do seu débito.
16)- Os factos mencionados foram praticados pelas rés para obstar e subtrair património ao pagamento da dívida, cujo processo corria termos contra a ré «F...Lda.».
17)- As rés actuaram conscientes do prejuízo que os ditos negócios causavam ao credor.
18)- A ré «F...Lda.» ficou, assim, sem bens suficientes que permitam o pagamento coercivo total da dívida, impossibilitando a satisfação do crédito.
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Factos Não Provados:

19)- À data da aquisição descrita em 6), MS vivia em união de facto com FJ.
20)- A ré «F...Lda.» e gerência sabiam da existência dos referidos créditos desde 22.09.2019.
21)- Os preços referidos em 6), 9) e 11) foram depositados em contas bancárias da sociedade «F...Lda.» e integraram o seu activo, sendo tais saldos susceptíveis de ser penhorados.
***

V.–Da reapreciação da matéria de facto.

O actual Código de Processo Civil introduziu um duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto, sujeitando a sua admissão aos requisitos previstos pelo art.º 640º do Código de Processo Civil.
Embora tal reapreciação tenha alcançado contornos mais abrangentes, não pretendeu o Legislador que se procedesse, no Tribunal Superior, a um novo Julgamento, com a repetição da prova já produzida nem com o mesmo limitar de alguma forma o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido.
Em caso de dúvida, porém, e como se encontra consagrado no artigo 414º do Código de Processo Civil, a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.

E, no caso de reapreciação da prova pelo Tribunal Superior, entende Ana Luísa Geraldes, Impugnação, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610, que “(…) em caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte (…) O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialeticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.”

Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no art.º 607º, n.º 5 do Código de Processo Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o Tribunal de recurso não pode já recorrer.

De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.

Desta forma, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada convicção, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Posto isto e observados pelos Recorrentes os requisitos para tanto exigidos pelo art.º 640º do Código de Processo Civil, impõe-se analisar a requerida reapreciação da matéria de facto.
*

Entendem as Recorrentes que os factos 15 a 18 dados como provados devem passar a Não Provados e que o Facto 21 Não Provado deve passar a Provado.

Relembremos aqui os Factos em causa:
15)-À ré «F...Lda.» não são conhecidos outros bens penhoráveis cujo valor seja suficiente para satisfação do seu débito.
16)-Os factos mencionados foram praticados pelas rés para obstar e subtrair património ao pagamento da dívida, cujo processo corria termos contra a ré «F...Lda.».
17)-As rés actuaram conscientes do prejuízo que os ditos negócios causavam ao credor.
18)-A ré «F...Lda.» ficou, assim, sem bens suficientes que permitam o pagamento coercivo total da dívida, impossibilitando a satisfação do crédito.
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Factos Não Provados: (…)
21)-Os preços referidos em 6), 9) e 11) foram depositados em contas bancárias da sociedade «F...Lda.» e integraram o seu activo, sendo tais saldos susceptíveis de ser penhorados.

Alegam as Recorrentes que, em síntese, não existem no processo elementos documentais nem resulta do depoimento da testemunha TT, Técnica Superior responsável pela condução do processo de averiguações levado a cabo pela AT, elementos que permitam concluir que as RR. agiram com a intenção de obstar e subtrair património ao pagamento da dívida, e que tenham actuado conscientes que dos negócios causavam prejuízo ao credor.
Vejamos.

Foi a seguinte a fundamentação sobre a matéria de facto em causa que consta da Sentença:
“De seu lado, a matéria que se encontra plasmada sob 15) a 18) fundou-se, essencialmente, no depoimento sincero, seguro e coerente da testemunha TT, a qual é técnica superior na Direcção de Finanças de S_____, valorado esse depoimento também mediante recurso às regras da experiência comum.
Com efeito, a testemunha TT relatou, com conhecimento, lógica e de forma contextualizada, conhecer as rés por causa e no exercício das suas funções profissionais, sabendo que contra a ré «F...Lda.» foi instaurado um processo de execução fiscal, em Setembro de 2019, decorrente de pedido formulado pelo Estado Membro Bélgica, para cobrança de créditos fiscais, com base em título executivo europeu, sabendo que essa ré alienou património, incluindo um imóvel, uma embarcação e material de escritório, bem como acrescentou, depois, o equipamento que existia nas suas instalações, o que foi verificado quando se visou proceder à penhora de bens naquele processo, tendo os bens sido alienados às sociedades rés, explicitando que os seus colegas do Serviço Finanças ..... - 1 se deslocaram às instalações da ré «F...Lda.» e verificaram que todo o material havia sido cedido à ré «FIM, Lda...», bem como relatou que todos os outros bens, para além desses, existiam no património da ré «F...Lda.», mas tendo-os esta alienado após ter sido citada na execução, tendo sido feitas diligências para encontrar outros bens, mas nada tendo sido encontrado, assim ficando totalmente frustrada a obtenção do pagamento do crédito, que ficou sem qualquer garantia patrimonial e daí ter a autoridade tributária recorrido ao Ministério Público, mas nada tendo sido pago até à data. Acrescentou depois a testemunha, com rigor, que também foi averiguado se a ré «F...Lda.» tinha créditos a receber de terceiros que pudessem ser penhorados, tendo sido efectuadas diligências junto da sua contabilista certificada, mas nada existindo, tendo a contabilista facultado inclusivamente balancetes para documentar tal informação, mais relatando a mesma testemunha que os colegas a que aludiu e que se deslocaram às instalações da ré «F...Lda.» informaram que quem ali se encontrava afirmou que os equipamentos pertenciam à «FIM, Lda...» e não à «F...Lda.», tendo exibido um contrato de locação, clarificando ainda a testemunha que o gerente das sociedades que adquiriram o património da ré «F...Lda.» é o mesmo, exceptuando a «N...Lda.», cuja gerente com o mesmo vivia em união de facto, pois entregaram o IRS de 2017 em conjunto e nessa situação.
Atenta a serenidade, detalhe e congruência do depoimento da testemunha TT, ficou o tribunal plenamente persuadido da veracidade dos eventos pela mesma relatados, mais nos dizendo as regras da experiência comum que, ao alienar o seu património a outras sociedades com a mesma gerência e a sociedade gerida por pessoa das relações pessoais de um dos gerentes (independentemente de se manter ou não à data do acto de disposição a situação de união de facto que se estabeleceu nos anos anteriores, mas a qual terá certamente existido e fundado a proximidade entre essas pessoas, que se terá conservado, ou não celebrariam negócios um com o outro), durante o curto período de dias e de pouco mais de um mês, isto é, tudo logo após (e coincidentemente) ter sido citada num processo executivo, cuja quantia exequenda ascendia ao destacadamente elevado montante de € 824.026,33, o fim visado pela ré «F...Lda.», tal como pelas demais rés - que não podiam deixar de saber da existência desse crédito -, não pode ter sido outro que não o de obstar e subtrair património ao pagamento da dívida, cujo processo corria termos contra a ré «F...Lda.», não podendo as rés deixar de estar cientes que com essa actuação prejudicavam o credor, o que quiseram e conseguiram.
E foram essas as razões subjacentes à formação da convicção do tribunal que o levaram a declarar provados os factos enunciados sob 15) a 18).
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No que se refere à ausência de demonstração da matéria elencada sob 19) a 21), funda-se a mesma na circunstância de não ter sido produzida prova apta e bastante para evidenciar a sua realidade, destacando-se, em particular, que o documento de fls. 26 verso e 27 apenas evidencia que a situação jurídica de união de facto existente entre os gerentes das rés terá subsistido certamente durante o ano de 2017, e foi declarada como tal em meados de 2018, não tendo sido produzida qualquer prova que se tenha revelado capaz de sustentar com o mínimo rigor e segurança a persistência dessa situação em Setembro de 2019, além de que o documento de fls. 17 evidencia que a citação se concretizou no dia 24 de Setembro de 2019 e não no dia 22 desse mês, data na qual foi expedida, mais se constatando que não foi produzida qualquer prova apta a evidenciar qual tenha sido o destino dos preços estabelecidos como contrapartida da transmissão da propriedade dos bens que integravam o património da sociedade «F...Lda.», não tendo, por isso, o tribunal ficado persuadido da realidade da factualidade enumerada sob 19) a 21), assim tendo que considerar esses factos como não provados, tal como se decidiu.”

Ora, ouvido na íntegra o depoimento da testemunha TT, não resultou deste qualquer motivo para alterar o que assim ficou decidido pelo Tribunal, nem decorre do mesmo que haja motivo para considerar que a conclusão a que o Tribunal a quo chegou se encontre errada ou eivada de qualquer vício que justifique modificar as respostas nos termos pretendidos pelas Recorrentes.
Para além desta circunstância, há que atender aqui ao que expressamente consigna o art.º 611º do Código Civil: “Incumbe ao credor a prova do montante das dívidas, e ao devedor ou a terceiro interessado na manutenção do acto a prova de que o obrigado possui bens penhoráveis de igual ou maior valor”; ou seja, ao contrário do que parecem defender os Recorrentes, não era ao A. que se impunha o ónus de provar a existência de outros bens ou créditos ou que o dinheiro alegadamente recebido com as vendas em causa deu entrada no património da devedora, mas às RR., o que manifestamente não fizeram.
Que à 1ª R. não são conhecidos outros bens penhoráveis cujo valor seja suficiente para satisfação do seu débito e que a 1ª R. ficou sem bens suficientes que permitam o pagamento coercivo total da dívida, impossibilitando a satisfação do crédito, resultou assente do depoimento da testemunha a este respeito e do seu conhecimento dos autos de execução (mesmo que as RR. lograssem provar e demonstrar, o que não fizeram, o que consta em 21, ainda assim o facto 18 se mantinha, atento o valor referido para as vendas e o valor do crédito exequendo).
Quanto à existência de invocados créditos, foi referido pela testemunha (e mencionado na fundamentação da Sentença) que foi posteriormente, em 2020, tentada a penhora de créditos, mas sem sucesso.
Relativamente ao “apuramento de fluxos financeiros” não se vislumbra o que pretendem as RR. com tal alegação: a existir dinheiro proveniente de vendas, cujo ónus de prova, reitere-se, incumbia às RR., o que seria natural e razoável é que o mesmo constasse de informações bancárias das empresas, susceptível de ser penhorado, sendo indiferente, do ponto de vista da execução e existência de bens penhoráveis, que houvesse menção em elementos de contabilidade ou fluxos financeiros. E se o mesmo foi destinado ao pagamento de outras dívidas da empresa, como sugerido pelos mandatários durante a inquirição da testemunha, igualmente seria irrelevante para efeitos de impugnação pauliana. Mas nenhuma prova a este respeito lograram as RR. fazer, não havendo assim qualquer fundamento para alteração do que ficou consignado em 15, 18 e 21.
Relativamente ao que consta em 16) “Os factos mencionados foram praticados pelas rés para obstar e subtrair património ao pagamento da dívida, cujo processo corria termos contra a ré «F...Lda.” e 17) “As rés actuaram conscientes do prejuízo que os ditos negócios causavam ao credor”, as Recorrentes sustentam que não foi feita prova dos mesmos nos autos.
Ora, é normal e lógico que tais factos não resultem de uma prova directa efectuada nos autos, tratando-se de uma actuação que visa defraudar os credores. Assim, o que sucede na normalidade e generalidade dos casos é que não há a produção de depoimentos com conhecimento directo de tais factos (acresce tratar-se de circunstâncias atinentes à formação de vontade).
Assim, na prova de tais circunstâncias tem na maior parte das vezes o Tribunal que se socorrer de presunções judiciais, nos termos do art.º 349.º do Código Civil: “Presunções são as ilações que a lei ou o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido.”
Veja-se o que se refere no Acórdão da Relação de Coimbra de 20/4/2016, Proc. nº 202/12, disponível em www dgsi: “Pode e deve recorrer-se à chamada presunção simples judicial (art. 351º do CC), inspirada nas regras da experiência, nas deduções lógicas, nos dados da intuição humana, no normal acontecer e nas regras da maior probabilidade das coisas da vida, para, isolada ou conjuntamente com os diversos meios probatórios, dar como provado um determinado facto, sobretudo nas acções de impugnação pauliana (…) As presunções judiciais, também designadas materiais, de facto ou de experiência (art.349º do CC ), não são, em rigor, verdadeiros meios de prova, mas antes “ meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência”, ou, noutra formulação, “ operação de elaboração das provas alcançadas por outros meios”, reconduzindo-se, assim, a simples “prova da primeira aparência”, baseada em juízos de probabilidade. Na definição legal, são ilações que o julgador tira de um facto conhecido (facto base da presunção) para afirmar um facto desconhecido (facto presumido), segundo as regras da experiência da vida, da normalidade, dos conhecimentos das várias disciplinas científicas, ou da lógica. Na expressiva lição de Chiovenda, “a presunção equivale, pois, a uma convicção fundada sobre a ordem normal das coisas” (Princípios de Direito Processual Civil, 4ªed., pág. 853).”.
Analisados os Factos Provados em 1) a 14) temos que contra a 1ª R. foi instaurada uma execução, para cobrança de créditos tributários, sendo requerente o Estado Belga e a quantia exequenda de € 824.026,33 (oitocentos e vinte e quatro mil euros e vinte e seis euros e trinta e três cêntimos).

À data da instauração do mencionado processo de execução fiscal a 1ª R. era proprietária de:
a.-Um terreno para construção inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de C____, S____, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..... sob o n.º …;
b.-Uma embarcação com a matrícula …;
c.-Máquinas e equipamentos de serralharia e soldadura;
d.-Mobiliário e equipamentos de escritório.

Citada esta R. em 24.09.2019, sendo FJ seu administrador e seu actual gerente, logo em 26.09.2019, a 1ª R. declarou vender à 3ª R., que declarou comprar-lhe, a embarcação matrícula …, pelo preço de € 15.000,00 (quinze mil euros), tendo a 3ª R. como sócio gerente FJ, então administrador e actual gerente da 1ª R.;  em 31.10.2019, a 1ª R. declarou vender à 4ª R., que declarou comprar-lhe, máquinas e equipamentos de serralharia e soldadura, pelo preço de € 38.000,00 (trinta e oito mil euros) e mobiliário e equipamentos de escritório, pelo preço de € 17.000,00 (dezassete mil euros), sendo que a 4ª R. tinha como sócio gerente FJ, então administrador e actual gerente da 1ª R.
Como se não bastasse, o então administrador, actual gerente, da 1ª R., que a representou nos actos de alienação do património descritos, é quem detinha poderes para, nesses mesmos actos, representar as sociedades 3ª e 4ª RR., adquirentes dos bens.
Destas circunstâncias não pode deixar de se concluir que a alienação dos bens em causa, sabendo o administrador e/ou gerente de todas as empresas da existência da dívida, teve como objectivo subtrair os bens à execução, prejudicando o credor.
Nesse mesmo período temporal, em 17.10.2019, a 1ª R. declarou vender à 2ª R., que declarou comprar-lhe, o terreno para construção inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de C____, S____, descrito na Conservatória do Registo Predial de ..... sob o n.º …, pelo preço de € 170.000,00 (cento e setenta mil euros); à data da aquisição, a 2ª R. tinha como sócia gerente MS; esta e FJ apresentaram conjuntamente em 1/6/2018 declaração de rendimentos - IRS - Modelo 3, relativa aos rendimentos obtidos por ambos no ano de 2017, declarando, para esse efeito, que viviam em união de facto.
Ou seja, entre 26/9/2019 (dois dias após a citação) e 31/10/2019 a 1ª R. desfez-se de todo o património conhecido que detinha, a empresas com coincidência de administrador/gerente ou a uma empresa cuja sócia gerente havia vivido em união de facto com aquele.
Todas estas circunstâncias permitem concluir, por apelo a presunções judiciais e regras de experiência, tal como o permite o citado art.º 349º do Código Civil e como se fez na Sentença – que a dívida era conhecida e que o fundamento para a cadeia de transmissões ocorrida, nos termos e momentos em que ocorreram, visaram tão somente subtrair, de forma consciente e ardilosa, os bens do património da devedora e assim defraudar o credor, sendo esta motivação e a dívida do conhecimento dos intervenientes no negócio.
Especialmente em relação ao negócio celebrado com a 2ª R., julga-se, como referido na Sentença, que a celebração deste negócio permite concluir que estas partes mantinham um contacto próximo, ainda que não tenha resultado provada a manutenção da situação da união de facto, mas esta foi declarada em relação, pelo menos ao ano de 2017.
Para esta ilação e aplicação da regra da presunção judicial, não havendo regra expressa no ordenamento civil, julga-se ainda assim pertinente chamar à colação o que o Legislador fez consagrar a este respeito no CIRE especialmente no seu artigo 49º, onde se encontra a definição do que sejam pessoas especialmente relacionadas com o devedor, constando do seu n.º 1, alínea d) as pessoas que tenham vivido habitualmente com o devedor em economia comum dentro dos 2 anos anteriores ao início do processo de insolvência (unidos de facto).
Consta do preâmbulo do CIRE, no seu Ponto 25, que “A categoria dos créditos subordinados abrange ainda, em particular, aqueles cujos titulares sejam ‘pessoas especialmente relacionadas com o devedor’ (seja ele pessoa singular ou colectiva, ou património autónomo), as quais são criteriosamente indicadas no artigo 49.º do diploma. Não se afigura desproporcionada, situando-nos na perspectiva de tais pessoas, a sujeição dos seus créditos ao regime de subordinação, face à situação de superioridade informativa sobre a situação do devedor, relativamente aos demais credores.
O combate a uma fonte frequente de frustração das finalidades do processo de insolvência, qual seja a de aproveitamento, por parte do devedor, de relações orgânicas ou de grupo, de parentesco, especial proximidade, dependência ou outras, para praticar actos prejudicais aos credores é prosseguido no âmbito da resolução de actos em benefício da massa insolvente, pois presume-se aí a má fé das pessoas especialmente relacionadas com o devedor que hajam participado ou tenham retirado proveito de actos deste, ainda que a relação especial não existisse à data do acto.”

Como pode ler-se em Ana Catarina da Silva Duarte, A qualificação como Pessoa Especialmente relacionada com o Devedor: uma análise em torno do artigo 49.º do CIRE, disponível em:
https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/86085/1/Ana%20Catarina%20da%20Silva%20Duarte.pdf:
“O regime aplicável às “pessoas especialmente relacionadas com o devedor”, cujo elenco se encontra previsto no art. 49.º do CIRE, radica na maior probabilidade de os negócios celebrados entre si colocarem em causa os interesses dos demais credores Com efeito, subjacente ao art. 49.º do CIRE está, desde logo, a existência de uma medida de caráter profilática, considerando-se, por isso, que os atos praticados entre o devedor e estas pessoas consigo especialmente relacionadas, estão sujeitos a uma suspeição especial, em virtude de estas pessoas estarem em situação de, com grande probabilidade, poderem conhecer a situação do devedor. Fala-se, por isso, em “superioridade informativa” relativamente aos demais credores, tal como supra mencionamos. Estas pessoas especialmente relacionadas com o devedor, em virtude da estreita ligação pessoal ou profissional que mantêm com este, podem ter, eventualmente, influído na própria conduta debitória, para seu único e exclusivo proveito. Com efeito, existe a suspicácia e desconfiança por parte do legislador insolvencial português, que estas pessoas podem, recorrentemente, persuadir o devedor a adotar condutas, exponencialmente, prejudiciais para a generalidade dos credores, mas com repercussões positivamente benéficas, única e exclusivamente, para aquelas. Desta sorte, há uma espécie de presunção de que o credor “pessoa especialmente relacionada com o devedor” não atuou com lisura ou de boa-fé, ficando, por conseguinte, sujeito a esta presunção de má-fé”.

Desta forma, não ocorre nem se vislumbra qualquer erro na apreciação da prova ou fundamento para alterar o que ficou decidido em sede de matéria de facto.
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V.–O Direito.

Decidida a reapreciação da matéria de facto nos termos supra referidos, decorre da mesma a improcedência dos Recursos interpostos pelas RR., dado que era naquela alteração que fundamentavam a sua pretensão nos Recursos interpostos.
Mantém-se assim verificados os pressupostos que levaram a deferir a pretensão do A.
Efectivamente, nos termos do art.º 610.º do Código Civil, os actos que envolvam diminuição da garantia patrimonial do crédito e não sejam de natureza pessoal podem ser impugnados pelo credor, se concorrerem as seguintes circunstâncias: ser o crédito anterior ao acto ou, sendo posterior, ter sido o acto realizado dolosamente com o fim de impedir a satisfação do direito do futuro credor e resultar do acto a impossibilidade, para o credor, de obter a satisfação do seu crédito, ou o agravamento dessa impossibilidade.
São, assim, requisitos gerais da impugnação:
- Prejuízo causado pelo acto impugnado, à garantia patrimonial;
- Anterioridade do crédito em relação ao dito acto.
  • Para os actos que tenham sido realizados a título oneroso, o art.º 612º do Código Civil exige um terceiro requisito, o da má-fé dos contraentes, considerando-se má-fé a consciência do prejuízo que o acto causa ao credor.
Por diminuição de garantia deve entender-se, como referido por Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. II, 4.ª edição, Almedina, pág. 435, o acto que se pode traduzir “tanto numa perda ou decréscimo do activo (v.gr., a doação dum imóvel), como num aumento do passivo (por ex., assunção da dívida de outrem, afiançamento de débito alheio), visto por qualquer dessas vias se poder diminuir o conjunto de valores penhoráveis que, nos termos do artigo 601.º, respondem pelo cumprimento da obrigação.”
Ao desfazer-se de todo o seu património conhecido resulta assente este pressuposto. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça  de 19/10/2004, Proc. nº 04B049: “A exigência postulada na alínea b) do artigo 610.º reduz-se à «simples impossibilidade prática», «de facto», «real, efectiva», de satisfação integral do crédito, pelo que, sendo o dinheiro um bem facilmente mobilizável e sonegável à acção dos credores, não é o mero facto do ingresso, no património do devedor, do preço da coisa por este alienada mercê da compra e venda objecto da pauliana que pode excluir a verificação do requisito”.
Resultou ainda assente a anterioridade do crédito relativamente aos actos impugnados.
Assente ficou ainda que a R. devedora ficou sem património conhecido.
E finalmente, resultou provada a má fé subjectiva, nos termos do art.º 612º do Código Civil, ou seja, “a consciência do prejuízo que o acto causa para o credor”.
A este propósito escreve-se no Acórdão da Relação de Coimbra de 14/9/2020, Proc. n.º 3006/15.1T8LRA.C1, disponível em www.dgsi.pt: “Conforme orientação doutrinária e jurisprudencial, postula-se aqui a má fé subjectiva, também designada em sentido psicológico, que compreende o dolo (nas diversas modalidades) e a negligência consciente (mas já não a negligência inconsciente), não sendo necessário demonstrar a intenção de originar prejuízo ao credor (cf. por ex., Antunes Varela, Das Obrigações II, pág.450, Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, vol.I, pág.492 e segs..; Ac STJ de 12/2/81, BMJ 304, pág.358, Ac STJ de 13/10/2011 ( proc. nº 116/09),  Ac STJ de 9/2/2012 ( proc. nº 2237/07), em www dgsi.pt ) ).
Para tanto, basta a mera representação, o conhecimento negligente da possibilidade da produção do resultado (o prejuízo causado à garantia patrimonial do credor) em consequência da conduta do agente.”
Da factualidade Provada e Não Provada nos presentes autos e nos termos da demais fundamentação da Sentença proferida, bem como do supra exposto, resultaram preenchidos os pressupostos legais para a procedência da acção, improcedendo desta forma os recursos interpostos pelas RR.
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Do Recurso do MºPº.
Nos presentes autos o Ministério Público deduziu o seguinte pedido:
a)- Julgar-se procedente a impugnação da alienação pelo 1.º réu do terreno para construção inscrito na matriz predial urbana sob o artigo .... da freguesia de C____, S____, descrito na conservatória do registo predial sob o n.º ..../........;
b)- Julgar-se procedente a impugnação da alienação pelo 1.º réu da embarcação matrícula .....--.;
c)- Julgar-se procedente a impugnação da alienação pelo 1.º réu das máquinas e equipamentos de serralharia e soldadura;
d)- Julgar-se procedente a impugnação da alienação pelo 1.º réu do mobiliário e equipamentos de escritório;
e)- Sejam os 2.º, 3.º e 4.º réus condenados a restituir, respectivamente, o imóvel, a embarcação e máquinas e equipamentos de serralharia e soldadura e mobiliário e equipamentos de escritório, na medida necessária à satisfação integral da dívida ao autor, de forma a permitir a respectiva execução no património dos réus.
f)- Declarar-se que o autor pode executar os bens no património do 1.º réu e tem o direito de praticar sobre os mesmos os actos de conservação da garantia patrimonial legalmente autorizados, nos termos dos art.ºs 610.º a 617.º, inclusive, do Código Civil.”

Na decisão decidiu-se julgar procedente o pedido, com excepção do seguinte: “c) Julgo improcedente o pedido de restituição dos bens descritos na precedente alínea a), ao património da primeira ré;” e, consequentemente, fixaram-se “d) Custas a cargo do autor e das rés na proporção dos respectivos decaimentos, que se fixam em 1/5 para o autor e em 4/5 para as rés.”
Desta parte da decisão recorreu o MºPº, alegando que, em síntese, não formulou um pedido de restituição material e efetiva dos bens ao património do devedor.
Dispõe o art.º 616º, n.º 1 do Código Civil que: “Julgada procedente a impugnação, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do seu interesse, podendo executá-los no património do obrigado à restituição e praticar os actos de conservação da garantia patrimonial autorizados por lei.”
Deste preceito decorre que a acção de impugnação pauliana não tem como efeito a anulação ou nulidade do acto praticado, antes configurando uma verdadeira causa de ineficácia do acto em relação ao impugnante, assumindo natureza pessoal ou obrigacional.
Com efeito, o credor impugnante logo que prove a existência dos pressupostos da pauliana, pode executar a garantia patrimonial do seu crédito sem anular o acto de alienação que a prejudicou.
Procedendo a acção, o credor tem direito à restituição dos bens na medida do interesse, a praticar actos de conservação autorizados por lei e o direito de executar os bens no património do obrigado à restituição.
Não há assim lugar, como se referiu na Sentença, à restituição dos bens ao património da 1ª R., como aqui se transcreve:
“Veja-se que os bens alienados não chegam a regressar ao património do devedor, conservando-se no património do terceiro (adquirente ou não), que é - à face de todos (mesmo do credor impugnante) - o seu proprietário, pois “o bem não reentra no património do devedor alienante nem mesmo para o limitado efeito de ser aí executado pelo credor que impugnou procedentemente o acto” (vide Maria do Patrocínio Paz Ferreira, Natureza Jurídica da Impugnação Pauliana, Revista da Banca, n.º 21, Janeiro/Março 1992, pág. 90; e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 1997, CJSTJ, T1, pág. 52). O que se permite é que o credor impugnante (reunidos os requisitos deste instituto jurídico), afecte a esfera jurídica - o património - do terceiro, executando (de forma a satisfazer o seu crédito sobre o devedor alienante) ou pratique os actos conservatórios autorizados por lei aos credores.
“Quer dizer: embora o acto de alienação impugnável através da pauliana produza o seu efeito típico que é a transmissão da propriedade da coisa com eficácia erga omnes, não desenvolve, em relação aos credores com direito a impugnarem o acto, o efeito indirecto que lhe está normalmente associado de subtrair o bem à garantia dos credores do alienante” (vide Maria do Patrocínio Paz Ferreira, ob. cit., pág. 91).
Ante quanto se deixou expresso, na acção de impugnação pauliana o credor não visa a anulação de qualquer acto, pois o acto de disposição é - por si só - válido (“não tem nenhum vício genético” – vide Menezes Cordeiro, Impugnação..., ob. cit., pág. 59), sucedendo que, da “configuração geral da impugnação pauliana emerge a preocupação de evitar que o acto seja sacrificado para além do limite necessário para a satisfação do credor impugnante, de acordo com um critério de economia jurídica e de máximo aproveitamento do negócio jurídico” (vide Maria do Patrocínio Paz Ferreira, ob. cit., pág. 88).
Em sentido semelhante, Henrique Mesquita, refere que a “acção tem por finalidade a indemnização do credor impugnante à custa dos bens ou valores adquiridos pelos terceiros, não podendo tais bens ou valores ser atingidos senão na medida do necessário ao ressarcimento do prejuízo sofrido pelo credor", tratando-se, portanto, “de uma acção pessoal com escopo indemnizatório - e não de uma acção de declaração de nulidade ou de anulação, ou de uma acção resolutória ou rescisória dos negócios realizados pelo devedor” (Impugnação Pauliana: natureza jurídica do direito do impugnante e efeitos da procedência da ação, RLJ 128.º, págs. 256 e 210-224 e 251-256; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14 de Janeiro de 1997, cit., pág. 54; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13 de Novembro de 1990, CJ, T5, pág. 43), sendo certo que, tendo um autor, numa “acção de impugnação pauliana, pedindo a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (nº 1 do artigo 616º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664º do Código de Processo Civil”; vide também Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 33/2000, de 12 de Janeiro de 2000, Diário da República II Série, de 4 de Outubro de 2000, págs. 16138-16139).
Quer isto dizer que, para proteger o interesse dos credores perante o acto de um devedor que provoca a impossibilidade de satisfação do seu direito por via coactiva, ou o agravamento dessa impossibilidade, não se torna necessário destruir o ato prejudicial (a transmissão), bastando “suprimir o efeito indirecto da alienação que se projecta na esfera jurídica daqueles e que consiste na subtracção do bem à garantia patrimonial dos credores” (Maria do Patrocínio Paz Ferreira, ob. cit., pág. 90).
Conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 6 de Outubro de 2005, in www.dgsi.pt – processo n.º 0534229, “procedendo a acção pauliana: o acto não é atingido na sua validade, antes se mantendo de pé, como acto válido e eficaz, em tudo quanto excede a medida do interesse do credor; gera-se, assim, apenas uma ineficácia relativa; o bem vendido não sai do património do adquirente e, não obstante, o credor pode aí executá-lo.”
Aqui chegados, importa desde já concluir que o pedido formulado pelo autor, no seu segmento final, no qual peticiona ao tribunal sejam as segunda, terceira e quarta rés condenadas a restituir ao património da primeira ré o imóvel, embarcação e máquinas e equipamentos de serralharia e soldadura e mobiliário e equipamentos de escritório, na medida necessária à satisfação integral da dívida ao autor, de forma a permitir a respectiva execução no património dessa ré, terá que ser julgado improcedente, pois, como referido, os bens vendidos não regressam ao património da primeira ré, mantendo-se no património das rés que respectivamente os adquiriram por compra àquela, que os vendeu. O que sucede é que o autor poderá executá-los no património da segunda, terceira e quarta rés, na medida necessária ao ressarcimento do seu crédito.”

Pretende agora o recorrente que não efectuou qualquer pedido de restituição dos bens ao património da 1ª R., mencionando a alínea e) do seu pedido. Mas na verdade, ao ler-se conjugadamente a alínea e) e a alínea f) do pedido formulado, é isso que resulta.

De facto, se na alínea e) o A. solicita a restituição dos bens, “… de forma a permitir a respectiva execução no património dos réus”, já peticiona expressamente na alínea f) que “Declarar-se que o autor pode executar os bens no património do 1.º réu …”.
Da leitura conjugada destas alíneas do pedido formulado decorre que não há motivo para proceder à alteração do que ficou decidido na Sentença, não se vislumbrando aqui que tenha a mesma ocorrido num erro de julgamento ou de Direito na interpretação do pedido formulado.
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Pelo exposto, resulta que os Recursos interpostos quer pelo A. quer pelos RR. improcedem, mantendo-se em consequência a Sentença proferida.
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VI.–Das Custas.
Vencidos nos respectivos Recursos, são todos os Recorrentes responsáveis pelas custas devidas pelos respectivos Recursos interpostos, conf. art.º 527º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Civil.
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DECISÃO:


Por todo o exposto, acorda-se em julgar improcedentes os Recursos interpostos, mantendo-se quer a decisão interlocutória proferida no Saneador quer a Sentença proferida.
Custas pelos Recorrentes.
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Registe e notifique.



Lisboa,25-01-2024


Vera Antunes - (Relatora)
Maria de Deus Correia - (1ª Adjunta)
Eduardo Petersen Silva - (2º Adjunto)