Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
20621/23.2T8LSB.L1-2
Relator: ARLINDO CRUA
Descritores: INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
COMPETÊNCIA MATERIAL
AÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO
UNIÃO DE FACTO
NACIONAL
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: O tribunal materialmente competente para a tramitação e decisão das acções de simples apreciação positiva de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto, para efeitos de atribuição da nacionalidade portuguesa, nos termos previstos no artigo 3.º, nº. 3, da Lei da Nacionalidade, é o Juízo de Família e Menores territorialmente competente, de acordo com a regra legal inscrita na alín. g), do nº. 1, do art.º 122º, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) – Lei nº. 62/2013, de 26/08.

Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do art.º 663º, do Cód. de Processo Civil
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:

I – RELATÓRIO

1 – Y… e T…, ambos residentes em …, intentaram, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Cível Local, acção de reconhecimento do estado de união de facto, contra o ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO, formulando petitório no sentido de ser reconhecido o estado de união de facto dos Autores desde Outubro de 2009.
Alegaram, em súmula, o seguinte:
- têm interesse processual, para interpor a presente ação, de modo a verem reconhecida a sua situação de união de facto, nos termos do disposto na Lei nº 7/2001 de 11/05, na redação actual, nos termos e para os efeitos do art.º 3º nº 3 da Lei da Nacionalidade;
- desde 07 de Outubro de 2009 que vivem oficialmente em comunhão de vida, comungando o mesmo leito e mesa, como se cônjuges fossem;
- de forma a conseguirem usufruir dos mesmos privilégios, em 30/07/2019, registaram a sua união no Instituto Nacional de Seguros, instituição que pertence ao Estado de Israel, tendo sido comprovado por aquela entidade que os mesmos vivem em união de facto desde 07/10/2009;
- vivem como cônjuges e são assim reconhecidos e tratados por todos aqueles com quem convivem há mais de 15 anos.
2 – Em 18/09/2023, foi proferido o seguinte DESPACHO:
“*
Nos presentes autos, vieram os autores Y… e T… peticionar, contra o ESTADO PORTUGUÊS, o reconhecimento judicial do «estado de união de facto dos AA desde Outubro de 2009» (para os efeitos do art.º 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade).
*
Apreciando.
Prevê o art.º 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade que o estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após acção de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível.
Em sede de interpretação do enunciado normativo transcrito, pergunta-se qual o sentido a atribuir ao conceito de «tribunal cível», designadamente se respeita a uma clarificação de que os tribunais administrativos não têm jurisdição sobre essa matéria, sem prejuízo de estar em causa uma relação processual entre um particular e o Estado, tipicamente administrativa (cf. art.º 212.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa), ou se, por outro lado, o legislador entendeu que os Juízos Cíveis têm preferência face aos Juízos de Família e Menores na apreciação da mesma.
Antecipando conclusão que se clarificará infra, afigura-se que se deverá dar preferência à primeira hipótese.
De facto, é a única que apresenta lógica do ponto de vista sistemático – isto é, na definição da jurisdição competente, tendo em consideração que, no mesmo diploma, se prevê, cf. art.º 26.º que «ao contencioso da nacionalidade são aplicáveis, nos termos gerais, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e demais legislação complementar», justificando-se excepcionar a jurisdição dos tribunais comuns, quando exista; apresentado a única teleologia útil que parece poder-se atribuir-lhe: esclarecer que, sem prejuízo de o sujeito passivo da relação processual ser o Estado, neste caso em excepcional, são competentes os tribunais judiciais.
E essa interpretação é ainda contida nos significados possíveis da noção descrita, sendo congruente com a letra da lei – uma vez que «tribunal cível» compreende, enquanto significado possível, tribunal que aplica a lei civil, confundindo-se com o conceito de «tribunal judicial».
Uma interpretação diversa, puramente fundada numa pretensa letra da lei (e diz-se pretensa uma vez que a menção «tribunais civis» é polissémica, não apresentado significado unívoco, como se viu) não é, desde logo, coerente com o sistema normativo globalmente considerado.
De facto, em 2006, aquando da aprovação da disposição normativa transcrita (na Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17/04), não existiam «tribunais civis» - compulsada a Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro (a «LOFTJ»), previa-se a existência de varas cíveis e juízos cíveis.
Por outro lado, cria uma quebra sistemática difícil de justificar: os juízos de família e menores, competentes para conhecer de todas as questões tipicamente «familiares» não seriam considerados dotados de aptidão técnica para conhecer destes litígios que são, materialmente, da mesma natureza.
A irracionalidade da solução é facilmente perceptível se considerarmos que, subscrevendo-a, as acções propostas ao abrigo do art.º 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade e outras, propostas por cidadãos nacionais, em que estes pretendam o simples reconhecimento de que vivem numa situação de união de facto– cf. art.º 10.º, n.º 2, al. a) do CPC (que são indiscutivelmente da competência dos juízos de família e menores) –, serão conhecidas por tribunais com competência material distinta.
Face ao exposto, e com os fundamentos descritos, consideramos dever extrair-se daquele enunciado a seguinte norma: (i) para as acções de reconhecimento da união de facto previstas no art.º 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade (ii) têm jurisdição (iii) os tribunais judiciais (por oposição aos administrativos).
*
Por seu turno, estabelece o art.º 65.º do CPC que as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada.
O diploma para o qual se remete é a Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto (a «LOSJ»), nos termos da qual são definidas, como competências dos juízos locais cíveis, e a título residual, «quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada».
Por seu turno, quanto aos juízos de família e menores, prevê o art.º 122.º da LOSJ que «1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:
a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;
b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;
c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;
d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;
e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966;
f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;
g) Outras acções relativas ao estado civil das pessoas e família».
A noção de estado civil, como já é pacificamente assumido na doutrina e jurisprudência, deve ser interpretada de forma a integrar o «“conceito de família alargada”, fruto da evolução recente das condições sócio-familiares, incluindo as relações de união de facto» - v., por todos, o Ac. do TRC de 15-07-2020, proc. 160/20.4T8FIG.C1.
Ora, tendo em conta o exposto, necessariamente se conclui que dali se extrai a seguinte norma: (i) para as acções relativas, entre outros, à união de facto (ii) têm competência (iii) os juízos de família e menores.
*
Assim sendo, e conjugando ambas a regras já identificadas, sendo a competência dos juízos cíveis residual e não dispondo o art.º 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade sobre a questão da competência material dentro dos tribunais judiciais, facilmente se conclui que os Juízos de Família e Menores são competentes para conhecer da presente acção.
*
Ressalva-se que não se desconhece tese diversa, que podemos resumir da seguinte forma: «dispondo o art.º 3.º/3 da Lei da Nacionalidade que a competência pertence aos tribunais cíveis, não é possível aplicar a regra geral constante do art.º 122.º/1/ da LOSJ e, considerar competente os juízos de família e menores, uma vez que o disposto numa norma especial prevalece sobre uma norma geral» - cf. Ac. do TRL de 27-10-2022, proc. 14919/21.1T8LSB.L1-2.
Não obstante, e salvo o devido respeito, afigura-se-nos que tal tese se sustenta num erro metodológico que torna inválida a sua conclusão, aplicando uma regra de resolução de conflitos de leis com vista a interpretar uma controvérsia, questão diversa e prévia àquela.
É que pressupor que a menção a tribunais cíveis se confunde com juízos cíveis é uma petição de princípio nunca devidamente justificada (e, como vimos supra, existe interpretação, fundada na letra da lei, com resultados diversos). E a aplicação das regras de conflitos normativos pressupõe a prévia definição da norma aplicável, só podendo concluir-se pela relação de especialidadese os pressupostos de aplicação da norma, extraída de um enunciado normativo por via da sua interpretação (uma vez que um não se confunde com o outro), coincidirem parcialmente.
Ora, justificado o caminho interpretativo que nos leva a concluir no sentido exposto supra, é fácil concluir que as normas (a) (i) para as acções de reconhecimento da união de facto previstas no art.º 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade (ii) têm jurisdição (iii) os tribunais judiciais (por oposição aos administrativos) e (b) (i) para as acções relativas, entre outros, à união de facto (ii) têm competência (iii) os juízos de família e menores não se sobrepõem nem total nem parcialmente, regulando questões manifestamente diversas – jurisdição e competência material.
Face ao exposto, torna-se evidente que inexiste qualquer relação de antinomia normativa entre a norma que se extrai do enunciado normativo plasmado no art.º 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade e a norma que se extrai do art.º 122.º, n.º 1, al. g) da LOSJ.
Neste sentido, com argumentação parcialmente diversa, v.g., por todos (expondo as teses em conflito e acórdãos em ambos os sentidos), o Ac. do TRL de 06-12-2022, proc. 1163/22.0T8FNC.L1-7 «V - O artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade-LN (conjugado com o artigo 14.º, n.ºs. 2 e 4, do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa) não pode ser interpretado como constituindo uma norma especial que derroga lei geral (o artigo 122.º, n.º 1, alínea g)) uma vez que:
a - o objectivo da norma foi apenas o de obstar a que estas acções ficassem sob a égide da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais (como decorreria do artigo 26.º da LN que, por via da legislação aplicável, atribui o contencioso da nacionalidade aos Tribunais Administrativos e Fiscais);
b - no momento da publicação da LN inexistia norma semelhante à da alínea g) do artigo 122.º da LOSJ e a acção sempre seria da competência dos Tribunais Cíveis, não se tendo pretendido efetuar uma atribuição diferente daquela que na altura resultava da aplicação das regras gerais da LOFTJ;
c - podendo o legislador atribuir competência material para o tipo de processos que entender e nos instrumentos legislativos que tiver por convenientes, é linear que a Lei da Nacionalidade não constitui a sede legal natural, normal ou mesmo óbvia, para delimitar a competência material dos juízos dos tribunais judiciais para uma determinada acção, sendo esse o motivo pelo qual no n.º 3 do artigo 3.º, a Lei aceitou, se conformou e se adequou ao que a LOFTJ regulava, não constituindo a escolha dos Tribunais Cíveis uma opção autónoma, mas apenas um sancionar da realidade normativa existente
d - se o legislador não criou nenhuma norma especial que contrariasse o que decorria da lei geral não faz sentido que, com a vigência da alínea g) do artigo 122.º da LOSJ, se passe a considerar ex post o n.º 3 do artigo 3.º da LN, como norma especial, quer por não haver dúvidas de que está em causa matéria de Direito da Família, quer por não haver razões materiais e substantivas que apontem para isso;
e - tal interpretação constituiria forçar o legislador a, décadas depois, dizer o que não quis dizer no momento da elaboração da norma, e contrariar a sua opção inicial de respeitar a opção da LOFTJ (hoje LOSJ) e sem qualquer razão de fundo que o justificasse;
f - tal interpretação tornaria a norma inconstitucional, porque teria o resultado de discriminar entre as várias formas de constituir família, contra o disposto na primeira parte do n.º 1 do artigo 36.º da CRP.
V - Também pelo critério operacional da “Natureza das Coisas”, no processo de valoração das normas de definição da competência, a consideração de que a acção de reconhecimento judicial da existência de união de facto para efeitos de atribuição da nacionalidade, pudesse ser da competência dos juízos cíveis (existindo uma norma como a da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, com o enquadramento constitucional que representa), daria ao nosso edifício jurídico uma traça desconforme à que resulta da Constituição e à que decorre do sistema jurídico enquanto unidade (por colocar matérias de Direito da Família fora da competência dos Tribunais de Família, sem uma justificação substantiva minimamente compreensível)».
*
Destarte, verifica-se uma excepção dilatória de incompetência (absoluta) em razão da matéria, que é de conhecimento oficioso – cf. arts. 96.º, al. a), 278.º, n.º 1, al. a), 577.º, al. a) e 578.º, todos do CPC – determinando o indeferimento liminar da petição inicial – cf. art.º 99.º, n.º 1 e 590.º, n.º 1 do CPC.
*
Pelo exposto, julga-se verificada a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, e, em consequência, indefere-se liminarmente a petição inicial.
Custas pelos autores, cf. art.º 527.º, n.º 1 do CPC.
Valor da causa: €30.000,01, cf. art.º 296.º e 303.º, n.º 1 do CPC.
*
Registe e notifique”.
3 – Inconformados com tal decisão, os Autores apresentaram, em 29/09/2023, recurso de apelação, no qual suscitaram as seguintes CONCLUSÕES:
“1. O tribunal a quo, na douta sentença proferida, indeferiu liminarmente a petição inicial, invocando a excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal.
2. Assim, a questão que se coloca consiste em apurar se a jurisdição cível é competente em razão da matéria para preparar e julgar a presente ação de reconhecimento de União de Facto para os efeitos previstos no art.º 3 n.º 3 da LN, ou, se a mesma está afeta à jurisdição especializada dos juízos de família e menores.
3. A LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, passou a definir as normas de enquadramento e organização do sistema judiciário português, na nova distribuição de competências dos tribunais judiciais, a competência para julgar as ações relativas ao estado civil das pessoas e família passou a ser dos tribunais de família e menores, devido ao aditamento da nova competência, nos termos da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ.
4. A Lei da Nacionalidade, no seu artigo 3.º, n.º 3, manteve a atribuição de competência específica, onde diz que “o estrangeiro que à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível” – sendo esta norma, uma norma especial, ela não foi tacitamente revogada pela alteração que ocorreu na distribuição de competências pela lei geral de enquadramento e organização do sistema judiciário.
5. Assim, salvo melhor opinião, é forçoso concluir a competência do Tribunal a quo em razão da matéria”.
Concluem, no sentido de provimento do recurso.
4 – Tal recurso foi admitido por despacho de 07/11/2023, como apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Pelo mesmo despacho, foi determinada a citação do Réu, nos termos e para os efeitos do estatuído no nº. 7, do art.º 641º, do Cód. de Processo Civil.
5 – Cumprida tal citação, veio o Réu apresentar contra-alegações recursórias, que finalizou apresentando as seguintes CONCLUSÕES:
“1.ª-. A norma do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, ao mencionar a propositura da ação no tribunal cível, faz a distinção entre as questões de direito administrativo do contencioso da nacionalidade e a matéria relativa ao reconhecimento da união de facto, que será da jurisdição dos tribunais judiciais.
2.ª- Essa é a interpretação mais condizente com o sistema normativo globalmente considerado.
3.ª- São os Juízos de família e menores os tribunais judiciais materialmente competentes para apreciar as questões relativas à união de facto e situações familiares, de acordo com o artigo 122.º, n.º 1, da Lei n.º 62/2013, de 26/8.
4.ª- Deste modo, a norma do artigo 3.º, n.º 3 da Lei da Nacionalidade regula a jurisdição, enquanto a norma do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ, rege a competência material.
5.ª- Não ocorreu qualquer violação de princípios ou normas legais, pelo que o douto despacho recorrido deverá ser integralmente mantido.
6.ª- Pelo exposto, entendemos que o recurso não deve ser provido”.
Conclui no sentido da improcedência do recurso.
6 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.

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II – ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do art.º 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do art.º 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação dos Recorrentes Apelantes que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Pelo que, na ponderação do objecto do recurso interposto pelos Recorrentes Autores, delimitado pelo teor das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede consubstancia-se, fundamentalmente, em aferir qual o Tribunal materialmente competente para a tramitação e decisão das acções de simples apreciação positiva de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto, para efeitos de atribuição da nacionalidade portuguesa (nos termos previstos no artigo 3.º da Lei da Nacionalidade).
Especificando, a dicotomia estabelece-se entre tal competência material pertencer aos juízos cíveis, ou antes aos juízos de família e menores.

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III - FUNDAMENTAÇÃO

A –
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade a ponderar é a que resulta do iter processual supra exposto em sede de relatório.
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B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

Entendeu-se na decisão apelada, essencialmente, o seguinte:
=> Os demandantes pretendem o reconhecimento judicial do “estado de união de facto dos Autores desde Outubro de 2009”, para efeitos do art.º 3º, nº. 3, da Lei da Nacionalidade;
=> Segundo tal normativo, a acção deve ser a interpor no tribunal cível;
=> Urge aferir qual o sentido a atribuir ao conceito de tribunal cível, nomeadamente se será para clarificar que os tribunais administrativos não têm jurisdição sob esta matéria, ou antes para entender-se que os juízos cíveis têm preferência face aos juízos de família e menores na apreciação da mesma matéria:
=> Opta-se pela das hipóteses interpretativas, tendo-se em consideração o art.º 26º da Lei da Nacionalidade e a logicidade decorrente de uma interpretação sistemática;
=> A designação de tribunal cível compreende, enquanto significado possível, “tribunal que aplica a lei civil”, confundindo-se com o conceito de tribunal judicial;
=> Diferenciada posição é incoerente com o sistema normativo globalmente considerado, segundo uma tríplice ordem de argumentos;
=> Donde, deve concluir-se que para as acções de reconhecimento da união de afcto previstas no art.º 3º, nº. 3, da Lei da Nacionalidade têm jurisdição os tribunais judiciais (por oposição aos tribunais administrativos);
=> Por outro lado, urge considerar o estatuído no art.º 65º, do Cód. de Processo Civil, e a remissão efectuada para a Lei nº. 62/2013, de 26/08 – LOSJ (Lei Orgânica do Sistema Judiciário), nomeadamente para o art.º 130º, nº. 1 (competência residual) e 122º, nº. 1, alín. g) (competência dos juízos de família e menores relativa ao estado civil das pessoas e família);
è A interpretação da noção de estado civil, de forma a integrar o conceito de família alargada, incluindo as relações de união de facto;
=> Donde, para as acções relativas à união de facto têm competência os juízos de família e menores;
=> Ou seja, sendo a competência dos juízos cíveis residual, e não dispondo o art.º 3º, nº. 3, da Lei da Nacionalidade sobre a questão da competência material dentro dos tribunais judiciais, conclui-se serem os juízos de família e menores competentes para conhecer da presente acção;
=> A consideração de tese contrária e o reconhecimento da inexistência de qualquer relação de antinomia normativa entre o que se extrai do enunciado normativo do art.º 3º, nº. 3, da Lei da nacionalidade, e a norma decorrente do art.º 122º, nº. 1, alín. g), da LOSJ;
=> A concreta verificação de uma excepção dilatória de incompetência (absoluta) em razão da matéria, que é de oficioso conhecimento – os artigos 96º, alín. a), 278º, nº. 1, alín. a), 577º, alín. a) e 578º, todos do Cód. de Processo Civil -, determinando o indeferimento liminar da petição inicial – os artigos 99º, nº. 1 e 590º, nº. 1, ambos do CPC.

Na pretensão recursória apresentada, os Apelantes Autores defendem a competência dos juízos cíveis, o que corresponde a uma das posições em controvérsia, enquanto que nas contra-alegações apresentadas, o Réu Estado Português, representado pelo Magistrado do Ministério Público, corrobora a posição defendida no despacho sob apelo, considerando serem os juízos de família e menores competentes para conhecer da presente acção.

Conforme vimos expondo, são, assim, duas as posições em controvérsia quanto à competência material para o conhecimento do litígio subjacente à presente acção – simples apreciação positiva de reconhecimento judicial do estado de união de facto para efeitos de atribuição da nacionalidade portuguesa -, com correspondência em duas orientações jurisprudenciais, quer nos Tribunais da Relação, quer no Supremo Tribunal de Justiça.
Vejamos, todavia, aprioristicamente, o enquadramento legal em equação.

Prescreve o art.º 3º, nº. 3, da Lei da Nacionalidade – Lei nº. 37/81, de 03/10, na redacção introduzida pela Lei Orgânica nº. 02/2006, de 17/04 -, que “o estrangeiro que, à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível” (realce nosso).
Acrescentam os nºs. 2 e 4, do art.º 14º, do DL nº. 237-A/2006, de 14/12, que prevê acerca do Regulamento da Nacionalidade Portuguesa, que:
“2 - O estrangeiro que coabite há mais de três anos com português em condições análogas às dos cônjuges, independentemente do sexo, se quiser adquirir a nacionalidade deve declará-lo, desde que tenha previamente obtido o reconhecimento judicial da situação de união de facto.
(…)
4 - No caso previsto no n.º 2, a declaração é instruída com certidão da sentença judicial, com certidão do assento de nascimento do cidadão português, sem prejuízo da dispensa da sua apresentação pelo interessado nos termos do artigo 37.º, e com declaração deste, prestada há menos de três meses, que confirme a manutenção da união de facto”.
Prevendo acerca da competência dos tribunais em razão da matéria, e especificamente acerca da competência dos tribunais judiciais, estatui o art.º 64º, do Cód. de Processo Civil que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Acrescenta o normativo seguinte – 65º -, prevendo acerca de tribunais e secções de competência especializada, que “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.
O que nos remete para a Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) – Lei nº. 62/2013, de 26/08 -, estatuindo-se no art.º 80º, prevendo acerca da competência, competir “aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidas pela competência de outros tribunais”, sendo os tribunais de comarca “de competência genérica e de competência especializada”.
Já no âmbito dos juízos de competência especializada, dispõe o nº. 1, do art.º 130º, que “os juízos locais cíveis, locais criminais e de competência genérica possuem competência na respetiva área territorial, tal como definida em decreto-lei, quando as causas não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada”.
E, com relevância in casu, cite-se, ainda, no âmbito dos juízos de família e menores, o disposto no nº. 1, do art.º 122º, referente à competência relativa ao estado civil das pessoas e família, no qual se referencia que:
“1 - Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar:
a) Processos de jurisdição voluntária relativos a cônjuges;
b) Processos de jurisdição voluntária relativos a situações de união de facto ou de economia comum;
c) Ações de separação de pessoas e bens e de divórcio;
d) Ações de declaração de inexistência ou de anulação do casamento civil;
e) Ações intentadas com base no artigo 1647.º e no n.º 2 do artigo 1648.º do Código Civil, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47344, de 25 de novembro de 1966;
f) Ações e execuções por alimentos entre cônjuges e entre ex-cônjuges;
g) Outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” (realce nosso).

Exposto o presente enquadramento, vejamos, ainda que de forma não minimamente exaustiva, quais as antinómicas posições jurisprudenciais, já referenciadas na decisão sob sindicância.
No sentido da competência em razão da matéria para o tramitar da presente acção ser incumbida aos Juízos de Família e Menores, referenciemos:
- o douto Acórdão desta Relação de Lisboa de 06/12/2022 – Relator: Edgar Taborda Lopes, Processo nº. 1163/22.0T8FNC.L1-7, in www.dgsi.pt  -, o qual começou por enunciar os dois entendimentos ou orientações em consideração, mencionando expressamente que:
“I - no sentido da competência pertencer aos tribunais de competência especializada de família e menores (considerando que esse tipo de ações se enquadra na competência especializada atribuída na referida alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ), por se tratarem de acção relativa ao estado civil das pessoas e família (uma vez que a designação abarca as condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, onde se devem incluir as que resultam da união de facto):
- Acórdãos da Relação de Lisboa de:
- 11 de Dezembro de 2018 (Processo n.º 590/18.1T8CSC.L1-6 - António Santos);
- 30 de Junho de 2020 (Processo n.º 23445/19.8T8LSB.L1-7 - José Capacete);
- 15 de Dezembro de 2020 (Processo n.º 379/20.8T8MFR.L1-7 - Micaela Sousa);
- 11 de Outubro de 2022 (Processo n.º 18030/21.7T8LSB.L1-7 - Micaela Sousa);
- Acórdãos da Relação de Coimbra de:
- 08 de Outubro de 2019 (Processo n.º 2998/19.6T8CBR.C1 - Luís Cravo);
- 31 de Março de 2020 (Processo n.º 136/20.1T8CBR.C1 - Luís Cravo);
- 23 de Junho de 2020 (Processo n.º 610/20.0T8CBR-B.C1 - Fonte Ramos);
- 15 de Julho de 2020 – Decisão Sumária (Processo n.º 160/20.4T8FIG.C1-Vítor Amaral);
- Acórdão da Relação de Évora de 09 de Setembro de 2021 (Processo n.º 2394/20.2T8PTM-A.E1 - Vítor Sequinho dos Santos);
- Acórdão da Relação do Porto de 26 de Abril de 2021 (Processo n.º 12397/20.1T8PRT.P1 - Mendes Coelho);
II - no sentido da competência pertencer aos tribunais de competência especializada cível (basicamente, considerando que decorre do disposto no artigo 3.º, n.º 3, da LN a atribuição de competência específica ao juízo cível[10] e por nada impedir que o legislador atribua competência específica para o julgamento de determinadas acções, de forma distinta da que decorre das regras constantes da LOSJ):
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Junho de 2021 (Processo n.º 286/20.4T8VCD.P1.S1 - João Cura Mariano);
- Acórdãos da Relação de Lisboa[12] de:
- 23 de Outubro de 2014 (Processo n.º 5187/10.1TCLRS.L1-8 - Maria Amélia Ameixoeira);
- 16 de Dezembro de 2021 (Processo n.º 2142/20.1T8LSB.L1-2 - Carlos Castelo Branco);
- 16 de Dezembro de 2021 (Processo n.º 787/20.4T8MTJ.L1-2 - Orlando Nascimento);
- 29 de Abril de 2022 (Processo n.º 26016/21.5T8LSB.L1-2 – Inês Moura), com voto de vencido (Pedro Martins);
- 23 de Junho de 2022 (Processo n.º 2380/21.5T8VFX.L1-6 - Anabela Calafate);
- 07 de Julho de 2022 (Processo n.º 258/22.4T8FNC.L1-2 - Inês Moura);
- 29 de Setembro de 2022 (Processo n.º 1832/21.1T8CSC.L1-6 - António Santos);
- 27 de Outubro de 2022 (Processo n.º 14919/21.1T8LSB.L1-2 - Nelson Borges Carneiro), com voto de vencido (Pedro Martins);
- Acórdão da Relação do Porto de 22 de Março de 2022 (Processo n.º 34/22.4T8PRD.P1 - Rodrigues Pires)”.
Acrescenta deverem ser tidos como assentes dois pontos. Por um lado, “a matéria do reconhecimento da união de facto é matéria de direito da família” (sublinhado nosso) e, por outro, “a não existir o artigo 3.º, n.º 3, da LN a acção seria claramente da competência dos Juízos de Família e Menores”.
Pelo que, após fundamentar o tratar tal matéria como efectivo direito da família, conclui que no “nosso ordenamento jurídico, para o que concerne à aquisição da nacionalidade, o casamento e a união de facto estão em total equiparação em termos de efeitos (assente que seja a sua existência - o que para o casamento é simples e para a união de facto exige a acção de simples apreciação que a comprove)”.
Acrescenta-se, então, que a questão nuclear ou fulcral “implicará apenas com a relevância a dar (e a leitura a fazer) do (ao) n.º 3 do artigo 3.º da LN, aceitando-se – em tese – que, a tratar-se de uma norma especial destinada a regular a matéria de uma norma geral (a do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ), esta ficasse afastada e relevasse aquela.
Embora, como é evidente, o legislador seja livre de atribuir competência material para o tipo de processos que entender e nos instrumentos legislativos que tiver por convenientes, também parece ser linear que a Lei da Nacionalidade não constitui a sede legal natural, normal ou mesmo óbvia, para delimitar a competência material dos juízos dos tribunais judiciais para uma determinada acção (sublinhado nosso).
Este primeiro passo de consenso deveria servir de alerta e de levar-nos a pensar – enquanto intérpretes da lei – que a referência ao “tribunal cível” como sendo o competente para preparar e decidir as acções de reconhecimento da união de facto exigidas para a atribuição da nacionalidade, pode não ser essa, efectivamente, a matéria que está a pretender regular.
Perante isto, devemos começar por nos perguntar porque é que o legislador criaria uma norma especial (n.º 3 do artigo 3.º da LN), para afastar a norma geral do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ”.
Adrede, adita-se, fazendo apelo a jurisprudência citada, que “como se refere no Acórdão da Relação de Évora de 09 de Setembro de 2021 (Processo n.º 2394/20.2T8PTM-A.E1 - Vítor Sequinho dos Santos) a “sede própria para o legislador proceder à delimitação da competência material dos juízos dos tribunais judiciais é a LOSJ e, na realidade, é aí que aquele o faz, nomeadamente através do disposto no artigo 122.º, que delimita a competência material dos juízos de família e menores.
Acresce que não faria sentido o legislador atribuir a juízos de natureza diversa a competência material para preparar e julgar acções de reconhecimento da existência de uma situação de união de facto propostas consoante tivessem por finalidade adquirir a nacionalidade portuguesa ou outra qualquer finalidade, sendo certo que estas últimas sempre cairiam no âmbito de aplicação do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ”.
Acresce dizer, ainda neste ponto, que se constata - como expressamente se assume no já referido Acórdão da Relação de Lisboa de 30 de Junho de 2020 (Processo n.º 23445/19.8T8LSB.L1-7 - José Capacete) – “que nos diplomas que têm regulado a competência especializada dos Tribunais de Família, nomeadamente a Lei n.º 52/2008, de 28/02, e a atual LOSJ, sempre se previu como requisito da competência dos mesmos, o conhecimento de ações que versassem sobre o Direito da Família enquanto ramo do Direito Civil”, situação que o Supremo Tribunal de Justiça – em Acórdão de 13 de Novembro de 2012 (Processo n.º 13466/11.4T2SNT.L1.S1 - João Camilo) – também constatou, ao referir que os Tribunais de Família, desde o momento inicial da sua criação pela Lei n.º 4/70, de 29 de Abril, sempre se mostraram pensados ou vocacionados para o conhecimento de acções que versem o ramo do Direito Civil do Direito da Família: ou seja – e voltando ao Acórdão da Relação – a “longa tradição, que de há muito se mostra sedimentada, é a de atribuir àqueles tribunais, de competência especializada, a competência para a preparação de julgamento em que há lugar à aplicação de normas de direito da família”.
Assim, e concluindo como no Acórdão da Relação de Lisboa de 15 de Dezembro de 2020 (Processo n.º 379/20.8T8MFR.L1-7 - Micaela Sousa), na alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, “o legislador terá pretendido abranger, em toda a sua amplitude e nuances, o contexto da vida familiar, não se restringido aos laços decorrentes do casamento, mas sim a todos os tipos de relacionamentos que podem caber no conceito de família”” (sublinhado nosso).
Após, efectuando um juízo crítico do entendimento perfilhado no douto aresto do STJ de 17/06/2021, acrescenta que “se a Lei da Nacionalidade não constitui a sede legal natural para delimitar a competência material dos juízos dos tribunais judiciais para uma determinada acção, se o objectivo da norma foi o de obstar a que estas acções fossem da competência dos Tribunais Administrativos e Fiscais (uma vez que o artigo 26.º da LN tornou aplicável ao contencioso da nacionalidade, o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e demais legislação complementar, e, por isso, se atribuiu essa competência aos Tribunais Cíveis), e se não se vislumbra nenhuma razão ou fundamento específico e compreensível para serem os Tribunais Cíveis e não os de Família (só por finalidade última da acção ser a aquisição da nacionalidade portuguesa, a partir do momento em que surgiu - no diploma adequado e que substituiu o anterior - a norma que consta da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, tacitamente a norma do n.º 3 do artigo 3.º da LN foi alterada.
A LN apenas quis respeitar a opção que na altura fazia a LOSJ, não constituindo a escolha dos Tribunais Cíveis uma opção autónoma, mas apenas um sancionar da realidade normativa existente.
A norma da LN não constituía uma excepção, não era uma norma especial relativamente a uma norma geral (pelo contrário, ela respeitava e conformava-se com a norma geral).
Respondendo directamente à pergunta atrás formulada, o legislador não criou nenhuma norma especial que contrariasse o que decorria da lei geral (LOFTJ).
Assim, alterada a LOSJ (a norma geral), não cremos que faça sentido passar agora a considerar como norma especial o n.º 3 do artigo 3.º da LN, insistindo numa especialidade ex post, injustificada e injustificável, tratando-a como uma opção de excepção que o não foi (a opção foi apenas entre os Tribunais Administrativos e Fiscais e os Tribunais Judiciais), nem faz sentido que o seja agora (por não haver dúvidas de que se trata de matéria de Direito da Família).
Fazê-lo constituiria, aliás, um ir além do que era a pretensão do legislador, contrariando-a.
Constituiria o forçar, décadas depois, o legislador a dizer precisamente o contrário do que quis no momento da elaboração da norma (porque pretendeu apenas respeitar o campo que estava coberto pela LOFTJ)”.
Assim, adita-se, “no processo de valoração das normas de Direito que temos diante de nós nestes autos, a consideração de que a acção de reconhecimento judicial da existência de união de facto para efeitos de atribuição da nacionalidade, pudesse ser da competência dos juízos cíveis (existindo uma norma como a da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, com o enquadramento constitucional que representa), daria ao nosso edifício jurídico uma traça desconforme à que resulta da Constituição e à que decorre do sistema jurídico enquanto unidade (por colocar matérias de Direito da Família fora da competência dos Tribunais de Família, sem uma justificação substantiva minimamente compreensível).
Só o entendimento que aponta para a atribuição da competência aos Juízos de Família (relevando a aplicabilidade da norma da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ) corresponde à “Natureza das Coisas” (ou, se se preferir, em palavras de Manuel Henrique Mesquita, à adaptação “aos interesses em jogo, apreciados e valorados à luz das soluções ditadas pelo legislador para os problemas que directa e expressamente se ocupa”).
Acresce (continuando a seguir o recente Acórdão desta Secção de 11 de Outubro de 2022, Processo n.º 18030/21.7T8LSB.L1-7 - Micaela Sousa), que “estando subjacente à exigência do reconhecimento judicial da situação de união de facto um interesse nacional e público, pois que através daquela se adquire também a cidadania europeia e os benefícios correspectivos e, bem assim, outros de natureza social, política ou civil, dir-se-ia que o juízo de família, enquanto tribunal especializado, está directamente vocacionado para o apuramento de questões dessa natureza, cujas regras aplicáveis não divergem pela simples circunstância de se pretender, em última instância, obter a aquisição da nacionalidade” (sublinhado nosso).
Por outro lado, também “não se afigura justificável entender que um tribunal especializado, como é o juízo de família, estará menos apetrechado para salvaguardar o interesse nacional e público, sempre subjacente às exigências legais inerentes ao procedimento para aquisição de nacionalidade””.
Donde, ressalva que, para além do elemento literal (cf., o art.º 9º, do Cód. Civil), na interpretação a fazer dever-se-á ainda ponderar dos elementos lógicos “com os quais se tenta determinar o espírito da lei, a sua racionalidade ou a lógica, entre eles:
- o elemento histórico que atende à história da lei (trabalhos preparatórios, elementos do preâmbulo ou relatório da lei e occasio legis [circunstâncias sociais ou políticas e económicas em que a lei foi elaborada];
- o elemento sistemático, que indica que as leis se interpretam umas pelas outras porque a ordem jurídica forma um sistema e a norma deve ser tomada como parte de um todo, parte do sistema;
- o elemento racional ou teleológico, que atende ao fim ou objectivo que a norma visa realizar, a sua razão de ser (ratio legis)”.
Pelo que, conclui que “seguindo o procedimento inicialmente descrito para a definição do Tribunal competente em razão da matéria (não ser a causa atribuída a nenhuma jurisdição especial; ter a lei especificado qual o Tribunal que para a causa é competente), porque o n.º 3 do artigo 3.º da LN não constitui norma especial que excepcione o artigo 122.º, n.º 1, alínea g), da LOSJ, porque a acção interposta pelos Autores é uma das «outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família», onde se abrange com toda a amplitude o contexto da vida familiar, fazendo a necessária individualização e concretização das situações jurídicas pessoais familiares (por se reportar às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, aí se incluindo as resultantes das uniões de facto - artigos 8.º e 12.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, 1576.º do Código Civil, Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto e Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio), a competência material para apreciação da presente acção pertence aos Juízos de Família e Menores e não aos Juízos Cíveis: a situação sub judice enquadra-se na previsão da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ (…)” (sublinhado nosso);
- o recente douto Acórdão do STJ de 16/11/2023 – Relatora: Maria Clara Sottomayor, Processo nº. 546/22.0T8VLG.P1.S1, in www.dgsi.pt – que, após historiar e enunciar os dois entendimentos em confronto, começa por referenciar que “na jurisprudência que reconhece competência aos tribunais cíveis e não aos juízos de família, em regra, não aparece questionada a natureza jurídica familiar ou não da união de facto. A argumentação baseia-se, para além da letra da lei, em elementos históricos inferidos da circunstância de o legislador não ter alterado o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, aquando da elaboração da LOSJ (Lei n.º 62/2013), nem aquando das sucessivas alterações à Lei da Nacionalidade. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-06-2021, invocado pelo recorrente como acórdão fundamento, deduz deste silêncio do legislador uma vontade legislativa de continuidade na competência dos tribunais civis para o reconhecimento da união de facto, quando está em causa a aquisição da nacionalidade portuguesa por um cidadão estrangeiro”.
Acrescenta-se que “na época em que foi aprovada a Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril, estava em vigor a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de janeiro e nesta lei não existia qualquer norma semelhante à cláusula da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ. A competência para o julgamento das ações de reconhecimento da união de facto, qualquer que fosse o seu objeto, cabia a um tribunal cível. Entre os tribunais de competência especializada contavam-se os tribunais de família (artigo 78.º, b), da LOFTJ), que tinham a competência atribuída nos artigos 81.º e 82.º da LOFTJ, a qual não incluía as ações de reconhecimento da união de facto.
A circunstância de não existir à data da entrada em vigor da Lei da Nacionalidade (Lei Orgânica n.º 2/2006), a norma do artigo 122.º, n.º 1, al. g), da LOSJ, nem nenhuma outra que atribuísse aos tribunais de família a competência para julgar as ações de reconhecimento de união de facto, explica que o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, tivesse atribuído a competência ao tribunal cível, sem referência aos tribunais de competência especializada dentro da categoria mais ampla dos tribunais cíveis. A razão de ser desta disposição terá sido, tão-só, afastar a resolução desta questão dos tribunais administrativos e fiscais, que, à luz do artigo 26.º da mesma lei, que remetia para legislação administrativa, seriam os competentes. Ou seja, a intenção do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade foi estabelecer um critério em razão da matéria que operasse no plano da contraposição dos tribunais judiciais aos outros tribunais (artigo 64.º do CPC), e não a de excluir, dentro da categoria dos tribunais judiciais, os juízos especializados que viessem a ser competentes nos termos da LOSJ. Como sublinha Lebre de Freitas/Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 4.ª edição, 2018, pp. 166-167), com o Decreto-Lei n.º 329-A/95, a lei processual deixou de estabelecer a competência residual do tribunal judicial comum e a coincidência deste com o tribunal civil, bem como a plenitude, em 1.ª instância, da jurisdição civil do tribunal de comarca, passando a remeter para a lei de organização judiciária (artigo 65.º do CPC), que determina a competência, em razão da matéria, entre os juízos dos tribunais de comarca, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada (artigo 40.º, n.º 2, da LOSJ). Os juízos de competência especializada dos tribunais de comarca encontram-se enumerados no artigo 81.º, n.º 3, da LOSJ, sendo os juízos de família e de menores tratados autonomamente nos artigos 122.º a 125.º da LOSJ.
O facto de o legislador não ter alterado o n.º 3 do artigo 3.º da Lei Orgânica n.º 2/2006, para a adaptar o preceito à Lei n.º 62/2013 (LOSJ), quando procedeu a variadas alterações à lei da nacionalidade (Lei n.º 8/2015, de 22 de junho, Lei n.º 29/2015, de 29 de julho, Lei n.º 2/2018, de 5 de julho, e Lei n.º 2/2020, de 10 de novembro), não significa necessariamente, como se entende no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22-06-2023 (processo n.º 3193/22.2T8VFX.L1.S1), uma vontade legislativa de manter a solução do n.º 3 do artigo 3.º, afastando os juízos de competência especializada. Afigura-se, antes, que este silêncio do legislador não é significativo, traduzindo somente um lapso ou uma inércia do legislador que não teve presente, nas leis que alteraram a Lei Orgânica n.º 2/2006, a necessidade de adequar a regra de competência prevista no n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade à competência dos Juízos de Família prevista na al. g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ. Com efeito, as questões então discutidas e cuja regulação foi alterada foram as seguintes: a fixação de novos fundamentos para a concessão da nacionalidade por naturalização e de oposição à aquisição da nacionalidade portuguesa (Lei n.º 8/2015); a extensão da nacionalidade portuguesa originária aos netos de portugueses nascidos no estrangeiro (Lei n.º 29/2015); alarga o acesso à nacionalidade originária e à naturalização às pessoas nascidas em território português (Lei n.º 2/2018 e Lei n.º 2/2020). Não é crível que o legislador tivesse querido, mantendo a norma do artigo 3.º, n.º 3, num contexto em que se discutiam outras questões, como novos fundamentos para a concessão da nacionalidade e o alargamento da nacionalidade portuguesa originária, excluir da jurisdição especializada da Família o conhecimento da união de facto para o efeito da aquisição de nacionalidade por cidadão estrangeiro” (sublinhado nosso).
Acrescenta-se, ainda, que “o princípio segundo o qual a lei especial prevalece sobre a lei geral, aplicado pelo Acórdão fundamento, consiste num princípio de resolução de conflitos entre normas incompatíveis entre si, que se baseia em presunções interpretativas ilidíveis (cfr. Manuel Fontaine, “Anotação ao artigo 7.º do Código Civil”, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, p. 40). Ou seja, a classificação de uma norma como lei especial não é um critério absoluto para determinar a sua prevalência sobre a lei geral. É necessário estabelecer uma presunção interpretativa nesse sentido, que não possa ser ilidida pela prova de uma intenção legislativa contrária. Ora, é o próprio Acórdão fundamento que reconhece que a lei especial, que atribui aos tribunais cíveis a competência para conhecer a prova da união de facto, quando conexionada com um pedido de aquisição da nacionalidade portuguesa para um dos seus membros, visou afastar a competência dos tribunais administrativos e fiscais. É esta intenção legislativa que permite demonstrar que a solução plasmada na norma especial não é sequer incompatível com a solução da al. g) do artigo 122 da LOSJ e que não a exclui ou afasta. As duas normas não se opõem entre si, constituindo, pelo contrário, normas complementares, devendo ser aplicadas conjuntamente”.
Desta forma, o enunciado nº. 3, do art.º 3º, da Lei da Nacionalidade, dever ser entendido e considerado “como uma norma remissiva para as regras que definem a competência material dos tribunais judiciais, aceitando os critérios de especialização da jurisdição cível. Não se trata de uma remissão estática, que obrigue o intérprete, atendo-se ao elemento literal, a ignorar as alterações legislativas posteriores, que atribuíram o reconhecimento da união de facto à competência dos juízos de família e de menores na LOSJ/2013. Trata-se antes de uma remissão dinâmica, que recebe as alterações legislativas posteriores, decisivas para fixar o sentido da expressão “tribunal cível” como uma categoria ampla que abrange os juízos especializados, in casu, os juízos de família. Esta é a solução que promove o elemento teleológico de interpretação e a unidade do sistema jurídico”.
Desta forma, surge como não relevante “o argumento segundo o qual o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade não foi revogado expressamente pela LOSJ, pois a unidade do sistema jurídico (argumento sistemático) impõe que o preceito da lei da nacionalidade seja entendido à luz das regras introduzidas pela LOSJ, para as quais remete implicitamente.
A Lei da Nacionalidade não constitui a sede legal própria para delimitar a competência material dos juízos dos tribunais judiciais, circunstância que deve levar o intérprete a concluir que, ao mencionar o “tribunal cível” no artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, o legislador não pretendeu regular de forma exaustiva a questão da competência em razão da matéria, mas apenas, como vimos, afastar a competência da jurisdição administrativa”.
Pelo que, “inferir o sentido da norma exclusivamente dos elementos literal e histórico de interpretação conduz a uma rigidez desadaptada da finalidade das normas que atribuem competência em razão da matéria.
Importa, pois, ponderar, para além dos argumentos gramatical (a letra ou o texto da lei) e do elemento histórico, os elementos racional e sistemático de interpretação, decisivos para fixar o sentido com que uma norma deve valer, nos termos do artigo 9.º, n.º 1, do Código Civil, que determina que «A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada»”.
Ou seja, “a razão de ser das normas atributivas de competência material reside na necessidade de a causa ser decidida por tribunais dotados de conhecimentos e formação para as mesmas, promovendo a qualidade das decisões. É esta a finalidade da afetação das questões da família, incluindo o reconhecimento da união de facto, a tribunais de competência especializada. Era esta a razão de ser do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, quando a Lei Orgânica n.º 2/2006 decidiu atribuir a competência aos tribunais cíveis, na falta de uma norma, à época, semelhante ao o atual artigo 122.º, n.º 1, al. g) da LOSJ.
O elemento sistemático, visando a realização da unidade e coerência do sistema jurídico, concorre no mesmo sentido.
Assim, estes dois cânones hermenêuticos – o elemento racional de interpretação, que abrange a finalidade da norma, e o argumento sistemático decorrente da unidade do sistema jurídico – implicam, a nosso ver, que a competência material para o reconhecimento das uniões de facto com o objetivo de aquisição da nacionalidade – seja atribuída aos tribunais de competência especializada dentro da jurisdição cível – os juízos de família e de menores” (sublinhado nosso).
Decorre do exposto que “a manutenção da competência dos tribunais cíveis para as ações respeitantes ao reconhecimento da união de facto para o efeito da aquisição da nacionalidade significa uma sobrevalorização do elemento literal, que é contrariada pelos argumentos teleológico e sistemático de interpretação. Na verdade, não se descortina qual a razão que levaria o legislador a pretender excluir as ações de reconhecimento da união de facto, para aquisição da nacionalidade, dos tribunais de competência especializada. O elemento histórico de interpretação, sempre frágil como argumento, não explica esta solução. Não se vislumbra, nem a jurisprudência oposta à que adotamos o indica, qual o pensamento legislativo suscetível de justificar a manutenção da competência dos tribunais cíveis para o reconhecimento das uniões de facto para o efeito de aquisição da nacionalidade. Teria que se conjeturar, para fundamentar este “pensamento legislativo” vontade legislativa, uma qualquer racionalidade, que aqui não se descortina. A suposta vontade histórica do legislador, deduzida pelo Acórdão fundamento da circunstância de as alterações à lei da nacionalidade terem mantido em vigor o artigo 3.º, n.º 3, não tendo sido manifestada, por escrito, em trabalhos preparatórios, não passa de uma conjetura insuficiente para afastar a competência dos Juízos de Família.
Por outro lado, o argumento sistemático, que postula a coerência do ordenamento jurídico, exige que, sendo a norma do n.º 3 do artigo 3.º da Lei da Nacionalidade, uma norma atributiva de competência em razão da matéria, seja interpretada de acordo com a lógica que preside à delimitação da competência dentro dos tribunais judiciais, atendendo à especialização em função da natureza das questões” (sublinhado nosso).
Acrescenta, ainda, encontrarem-se os requisitos da união de facto elencados na Lei nº. 07/2001, de 11/05, que prevê acerca da proteção das uniões de facto, pelo que “conflitos em torno do reconhecimento da união de facto em casos de rutura e/ou quanto aos efeitos da mesma têm dado lugar a processos judiciais que correm termos nos tribunais de família para apurar não só a existência ou inexistência de união de facto, mas também os seus efeitos: a divisão de bens aquando da rutura, adjudicação da casa de morada de família ou transmissão do arrendamento da mesma em caso de separação ou de morte, obrigação de alimentos da herança do falecido, etc. Assim, argumentos de lógica e de unidade do sistema jurídico impõem que a competência para as ações em que se pede o reconhecimento da união de facto, tendo em vista a aquisição da nacionalidade por um dos seus membros, seja atribuída àqueles tribunais, que, por terem a natureza de tribunais de competência especializada, estão mais apetrechados e preparados para proceder à análise da prova apresentada”.
Pelo que, “afastada a competência dos tribunais administrativos para o reconhecimento da união de facto, que visa a aquisição da nacionalidade por cidadão estrangeiro, nenhuma razão existe para interpretar de forma literal o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da nacionalidade, e excluir a competência dos juízos especializados. Pelo contrário, o interesse público em combater a possibilidade de estarmos perante uma união de facto simulada unicamente com o objetivo de permitir a um cidadão estrangeiro a aquisição da nacionalidade portuguesa fica mais protegido se os tribunais competentes para julgar a causa tiverem mais experiência em analisar a prova. Ora, é indiscutível que são os juízos de família que estão mais preparados para este efeito”.
Donde, após todo o arrazoado argumentário, conclui “que a lei da nacionalidade ao referir-se a tribunal “cível” está a referir-se ao tribunal que tramita e decide questões de natureza cível dentro da orgânica judiciária”.
Pelo que, “prevendo a LOSJ que a competência material é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual (artigo 130º, nº1) e cabendo à competência dos juízos cíveis e dos juízos de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado, é de concluir que, estando a causa (por via da referida alínea g) do nº1 do artigo 122º) legalmente atribuída a juízo especializado, como o é o Juízo de Família e Menores, surge este Juízo especializado em matéria cível como competente para a julgar”.
Sumaria, por fim, o entendimento adoptado, no sentido de que “a lei da nacionalidade ao referir-se, no n.º 3 do artigo 3.º, a tribunal “cível”, deve ser entendida como uma norma remissiva para as regras que definem a competência material dos tribunais judiciais, aceitando os critérios de especialização da jurisdição cível.
II - Cabendo à competência dos juízos cíveis e dos juízos de competência genérica todas as causas que não sejam legalmente atribuídas a juízo especializado, é de concluir que, estando as ações relativas aos requisitos e efeitos da união de facto legalmente atribuídas a juízo especializado, como o é o Juízo de Família e Menores, por força do artigo 122.º, n.º 1, alínea g) da LOSJ, também será este Juízo especializado em matéria cível competente para julgar as ações de reconhecimento de união de facto para o efeito de aquisição da nacionalidade por um dos companheiros que seja cidadão estrangeiro”.

Em contraponto, no sentido da competência em razão da matéria para o tramitar da presente acção ser incumbência dos Juízos de Competência Especializada Cível, referenciemos:
- o douto Acórdão do STJ de 17/06/2021 – Relator: João Cura Mariano, Processo nº. 286/20.4T8VCD,P1.S1, in www.dgsi.pt -, que referenciando a posição de vários arestos dos Tribunais da Relação, no sentido de considerarem que a competência para julgar estas acções pertence aos tribunais de competência especializada de família e menores, acrescenta que aqueles “não têm, porém, valorizado a menção de atribuição de competência específica aos tribunais cíveis para decidir estas ações que consta do artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade, sendo certo que nada impede o legislador de atribuir competência específica para o julgamento de determinadas ações, contrariando as regras gerais de competência dos diferentes tribunais judiciais especializados constantes da LOSJ”.
Descrevendo a estrutura e o regime dos tribunais judiciais aquando da publicação da Lei Orgânica nº. 02/2006, de 17/04, que veio prever acerca da necessidade do reconhecimento da situação da união de facto como pressuposto da aquisição da nacionalidade portuguesa por pessoa estrangeira, e atribui a competência para esse reconhecimento ao tribunal cível, acrescenta que aquela mesma Lei “alterou o artigo 26.º da Lei da Nacionalidade, passando a constar que ao contencioso da nacionalidade são aplicáveis, nos termos gerais o Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais, o Código de Processo nos Tribunais Administrativos e demais legislação complementar, onde dantes se dizia que a apreciação dos recursos a que se refere o artigo anterior (recursos relativos à atribuição, aquisição ou perda de nacionalidade portuguesa) era da competência do Tribunal da Relação de Lisboa”.
Assim, aduz, “o legislador quando previu a possibilidade de a união de facto com cidadão nacional ser fator de aquisição da nacionalidade portuguesa, optou por definir a competência para o reconhecimento dessas situações de união de facto, atribuindo-a aos tribunais cíveis”, sendo que com essa definição “não se pretendeu efetuar uma atribuição diferente daquela que na altura resultava da aplicação das regras gerais da LOFTJ, uma vez que, não existindo a atribuição aos tribunais de família e menores da competência que hoje consta da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ, a competência para o julgamento daquelas ações sempre competiria a um tribunal cível (podia ser uma vara cível, um juízo cível e, onde não existissem estes tribunais de competência específica, os juízos de competência genérica)”.
Acrescenta, igualmente, que o “legislador com a indicação específica de qual o tribunal competente para decidir este tipo de ações, sem que essa atribuição de competência constituísse uma exceção à atribuição que resultava da aplicação das regras gerais de distribuição de competência, em razão da matéria, pelos diferentes tribunais judiciais, terá procurado afastar a possibilidade de se entender que a competência pertencia aos tribunais administrativos, face à atribuição do contencioso da nacionalidade a estes tribunais em resultado da alteração da solução do artigo 26.º da Lei na Nacionalidade, pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de abril. Poderia tê-lo feito, dizendo que a competência pertencia aos tribunais judiciais, deixando que as aplicações das regras gerais de distribuição de competências nesta ordem jurisdicional definissem o tribunal competente em razão da matéria. No entanto, optou por ser mais específico e, de entre os diferentes tribunais judiciais, definiu que seriam os tribunais cíveis os competentes, o que, como já vimos, se encontrava de acordo com a aplicação das regras gerais da LOFTJ, não constituindo esta definição uma exceção a essas regras”.
No entanto, aduz-se, “com a aprovação da LOSJ, pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto, a qual passou a definir as normas de enquadramento e organização do sistema judiciário português, na nova distribuição de competências dos tribunais judiciais, a competência para julgar este tipo de ações passou a ser dos tribunais de família e menores, devido ao aditamento da nova competência constante da alínea g), do n.º 1, do artigo 122.º da LOSJ - as ações relativas ao estado civil das pessoas e família.
Contudo, mantendo-se na Lei da Nacionalidade a atribuição de competência específica, constante do artigo 3.º, n.º 3 – o estrangeiro que à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível – e sendo esta norma, uma norma especial, ela não foi tacitamente revogada pela alteração que ocorreu na distribuição de competências pela lei geral de enquadramento e organização do sistema judiciário.
Assim sendo, o disposto no referido artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade mantém-se vigente e aplicável, definindo uma competência específica dos tribunais, em razão da matéria, para o julgamento das ações de reconhecimento das situações de união de facto, com duração superior a três anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa, por declaração, passando a constituir uma exceção às novas regras gerais da distribuição de competências dos tribunais judiciais entretanto aprovadas”.
Pelo que, dispondo “este preceito, especificamente, que a competência pertence aos tribunais cíveis, não é possível aplicar a regra geral constante do artigo 122.º, n.º 1, g), da LOSJ, e considerar competente os juízos de família e menores, uma vez que o disposto numa norma especial prevalece sobre uma norma geral”.
Tal aresto foi replicado mais recentemente no douto Acórdão do STJ de 22/06/2023 – Processo nº. 3193/22.2T8VFX.L1.S1, relatado pelo mesmo Relator e com um mesmo Adjunto (Exmo. Conselheiro Vieira e Cunha).
- o douto aresto desta Relação de Lisboa de 27/04/2023 – Relator: António Santos, Processo nº. 10313/22.5T8LSB.L1-6, in www.dgsi.pt -, o qual, explicitando a alteração do entendimento do respectivo Relator, e apelando ao defendido no douto aresto do STJ de 17/06/2021 (já citado), subscreve entendimento no “sentido de que a Lei da Nacionalidade [ e que no artigo 3.º, n.º 3, reza que “O estrangeiro que à data da declaração, viva em união de facto há mais de três anos com nacional português pode adquirir a nacionalidade portuguesa, após ação de reconhecimento dessa situação a interpor no tribunal cível” ], incorpora manifestamente - em sede de atribuição de competência específica para determinada acção – uma norma especial no confronto com a lei geral de enquadramento e organização do sistema judiciário.
Com efeito, enquanto lei que incorpora o regime da atribuição e da aquisição da nacionalidade portuguesa, isto por um lado e, por outro, uma sua e especifica disposição regula a aquisição da NACIONALIDADE por parte de estrangeiro em caso de casamento ou união de facto com nacional português , é claro que na referida matéria consagra um regime específico/especial para as referidas situações , designadamente no tocante à competência do tribunal no tocante à ação de reconhecimento da situação de união de facto interpor – pelo estrangeiro - no tribunal cível”.
Acrescenta ser pacífico que entre a Lei da Nacionalidade e a LOSJ existe uma relação de especialidade, referenciando o nº. 3, do art.º 7º, do Cód. Civil, quanto á cessação da vigência da lei, que “a lei geral não revoga a lei especial, excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador”.
Relativamente ao preenchimento do conceito de intenção inequívoca, recorrendo ao ensinamento de Oliveira Ascensão, aduz dever ser o intérprete “particularmente exigente, o que equivale a dizer que devem mostrar-se afastadas as situações que se apresentem dúbias, ou que sejam passíveis de várias interpretações, antes devem apenas relevar as que revelam claramente um determinado propósito do legislador , que não suscitam em suma quaisquer dúvidas.
Ainda para OLIVEIRA ASCENSÃO (9), a intenção inequívoca do legislador “haverá de revelar-se por indícios traduzidos na premência da solução da lei geral, igualmente sentida no sector em que vigorava a lei especial, ou resultantes do facto de a solução constante da lei “especial” não se justificar afinal por necessidades próprias desse sector, pelo que não merece subsistir como lei especial”.
Dito de uma outra forma, “A existência de intenção inequívoca do legislador deve assentar em referência expressa na própria lei ou, pelo menos, num conjunto de vectores incisivos que a ela equivalham, recorrendo-se a uma menção revogatória clara, do género, “são revogadas todas as leis em contrário, mesmo as especiais””.
Acrescenta, assim, ser inquestionável que “a LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO não veio revogar o nº 3, do art.º 3, da LEI DA NACIONALIDADE [ introduzido pela Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17 de Abril ], não o tendo feito de forma expressa ou sequer tácita e, outrossim, não decorre igualmente da LEI N.º 62/2013, DE 26 DE AGOSTO que foi “ intenção inequívoca” do legislador revogar a lei especial que consubstancia em rigor [ em sede de competência para as acções de reconhecimento de situação de união de facto por período superior a três anos ] o nº 3, do art.º 3, da LEI DA NACIONALIDADE.
Assim sendo, e como assim o considerou/decidiu o STJ no Ac. de 17/6/2022, acima parcialmente transcrito, o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade mantém-se vigente e aplicável, definindo uma competência específica dos tribunais, em razão da matéria, para o julgamento das ações de reconhecimento das situações de união de facto, com duração superior a três anos, como requisito de aquisição da nacionalidade portuguesa, por declaração, passando a constituir uma exceção às novas regras gerais da distribuição de competências dos tribunais judiciais entretanto aprovadas””.
Donde, conclui que “mantendo-se o artigo 3.º, n.º 3, da Lei da Nacionalidade vigente e aplicável ao caso sub judice e, em razão do princípio de que a lei especial derroga a lei geral (lex specialis derrogat legi generali), temos como boas e concludentes as razões que amparam a decisão do Ac. do STJ acima referido, sendo o mesmo portanto de seguir”;
- igualmente desta Relação (e Secção), datado de 07/07/2022 – Relatora: Inês Moura, Processo nº. 258/22.4T8FNC.L1-2, in www.dgsi.pt, ou seja, figurando nos presentes autos a identificada Relatora como 2ª Adjunta, enquanto que o ora Relator ali figurou como 2º Adjunto -, no qual, citando-se aresto desta Relação de 29/04/2022, proferido no Processo nº. 26016/21.5T8LSB.L1, onde subscreveu como Adjunta, mencionou-se que ““(…) do cotejo da norma decorrente do artigo 122.º, n.º 1, alínea g), daquela Lei com a norma constante do referido artigo 3.º, n.º 3, da Lei n.º 37/81, de 03.10, na redação da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17.04, decorre a natureza especial desta última, o que reclama a sua aplicação em razão do princípio geral de que a norma especial prevalece sobre a norma geral, bem como do disposto no artigo 7.º, n.º 3, do Código Civil que estipula que: «a lei geral não revoga a lei especial, exceto se outra for a intenção inequívoca do legislador». Ora, no caso tal intenção inexiste. Pelo contrário, ao tempo da publicação e entrada em vigor da Lei Orgânica n.º 2/2006, de 17.04, que deu redação ao n.º 3 do artigo 3.º da Lei n.º 73/81, já estavam instalados Tribunais de Família e Menores, conforme disposto no artigo 78.º da Lei n.º 3/99, de 13.01, pelo que se o legislador quisesse deferir àqueles a competência para apreciar e julgar ações como a presente tê-lo estipulado e não deferido ao «tribunal cível» tal competência. Ao estipular que a ação de reconhecimento da união de facto para efeitos de aquisição da nacionalidade portuguesa deve ser interposta no «tribunal cível» o legislador pretendeu significar que tal ação deve correr seus termos nos tribunais com competência residual cível, o que corresponde ora aos Juízos Locais Cíveis ou Juízos de Competência Genérica, conforme na Comarca a interpor a ação existam aqueles ou então estes, atento o disposto nos artigos 117.º, n.º 1, alínea a), e 130.º, n.º 1, ambos da referida Lei n.º 62/2013.””.
Acrescenta-se, nesse sentido, que “uma decisão obtida pelos AA. em ação de reconhecimento de união de facto proferida em ação intentada num Juízo da Família e Menores corria o risco de não vir a cumprir o objetivo por eles pretendido com a mesma, não correspondendo aos seus interesses, por não permitir que com ela o 2º A. viesse a obter a nacionalidade portuguesa como é sua intenção, à luz da exigência do art.º 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade.
Como se referiu e é pacífico, a competência do tribunal tem de ser avaliada à luz dos termos em que os AA. configuram a ação. No caso, o pedido e a causa de pedir apresentados na petição inicial vão no sentido do reconhecimento judicial da sua situação de união de facto, com vista à obtenção da nacionalidade pelo 2º A., pelo é o tribunal cível e não o de família e menores que é competente para preparar e decidir a ação, nos termos da norma especial do art.º 3.º n.º 3 da Lei da Nacionalidade”.

Expostas ambas as posições divergentes, qual o entendimento que se nos afigura mais sólido, consistente e em consonância com os critérios interpretativos plasmados?
Ponderando a totalidade dos argumentos expostos, julgamos ser de prevalecer a primeira das posições enunciadas, por que sustentada em factores justificativos de maior consistência, elaboração argumentativa e solidez técnica.
O que, por parte do ora Relator, obriga-o a alterar o sentido da posição que subscreveu no citado aresto desta Relação e Secção datado de 07/07/2022, fruto de uma acrescida ponderação, análise e estudo nesta sede.
Entendemos, assim, que a competência em razão da matéria para o tramitar da presente acção, através da qual os Autores pretendem o reconhecimento judicial da sua união de facto para efeitos de atribuição da nacionalidade portuguesa à Autora mulher, pertence ao Juízo de Família e Menores competente, de acordo com a regra legal inscrita na alín. g), do nº. 1, do art.º 122º, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) – Lei nº. 62/2013, de 26/08.
Posição que julgamos solidificável com base no seguinte argumentário:
- parece indubitável e inquestionável que a matéria de reconhecimento da união de facto, independentemente da finalidade a que se destina tal reconhecimento, é matéria de direito da família;
- especificamente no que concerne ao desiderato de aquisição da nacionalidade, existe total equiparação de efeitos entre o casamento e a união de facto, desde que reconhecida a sua existência, o que surge com maior facilidade no casamento, enquanto que na união de facto exige-se a instauração de acção de simples apreciação que a comprove;
- parece evidente e pacificamente aceite não constituir a Lei da Nacionalidade a sede normal e natural de delimitação da competência em razão da matéria dos juízos dos tribunais judiciais para uma determinada acção;
-  nem parece fazer muito sentido que o legislador tenha decidido atribuir a juízos de diferenciada natureza – civil ou de família e menores – a competência material para a tramitação e julgamento das acções de apreciação e reconhecimento da existência de uma situação de união de facto, quando em causa estivesse a finalidade de aquisição da nacionalidade portuguesa, ou outra qualquer finalidade;
- antes parecendo decorrer que o legislador, na alínea g), do nº. 1, do art.º 122º, da LOSJ, teve a intencionalidade de abarcar toda a amplitude da vida familiar, que não apenas os laços decorrentes do casamento, isto é, todos os demais relacionamentos capazes de traduzirem ou enformarem o conceito de família;
- pois, diferenciado entendimento, seria reconhecer uma certa entropia da unidade do sistema jurídico, ao aceitar-se que o legislador teria querido colocar matérias pertencentes ao Direito da Família fora dos quadros de competência dos Tribunais de Família, sem que para tal existisse uma qualquer justificação substantiva minimamente coerente;
- tanto mais quando sempre urge reconhecer uma maior acuidade técnica e vocação destes tribunais especializados para o conhecimento de questões de tal matéria e natureza, sendo que estas, apesar do diferenciado desiderato (obtenção da aquisição da nacionalidade), inserem-se dentro do mesmo quadro apreciativo;
- o recurso ao elemento interpretativo histórico deve ser lido cum grano salis, pois aquando da aprovação da Lei Orgânica nº. 02/2006, que veio introduzir o referenciado nº. 3, do art.º 3º, da Lei da Nacionalidade, estava em vigor a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), aprovada pela Lei n.º 3/99, de 13 de Janeiro, sendo que esta não previa qualquer norma semelhante à cláusula da alínea g) do n.º 1 do artigo 122.º da LOSJ, pelo que a competência para o julgamento das acções de reconhecimento da união de facto, independentemente do seu objecto, sempre cabia a um tribunal cível;
- efectivamente, apesar de na altura já existirem tribunais de competência especializada, entre os quais os de família, a competência que lhes era atribuída (os artigos 81º e 82º, da LOFTJ) não incluía as acções de reconhecimento da união de facto;
- o que explica, naquele enquadramento legislativo, que o transcrito nº. 3, do art.º 3º, da Lei da Nacionalidade, tivesse atribuído a competência ao tribunal cível, sem qualquer específica referência aos tribunais de competência especializada então já existentes, dentro da categoria mais abrangente dos tribunais cíveis;
- donde, a razão de ser do estabelecimento de tal normativo terá sido a de afastar a apreciação de tal questão da jurisdição dos tribunais administrativos, pois, inexistindo a mesma, estes seriam os competentes, atenta a remissão para a legislação administrativa efectuada pelo art.º 26º da mesma Lei da Nacionalidade;
- ou seja, a intencionalidade daquela previsão foi estabelecer tal critério em razão da matéria, de forma a ressalvar a contraposição dos tribunais judiciais relativamente aos tribunais administrativos, e não excluir, dentro daqueles, os juízos especializados que viessem a ser considerados legalmente competentes pela lei da organização judiciária;
- por outro lado, o facto do legislador, nas posteriores alterações que foi efectuando da Lei da Nacionalidade, não ter procedido à alteração daquele nº. 3, do art.º 3º, de forma a adaptá-la ao preceituado na LOSJ (Lei nº. 62/2013), não significa, de forma incontroversa, que tenha pretendido manter aquela solução, assim afastando os juízos de competência especializada;
- tal inércia ou omissão antes traduz e consubstancia, como infelizmente sucede em inúmeras ocasiões, a falta de atenção do legislador na necessidade de adequar a regra de competência prevista naquele normativo à competência dos juízos de família ora inscrita na citada alínea g), do nº. 1, do art.º 122º, da LOSJ;
- acresce não ser igualmente sustentável o argumento de prevalência da lei especial sobre a lei geral, utilizado pela posição divergente, considerando o normativo da Lei da Nacionalidade como lei especial e o normativo da LOSJ como lei geral;
- com efeito, as soluções inscritas em ambos os normativos não se excluem, mas antes se complementam, implicando uma conjunta aplicação, desde que devidamente interpretado o nº. 3, do art.º 3º da Lei da Nacionalidade, no sentido de ter como desiderato o afastamento da tramitação da acção de reconhecimento nos tribunais de jurisdição administrativa;
- ou seja, o princípio da unidade ou da coerência do sistema jurídico, por apelo ao argumento interpretativo sistemático, impõe que aquele art.º 3º, nº. 3, da Lei da Nacionalidade, deva ser entendido em consonância com as regras definidas pela LOSJ, para as quais implicitamente remete;
- impondo, ainda, uma necessária interpretação de acordo com a logicidade presente na delimitação da competência dentro dos tribunais judiciais, na ponderação dos objectivos que enformam a especialização, tendo em atenção a natureza e especificidade das questões em apreciação;
- pelo que, definida a competência dos tribunais judiciais, ao invés dos tribunais administrativos, para as acções de reconhecimento duma situação de união de facto, no desiderato de aquisição de nacionalidade por um indivíduo estrangeiro, resulta insustentável a manutenção de uma interpretação literal daquele nº. 3, do art.º 3º, da Lei da Nacionalidade, com consequente exclusão da competência dos juízos especializados;
- donde, inserindo-se concretamente a presente acção no quadro atributivo de competência de juízo especializado, nomeadamente o Juízo de Família e Menores (por força da alínea g), do nº. 1, do art.º 122º, da LOSJ), é este o juízo competente, em matéria cível, para o tramitar e julgar.

O que determina, nesta sede, juízo de improcedência das conclusões recursórias apresentadas, com consequente confirmação da decisão recorrida/apelada.

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Nos quadros do art.º 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, decaindo os Autores/Apelantes no recurso interposto, são responsáveis pelo pagamento das custas da presente apelação.

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IV. DECISÃO

Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
a) Julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelos Apelantes/Autores Y… e T…, em que surgem como Apelado/Réu o ESTADO PORTUGUÊS, representado pelo MINISTÉRIO PÚBLICO;
b) Em consequência, decide-se confirmar a decisão apelada;
c) Nos quadros do art.º 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, decaindo os decaindo os Autores/Apelantes no recurso interposto, são responsáveis pelo pagamento das custas da presente apelação.
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Lisboa, 08 de Fevereiro de 2024
Arlindo Crua - Relator
José Manuel Monteiro Correia – 1º Adjunto
Inês Moura – 2ª Adjunta (vencida, nos termos constantes da declaração de voto anexa)

VOTO DE VENCIDO:
“Voto vencida, pelas razões também expostas no acórdão que enuncia os argumentos que têm vindo a ser apontados para o reconhecimento da competência dos tribunais cíveis nestes casos, entendendo que assim é, salientando que a Lei 62/2013 de 26 de agosto – LOSJ - veio alterar a competência para julgar as ações de reconhecimento da união de facto que até aí cabia aos tribunais cíveis, passando a atribuí-la aos Juízos de Família e Menores, sem que as alterações legislativas da Lei da Nacionalidade, mesmo após a vigência da Lei 62/2013, tenham implicado a eliminação ou modificação do n.º 3 do art.º 3.º daquela lei, norma especial que se manteve inalterada, pelo que quando o pedido dos AA. visa o reconhecimento da situação da união de facto com vista à obtenção da nacionalidade, considero que é dos tribunais cíveis a competência para a tramitação e decisão de tal ação”.

Inês Moura
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[1] A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.