Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
73/21.2TELSB-C.L1-3
Relator: MARIA ELISA MARQUES
Descritores: CONSTITUIÇÃO DE ARGUIDO
LEGITIMIDADE
MOMENTO
DIREITOS
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 05/04/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIDO
Sumário: O art. 59.º, n.º 2, do Código de Processo Penal confere à pessoa sobre quem recair suspeita de ter cometido um crime o direito de ser constituído arguido, a seu pedido, sempre que estiverem a ser efetuadas diligências que pessoalmente o afetem.

Com constituição de arguido a lei reconhece o suspeito como sujeito processual, com toda a panóplia de direitos que esse estatuto implica, sendo-lhe assegurado o exercício de direitos e deveres processuais. – cf. art. 60 e 61 do CPP e 32º CPP.

São requisitos para que alguém tenha o direito a requerer a sua constituição como arguido; a existência de suspeitas de ter cometido um crime e sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente a afectem.

É licita a intervenção do JIC, na fase de inquérito, quando estiverem em causa direitos liberdades e garantias fundamentais.

Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:


I–RELATÓRIO


1.–No autos de inquérito supra mencionado a correr termos no DCIAP de Lisboa, vieram requerentes Sentinel Discovery Srevices and Consu lting Lda., Success Kingdon - Unipessoal, Lda e Diagonalmatic, Lda, em 4-5-2021 requerer ao MP a sua constituição como arguidas alegando que assumiam a qualidade de suspeitas e que foi determinada a aplicação da medida de suspensão de operações bancárias a débito sobre as contas por elas tituladas, nos termos do artigo 48.° da Lei n.° 83/2017, de 18 de Agosto.

2.–O Ministério Público indeferiu essa pretensão por despacho do Ministério Público datado de 04.06.2021, com fundamento no facto de o inquérito se encontrar “em fase inicial de investigação, com recolha de elementos probatórios, sem prejuízo de o virem a ser no decurso do inquérito, se reunidas fundadas suspeitas da prática de crime por aquelas sociedades”.

4.–Notificadas desse despacho, as requerentes dirigiram ao juiz de instrução junto do TCIC, reclamação visando a sua revogação, com fundamento “numa errada identificação e interpretação da lei da qual resultou numa restrição ao direito fundamental de defesa das requerentes, previsto no artigo 32º nº 1 da CRP e requerendo que se determine a constituição como arguidas, com fundamento no disposto no artigo 59º nº2 do CPP, atento o preenchimento dos respectivos requisitos de aplicação”.

5.–Na sequência, foi proferido despacho pelo Mmº Juiz Instrução, J2 em 28.10.2022, do seguinte despacho (transcrição):
«Vieram as requerentes Sentinel Discovery Srevices and Consu lting Lda., Success Ki ngdon - Unipessoal, Lda e Diagonalmatic, Lda, a 4-5-2021 , fls. 460, requerer a constituição como arguidas, nos termos do artigo 59° nº 2 do CPP, alegando que assumem a qualidade de suspeitas e que  foi determ i nada a aplicação da medida de suspensão de operações bancárias a débito sobre as contas por elas tituladas, nos termos do artigo 48º da Lei 83/2017, de 18 de Agosto.
Por despacho do MP de fls. 600ss (4-6-2021) foi indeferida a constituição das requerentes como arguidas com fundamento que a aplicação da medida de suspensão de operações bancárias a débito depende, apenas, da existência de suspeitas da prática de acto criminoso e deve ser entendida como um meio especial, cautelar, reservado à criminalidade económico­financeira, que é uma medida aplicada numa fase processual necessariamente anterior à constituição de arguido e com uma exigência de indiciação inferior.
Que com a nova redacção do artigo 58º e do artigo 272º, ambos do CPP, a obrigatoriedade de constituição e interrogatório como arguido no inquérito ficou restringida aos casos em que haja suspeita fundada de que a pessoa contra quem corre o inquérito, praticou os ilícitos criminais sob investigação.
As requerentes foram notificadas, conforme resulta de fls. 635, através de correio expedido a 7-6-2021.
A fls. 832, no dia 16-6-2021, vieram as requerentes, em requerimento dirigido ao JIC, apresentar reclamação quanto ao despacho do MP de 4-6-2021 que inferiu o pedido de constituição como arguidas e que seja revogado o despacho em causa, com fundamento numa errada identificação e interpretação da lei da qual resultou numa restrição ao direito fundamental de defesa das requerentes, previsto no artigo 32º nº 1 da CRP e mais requerem que se determine a constituição como arguidas, com fundamento no disposto no artigo 59º nº2 do CPP, atento o preenchimento dos respectivos requisitos de aplicação.
Para o efeito alegam, em resumo, que o despacho do MP de 4-6-2021, ao negar o estatuto processual de arguido, sem fundamento algum, constitui uma restrição directa ao direito fundamental de defesa que lhes assiste, enquanto titulares substanciais de todos os requisitos que permitem o exercício da faculdade de requerer a constituição como arguidas.
Que estando em causa direitos fundamentais assiste competência ao JIC para sindicar o objecto da presente reclamação.
Mais alegam que a interpretação do artigo 17º do CPP, conjugada com o artigo 59º nº 2 do mesmo diploma, no sentido de que não é da competência do JIC a sindicância da legalidade dos actos do MP que implique a restrição ao direito processual do suspeito a ver-se constituído como arguido, sempre será inconstitucional, por acarretar uma limitação inadmissível ao conteúdo essencial do direito fundamental de defesa, bem como da contracção da função jurisdicional que incum be ao JIC, em violação do disposto no artigo 32º nº 1 e 202° da CRP.
Alegam , ainda, que o despacho do MP de 4-6-2021 não teve em consideração o pedido feito com base no artigo 59º nº 2 do CPP, mas apenas os requisitos previstos no artigo 58º do CPP.
O MP foi notificado para se pronunciar, no prazo de 10 dias, (fls. 830) no dia 28-6-2021.
Por promoção de fls. 900, no dia 20-7-2021, muito para além do prazo de 10 dias fixado para exercer o contraditório, veio o MP tomar posição alegando, em resumo, que tratando-se de um acto de constituição como arguido um acto de inquérito, cabe apenas ao MP a decisão quanto a esse acto processual e deste despacho apenas caberia reclamação para o respectivo superior hierárquico.
Que a apreciação da legalidade do despacho do MP, durante o inquérito, apenas cabe ao MP.
Que a não constituição das requerentes como arguidas não consubstancia uma violação de um direito fundamental ou uma
restrição ao direito de defesa, pelo que no caso não está qualquer questão relacionada com direitos, liberdades e garantias das requerentes, pelo que não tem aqui aplicação o disposto no artigo 17º e 268º nº 1 al. f) do CPP.
A fls. 1018, no dia 4-10-2021, vieram as requerentes reiterar o pedido de reclamação apresentado através do requerimento de 16-6-2021.

Cumpre apreciar

A primeira questão que se coloca é de saber se a pretensão das requerentes é da competência do JIC ou exclusiva do Ministério Público.
Porém, para chegarmos a uma conclusão segura e porque está dependente dela, antes de entramos na sua análise cumpre saber qual a natureza dos direitos que foram objecto de restrição com a decisão do Mº Pº, nomeadamente, se estaremos perante direitos fundamentais garantidos pela constituição.
Como vimos, as requerentes solicitaram a sua constituição como arguidas, ao abrigo do disposto no artigo 59º nº 2 do CPP.
Por sua vez, o MP, sem tomar posição quanto ao pedido feito ao abrigo da referida disposição legal, indeferiu a pretensão das requerentes alegando que não estavam preenchidos os pressupostos previstos no artigo 58° nº 1 do CPP, ou seja, que não se verificava nenhuma das situações de constituição obrigatória como arguido.
De acordo com a lei actual, ao contrário do que acontecia na versão anterior à Lei n.º 48/2007, de 29/8, não é sempre obrigatória a constituição de arguido, na fase do inquérito, mesmo que este corra contra pessoa determinada.
Com efeito, de acordo com o artigo 58º nº 1 al. a) do CPP, correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita da prática de crime, esta prestar declarações perante qualquer entidade judiciária ou órgão de polícia criminal é obrigatória a constituição de arguido.
Para além desta situação de constituição obrigatória como arguido, o artigo 58º nº 1 impõe a obrigatoriedade de constituição como arguido quando tenha de ser aplicada uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, o suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 254 a 261, ou for levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e que lhe for comunicado.
São estas as situações que a lei obriga à constituição de alguém como arguido.
Tendo em conta o caso concreto, verifica-se que as requerentes não se enquadram em nenhuma das situações previstas no nº 1 do artigo 58° do CPP, motivo pelo qual não se verifica qualquer omissão quanto à obrigatoriedade de ser constituída como arguida ao abrigo da citada norma legal.
Tendo em conta o teor do requerimento das requerentes de 4-5-2021, fls. 460, verifica-se que o pedido de constituição como arguidas funda-se no artigo 59º nº 2 do CPP e não, como foi abordado pelo MP no despacho de fls. 600ss (4-6-2021), nas situações previstas no artigo 58º nº 1 do CPP.
Com efeito, no despacho  do MP  de  fls. 600ss  (4-6-2021)  não foi analisada, apesar de ser esse o fundamento  do pedido  das requerentes,  a pretensão de constituição como arguidas ao abrigo do artigo 59º nº 2 do CPP.
Na verdade, para além das situações previstas no artigo 58º do CPP, o artigo 59º do CPP prevê outros casos de constituição de alguém como arguido e uma dessas situações é a pessoa sobre quem recair suspeita de ter cometido um crime ter o direito a ser constituída  arguida, a seu pedido, sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente a afectem.
Assim sendo, de acordo com o artigo 59º nº 2 do CPP, são requisitos para que alguém tenha o direito a requerer a sua constituição como arguido; a existência de suspeitas de ter cometido um crime e sempre que estiverem a ser efectuadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente a afectem.
Nos termos do artigo 1º al. e) do CPP, considera-se suspeito toda a pessoa relativamente à qual exista indício de que cometeu ou se prepara para cometer um crime, ou que nele participou ou se prepara para participar.
De acordo com o artigo 60º do CPP, desde o momento em que uma pessoa adquirir a qualidade de arguido é-lhe assegurado o exercício de direitos e deveres processuais.
O artigo 32° nº 1 da CRP refere que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.
O artigo 61º do CPP, dando cumprimento às garantias de defesa previstas no artigo 32º da Constituição da República, estabelece um conjunto de direitos ao arguido, para além dos deveres processuais.
Por decisão do MP, proferida no dia 25-2-2021, fls. 87ss, foi determinada a suspensão temporária de todo o tipo de movimentos a débito, sobre as contas bancárias identificadas a fls. 94, tituladas pelas requerentes Sentinel Discovery Srevices and Consulting Lda., Success Kingdon - Unipessoal, Lda.
Por decisão judicial de 26-2-2021 (fls. 117) foi confirmada a decisão do MP.
Por decisão do MP, proferida no dia 5-3-2021 , fls. 137ss, foi determinada a suspensão temporária de todo o tipo de movimentos a débito, sobre as contas  bancárias identificadas a  fls. 144 tituladas  pela Diagonal matic, Lda.
Por decisão judicial de 9-3-2021 (fls. 154) foi confirmada a decisão do MP.
O fundamento invocado foi a existência de suspeitas de que os fundos titulados pelas entidades acima referidas são produto da prática de crime de fraude fiscal e corrupção/burla, encontrando-se os fundos em manobras de branqueamento.
As medidas de controlo de contas bancárias e de suspensão de movimentos, quer a débito, quer a crédito, são aplicadas através de despacho do Juiz, no âmbito de um inquérito criminal, mediante impulso do titular da acção penal , ou seja, o Ministério Público e assumem natureza cautelar e preventiva.
Para além dessa natureza cautelar, não restam dúvidas de que se tratam, também, de instrumentos de obtenção de prova instituídos para superar alguns pontos de bloqueio na investigação  da  criminalidade rel acionada com o branqueamento de capitais e do terrorismo.
Deste modo, as medidas de controlo e de suspensão de operações bancárias, dependem apenas da existência de suspeitas de prática de acto criminoso - de catálogo, e devem ser entendidas como um meio especial cautelar, reservado, designadamente à criminalidade económico-financeira, capaz de inviabilizar a disseminação dos fundos detectados (de proveniência duvidosa) no sistema financeiro , devendo, posteriormente e de imediato prosseguir a investigação sobre a ilicitude da transacção bancária fundada na existência de um crime precedente.
Cumpre referir, também, que a especificidade das medidas em causa e por restringirem um direito fundamental, como é o direito de propriedade, não dispensam o apelo a princípios gerais da necessidade da aplicação de medidas restritivas de direitos e da sua criteriosa proporcionalidade e busca da verdade material, critérios, aliás, orientadores de qualquer outra intervenção investigatória ou judicial.
Em face do exposto, não restam dúvidas que as requerentes Sentinel Discovery Srevices and Consulting Lda., Success Kingdon - Unipessoal, Lda e Diagonalmatic, Lda, são suspeitas nestes autos, nos termos do citado artigo 1º al. e) do CPP, na medida em que foram objecto de uma medida cautelar que exige a presença de suspeitas da prática de um crime de catálogo.
Para além de assumirem a qualidade de suspeitas, nos presentes autos já foram realizadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente afectam as requerentes.
Com efeito, a aplicação da medida de suspensão provisória de operações bancárias constitui, também, um instrumento de recolha de prova que interfere com um direito fundamental, como é o direito de propriedade.
A propósito da natureza da medida, o Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 10-01-2012, Proc nº 169/10.6TELSB-A.L l , diz-nos que a medida aqui em causa, sendo um instrumento de recolha de prova . . ." e diz mais: " Á semelhança do que acontece com outros meios de obtenção de provas basta que haja suspeitas da prática do crime (de catálogo) e de quem é ou são os seus agentes".
Assim sendo, tendo em conta o disposto no artigo 59º nº 2 do CPP e o teor do requerimento de 4-5-2021,  fls. 460, verificam-se reunidos os pressupostos para que as requerentes exerçam o seu direito de requererem a constituição como arguidas nos presentes autos, ou seja, sobre elas recai uma suspeita de terem cometido um crime de branqueamento e nos autos foram realizadas diligências de obtenção de prova que pessoal mente as afectaram.
Nos termos do disposto no art. 11º do Código Penal e de extensa legislação avulsa, as pessoas colectivas e entidades equiparadas são susceptíveis de responsabilidade criminal.
Os direitos e deveres inerentes à qualidade de arguido valem tanto para as pessoas singulares como para as pessoas colectivas, naturalmente com as necessárias adaptações sendo exercidos e cumpridos pelo representante legal que assuma a representação da pessoa colectiva como arguida (a quem a constituição de arguida da pessoa e do representante deve ser feita em conformidade com o disposto no nº 2 do art. 58° do Código de Processo Penal.
Como vimos, as requerentes manifestaram no processo a intenção de exercerem o direito à constituição como arguidas, ao abrigo do artigo 59º nº 2  do  CPP,  tendo  o  MP  indeferido  essa  pretensão  com  fundamento na inexistência dos pressupostos previstos no artigo 58º nº1 do CPP.
Deste modo, a questão que neste momento se coloca é a de saber se, perante a existência dos pressupostos previstos no artigo 59º nº 2 do CPP, isto é, tendo as requerentes o direito à constituição como arguidas e tendo o MP indeferido o exercício desse direito, se esta decisão constitui uma restrição de um direito fundamental que reclame a intervenção do juiz de instrução criminal e, em caso afirmativo, qual a consequência processual.
A constituição da pessoa singular ou colectiva como arguida, para além de corresponder a uma exigência legal, tem consequências relevantes, designadamente, no âmbito do exercício de direitos processuais e do regime de prescrição do procedimento criminal .
Tendo em conta o disposto no artigo 32º nº 1 da CRP e artigo 61° do CPP, a qualidade de arguido, para além dos deveres processuais que acarreta, confere ao sujeito processual um conjunto de direitos que vão muito para além daqueles que podem ser exercidos pelo mero suspeito. Com efeito, pelo facto de assumir a qualidade de arguido o até então suspeito passa a ter direito a intervir no inquérito oferecendo provas, a estar presente nos actos processuais que directamente lhe disserem respeito, a constituir advogado ou solicitar que lhe seja nomeado defensor e a recorrer das decisões que lhe forem desfavoráveis.
Como refere o próprio MP nas alegações citadas no AC do Tribunal Constitucional  121/2021: "normas  que  regulam  a  constituição  de  arguido ( ..) per se ou por via da sua aplicação, se revelam insusceptíveis de violarem quaisquer direitos fundamentais, designadamente os invocados direito à liberdade ou direito de deslocação e emigração" e que tal acto "não só não comprime quaisquer direitos dos  cidadãos  visados  como, pelo  contrário, lhes concede os direitos processuais previstos no artigo 61. do Código de Processo  Penal".
Prossegue o mesmo acórdão do Tribunal Constitucional: "Entende-se que assiste razão ao Ministério Público,  atenta a posição  processual do arguido, enquanto sujeito do processo penal, e considerando os direitos e deveres que a lei lhe confere.
Com a constituição de arguido, o sujeito processual deixa de ser um mero suspeito e passa a gozar de uma posição, no quadro do processo penal, que visa dar-lhe mais garantias, nos planos da defesa e da possibilidade de intervenção no curso do próprio processo. Nas palavras de Maria João Antunes, "trata-se de uma posição processual que lhe permite uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto, através da concessão de direitos processuais autónomos, legalmente definidos, que deverão ser respeitados por todos os intervenientes noprocesso penal (entre outros, artigos 60.º e 61. n. º 1, do CPP)" (cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, 2.ª edição, Almed ina, Coimbra, 2018).
Mais à frente, no mesmo acórdão é dito o seguinte: "Em segundo lugar, não pode olvidar-se que a condição de arguido confere ao sujeito uma panóplia   de direitos   de  defesa,   nomeadamente,  em  cumprimento   do princípio do contraditório : o direito a  estar   presente nos actos que lhe digam respeito, a ser ouvido pelo tribunal sempre que devam ser tomadas decisões que o afectem, a ser informado dos factos que lhe são imputados antes de prestar declarações perante qualquer entidade, a constituir advogado ou a ser-lhe nomeado defensor, a intervir no inquérito e na instrução, oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias e recorrer das decisões que lhe forem desfavoráveis (veja-se o disposto no artigo 61.  n. º 1, do CPP).
(...)  
O que este  conjunto de direitos demonstra é que o legislador se preocupou em conceber um sistema processual penal que, em consonância com o princípio do Estado de direito democrático, demonstre respeito pela pessoa do arguido e lhe permita defender-se, responder às acusações que lhe são feitas , intervir no processo , e até modelá-lo, em determinadas circunstâncias (designadamente, requerendo a abertura de instrução e forçando a prossecução para julgamento em caso de desistência de queixa não aceite) ".
Nesta conformidade, seguindo de perto a orientação do Tribunal Constitucional plasmada no acórdão citado, conclui-se que a decisão do MP em recusar às suspeitas o direito a serem constituídas como arguidas, quando estão verificados os respectivos pressupostos previstos no artigo 59º nº 2 do CPP, e, ao mesmo tempo, ao negar-lhes o exercício dos direitos previstos no artigo 61º do CPP, constitui uma verdadeira restrição a direitos fundamentais consagrados no artigo 32º da CRP e 61º do CPP, o que faz com que a regularidade de tal acto tenha de estar considerada dentro do âmbito de competências do juiz de instrução criminal, como juiz das garantias, durante a fase de inquérito.
Com efeito, negar essa competência ao JIC e considerar, como defende o MP, que constitui matéria reservada ao MP como o titular do inquérito, constitui não só uma violação da reserva constitucional de função jurisdicional, como uma violação das garantias de defesa do arguido em processo penal (designadamente, o disposto no artigo 32.º, n.º 4, da CRP), assim como uma restrição ao direito fundamental de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva (artigo 20.º da CRP).
Deste modo, dado que a decisão do MP restringe direitos fundamentais das requerentes faz com que lhes assista legitimidade para virem, perante o juiz das garantias, reclamar a defesa desses direitos.
Neste sentido decidiu o Ac. do Trib. Constitucional no Acórdão nº 172/92 de 6 de Maio dizendo: "O processo penal de um Estado de direito há­de cumprir dois objectivos fundamentais: assegurar ao Estado a possibilidade de realização do seu jus punendi e oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra os abusos que possam cometer-se no exercício do poder punitivo ( ..).
Um tal processo há-de, por conseguinte, ser  um  processo equitativo (a due process, a fair process), que tenha por preocupação dominante a busca da verdade material, mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido, o que, entre o mais, exige que se assegurem a este todas as garantias de defesa e que se não admitam provas que não passem pelo crivo do contraditório  (..) ".
O artigo 32° no 5 da C.R.P. consagra como princípio o fundamental enformador do processo penal, o princípio do acusatório,  estabelecendo que "o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de discussão e julgamento e os actos que a lei determinar subordinados ao princípio  do contraditório".
Deste modo, não se levantam quaisquer dúvidas que a fase de inquérito no nosso ordenamento processual, está cometida exclusivamente ao Ministério Público, que determ i nará as diligências reputadas pertinentes e adequadas à investigação do crime e dos seus agentes, desse modo recolhendo as provas que irão fundamentar a sua decisão de acusar ou não, (artigos 263º, 264º e 267º do CPP).
O artigo 219º nº2 da CRP consagra  a  autonomia  do  Ministério Público o que significa que as opções tomadas no seu seio ocorrem sem interferências externas daquela  magistratura,  mas  não  lhe  confere  o princípio da independência consagrado no artigo 203º do mesmo diploma atribuído aos tribunais e aos juízes. Deste modo, as decisões do Ministério Público tomadas na fase de inquérito, desde que contendam com direitos e liberdades fundamentais, não estão excluídas do controlo judicial.
Na fase de inquérito os actos praticados pelo Mº Pº assumem uma natureza materialmente administrativa sendo que os actos praticados pelo juiz de instrução revestem uma natureza jurisdicional e aqueles actos, como os de todos os órgãos do Estado, não estão isentos, por força dos princípios estruturantes do Estado de Direito, de controlo jurisdicional.
Diz o artigo 17 º do CPP que, compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas   as funções jurisdicionais até remessa do processo para julgamento.
A intervenção do JIC no inquérito opera-se, basicamente, através dos artigos 268º e 269º do CPP.
Segundo o primeiro, que ostenta exactamente tal epígrafe:
"1.– Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução:
a)- Proceder ao primeiro interrogatório judicial  de arguido detido;
b)- Proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público;
c)- Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos dos artigos 177. º, n. º 3, 180. º, nª 1, e 181. º:
d)- Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do artigo 179 º, n. º 3;
e)- Declarar a perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277. º, 280º e 282. º;
f)- Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução. "
Os actos contemplados no preceito seguinte como sendo da sua competência exclusiva naquela fase, são os de ordenar ou autorizar:
a)- Buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do art. 177.º ,
b)- Apreensões de correspondência, nos termos do art. 179. º , n. º 1 ;
c)- lntercepção, gravação ou registo de conversaçoes ou comunicações, nos termos dos artigos 18 7º e 190 º;
d)- A prática de quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.
Não restam dúvidas que, na al. f) do nº 1, daquele artigo 268º, cabem diversos actos dispersamente prevenidos no CPP em que a intervenção do JIC é convocada. Assim, entre outras, a título de exemplo, a admissão de assistente (art. 68. º, nº 3), a detenção perante falta injustificada (art. 116º, nº 2), as declarações para memória futura· (art. 271. º) ou em outros diplomas legais, artigo 16° nº 3 e 17º da lei 109/2009 de 15/09, apreensão de correio electrónico e dados informáticos relativos à vida privada, artigo 6° da Lei 5/2002 de 11-01 recolha de imagem e som, as medidas cautelares de suspensão de operações bancárias e congelamento previstas na lei 83/2017, de 18 de Agosto, etc.
O que está em causa com a pretensão das requerentes não é a autonomia do Mº Pº e nem, muito menos, a titularidade do inquérito, mas sim a defesa de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Ora, como já dissemos anteriormente nestes autos e como recentemente foi reafirmado pelo Tribunal Constitucional, tratando-se de direitos fundamentais a questão não poderá estar fora da sindicância jurisdicional a exercer pelo juiz de instrução criminal, enquanto juiz de garantias e de liberdades, por força do artigo 202º nº 2 da CRP quando afirma que, na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e do artigo 17º do CPP quando estatui que o juiz de instrução tem competência , além do mais, (. . .) exercer todas as funções jurisdicionais  até a remessa do processo a julgamento».
Para além disso, este entendimento não colide com estrutura acusatória do processo penal, consagrada no artigo 32º nº 5 da CRP, nem com a separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito e nem, muito menos, poderá ser tida como uma posição de sindicante por parte do JIC da actividade do Ministério Público. Esta posição é, em nosso entender, a que melhor se coaduna com as funções do juiz de instrução enquanto garante de direitos fundamentais dos cidadãos.
Para além disso, o n.º 4 do artigo 32º da CRP prossegue a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos fundamentais dos cidadãos ("reserva do juiz ").
Neste sentido, veja-se o AC do Tribunal Constitucional nº 228/2007 quando diz que: «Decisivamente, entende o Tribunal que, tratando-se de uma intervenção significativa nos direitos fundamentais do arguido, se impõe um controlo prévio pelo juiz como expressão da separação de poderes e competências decorrente da estrutura acusatória do Processo Penal consagrada nos artigos 32º, nºs 4 e 5 do Código de Processo Penal» .
« . . ., o n.º 4 do artigo 32° da CRP prossegue a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz - -garante dos direitos fundamentais dos cidadãos ("reserva do juiz ")».
Sobre este tema, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.09.2015, é dito que: «Tendo em atenção esta perspectiva, a argumentação expendida em alguma doutrina e jurisprudência citadas, segundo as quais, mesmo conhecendo o Ministério
Público das invalidades, sempre haverá um controlo judicial das mesmas, seja ao nível de incidentes judiciais, seja nas fases jurisdicionalizadas do processo, não nos parece que seja a que melhor se adequa aos princípios do processo penal. Nesta tese teríamos que aguardar alguma intervenção incidental do juiz de instrução ou que o processo passasse para a fase de instrução, para a ser apreciada jurisdicionalmente a alegada violação do direito de defesa. lnexistindo tal intervenção a apreciação jurisdicional nunca se verificaria. Com o devido respeito não nos parece que esta solução mereça acolhimento.
Em questões de alegada violação de direitos liberdades e garantias, a intervenção jurisdicional impõe-se, no imediato, independentemente da fase processual em que  a  mesma  ocorra,  assim  se . garantindo  a  tutela jurisdicional consagrada no texto constitucional e materializando o "direito ao juiz " que a mesma comporta. Perfilhando nós a corrente doutrinal e jurisprudencial que confere ao juiz de instrução competência para apreciar as invalidades cometidas em inquérito sempre que contendam com direitos  liberdades e garantias, tanto mais que  as  normas  constitucionais são  de  aplicação directa  (artigo 18º Constituição da República  Portuguesa), não pode, no caso  em apreço,  o juiz  de  instrução  deixar  de apreciar  o requerimento apresentado pelo recorrente».
E diz mais: «Esta solução em nada contende com a circunstância de a direcção do Inquérito ser da competência do Ministério Público, nem coloca em crise o princípio do acusatório que rege o processo criminal. O princípio do acusatório resultante do artigo 32 nº 5 da Constituição da República Portuguesa, visa assegurar o direito a um julgamento, imparcial, justo e equitativo assegurando que a acusação é feita por um órgão diferente do julgador. Isto não significa que não existam articulações, em momentos diferentes das fases do processo, entre os vários órgãos, como, aliás, se constata das várias intervenções do juiz de instrução na fase de Inquérito que é da competência do Ministério Público».
No Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa, de 07.12.2016 (Proc. n.º 333/14.9TELSB-3) é dito que: «Na verdade é ao MP que cabe exclusivamente a direcção do inquérito - artº 263º CPP - devendo dirigir a investigação, ordenar a recolha de meios de prova necessários à recolha de indícios, determinar os agentes de um crime e as respectivas responsabilidades tudo com vista à formulação do libelo acusatório ou ao arquivamento da investigação/ inquérito.
No entanto, em toda esta actividade de investigação cabe ao JIC zelar e velar para que os Direitos  Liberdades e Garantias dos envolvidos nos processos sejam protegidos /observados como podemos concluir da leitura rápida dos artigos 205 268º e 269º do CPP e sem esquecer o artº 17º do CPP e a nossa Lei Fundamental.
O MP não define ou delimita direitos, não se pronuncia pela sua eventual violação ou, pelo menos, não decide da invocada violação dos mesmos, assim como das garantias e das liberdades.
Ora, entendendo que existem aqui duas situações que devem ser tidas em conta, uma que se prende com a conduta do MP e que só pode ser atacada por via hierárquica enquanto for ele o Dominus do Inquérito e outra, em que, nesta fase processual o JIC é chamado como o Juiz dos Direitos Liberdades e Garantias e em relação às quais tem necessariamente de se  pronunciar,  há que tomar posição quanto ao recurso em causa. (...).
É sem dúvida ao JIC que compete pronunciar-se quanto a estas questões - artº 202.º CRP, porque compete aos tribunais assegurar a "defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos " - artigo 32. º da CRP, nº 1 do artigo 20º CRP».
No mesmo sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, em anotação ao artigo 17º do CPP diz que: "O juiz de instrução é ( . . .) o garante dos direitos fundamentais do arguido e do ofendido durante a fase de inquérito dirigida pelo Ministério Público".
Cumpre referir, por fim, que não existe fundamento legal para a alegada intervenção hierárquica para efeito de conhecimento de eventuais irregularidades praticadas pelo MP na fase de inquérito. Com efeito, a única situação de intervenção hierárquica que está prevista no CPP é a do artigo 278º do CPP para o caso de arquivamento do inquérito.
Face ao exposto, conclui-se que, contendendo a situação em causa, com direitos, liberdades e garantias fundamentais das requerentes, a competência para a sua apreciação recai sobre o juiz de instrução.
2- Uma vez verificado que a competência para a apreciação dos vícios em causa compete ao juiz de instrução, cumpre saber, antes de mais, qual a natureza do vício do acto praticado pelo Mº Pº, constante do despacho de 600, que indeferiu o pedido de constituição como arguidas, quando estavam reunidos os pressupostos previstos no artigo 59º nº 2 do CPP.
Como é consabido, em matéria de nulidades vigora, entre nós, o princípio da legal idade - cfr. art.º 118.º do CPP.
Princípio segundo o qual a violação ou inobservância das disposições da lei do processo só determina a nulidade do acto quando for expressamente cominada na lei.
Há duas formas de funcionamento da nulidade, as nulidades correspondentes a vícios que podem ser sanados no decurso do processo - as nulidades sanáveis, com previsão expressa no art. 120º do C.P.P - e as nulidades correspondentes a vícios que só podem ser sanados com a formação do caso julgado - nulidades absolutas ou insanáveis, expressamente consagradas no art. 119º do C.P.P.
Decorre do art. 119º do C.P.P. que o elenco das nulidades absolutas tem natureza taxativa, apenas constituindo esta modalidade de nulidade as que se encontrem elencadas no preceito ou as que, espalhadas no Código ou demais leis do processo penal , tiverem a cominação expressa de nulidade insanável.
As nulidades absolutas ou insanáveis são de conhecimento oficioso e podem, ainda, ser arguidas por qualquer interessado independentemente do estado do processo desde que o façam até ao trânsito em julgado da decisão, ou seja, podem fazê-lo a todo o tempo. ·
Regra geral as nulidades sanáveis no decurso do processo carecem de ser arguidas por um dos interessados durante um determinado período de tempo.
O elenco das nulidades sanáveis constante do art. 120º do C.P.P. é taxativo pois que para além das aí expressamente contempladas ou noutras disposições legais, o legislador não considerou outras.
Quanto à irregularidade - arts. 118º n. 2 e 123º, ambos do C.P.P. a figura da irregularidade tem carácter residual na medida em que engloba a generalidade das situações em que haja violação, por acção ou omissão, da legalidade na prática de um acto processual. Nesta categoria cabem quaisquer vícios de que enfermem os actos processuais e que a lei não taxa de nulidade. Estamos perante irregularidade sempre que estejamos perante um vício formal do acto processual que não produza nulidade. O acto irregular, como o acto nulo, produz os efeitos típicos do acto perfeito enquanto a irregularidade não for declarada.
Assim, para que a irregularidade determine a invalidade do acto a que se refere, e dos termos subsequentes que possa afectar, deve ser arguida pelos interessados: no próprio acto se a esta tiverem assistido; nos 3 dias seguintes a contar daquele em que tivessem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
As requerentes não qualificaram o vício em causa, tendo referido apenas que a decisão do DCIAP incorre num manifesto erro de apreciação do requerimento apresentado em 4-5-2021 e que esse erro de apreciação redunda numa incorrecta identificação e interpretação das disposições legais aplicáveis e pedem que o despacho do MP de 4-6-202 lhe seja revogado e que seja determinada a sua constituição como arguidas, com fundamento  no disposto no artigo 59° nº 2 do CPP.
Tendo em conta a natureza do vício em causa e o disposto no artigo 118º do CPP, verifica-se que a lei comina o mesmo como constituindo uma irregularidade a qual deve ser arguida pelos interessados nos termos do artigo 123º do CPP.
Uma vez que as requerentes invocaram o vício dentro do prazo legal, tendo em conta a regra do artigo 113º nº 2 e 123° do CPP, a data da expedição do correio e a data de entrada do requeri mento (fls. 635 e 832), verifica-se que a pretensão em causa é tempestiva.
Nos termos do artigo 123º nº 1 do CP qualquer irregularidade do processo só determina a inval idade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar (art. 123.º/1 do CPP).
Em face do exposto, julgo verificada a irregularidade do despacho do MP proferido no dia 4-6-2021 (fls. 600), que indeferiu o direito manifestado pelas requerentes, ao abrigo do disposto no artigo 59º nº 2 do CPP, a serem constituídas como arguidas nos presentes autos e de exercerem os direitos fundamentais conferidos ao sujeito processual arguido.
***

As requerentes invocaram, ainda, que a interpretação do artigo 17º do CPP, conjugada com o artigo 59º nº 2 do mesmo diploma, no sentido de que não é da competência do JIC a sindicância da legalidade dos actos do MP que implique a restrição ao direito processual do suspeito a ver-se constituído como arguido, sempre será inconstitucional, por acarretar uma limitação inadmissível ao conteúdo essencial do direito fundamental de defesa, bem como da contracção da função jurisdicional que incumbe ao JIC, em violação  do disposto no artigo 32º nº l e 202º da CRP.           
Como já vimos acima, da análise feita ao nº 1 e 2 do artigo 61º do CPP - direitos do arguido -verifica-se que o elenco dos direitos aí conferidos não é mais do que a concretização do direito fundamental a todas as garantias de defesa consagrado no artigo 32º da CRP, bem como o de assegurar o princípio a tutela jurisdicional  efectiva acolhido no artigo 20º da CRP.
Nos termos do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, o «processo criminal assegura todas as garantias de defesa ao arguido», o que engloba indubitavelmente «todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação» (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. 1, 4ª edição, Coimbra, pág. 516).
Procura-se, deste modo, alcançar a concretização de um consistente direito de defesa, dando-se ao arguido uma real possibilidade de influenciar o decurso do processo, através da sua concepção própria tanto sobre a questão-de-facto como sobre as questões-de-direito que no processo se discutem. Embora a constituição não defina o momento a partir do qual podem ser exercidas as garantias de defesa, nomeadamente os direitos previstos no artigo 61º nº 1 e 2 do CPP, entendemos, tal como é dito por Gomes Canotilho e Vital Moreira (obra citada pág. 516) que: «todo o feixe de direitos inseridos no direito constitucional de defesa deve ser posto em acção pelo menos a partir do momento em que o sujeito assume a qualidade de arguido». Mais à frente, pág. 517, os mesmos autores dizem que: «a constituição como arguido serve, para assegurar as garantias de defesa e observar o princípio da legalidade e não para antecipar sem fundamento medidas de coacção».
Verificados os aspectos gerais relativos à figura do arguido na nossa ordem jurídica, em especial a noção de que se trata de um sujeito a quem a lei confere um conjunto de direitos e deveres, teremos de concluir que qualquer limitação quanto ao direito previsto no artigo 59º nº 2 do CPP em requerer a constituição como arguido e a partir desse momento ter faculdade de exercer de um conjunto de direitos conferidos pela constituição e pela l ei, o exercício desse direito não pode estar fora da sindicância do juiz das garantias.
Com efeito, a interpretação normativa do artigo 17°, conjugada com o artigo 59º nº 2, ambos do CPP, no sentido de que a decisão do MP em não permitir o exercício desse direito está fora da sindicância do juiz de instrução criminal, para além de retirar qualquer sentido prático ao direito à constituição como arguido, sempre seria inconstitucional por violação do disposto no artigo 32º nº 1 e 202º da CRP.
Notifique

2.–Inconformado, o Ministério Público recorreu deste despacho, peticionando seja declarada a “inexistência jurídica da decisão do Mmo. Juiz de Instrução ou, subsidiariamente, seja o despacho a quo revogado, por ser nulo em função das competências em causa pertencerem ao Ministério Público”, sintetizando a sua motivação nas seguintes conclusões (transcrição):
1.–Investigam-se nos autos a prática de factos susceptíveis de integrar, em abstracto, o crime de branqueamento de capitais, p. e p. pelo artigo 368.°-A, n.° 1 a 3 do Código Penal, tendo como crimes precedentes o de fraude fiscal e, eventualmente, corrupção.
2.–Por despachos proferidos em 25.02.2021 e 05.03.2021, foi ordenada, pelo DCIAP, e ao abrigo do disposto no artigo 48.° da Lei n.° 83/2017, de 18 de Agosto, a suspensão temporária da execução de operações a débito, bem como de eventuais meios de pagamentos associados, relativamente a seis contas bancárias.
3.–Por despachos do Mmo. Juiz de Instrução de 26.02.2021 e 09.03.2021, foi confirmada a suspensão provisória de operações bancárias naquelas contas e ordenado o bloqueio, por três meses, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 47.°, 48.° e 49.° da Lei n.° 83/2017 de 18/08.
4.–Tais decisões de suspensão de operações bancárias a débito foram objecto de prorrogação, porém, veio o Mmo. Juiz de Instrução do TCIC, revogar o despacho do Juiz de Turno e determinar o levantamento imediato das medidas de suspensão e controlo das operações bancárias a débito e de todos os meios de pagamento que incidiam sobre as contas bancárias identificadas nos autos, despacho que foi objecto de recurso e encontra-se pendente.
5.–Entretanto, logo em 04.05.2021, cerca de dois meses após a instauração do inquérito, as sociedades Sentinel Discovery, Success Kingdom e Diagonalmatic, vieram requerer a sua constituição como arguidas, nos termos do artigo 59.°, n.° 2 do C.P.P., alegando que assumiam a qualidade de suspeitas e que foi determinada a aplicação da medida de suspensão de operações bancárias a débito sobre as contas por elas tituladas, nos termos do artigo 48.° da Lei n.° 83/2017, de 18 de Agosto.
6.–O Ministério Público, considerando que o inquérito se encontrava na sua fase inicial de investigação, com recolha de elementos probatórios, indeferiu, por ora, a constituição como arguidas das sociedades Requerentes, sem prejuízo de o virem a ser no decurso do inquérito, se reunidas fundadas suspeitas da prática de crime por aquelas sociedades.
7.–Vieram então as requerentes, por requerimento dirigido ao JIC, reclamar do despacho do Ministério Público, solicitando a respectiva revogação, com fundamento na errada identificação e interpretação da lei aplicável, da qual resultou uma restrição ao seu direito fundamental de defesa, e pugnando para que o Mmo. Juiz de Instrução determine a constituição das Requerentes como arguidas, com fundamento no artigo 59.°, n.° 2 do C.P.P.
8.–O Mmo. Juiz de Instrução no seu despacho de 28.10.2021 e de que agora se recorre, veio julgar verificada a irregularidade do despacho do Ministério Público que indeferiu a requerida constituição como arguidas das requerentes nos presentes autos, ao abrigo do disposto no artigo 59.°, n.° 2 do C.P.P., por entender que estaria em causa o exercício de direitos fundamentais conferidos ao sujeito processual arguido.
9.–Tratando-se a constituição como arguido de um acto respeitante ao inquérito, cuja direcção cabe exclusivamente ao Ministério Público, terá de ser este magistrado que decide se, nesta fase, um acto processual deve ou não ser praticado, e desse despacho caberia então apenas reclamação para o respectivo superior hierárquico.
10.–Na verdade, a constituição como arguido e o interrogatório, realizados em sede de inquérito, são actos relativo a esta fase processual, na qual o Ministério Público exerce as funções de autoridade judiciária (cfr. artigo 263.°, n.° 1, do Código do Processo Penal).
11.–A existir a "alegada falta de fundamento" ou irregularidade daquele despacho, a mesma residiria em actos de inquérito e das irregularidades praticadas pelo Ministério Público na fase de inquérito é competente para decidir em primeira linha o próprio titular do processo e, depois, por via de pedido de intervenção hierárquica, o superior hierárquico deste.
12.–Assim, a decisão objecto de recurso é inválida — invalidade que se caracteriza como juridicamente inexistente ou, subsidiariamente, nulidade insanável — não estando o Ministério Público obrigado a cumprir qualquer determinação do Mmo. juiz de Instrução no sentido de proceder à constituição como arguidas das requerentes.
13.–Com efeito, o despacho recorrido consubstancia a prática de um ato para o qual o Juiz de Instrução não se mostra legalmente habilitado, já que a determinação da constituição como arguido se assume, materialmente, como um acto de inquérito da competência exclusiva do Ministério Público (art. 262°, n.° 1 do CPP).
14.–Toda a atividade de investigação protagonizada e processualizada pela acção do Ministério Público, em sede de inquérito, contende, num determinado grau, com direitos, liberdades e garantia e a intervenção provocada do Juiz de Instrução na fase pré-acusatória é limitada legalmente pelo C.P.P., em consonância com a estrutura acusatória do processo que dimana da nossa Constituição da República. Em nenhum local se encontra prevista como competência reservada do Juiz de Instrução a questão das invalidades processuais em sede de inquérito, consequentemente, só lhe competem as que se relacionam com os atos da sua competência reservada em sede de inquérito.
15.–Não tem cabimento na nossa arquitectura jurídico-constitucional, que se revela depois nas normas do C.P.P., a interpretação — que foi adoptada pelo Mmo. Juiz de Instrução — segundo a qual o juiz de instrução em sede de inquérito funciona como uma instância de recurso das decisões próprias do Ministério Público, que o Mmo. Juiz de Instrução classifica, no seu despacho ora recorrido como "actos de natureza materialmente administrativa", sujeitos ao controlo judicial dos actos praticados pelo juiz de instrução.
16.–Tal significaria a manifesta violação do princípio do acusatório, a impossibilidade de se prosseguir uma investigação célere e eficaz (como aliás tem acontecido), e o comprometimento do princípio da autonomia do MP.
17.–Não se afigura aliás legalmente admissível que, durante a fase de inquérito, possa ser o momento adequado para o JIC se pronunciar sobre o modo e o momento das actuações próprias do Ministério Público, uma vez que não nos encontramos nem em sede de instrução nem de julgamento.
18.–Com efeito, a decisão judicial recorrida encerra a intrusão nas competências que em sede de inquérito pertencem funcionalmente ao núcleo privativo do Ministério Público, sendo o Juiz de Instrução incompetente para fiscalizar o teor do despacho do Ministério Público que determina, ou não, a constituição como arguidas das sociedades requerentes e os seus fundamentos.
19.–Assim, o despacho de que ora se recorre atenta contra a autonomia da magistratura do Ministério Público, relativamente ao poder judicial, e viola o disposto nos artigos 32.°, n.° 5 e 219.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 17.°, 53.°, n° 2, al. b), 263.°, n.° 1 e 269.°, n° 1, alínea f) do Código de Processo Penal.
20.–Além do mais, sempre se dirá que do teor do despacho do Ministério Público não resulta qualquer restrição relevante ao ponto de se considerar afectado um direito fundamental, sendo certo que o inquérito encontra-se em segredo de justiça, pelo que a constituição como arguidas daquelas sociedades não lhes permitiria o acesso aos autos, além de que nada obsta a que apresentem os elementos que entendam convenientes, tendo aliás sido notificadas nesse sentido e após se disponibilizarem ao esclarecimento dos fluxos financeiros, sem no entanto terem dado qualquer resposta ou apresentado qualquer um dos documentos solicitados.
21.–Com a nova redacção do n.° 1 do artigo 58.° e do artigo 272.°, ambos do Código de Processo Penal, introduzida pela Lei n.° 48/2007, de 29 de Agosto, a obrigatoriedade de constituição e interrogatório como arguido no inquérito ficou restringida aos casos em que haja suspeita fundada  de que a pessoa (singular ou colectiva), contra quem corre o inquérito, praticou o(s) ilícito(s) criminais sob investigação.
22.–Deste modo, na fase de inquérito, impõe-se averiguar se estão ou não reunidos elementos probatórios suficientes que indiciem a prática pelo agente de um crime e, após efectuada tal análise e apenas no caso de estarem reunidos os elementos probatórios atrás referidos, é que será realizada a constituição de arguido(s) e interrogatório do(s) suspeito(s) do crime.
23.–A medida de suspensão de operações bancárias a débito depende, apenas, da existência de suspeitas de prática de acto criminoso e deve ser entendida como um meio especial cautelar, reservado, designadamente, à criminalidade económico-financeira, capaz de inviabilizar a disseminação dos fundos detectados (de proveniência duvidosa) no sistema financeiro, devendo, posteriormente e, de imediato, prosseguir a investigação sobre a ilicitude da transacção bancária fundada na existência de um crime precedente.
24.–A medida de suspensão temporária da execução de operações a débito das contas bancárias, é pois uma medida de natureza preventiva e repressiva, nomeadamente de combate ao branqueamento de vantagens de proveniência ilícita e diverge, em escopo e fundamentação, da apreensão de contas bancárias (cfr. artigo 181.° do C.P.P.), a qual apenas pode ocorrer quando existirem fundados indícios de conduta criminosa.
25.–Assim, a medida de suspensão de operações bancárias, enquanto medida de natureza preventiva e repressiva, consagrada na Lei n.° 83/2017, de 18 de Agosto, é decretada numa fase processual necessariamente anterior à constituição de arguido e com uma exigência de indiciação inferior, pelo que manifestamente, ao contrário do que parece ser o entendimento das Requerentes, não exige, por si só, a constituição das visadas como arguidas e audição nessa qualidade.
26.–Compreende-se que não seja exigida a constituição de arguido, pois não está em causa uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, mas antes um instrumento do regime específico de obtenção de prova instituído para superar alguns pontos de bloqueio na investigação da criminalidade económico-financeira organizada.
27.–Em face dos referidos argumentos, considerando que os autos se encontram em segredo de justiça e que à data em que o Mmo. Juiz de Instrução proferiu o despacho ora recorrido as contas bancárias tituladas por aquelas sociedades já nem se encontravam bloqueadas, conclui-se inexistir qualquer restrição relevante com a não constituição como arguidas das requerentes, ao ponto de se considerar afectado um direito fundamental, designadamente, o direito constitucional à defesa invocado no despacho recorrido.
28.–A não constituição como arguidas das sociedades Requerentes, por inexistência de suspeita fundada da prática de ilícito criminal e apesar da medida de suspensão de operações bancárias das contas tituladas por aquelas, consubstancie uma violação de qualquer direito fundamental, designadamente uma restrição ao direito de defesa.
29.–Assim, não está em causa qualquer questão relativa a direitos, liberdades e garantias das sociedades Requerentes e que portanto, por essa via, fosse da competência do Mmo. juiz de Instrução Criminal decidir sobre a questão aqui em causa.
30.–Por outro lado, e assim sendo, não se vê que o artigo 17.° e o artigo 268.°, n.° 1, alínea f), do Código do Processo Penal, tenham aqui aplicação, no sentido de dever ser o Mmo. juiz de Instrução Criminal a pronunciar-se sobre a constituição como arguidas das Requerentes. Isto, ora porque não se trata, como se diz, de matérias de direitos, liberdades e garantias, ora porque não se prevê expressamente que o acto em causa deva ser praticado pelo Mmo. juiz de Instrução Criminal.
31.–A constituição como arguido, realizado em sede de inquérito, nos termos do disposto pelo artigo 144.°, n.° 1, do Código do Processo Penal, é um acto relativo a esta fase processual, na qual o Ministério Público exerce as funções de autoridade judiciária (cfr. artigo 263.°, n.° 1, do Código do Processo Penal).
32.–A decisão proferida em 28.10.2021 é juridicamente inexistente, insusceptível de produzir quaisquer efeitos ou, subsidiariamente, terá de se entender que o despacho recorrido está ferido de nulidade insanável, por violação das regras de competência.
33.–Pelo exposto e em suma, a decisão recorrida é inválida e não pode manter-se vigente na ordem jurídica, devendo ser revogada por ter violado o disposto nos artigos 32.°, n.° 5 e 219.º, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, bem como os artigos 17.°, 53.°, n° 2, al. b), 263.°, n.° 1 e 269.°, n° 1, alínea f) do Código de Processo Penal.

As requeridas responderam nos termos que constam a fls. não formularam conclusões, motivo pelo qual se não transcrevem.

O Sr. Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal comungou da posição defendida pelo MP no recurso.

Foi cumprido o disposto no art.º 417 nº2 do CPP tendo as recorridas respondido nos seguintes termos:
«O parecer em referência vai no sentido de provimento do recurso apresentado pelo Ministério Público junto do DCIAP, que tem por objecto o despacho proferido pelo TCIC em 28/10/2022, que admite a constituição das Sociedades como arguidas.
Buscando suporte na mera adesão à posição do DCIAP, o Parecer exarado pelo Digníssimo Procurador-Geral Adjunto limita-se a acompanhar as motivações e respectivas conclusões do recurso apresentado pelo DCIAP.
Com o devido respeito, uma tal adesão e remissão, pura e simples, ao teor daquelas alegações do DCIAP no âmbito do presente Parecer não exterioriza um qualquer juízo objectivo de ponderação pelo Ministério Público junto deste Tribunal, nem exprime uma mínima avaliação dos vários argumentos em conflito, deixando integralmente de fora do seu âmbito e conteúdo a consideração das razões aduzidas pelas Recorridas nas suas contra-alegações.
Impõe-se, por isso, brevitatis causa, uma resposta necessariamente breve, ao supramencionado Parecer, cumprindo, apenas, às Recorridas manifestar a sua mais directa discordância quanto ao mesmo, pelas razões constantes das contra-alegações de recurso, para as quais se remete na íntegra, dando-se aqui por integralmente reproduzidas para os devidos efeitos legais».

Colhidos os vistos, realizou-se a conferência.
***

II–
1.–Segundo a decisão recorrida o despacho do Ministério Público não teve em consideração o disposto no nº 2 do artº 59 do CPP, cujos pressupostos se verificam uma vez que são suspeitas nestes autos, nos termos do citado artigo 1º al. e) do CPP, na medida em que foram objecto de uma medida cautelar que exige a presença de suspeitas da prática de um crime de catálogo.
Para além de assumirem a qualidade de suspeitas, nos presentes autos já foram realizadas diligências, destinadas a comprovar a imputação, que pessoalmente afectam as requerentes” pelo que “a decisão do MP em recusar às suspeitas o direito a serem constituídas como arguidas, quando estão verificados os respectivos pressupostos previstos no artigo 59º nº 2 do CPP, e, ao mesmo tempo, ao negar-lhes o exercício dos direitos previstos no artigo 61º do CPP, constitui uma verdadeira restrição a direitos fundamentais consagrados no artigo 32º da CRP e 61º do CPP, o que faz com que a regularidade de tal acto tenha de estar considerada dentro do âmbito de competências do juiz de instrução criminal, como juiz das garantias, durante a fase de inquérito” conferindo-lhes “legitimidade para virem para virem, perante o juiz das garantias, reclamar a defesa desses direitos”.

Concluindo pela competência do JIC para a apreciação do despacho do MP que indeferiu a pretensão das recorrentes de serem constituídas arguidas.
Da mesma opinião comungam as recorridas acrescentando que  a aplicação do nº 2 do art.º 59  “não depende da verificação de “suspeita fundada”, mas apenas da existência de suspeitas” e que as recorridas demonstraram o preenchimento dos requisitos de aplicação dessa disposição, observando que: i)- as Recorridas assumem a qualidade de suspeitas nestes autos (embora sem fundamento substancial); e que ii)- estão em curso diligências de investigação tendo por objecto essas suspeitas».
Diverge a recorrente, sustentando consubstanciar o despacho recorrido “a prática de um ato para o qual o Juiz de Instrução não se mostra legalmente habilitado, já que a determinação da constituição como arguido se assume, materialmente, como um acto de inquérito da competência exclusiva do Ministério Público (art. 262°, n.° 1 do CPP). Toda a atividade de investigação protagonizada e processualizada pela acção do Ministério Público, em sede de inquérito, contende, num determinado grau, com direitos, liberdades e garantia e a intervenção provocada do Juiz de Instrução na fase pré-acusatória é limitada legalmente pelo C.P.P., em consonância com a estrutura acusatória do processo que dimana da nossa Constituição da República.
Em nenhum local se encontra prevista como competência reservada do Juiz de Instrução a questão das invalidades processuais em sede de inquérito, consequentemente, só lhe competem as que se relacionam com os atos da sua competência reservada em sede de inquérito”.
Acrescentando em todo o caso que “não se vê que o artigo 17.° e o artigo 268.°, n.° 1, alínea f), do Código do Processo Penal, tenham aqui aplicação, no sentido de dever ser o Mmo. juiz de Instrução Criminal a pronunciar-se sobre a constituição como arguidas das Requerentes. Isto, ora porque não se trata, como se diz, de matérias de direitos, liberdades e garantias, ora porque não se prevê expressamente que o acto em causa deva ser praticado pelo Mmo. juiz de Instrução Criminal”.

2.–A questão não suscita, como flui do que se deixou exposto, unanimidade.
Em aproximação breve à controvérsia, identificam-se essencialmente duas teses que vêm sendo preconizadas na doutrina e na jurisprudência dos tribunais.
A primeira, com expressão prevalecente na jurisprudência dos tribunais superiores é a seguida pela Ilustre recorrente que sustenta que a intervenção provocada do Juiz de Instrução na fase pré-acusatória é limitada legalmente pelo C.P.P., em consonância com a estrutura acusatória do processo que dimana da nossa Constituição da República.
Ilustrando esta tese, afirma-se no Acórdão da Relação do Évora datado de 22/9/2015, consultável in www.dgsi.pt (que cita jurisprudência no mesmo sentido) que :
«a competência do Juiz de Instrução na fase de inquérito, e é nessa fase que os autos se encontram pois que não foi requerida a abertura da instrução nem os autos foram remetidos para julgamento (sendo que em qualquer uma dessas situações competiria ao Juiz apreciar e conhecer da nulidade) está delimitada por lei, nos arts. 17º, 268º e 269º, todos do Código de Processo Penal.
Tais actos encontram-se enumerados, de forma geral, nos citados artigos. Para além dos actos aí enumerados (de onde não consta a declaração de nulidade) há outros previstos no CPP, como sejam a título exemplificativo, a admissão da intervenção como assistente (art. 68º, nº 4), a concordância da suspensão provisória do processo (art. 281º, nº 1) ou a condenação em falta de pessoa regularmente notificada para comparecer em acto processual ou convocada para diligência.
(…). nas funções atribuídas ao Juiz de Instrução pelo legislador, não se compreende a de apreciação, em sede de inquérito, da nulidade de actos levados a cabo pelo Ministério Público.»

Preconizando igual solução, escreve-se[1] no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-05-2011, consultável no mesmos sitio e também citado no aresto a que antes aludimos que: se é verdade que o juiz, em instrução, pode conhecer de vícios ocorridos a montante desta fase (nomeadamente decretando a nulidade por falta ou insuficiência de inquérito), não é menos certo que, em sede de inquérito, o juiz de instrução tem a sua competência reservada aos atos tipificados na lei, designadamente os constantes dos artigos 268º e seguintes do C.P.P., sendo gizada a sua intervenção, sempre provocada (por motivo da inoficiosidade da intervenção jurisdicional no inquérito), segundo o modelo garantista. Quer isto dizer que o inquérito, enquanto aberto, é da exclusiva titularidade do Ministério Público e só permite a intervenção pontual do juiz nos casos expressamente tipificados na lei. Por seu turno, encerrado o inquérito e aberta a instrução, abre-se uma fase autónoma do processado cuja direção cabe doravante ao juiz de instrução, que, com total autonomia, ordena as diligências que tenha por necessárias ao fim dessa fase eventual: proferir decisão instrutória.
O juiz de instrução, no domínio do inquérito, é, sobretudo, um juiz de garantias e de liberdades, não tendo qualquer intervenção de tipo hierárquico ou de supervisão jurisdicional dos atos do Ministério Público, para além dos consagrados nos artigos 268º e 269º do C.P. P.. (…)
A arguição de nulidades do inquérito deve ser suscitada perante o Ministério Público, entidade que preside a essa fase processual, com eventual reclamação para o superior hierárquico. Do despacho do Ministério Público (seja do inicial, seja do despacho do superior hierárquico) não cabe reclamação para o juiz, nem recurso para o tribunal superior. As nulidades do inquérito só podem ser conhecida pelo juiz de instrução se requerida a abertura da fase processual da instrução ou, na ausência de instrução, pelo juiz da causa no momento de recebimento dos autos (artigo 311º,nº 1, do C.P.P.), pois, nessa fase, compete-lhe fazer o saneamento do processo e como tal conhecer das nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito (e de que possa, então, conhecer, entenda-se)”.

Num campo de conceptualização oposto, com menor expressão actual na doutrina[2] e jurisprudência[3], a tese que defende ser licita a intervenção do JIC, na fase de inquérito, quando estiverem em causa direitos liberdades e garantias fundamentais.
O despacho recorrido alinhou nesse sentido no que é acompanhado pelas requerentes nas contra-alegações.
Entendimento a que a também aderimos e que já foi sufragado neste TRL e Secção, conforme acórdão de 7/12/2016, proferido no âmbito do processo n.º 333/14.9TELSB-3, em que é relatora a ora 1ª adjunta, citado na decisão recorrida e ainda o Acórdão de 11/7/2019 em que a ora relatora teve intervenção como adjunta, com a seguinte preposição de síntese publicada, na parte relevante:
«I- Na fase de inquérito, a declaração de nulidade tem carácter materialmente judicial, competindo ao Juiz de instrução criminal praticar ou sindicar todos os actos que contendem com direitos fundamentais, como o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, inviolabilidade da correspondência e segredo das telecomunicações, sendo que tal competência em nada interfere com a linha de investigação definida pelo Ministério Público e em nada belisca a autonomia do Ministério Público».
A conformidade à CRP deste entendimento foi credenciada pelo Tribunal Constitucional precisamente para os casos em que exista afetação em sentido restritivo dos direitos fundamentais, conforme recente acórdão nº 121/2021, de 9/2/2021, igualmente citado na decisão recorrida que a respeito se pronunciou nos seguintes termos:
«Se nos inclinarmos no sentido da primeira tese, o Juiz de Instrução Criminal não pode intervir, durante o inquérito, fora dos casos taxativamente previstos nos artigos 268.º e 269.º do CPP. Contudo, tendo como ponto de partida a posição do Tribunal Constitucional, afigura-se que, sendo praticados, no processo, atos restritivos de direitos fundamentais não contidos naquele catálogo, será obviamente inconstitucional a eventual limitação de competência do Juiz de Instrução Criminal.
Se, pelo contrário, se entender dever proceder a segunda tese que acima se apresentou, admitir-se-á que o Juiz de Instrução Criminal possa intervir em todos os casos em que se demonstre haver afetação grave de direitos fundamentais, em virtude de atos praticados durante o inquérito. Esta tese é, pois, a mais consentânea com a posição deste Tribunal em matéria de recurso de atos lesivos de direitos fundamentais.
Tudo o que até agora se disse permite estabelecer as premissas fundamentais em que assentará o juízo deste Tribunal Constitucional, mas não permite, por si só, uma decisão definitiva sobre o problema em causa no presente recurso. Isto porque, mesmo admitindo como única tese constitucionalmente conforme a que se inclina no sentido de uma leitura ampla dos poderes de controlo do Juiz de Instrução Criminal, não encontramos uma resposta definitiva para a questão de constitucionalidade que aqui se coloca.
Na verdade, a resposta a essa questão exige a determinação de existência ou não de uma afetação em sentido restritivo dos direitos fundamentais pelo ato de constituição de arguido e consequente imposição obrigatória de termo de identidade e residência – que são os atos concretamente em causa no processo a quo, e que integram a formulação da norma questionada. Se essa afetação existir, a norma em crise viola, de facto, e em qualquer caso, não só a reserva jurisdicional constitucionalmente imposta, mas também, como alegam os recorrentes, os direitos fundamentais de acesso ao direito, tutela jurisdicional efetiva e de garantias de defesa em processo penal».

3.–Os aspectos relevantes a considerar são os que constam do relatório supra e que ora se sintetizam:
3.1.-Por decisão do MP, proferida no dia 25-2-2021 , fls. 87ss, foi determinada a suspensão temporária de todo o tipo de movimentos a débito, sobre as contas bancárias identificadas a fls. 94, tituladas pelas requerentes Sentinel Discovery Srevices and Consulting Lda., Success Kingdon - Unipessoal, Lda.
3.2.-Por decisão judicial de 26-2-2021 (fls. 117) foi confirmada a decisão do MP.
3.3.-Por decisão do MP, proferida no dia 5-3-2021 , fls. 137ss, foi determinada a suspensão temporária de todo o tipo de movimentos a débito, sobre as contas bancárias identificadas a fls. 144  tituladas  pela Diagonal matic, Lda.
3.4.-Por decisão judicial de 9-3-2021 (fls. 154) foi confirmada a decisão do MP.
3.5.-O fundamento invocado foi a existência de suspeitas de que os fundos titulados pelas entidades acima referidas são produto da prática de crime de fraude fiscal e corrupção/burla, encontrando-se os fundos em manobras de branqueamento.
3.6.-Em 04.05.2021, as sociedades Sentinel Discovery, Success Kingdom e Diagonalmatic, vieram requerer a sua constituição como arguidas, nos termos do artigo 59.°, n.° 2 do C.P.P., alegando que assumiam a qualidade de suspeitas e que foi determinada a aplicação da medida de suspensão de operações bancárias a débito sobre as contas por elas tituladas, nos termos do artigo 48.° da Lei n.° 83/2017, de 18 de Agosto.

4.–Dentro de tais pressupostos e tendo em conta, por um lado, as considerações que antecedem e que seguimos, e, por outro, que com constituição de arguido a lei reconhece o suspeito como sujeito processual, com toda a panóplia de direitos que esse estatuto implica – cf. art. 60 e 61 do CPP.
Como se refere na decisão recorrida, e de novo, se acentua “com a constituição de arguido, o sujeito processual deixa de ser um mero suspeito e passa a gozar de uma posição, no quadro do processo penal, que visa dar-lhe mais garantias, nos planos da defesa e da possibilidade de intervenção no curso do próprio processo. Nas palavras de Maria João Antunes, "trata-se de uma posição processual que lhe permite uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto, através da concessão de direitos processuais autónomos, legalmente definidos, que deverão ser respeitados por todos os intervenientes noprocesso penal (entre outros, artigos 60.º e 61. n. º 1, do CPP)" .

Por isso que, a nosso ver, o art. 59.º, n.º 2, do Código de Processo Penal confere à pessoa sobre quem recair suspeita de ter cometido um crime o direito de ser constituído arguido, a seu pedido, sempre que estiverem a ser efectuadas diligências que pessoalmente o afectem – como é o caso e bem se salienta no despacho recorrido.

Em suma, o despacho recorrido é de manter, posto espelhar a nossa concordante posição sobre a questão.

Dizer por fim não se reconhecer falecer legitimidade e interesse em agir ao MP para interpor o recurso, como alegado pelas recorridas.

III–DECISÃO

Face ao exposto, julga-se improcedente o recurso, mantendo-se na íntegra o despacho recorrido.
Sem custas.



Lisboa, 4/5/2022



Maria Elisa Marques
Adelina Barradas de Oliveira




[1]No mesmo sentido Ac. TRL de 15.05.2018, proferido no âmbito do NUIPC 184/12.5TELSB, Acórdão TRL 22.11.2017 (NUIPC 684/14.2T9SXL.L2-3); Acórdão TRL de 06.06.2017 (NUIPC 2018/13.9TELSB.GL1-5) TRL 21.02.2017 (NUIPC 2/15.2IFLSB-D.L1-5).
[2]Ao nível doutrinário Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código de Processo Penal, 2ª edição, Universidade Católica Editora, 2009, pag.300 e 301, anotação 5. ao art.º 118º do CPP, Maia Gonçalves e Costa Pimenta aí citados, onde se refere que há uma competência concorrente do Ministério Público e do Juiz de Instrução quanto à declaração de nulidades em fase de inquérito.
[3]Assim, Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 23/3/2021, proferido no âmbito do processo n.º 3/16.3AELSB-B.E1 (disponível em www.dgsi.pt), citado pela recorrida.