Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
407/20.7GAMTA.L1-9
Relator: PAULA CRISTINA BIZARRO
Descritores: CRIME CONTINUADO
TOXICODEPENDÊNCIA
CIRCUNSTÂNCIA PRÓPRIA E INTERNA DO AGENTE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO
Sumário:  (da responsabilidade da relatora)
1. Do art. 30º/2 do Código Penal resulta que o crime continuado tem como pressupostos:
- uma multiplicidade de acções que se subsumem objectivamente ao mesmo tipo legal de crime ou a outro tipo legal que tutele o mesmo bem jurídico;
- que essas acções sejam levadas a cabo de modo similar entre si;
- que exista um circunstancialismo fáctico exterior ao agente que facilite a repetição da conduta e que, por isso, se deva considerar acentuadamente diminuído o grau de culpa com que actuou.
2. É, pois, necessária a afirmação de que esse circunstancialismo fáctico exterior seja apto a fazer o agente reincidir e a sucumbir na reiteração do mesmo facto ilícito típico, justificando um acentuadamente menor nível de censura em termos de culpa.
3. Aproxima-se de uma situação de quase inexigibilidade de outro comportamento: a situação externa é de tal ordem facilitadora da repetição do acto ilícito típico que dificilmente será possível ao agente resistir à sua prática e comportar-se de outro modo, em conformidade com o Direito.
4. A existência desse condicionalismo externo ao agente e o seu papel decisive na sua actuação ilícita reiterada terá de encontrar sustentação na factualidade provada.
5. Constitui jurisprudência consolidada que a circunstância de o agente ser toxicodependente e carecer de meios para sustentar a sua dependência não permite concluir pela existência de um crime continuado, desde logo na medida em que tal circunstância é própria e interna ao agente e não exterior a ele.
6. O facto de o recorrente viver na rua ou consumir parte dos produtos subtraídos são circunstâncias próprias do modo de vida do recorrente, não de natureza exógena, não sendo circunstâncias exteriores ao agente nos termos exigidos no citado art. 30º/2 do Código Penal.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam em conferência as Juízas da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação

I. RELATÓRIO
Inconformado com a sentença de 10-07-2023, depositada nessa mesma data, nestes autos de processo comum com intervenção de tribunal singular com o n.º 407/20.7GAMTA, o arguido
AA, filho de BB e de CC, natural de ..., nascido a ........1985, solteiro, residente na ...,
veio interpor recurso de tal decisão, na qual se decidiu condená-lo nos seguintes termos (transcrição):
- a) Condenar o arguido AA pela prática de 4 (quatro) crimes de furto, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 120 dias de multa, por cada um dos crimes.
b) Condenar o arguido AA na pena única de 320 dias de multa, à taxa de 5,00 €, o que perfaz a quantia de 1600,00 €..
(…)
(fim de transcrição)
*
As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da motivação do recurso apresentada pelo recorrente, e que em seguida se transcrevem:
1ª- No caso dos autos considerando que o Recorrente, num período de quinze dias se deslocou por quatro vezes, duas delas em dias consecutivos, ao mesmo estabelecimento, sendo que a segunda, terceira e quarta vez ter-se-á ficado a dever à primeira subtração não lhe ter trazido consequências, aliado ao facto de ser toxicodependente, consumir produtos estupefacientes diariamente e viver na rua, do que tem de se concluir que o arguido quanto aos produtos que furtava para venda, agia em resultado de necessitar de dinheiro para o consumo de estupefacientes, e quanto aos que usava para consumo próprio furtava-os para a sua subsistência porque vivia na rua e não tinha meios de subsistência, pelo que as circunstâncias para a prática dos quatro crimes são idênticas.
2ª- O crime continuado consiste numa unificação jurídica de um concurso efetivo de crimes que protejam o mesmo bem jurídico fundada numa culpa diminuída pela existência de uma mesma circunstância exterior.
3ª- Assim sendo, dúvidas não pode haver de que a sua conduta preenche os requisitos legais para se considerar uma atuação continuada, pelo que deve ser punida a título de crime continuado.
4ª -Preceitua o Artigo 79.º Do C.P. 1 - O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.
5ª- No presente caso as infrações têm igual gravidade e merecem igual pena daí que a pena aplicada a cada um deles tenha sido idêntica.
6ª- Por conseguinte, devendo seguir-se esta regra de punição criminal, e não a do cúmulo jurídico, ao recorrente deve ser aplicada, tão só e apenas, uma pena de 120 dias de multa que o Tribunal entendeu ser de aplicar a cada um dos furtos praticados pelo arguido.
7ª- Violou a sentença recorrida o preceituado nos artigos 30º/2 e 79º do Código Penal.
Pelo que deve ser reformada e substituída por outra que condene o recorrente, pela prática de um crime continuado, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de cinco euros
ASSIM FARÃO V.EXAS A HABITUAL JUSTIÇA.
(fim de transcrição)
*
O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
1.ª- O tribunal “a quo” decidiu de forma justa e em obediência às normas legais e, designadamente, considerando, e bem, que as condutas do arguido/recorrente que resultaram provadas em sede de julgamento constituíram a prática de 4 crimes de furto e não de 1 crime de furto, na forma continuada.
2.ª- O artigo 30.º do Código Penal preceitua que:
“1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”
3.ª- São requisitos da existência de uma continuação criminosa:
- realização plúrima do mesmo tipo de crime);
- homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);
- lesão do mesmo bem jurídico );
- unidade de dolo (unidade do injusto pessoal da acção). As diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma "linha psicológica continuada";
- persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente.
Ou seja, para a verificação do crime continuado é essencial que se demonstre que as condutas levadas a cabo pelo arguido foram executadas de forma essencialmente homogénea e no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que diminuiu consideravelmente a culpa do arguido.”
4.ª- Importa sublinhar que, embora tenha ficado provado em sede de julgamento que os produtos subtraídos pelo arguido se destinavam, por um lado, a ser vendidos pelo arguido e, por outro, a ser consumidos pelo arguido, em momento algum o douto tribunal “a quo” concluiu que o consumo dos produtos se destinavam à “alimentação” do arguido (ao contrário daquilo que o recorrente alega nas suas motivações no ponto 5.
5.ª Não se pode olvidar que os factos sob julgamento ocorreram em 4 datas distintas (dias ...-...-2020, ...-...-2020, ...-...-2020 e ...-...-2020) sendo que, apenas numa única ocasião o arguido subtraiu um produto que se destinava à sua alimentação, designadamente no dia ...-...-2020 subtraiu um chocolate da marca “...”, sendo que todos os restantes produtos subtraídos nas restantes datas (e incluindo no próprio dia ...-...-2020) se destinavam a ser vendidos pelo arguido – sendo o caso das garrafas de whiskey – ou a ser vendidos ou consumidos pelo arguido por força da sua toxicodependência, como acontecia com os 84 cubos de caldo ….
6.ª- Não é correcto afirmar-se, como se afirmou em sede de motivações de recurso, que o consumo dos produtos subtraídos se destinou à alimentação do arguido, bem pelo contrário, o consumo dos bens subtraídos destinou-se à satisfação das adições tóxicas do arguido, não à sua alimentação.
7.ª- Esta circunstância tem especial relevo no que concerne à verificação ou não verificação de um dos requisitos para que se possa aplicar o regime jurídico do crime continuado, designadamente, quanto a determinar-se se as condutas levadas a cabo pelo arguido foram executadas “no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que diminuiu consideravelmente a culpa do arguido”, ou seja, temos a questão do requisito que exige um condicionalismo exterior ao agente que lhe facilite a prática do acto, diminuindo assim a sua culpa.
8.ª- Este pressuposto tem sido entendido como a base da unificação criminosa, pois que só se justifica o regime jurídico favorável decorrente da continuação se se puder inferir da prova que houve alguma coisa de fora, não criada nem comandada pelo agente, que lhe propiciou o cometimento do ilícito, aligeirando assim a sua culpa.
9.ª- É certo que a lei não determina expressamente qual seja essa situação exterior mitigadora da culpa, mas contém em si a ideia de que “no plano positivo pressupõe que o comportamento do agente se mostra determinado por circunstâncias exteriores que o levaram à reiteração da conduta ilícita, e, no negativo, afasta as situações em que essa reiteração se verifica por razões de natureza endógena” – cfr. Ac. do S.T.J. de 00.04.27, Proc. nº 53/00.
10.ª- Daqui decorre que «se for o próprio agente a determinar o cenário, que objectivamente visionado, serviria à perfectibilização do crime continuado, às plúrimas resoluções criminosas que, afinal, expressam a "repetição da sucumbência" fundada esta num conjunto de factores exteriores que a explicam e que, explicando-a podem levar a concluir por uma culpa menor, não são passíveis de constituírem tal tratamento jurídico menos gravoso» - Ac. do S.T.J. de 00.06.15, Proc. nº 176/00.
11.ª- Ora, no caso em apreço, não está provado que algo alheio ao arguido criou condições favoráveis à prática do crime, por forma a poder afigurar-se que esta resultou como que de uma “fatalidade” gerada de fora e que assim degradou a sua culpa, mas, antes, que foi o próprio agente que “estudou” as circunstâncias do crime, regressando sempre ao mesmo local dos factos por saber que conseguiria consumar os ilícitos de forma relativamente fácil.
12.ª- Ou seja, a “sensação de impunidade” a que o recorrente faz referência nas suas motivações de recurso surge, neste caso, como algo endógeno ao agente do crime e não como algo exterior, pelo que não poderá considerar-se que existiu uma diminuição da culpa.
13.ª- A isto acresce que tem sido entendimento jurisprudencial, ao qual aderimos integralmente, que “A toxicodependência não é solicitação exógena facilitadora da execução e diminuidora do grau de culpa, para efeito de verificação de uma continuação criminosa.” - Ac. do STJ de 07-12-1993, proc. 43779/3ª.
14.ª- Por fim, entendemos que, apesar dos factos terem ocorrido em datas relativamente próximas (entre os dias ...-...-2020 e ...-...-2020), não se poderá considerar que existiu “unidade de dolo” ou “unidade do injusto pessoal da acção”, porquanto não se pode entender que as diversas resoluções criminosas, relativas a factos ocorridos em dias totalmente distintos e não todos consecutivos, se conservaram dentro de uma “linha psicológica continuada”.
15.ª- Apesar dos factos estarem relacionados com a situação de toxicodependência do arguido, o mesmo não praticava factos desta natureza todos os dias, ou melhor, não tinha necessidade de, para satisfazer os seus vícios, praticar todos os dias factos desta natureza, sendo que, relativamente a cada um dos ilícitos existia uma resolução criminosa autónoma, uma vontade e capacidade específica de se autodeterminar quanto ao cometimento de cada um dos factos e não uma única resolução criminosa relativamente a todos os factos praticados.
16.ª- Deste modo, não se verificam, no caso em apreço, os pressupostos referidos no artigo 30.º do Código Penal, sendo que o arguido praticou 4 crimes de furto, previstos e punidos pelo artigo 203.º, n.º 1, do Código Penal e não um único crime de furto.
17.ª- Pelo que deve ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido,
Fazendo-se assim a costumada Justiça
(fim de transcrição)
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Neste Tribunal da Relação, pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, foi emitido parecer nos termos seguintes (transcrição parcial):
(…) acompanhando os fundamentos da resposta do Ministério Público, emite-se parecer consonante, no sentido de que o recurso em apreço deve ser julgado improcedente, mantendo-se a douta sentença recorrida.
(fim de transcrição)
*
Cumprido o disposto no artigo 417.º, nº 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Daí o entendimento unânime de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo que apenas as questões aí resumidas deverão ser apreciadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do mesmo Código.
Em conformidade, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente, a única questão a decidir no presente recurso é a seguinte:
- Se a conduta do arguido integra a prática de um só crime continuado de furto simples, ao invés de quatro crimes de furto simples como decidido na sentença recorrida.
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2. DA SENTENÇA RECORRIDA
2.1. Na sentença recorrida, foram julgados provados os seguintes factos (transcrição):
Da audiência de julgamento, com relevância para a presente decisão, resultaram provados os seguintes factos:
1. No dia ........2020, cerca das …horas, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado "...", sito na ..., com o intuito de se apoderar e fazer seus os objectos que dali conseguisse retirar.
1.2. Na concretização desse propósito, o arguido entrou no interior do estabelecimento e retirou, então, da respectiva prateleira uma garrafa de Whiskey marca …, no valor de € 33,49.
1.3. Na posse do mencionado produto, que ocultou na roupa que vestia, o arguido deslocou-se para o exterior do estabelecimento, integrando-o no respectivo património.
2. No dia ........2020, cerca das … horas, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado "...", sito na ..., com o intuito de se apoderar e fazer seus os objectos que dali conseguisse retirar.
2.1. Na concretização desse propósito, o arguido entrou no interior do estabelecimento e retirou, então, da respectiva prateleira duas garrafas de ..., no valor de € 39,98.
2.2. Na posse dos mencionados produtos, que ocultou na roupa que vestia, o arguido deslocou-se para o exterior do estabelecimento, passando a linha da caixa de pagamento sem os declarar e pagar, integrando-os no respectivo património.
3. No dia ........2020, cerca das … horas, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado "...", sito na ..., com o intuito de se apoderar e fazer seus os objectos que dali conseguisse retirar.
3.1. Na concretização desse propósito, o arguido entrou no interior do estabelecimento e retirou, então, das respectivas prateleiras: Duas garrafas de ..., e Um chocolate ...,
Tudo no valor de € 42,57.
3.2. Na posse dos mencionados produtos, que ocultou na roupa que vestia, o arguido deslocou-se para o exterior do estabelecimento, passando a linha da caixa de pagamento sem os declarar e pagar, integrando-os no respectivo património.
4. No dia ........2020, cerca das … horas, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado "...", sito na ..., com o intuito de se apoderar e fazer seus os objectos que dali conseguisse retirar.
4.1. Na concretização desse propósito, o arguido entrou no interior do estabelecimento e retirou, então, da respectiva prateleira diversas embalagens contendo no total de 84 cubos de caldo …, no valor de € 83,16.
4.2. Na posse dos mencionados produtos, que ocultou na roupa que vestia, o arguido deslocou-se para o exterior do estabelecimento, passando a linha da caixa de pagamento sem os declarar e pagar, integrando-os no respectivo património.
5. O arguido sabia que tais produtos e bens não lhe pertenciam e que não poderia retirá-los e fazê-los seus, como fez, sem previamente proceder ao seu pagamento, sabendo que agia contra a vontade do legítimo proprietário, factos que conhecia e que não o impediram de agir do modo descrito.
6. Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
7.O arguido foi condenado pela prática de um crime de furto simples, por factos de ........2020 e sentença transitada em julgado em ........2022, tendo sido condenado na pena de 75 dias de multa, tudo conforme CRC que se dá como reproduzido.
8.O arguido é solteiro e trabalha na … e aufere cerca de 400,00 € mensais.
9. Os produtos subtraídos destinavam-se a ser vendidos pelo arguido e a ser consumidos pelo mesmo.
10. O arguido consumiu produtos estupefacientes desde os 18 anos, nomeadamente heroína e cocaína.
11. Actualmente o arguido não consome estupefacientes, tendo realizado um tratamento sem metadona, com acompanhamento psicológico, quando cumpriu pena de prisão subsidiária.
12.À data dos factos residia na rua, em virtude de problemas familiares, relacionados com o seu consumo de estupefacientes.
13.Em ... o arguido consumia produtos estupefacientes diariamente.
14. O arguido reside sozinho, não tem filhos e como familiar mais próximo tem uma avó.
(fim de transcrição)
*
2.2. Na sentença recorrida, a decisão sobre a matéria de facto foi motivada nos seguintes termos (transcrição):
No que concerne à factualidade dada como provada, o tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada das declarações do arguido, conjugadas com o teor dos depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de audiência de julgamento e do teor dos documentos juntos aos autos, nomeadamente os autos de notícia e o auto de visionamento.
Todas estas provas foram apreciadas no seu conjunto, à luz das regras da experiência comum, da normalidade e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova.
A factualidade dada como provada resultou da confissão integral e sem reservas por parte do arguido, que reconheceu a prática dos factos contantes na acusação.
O arguido confessou os factos constantes da acusação, explicando a razão pela qual os praticou, nomeadamente as dificuldades que passava e a desorganização que vivia à data dos factos.
O arguido relatou também os seus problemas com o consumo de estupefacientes, nomeadamente heroína e cocaína, bem como o facto de se encontrar a residir na rua.
Uma vez que o arguido não compareceu no início da audiência de julgamento foram inquiridas as testemunhas DD, EE, FF.
A testemunha GG era diretora de loja, na altura dos factos, no ..., sito em ..., foi confrontada com o Auto de Notícia de fls. 03 e 04; Certidão de Fotocópias de fls. 04 a 10; Termo de Notificação de fls. 11; Termo de Recebimento de fls. 12; Auto de Notícia de fls. 26 e 27; Notificação de Preservação e Entrega de Imagens de Videovigilância de fls. 28; Folha de Suporte de Fotogramas do Furto em Edifício Comercial (........2020) de fls. 29 a 42, confirmando que se referem aos presentes autos.
A testemunha declarou que teve conhecimento dos furtos através dos vigilantes.
As testemunhas FF e EE, ambos vigilantes, relataram que ocorreram várias situações de furto no estabelecimento comercial onde prestavam funções, identificaram os produtos furtados e explicaram que se aperceberam das situações umas vezes através das câmaras de vigilância e outras vezes visualmente, tendo em algumas ocasiões chamado a GNR.
A testemunha FF foi confrontada com o Auto de Notícia de fls. 03 e 04; Certidão de Fotocópias de fls. 04 a 10; Termo de Notificação de fls. 11; Termo de Recebimento de fls. 12; Auto de Noticia de fls. 26 e 27; Notificação de Preservação e Entrega de Imagens de Videovigilância de fls. 28; Folha de Suporte de Fotogramas do Furto em Edifício Comercial (........2020) de fls. 29 a 42, tendo confirmado os factos.
A testemunha EE foi confrontada com o auto de notícia de fls. 3 e 4, com a notificação de fls. 28, tendo confirmado a sua assinatura a fls. 28 verso e com o auto de visionamento e respectivas imagens de fls. 29 a 42 dos autos e ainda os documentos de fls. 65 e 66, tendo confirmado os factos.
Os factos respeitantes ao elemento subjectivo, decorrem quer das declarações do arguido, quer da conjugação da factualidade apurada com as regras da normalidade e da experiência comum.
Ao actuar como actuou, inexistindo qualquer elemento que vicie a sua vontade, o arguido não pode deixar de querer actuar com descrito, de ter consciência de que a sua conduta é proibida e de conformar-se com as consequências legais da mesma.
Os factos relativos às condições pessoais, sociais e económicas do arguido resultaram provados das declarações do mesmo, as quais mereceram credibilidade por parte do tribunal.
As condenações sofridas pelo arguido resultaram do teor do CRC junto aos autos.
(fim de transcrição)
*
2.3. Na decisão recorrida, o enquadramento jurídico-penal dos factos foi fundamentado pela forma seguinte (transcrição):
Vem imputada ao arguido a prática de 4 (quatro) crimes de furto, p. e p. pelo artigo 203º, nº 1 do Código Penal.
Determina o art. 203.º, n.º1, do Código Penal que “quem com ilegítima intenção de apropriação para si ou para outra pessoa, subtrair coisa móvel alheira, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
A norma legal identificada insere-se no capítulo II do Código Penal relativo aos crimes contra a propriedade.
O bem jurídico protegido pela incriminação prevista no art.203.º, do Código Penal, é a propriedade incluindo esta a posse e a detenção legítimas. Este conceito de posse abrange o poder de dispor da coisa e o poder de fruir da mesma. Sendo que, o poder de dispor da coisa é composto pela possibilidade de domínio e a vontade do domínio da coisa (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 2.ª Edição, pag.628 e 629).
São elementos constitutivos do crime de furto a subtracção de coisa móvel alheia e a intenção ilegítima de apropriação.
O seu elemento objectivo consiste, assim, na subtracção de coisa móvel alheia.
Utilizando o sentido comum subtrair significa tirar, levar, apreender, removendo a coisa do poder de facto que o seu detentor tem de a guardar e dispor dela.
Sendo que, coisa móvel é toda aquela que tem existência física e a subtracção traduz-se na aquisição de um poder de facto de dispor da coisa alheia, com a consequente cessação desse poder por parte do proprietário ou possuidor.
Quanto ao momento da consumação do furto, como refere Faria Costa (in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Vol. II, Coimbra Editora, pag.49) o furto consuma-se quando a coisa entra, de uma maneira minimamente estável, no domínio de facto do agente da infracção.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo de crime de furto, é admitida qualquer modalidade de dolo prevista no art.14.º, do Código Penal.
Da noção de dolo fazem parte o elemento intelectual, que consiste no conhecimento pelo agente dos elementos do crime objectivos do tipo legal e, o elemento volitivo que consiste na vontade de praticar o facto típico.
Tendo em consideração a factualidade provada, atrás descrita, que aqui se dá como reproduzida, encontram-se preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do crime de furto.
Não existindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, deve o mesmo ser condenado pela prática dos quatro crimes pelos quais se encontrava acusado.
(fim de transcrição)
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III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
- Se a conduta do arguido integra a prática de um só crime continuado de furto simples
Preceitua o art. 30º/2 do Código Penal que:
2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
Assim, de tal normativo resulta que o crime continuado tem como pressupostos:
- uma multiplicidade de acções que se subsumem objectivamente ao mesmo tipo legal de crime ou a outro tipo legal que tutele o mesmo bem jurídico;
- que essas acções sejam levadas a cabo de modo similar entre si;
- que exista um circunstancialismo fáctico exterior ao agente que facilite a repetição da conduta e que, por isso, se deva considerar acentuadamente diminuído o grau de culpa com que actuou.
É, pois, necessária a afirmação de que esse circunstancialismo fáctico exterior seja apto a fazer o agente reincidir e a sucumbir na reiteração do mesmo facto ilícito típico, justificando um acentuadamente menor nível de censura em termos de culpa.
Aproxima-se de uma situação de quase inexigibilidade de outro comportamento: a situação externa é de tal ordem facilitadora da repetição do acto ilícito típico que dificilmente será possível ao agente resistir à sua prática e comportar-se de outro modo, em conformidade com o Direito.
Por isso, como parece ser uma evidência, não é qualquer tipo de condicionalismo externo que é capaz de determinar a acentuada diminuição da culpa.
Por outro lado, a existência desse condicionalismo externo ao agente e o seu papel decisivo na sua actuação ilícita reiterada terá de encontrar sustentação na factualidade provada.
Neste sentido se decidiu no Ac. do STJ de 15-05-1991, proferido no processo n.º 041291 (Relator: Tavares Santos), cujo sumário se encontra disponível em www.dgsi.pt (assim como os demais arestos infra citados): I - Para que a conduta do arguido se reconduza a existência dum crime continuado não basta uma pluralidade de acções violadoras dos mesmos preceitos legais, ainda que praticados dentro de um período limitado de tempo, sendo ainda necessário que o agente tenha sido influenciado por circunstâncias exteriores que facilitem a repetição dos actos criminosos, sendo este último condicionalismo que concorre para diminuir o grau de culpa, tornando menos exigível comportamento diverso. II - Não há crime continuado se dos autos não resulta provada a existência de qualquer elemento subjectivo que pudesse estabelecer a ligação entre os vários factos, por forma a concluir-se que faziam parte da mesma resolução criminosa.
Pronunciou-se ainda nesse sentido o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 7-06-2023, proferido no processo n.º 220/19.4T9ACB.C1: Deve constar do elenco de factos provados a prova da circunstância exterior que, nos termos do artigo 30º do CP, poderia diminuir consideravelmente a culpa do arguido, invocando a existência de um crime continuado.
Ora, a factualidade provada não consta elencada qualquer circunstância factual que tenha determinado a actuação repetida do ora recorrente, de forma a que se possa concluir que o grau de culpa com que actuou se encontra sensivelmente diminuído.
Alega o recorrente para fundamentar a sua pretensão recursiva essencialmente o seguinte:
- os furtos cometidos pelo recorrente resultaram de uma mesma situação exterior, do facto de ser toxicodependente, necessitando de dinheiro para adquirir droga, donde a venda dos produtos, e de residir na rua, sem meios de subsistência do que derivava a sua necessidade de consumir os produtos para a sua alimentação;
- verifica-se que o recorrente, no espaço de 15 (quinze dias) deslocou-se ao mesmo estabelecimento, furtando o mesmo tipo de produtos, ficando-se a dever a pluralidade de crimes ao facto de não ter tido consequências com a primeira subtração o que lhe terá dado uma sensação de impunidade que lhe permitiu lá regressar.
Contudo, que o arguido repetiu a sua conduta porque não sofreu consequências com a primeira subtracção, o que lhe terá dado uma sensação de impunidade, não encontra qualquer sustentação nos factos julgados provados.
Aliás, o próprio recorrente alega que terá dado tal sensação e não que efectivamente que a deu, o que mostra tratar-se de uma afirmação meramente especulativa ou hipotética.
Por outro lado, constitui jurisprudência consolidada que a circunstância de o agente ser toxicodependente e carecer de meios para sustentar a sua dependência não permite concluir pela existência de um crime continuado, desde logo na medida em que tal circunstância é própria e interna ao agente e não exterior a ele.
Assim, como se decidiu no Ac. do STJ de 24-06-2021, proferido no processo n.º 5/20.5GAMGL.C1.S1 (Relator: João Guerra): a “toxicodependência” é uma característica ou circunstância da personalidade e/ou do modo de vida do recorrente, não constituindo qualquer “situação exterior” idónea a diminuir “consideravelmente a [sua] culpa” no cometimento dos factos criminosos (v. neste mesmo sentido, a título de exemplo, o Ac. do STJ de 15-12-2011, proferido no processo n.º 41/10.0GCOAZ.P2.S1, o Ac. da Relação de Évora de 18-09-2012, proferido no processo n.º 263/10.3JAPTM.E1, e o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 2-04-2011, proferido no processo n.º 2371/09.4PEAVR.C1).
Da factualidade provada o que resulta é que o arguido cometeu em concurso real os quatro crimes de furto simples pelos quais foi condenado.
Recordem-se os seguintes pontos da matéria de facto provada:
1. No dia ........2020, cerca das …horas, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado "...", sito na ..., com o intuito de se apoderar e fazer seus os objectos que dali conseguisse retirar.
1.2. Na concretização desse propósito, o arguido entrou no interior do estabelecimento e retirou, então, da respectiva prateleira uma garrafa de Whiskey marca …, no valor de € 33,49.
1.3. Na posse do mencionado produto, que ocultou na roupa que vestia, o arguido deslocou-se para o exterior do estabelecimento, integrando-o no respectivo património.
2. No dia ........2020, cerca das … horas, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado "...", sito na ..., com o intuito de se apoderar e fazer seus os objectos que dali conseguisse retirar.
2.1. Na concretização desse propósito, o arguido entrou no interior do estabelecimento e retirou, então, da respectiva prateleira duas garrafas de ..., no valor de € 39,98.
2.2. Na posse dos mencionados produtos, que ocultou na roupa que vestia, o arguido deslocou-se para o exterior do estabelecimento, passando a linha da caixa de pagamento sem os declarar e pagar, integrando-os no respectivo património.
3. No dia ........2020, cerca das … horas, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado "...", sito na ..., com o intuito de se apoderar e fazer seus os objectos que dali conseguisse retirar.
3.1. Na concretização desse propósito, o arguido entrou no interior do estabelecimento e retirou, então, das respectivas prateleiras: Duas garrafas de ..., e Um chocolate ...,
Tudo no valor de € 42,57.
3.2. Na posse dos mencionados produtos, que ocultou na roupa que vestia, o arguido deslocou-se para o exterior do estabelecimento, passando a linha da caixa de pagamento sem os declarar e pagar, integrando-os no respectivo património.
4. No dia ........2020, cerca das … horas, o arguido dirigiu-se ao estabelecimento comercial denominado "...", sito na ..., com o intuito de se apoderar e fazer seus os objectos que dali conseguisse retirar.
4.1. Na concretização desse propósito, o arguido entrou no interior do estabelecimento e retirou, então, da respectiva prateleira diversas embalagens contendo no total de 84 cubos de caldo …, no valor de € 83,16.
4.2. Na posse dos mencionados produtos, que ocultou na roupa que vestia, o arguido deslocou-se para o exterior do estabelecimento, passando a linha da caixa de pagamento sem os declarar e pagar, integrando-os no respectivo património.
5. O arguido sabia que tais produtos e bens não lhe pertenciam e que não poderia retirá-los e fazê-los seus, como fez, sem previamente proceder ao seu pagamento, sabendo que agia contra a vontade do legítimo proprietário, factos que conhecia e que não o impediram de agir do modo descrito.
6. Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
(…)
9. Os produtos subtraídos destinavam-se a ser vendidos pelo arguido e a ser consumidos pelo mesmo.
(…)
12.À data dos factos residia na rua, em virtude de problemas familiares, relacionados com o seu consumo de estupefacientes.
13.Em ... o arguido consumia produtos estupefacientes diariamente.
É certo que o arguido se dirigiu ao mesmo estabelecimento por quatro ocasiões, num curto espaço de tempo de cerca de duas semanas, bem como que executou os factos de forma similar em todas elas, violando o mesmo bem jurídico e apropriando-se de produtos do mesmo género, e, por isso, nelas actuando de forma essencialmente homogénea.
É igualmente certo que se encontra demonstrado que o arguido destinava pelo menos parte do produto subtraído ao seu consumo próprio, bem como que à data dos factos residia na rua.
No entanto, o que decorre de tal factualidade é que, em cada uma das vezes que se dirigiu ao estabelecimento em causa, o arguido fê-lo com o intuito de se apoderar e fazer seus os objectos que dali conseguisse retirar.
O arguido renovou o seu desígnio de cada uma das vezes em que agiu, sem que para tal tenha concorrido uma circunstância de natureza exógena, alheia às suas condições de vida ou ao seu foro interno.
Tal como a toxicodependência não se traduz numa circunstância exterior ao agente nos termos exigidos no citado art. 30º/2 do Código Penal, o mesmo sucede com o facto de o recorrente viver na rua ou consumir parte dos produtos subtraídos.
São circunstâncias próprias do modo de vida do recorrente, não de natureza exógena.
Deste modo, não se verificam os pressupostos elencados no art. 30º do Código Penal dos quais depende a existência de uma situação de crime continuado nos termos pugnados pelo recorrente.
Consequentemente, carece de fundamento a pretensão recursiva no sentido de as condutas em causa deverem ser punidas nos termos do art. 79º do Código Penal.
Assim, a decisão recorrida não nos merece qualquer censura, porquanto não violou qualquer normativo legal, mormente os preceitos legais referidos pelo recorrente, pelo que deverá improceder o recurso interposto.
*
IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as juízas da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, confirmando-se na íntegra a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo do recorrente, fixando-se em três U.C.s a taxa de justiça (art. 513º/1 do Código de Processo Penal).
Notifique.

Lisboa, 25 de Janeiro de 2024
(anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original)
Elaborado e integralmente revisto pela Relatora (art.º 94.º n.º2 do C. P. Penal)
Assinado digitalmente pela Relatora e pelas Senhoras Juízas Desembargadoras Adjuntas
Paula Cristina Bizarro
Fernanda Sintra Amaral
Paula Albuquerque