Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
101/21.1T8AGH-B.L1-6
Relator: NUNO LOPES RIBEIRO
Descritores: RELAÇÃO DE BENS EM INVENTÁRIO
BEM DOADO POR CONTA DA QUOTA DISPONÍVEL
APRESENTAÇÃO DA RELAÇÃO DAS RENDAS RECEBIDAS
REDUÇÃO POR INOFICIOSIDADE
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/08/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: I. Em processo de inventário, não devem ser relacionados frutos civis (rendas) do bem doado por conta da quota disponível, percebidos no período que decorreu entre a doação e a presente data (em que ainda não foi pedida a redução por inoficiosidade), pois, nos termos articulados do disposto nos art.ºs 1270º, nº1 e 2177º do Código Civil, a herdeira/donatária é considerada possuidora de boa fé desses frutos civis, percebidos no período em questão, fazendo-os seus.
II. Sem que o valor desses frutos civis releve para efeitos de ponderação do valor do bem doado e, consequentemente, sem que os mesmos frutos estejam sujeitos à redução por inoficiosidade.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa

I. O relatório
Neste processo especial de inventário, instaurado por
A
para partilha dos bens deixados por óbito de
B
veio o cabeça de casal,
C,
requerer
o aditamento das verbas n.ºs 98 e 99 à relação de bens já apresentada uma vez que não constavam ainda elencados os frutos civis (art.º 2069º alínea d do C.C.) do bem doado à falecida D, prédio urbano sito (verba n.º 94) pela de cujus e que têm de constar uma vez que integram a herança, a saber:
Verba n.º 98
Rendas e compensação por termo do contrato percebidas pelos interessados decorrentes do arrendamento do prédio urbano sito aos, no valor de 46.991,40€ e 56.404,06€ a título de compensação, no valor global de 103.395,46€. - doc. n.º junto.
Verba n.º 99
Rendas percebidas pelos interessados pelo arrendamento de quartos, mormente a estudantes e turistas, do prédio urbano sito, inscrito na matriz sob o art.º 1338, no valor não apurado, mas que provisoriamente se fixa em 5.000,00€.
*
Os interessados X, vieram opor-se à pretensão do cabeça de casal.
Para o efeito, alegam que todos os bens que foram doados pela inventariada, e que constam sobre o item “Doações”, foram doados por conta da quota disponível da de cujus e encontram-se registados em nome dos respetivos proprietários.
 Neste sentido, tais bens já não pertencem à herança aberta por óbito da inventariada, apenas se inscrevendo em item próprio na relação de bens para efeitos de se aferir o seu valor para efeito de conferência de eventual inoficiosidade.
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Os interessados Y, vieram declarar que não acompanham a posição dos interessados X.
Concluem, pugnando pela admissão do aditamento à relação de bens requerida pelo cabeça de casal.
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Por requerimento datado de 14/07/2021, veio o cabeça de casal alegar que os bens indicados sob o item doações foram indicadas precisamente para se conferir o valor da herança e se aquelas ultrapassam, ou não, a quota disponível para efeitos de eventual redução por inoficiosidade, não assistindo razão aos interessados X, quanto à questão dos frutos, atento o disposto no art.º 2111.º, do Código Civil.
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Em 13/10/2023, foi proferida decisão final sobre o incidente, com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julga-se totalmente improcedente o presente incidente de aditamento à relação de bens deduzido pelo cabeça de casal C.
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No dia 11/6/2021, foi realizada audiência prévia nos autos principais, constando da respectiva acta o seguinte:
Neste momento, pedida a palavra pelo Ilustre mandatário do cabeça de casal, no seu uso efectuou o seguinte:
=REQUERIMENTO=
Requer o cabeça de casal que lhe seja concedido prazo de 10 dias para que, na sequência dos alegados pontos 9, 10 e 11 da relação de bens, possa indicar verbas que entenda dever ser aditadas e cumprir que os frutos civis compreenda as rendas relativas ao arrendamento da verba escrita com o n.º 93.
***
Seguidamente, pela Mm.ª Juiz foi proferido o seguinte:
=DESPACHO=
“Vai deferido.”
*
Inconformado, o cabeça-de-casal interpôs recurso de apelação para esta Relação, formulando na sua alegação as seguintes conclusões:
A) Por requerimento datado de 18/06/2021 (ref.ª CITIUS 4182795), veio, o ora Apelante, requerer o aditamento à relação de bens das seguintes verbas relativas aos frutos civis do bem doado, pela inventariada, sua mãe, à falecida, sua irmã, do prédio urbano sito (verba n.º 94) na sequência do que lhe havia sido determinado pelo Tribunal em sede de audiência prévia:
a) Verba n.º 98 relativa às rendas e compensação por termo do contrato percebidas pelos interessados decorrentes do arrendamento do prédio urbano sito, no valor de 46.991,40€ e 56.404,06€ a título de compensação, no valor global de 103.395,46€;
b) Verba n.º 99 relativa às rendas percebidas pelos interessados pelo arrendamento de quartos, mormente a estudantes e turistas, do prédio urbano sito, no valor não apurado, mas que provisoriamente se fixou em 5.000,00€.
B) Conforme dispõe o Código Civil no seu artigo 2069º alínea d) fazem parte da herança os frutos percebidos até à partilha, sendo que dispõe o art.º 2111º que os frutos da coisa doada sujeita a colação, percebidos desde a abertura da sucessão devem ser conferidos.
C) Entendeu, em suma, a Meritíssima Juíza a quo que o bem doado estaria dispensado de colação, por ter sido doado por conta da quota disponível, pelo que também o estariam os seus frutos.
D) Em contradição com o raciocínio que expendeu, acaba por concluir a Meritíssima Juíza a quo que "(...) no que respeita à conferência dos frutos da coisa doada não haverá essa "vantagem" do donatário-conferidor, na medida em que se não houver na herança bens suficientes para igualar todos os herdeiros, terá o donatário beneficiário desses frutos de repor parte do valor dos ditos para igualação entre todos os herdeiros (cfr. 2108.º n.º 2 a contrario do Código Civil)."
E) Concluiu então que, como não seriam computados para efeitos de cálculo da legítima, mas apenas para igualação na partilha e que como apenas os frutos da coisa doada sujeita a colação é que deverão ser conferidos (art.º 2111º do C.C.) e não estando a coisa doada, por conta da quota disponível, sujeita a colação, não haveria que conferir os frutos gerados após a abertura da sucessão.
F) Discorda-se da decisão da Meritíssima Juíza a quo pelas seguintes razões e desde logo em primeiro lugar cumpre chamar, respeitosamente, a atenção para o facto de a abertura da sucessão, por óbito da inventariada, dá-se em 07/03/2013 e que os frutos civis, rendas pagas pela Rádio e Televisão Portuguesa S.A. pelo arrendamento do prédio doado pela inventariada à, entretanto, falecida mãe dos Requeridos X, reportam-se ao período entre junho de 2014 e março de 2017 (art.º 2111º do C.C.), pelo que encontram-se dentro do espaço de tempo que obriga à sua conferência.
G) Em segundo lugar, os descendentes da falecida filha da inventariada são, por efeito da representação, sujeitos à colação, apesar de não serem herdeiros legitimários prioritários, estando o bem doado em questão sujeito a colação e os seus respetivos frutos.
H) Em terceiro lugar, a eventual dispensa da colação não afasta, como o Tribunal a quo expressamente o reconheceu, a necessidade de apuramento do valor da coisa doada, apesar da sua imputação, em primeiro lugar, na quota disponível, até porque o valor da quota disponível depende, tal como o cálculo do valor da legítima, do apuramento do valor de todos os bens deixados mortis causa bem como os doados em vida da inventariada, sendo que, tal como as benfeitorias comprovadamente realizadas pela donatária são passíveis de abatimento no valor do bem doado, também devem ser computados os frutos civis desde logo para efeitos de composição das legítimas sob pena de se gerar um desequilíbrio injusto.
I) Em quarto lugar, se, como a Meritíssima Juíza a quo expressamente o referiu, no que respeita à conferência dos frutos da coisa doada não haverá essa "vantagem" do donatário- conferidor, na medida em que se não houver na herança bens suficientes para igualar todos os herdeiros, terá o donatário beneficiário desses frutos de repor parte do valor dos ditos para igualação entre todos os herdeiros, não faz sentido realizar essa operação se esses frutos não forem tidos em conta.
J) Em quinto lugar, acresce que sobre a questão em apreço se formou já no processo caso julgado formal: na verdade, as verbas já tinham sido arroladas pelo cabeça-de-casal na descrição dos bens da herança, os valores então indicados divergem dos atuais em virtude de os Requeridos X nunca terem revelado os seus montantes, recusando-se expressamente a indicá-los.
K) O incidente que foi objeto do despacho ora sindicado destinou-se, apenas, a corrigir os valores dessas verbas depois de o Tribunal a quo ter ordenado diligências no sentido de apurar os seus valores, dada a falta de colaboração dos Recorridos.
L) Todavia, como não foi objeto de recurso em tempo útil a indicação desses bens, determinada em audiência prévia ocorrida a 11/06/2021, aditamento de verbas, esse, deferido já pelo Tribunal a quo (conforme resulta, inclusive, do despacho com a ref.ª CITIUS 53252288 de 06/05/2022), não poderia agora vir este indeferir o incidente que se atinha, na prática, à determinação do valor da verba n.º 99, nem pode vir corrigir a mão quanto a matéria sobre a qual já se havia esgotado o seu poder jurisdicional.
M) Em face do exposto e nos termos do disposto nos art.ºs 619º n.º 1, 620º n.º 1, 621º, 628º, 629º e 630º ambos a contrario, todos do C.P.C., verificou-se já a formação de caso julgado formal quanto à inclusão dos frutos civis na relação de bens, devendo os mesmos ser computados para todos os devidos e legais efeitos, mormente para os do disposto no art.º 2111º do C.C..
Termos em que, por provado, deve o presente recurso ser julgado procedente e a decisão ora recorrida ser revogada e substituída por outra que julgue procedente o incidente de aditamento à relação de bens das verbas n.ºs 98 e 99 (esta última pelo valor provisório indicado) assim se fazendo JUSTIÇA.
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O recurso foi admitido como sendo de apelação, com subida de imediato, em separado e efeito suspensivo do processo.
Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. O objecto e a delimitação do recurso
Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a incorrecta fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito aplicável). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara na 1ª instância), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece, sob pena de indeferimento do recurso.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
Admissibilidade de relacionamento em inventário dos frutos civis de bem imóvel doado em vida, por conta da quota disponível, percebidos após a doação e antes do pedido de redução por inoficiosidade.
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III. Os factos
Receberam-se da 1ª instância os seguintes factos provados:
1. A inventariada B faleceu em 07/03/2013.
2. D, filha da inventariada, faleceu em data anterior à identificada em 1., deixando a suceder-lhe, os seus filhos:
2.1. (…)
(…)
5. Por escritura pública datada de 14/10/1981, intitulada “Escritura de Doação”, B, na qualidade de primeira outorgante, declarou que: “por conta da sua quota disponível doa à segunda outorgante, sua filha, um prédio urbano constituído por casa de moradia, duas dependências e reduto com pátios e jardins, sito no mesmo (...)”,
6. (...) e D, na qualidade de segunda outorgante, declarou que “aceita agradecida esta doação”.
7. O prédio identificado em 5. encontra-se, atualmente, inscrito na matriz predial urbana da Freguesia e descrito na Conservatória do Registo Predial de
8. O prédio referido em 7. encontra-se inscrito na Conservatória do Registo Predial de a favor de D, pela Ap. 24 de 1984/12/10, tendo como causa de aquisição doação, e como sujeito passivo B.
9. Por escritura pública intitulada “Escritura de Arrendamento”, em data na concretamente apurada, mas situada no ano de 1989, D, na qualidade de primeira outorgante, declarou que “dá de arredamento à E segunda outorgante, representada por o prédio urbano identificado em 7. e 8., a qual declarou aceitar.
10. A E., entre junho de 2014 e março de 2017, pagou à herança aberta por óbito de D, a quantia de 46.991,40€, a título de rendas,
11. (...) e a quantia de 56.404,06€, a título de indemnização para reposição do prédio urbano identificado em 7. e 8., aquando da sua entrega.
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Foram ainda considerados não provados, os seguintes factos:
a) Os interessados receberam, pelo arrendamento de quartos do prédio urbano identificado em 7. e 8. dos factos provados, a quantia de 5.000,00€.
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IV. O Direito
Fundou a Exma. Juíza a quo a sua decisão nas seguintes considerações jurídicas:
No caso em apreço, a doação efetuada pela inventariada a D, presumível herdeira da inventariada à data da doação (factos provados 1., 2. e 5. a 8.), foi feita por conta da quota disponível (facto provado 5.), e, portanto, conforme já se explanou supra, considera-se que a referida doação se encontra dispensada da colação.
Por outro lado, nos termos do disposto no art.º 2111.º, do Código Civil, apenas devem ser conferidos os frutos da coisa doada sujeita a colação (sublinhado nosso).
Ora, não estando a doação efetuada pela inventariada a D sujeita a colação, os frutos gerados pelo bem doado e percebidos após abertura da sucessão não terão de ser conferidos.
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Não vemos razão para discordar do acerto da decisão recorrida; senão, vejamos:
Como decidiu a Relação de Évora, em Acórdão de 28/2/2019 (Tomé Ramião), disponível em www.dgsi.pt:
6. As doações podem ser feitas por conta da legítima ou por conta da quota disponível (art.ºs 2113.º/1 e 2114.º/1 do C. Civil). Sendo a doação efetuada por conta da legítima, significa que o inventariado não pretendeu beneficiar esse herdeiro, mas antes antecipar a sua quota hereditária, no todo ou em parte, preenchendo-a com os bens doados, razão pela qual o donatário tem de conferir todos os bens doados, para igualação da partilha com os demais herdeiros. Mas se for dispensada de colação pelo inventariado, entende-se que pretendeu beneficiar o donatário, razão pela qual este não tem de conferir esses bens, sendo a doação imputada na quota disponível do inventariado, sem prejuízo da sua redução por inoficiosidade.
Veja-se, também, o Acórdão da Relação de Guimarães de 7/4/2022 (Alexandra Rolim Mendes), disponível na mesma base de dados:
2 – As doações podem ser feitas por conta da legítima ou por conta da quota disponível
3 - Quando a doação é feita por conta da legítima, significa que o doador não quis beneficiar esse herdeiro, mas sim antecipar a sua quota hereditária, preenchendo-a, no todo ou em parte com os bens doados, mas se a doação foi feita com dispensa de colação é por que o doador quis beneficiar o herdeiro respetivo em face dos restantes.
4 – Assim, quando o doador insere na escritura de doação a expressão “por conta da quota disponível” é de entender que o mesmo quis dispensar esse bem da colação por ser sua vontade que a liberalidade se inscrevesse para além do quinhão hereditário do descendente beneficiário, beneficiando assim o mesmo face aos demais descendentes
5 - A doação em causa tem, pois, de ser imputada na quota disponível do doador e o eventual excesso deve ser imputado na legítima do donatário. Se exceder a quota disponível e a legítima do donatário, poderá estar sujeita a redução por inoficiosidade nos termos gerais.
6 – No entanto, o valor do bem doado deve ser tido em conta juntamente com os bens existentes no património dos autores da sucessão, para o cálculo da legítima, tal como determina o art.º 2162º do C. Civil e, se necessário e isso for requerido pelos restantes herdeiros, a liberalidade terá que ser reduzida por inoficiosidade, de forma a não ofender as legítimas dos restantes herdeiros legitimários.
7 – O valor dos bens doados, ainda que não sujeitos à colação, é aferido à data da abertura da sucessão, tal como dispõe o art.º 2162º do C. Civil.
Pela sua precisão pedagógica, apele-se também ao Acórdão da Relação de Coimbra de 13/6/2023 (Henrique Antunes):
Assim, para o cálculo da legítima deve atender-se ao valor dos bens existentes no património do património do autor da sucessão à data da sua morte, ao valor dos bens doados, às despesas sujeitas a colação e às dívidas da herança (art.º 2162.º do Código Civil). São, portanto, quatro, as operações em que desdobra a cálculo da legítima: avaliação dos bens existentes no património do autor da sucessão, á data da sua morte; dedução das dívidas da herança; restituição fictícia dos bens doados e, por último, imputação das liberalidades feitas por conta da legítima: para a determinação, em concreto, da legítima de cada herdeiro legitimário, há, pois, previamente, que imputar na sua legítima as liberalidades com o que o autor da sucessão o tenha beneficiado, só podendo exigir o excesso, caso o haja. Por força da restituição fictícia dos bens doados, a herança, para efeitos de sucessão, legitimária, é constituída pelos relicta e pelos donata, não só pelos bens deixados - mas também pelos bens doados.
Portanto, para se saber que parte dos bens pode concretamente exigir cada herdeiro legitimário, feitas as três primeiras operações, tem este aquele herdeiro de imputar previamente aquelas liberalidades, só podendo exigir o excesso, se excesso houver. Para a imputação das liberalidades valem, em princípio, como critério geral, as regras da colação (art.ºs 2014.º e 2113.º).
A redução das liberalidades é feita pela ordem seguinte: em primeiro lugar reduzem-se as disposições testamentárias a título de herança, em segundo lugar os legados e, por último, as liberalidades feitas em vida. A prevalência da doação sobre a disposição testamentária resulta, por um lado, da irrevogabilidade, de princípio, da doação, e por outro, da intangibilidade da legítima, que comprime a liberdade de disposição do testador (art.ºs 969.º e ss. e 2156.º do Código Civil).
Caso seja necessário proceder à redução das liberalidades em vida, começa-se pela última, passando-se à imediata, se for preciso; caso haja vária liberalidades feitas no mesmo acto ou na mesma data, a redução é feita rateadamente entre elas, salvo se for remuneratória (art.ºs 2171.º e 2173.º do Código Civil). A redução pode ser feita em valor ou em espécie, conforme os bens doados sejam divisíveis ou indivisíveis; no primeiro caso, a redução faz-se separando dos bens doados a parte necessária para preencher a legítima no segundo caso, há que fazer um distinguo, consoante a importância da redução exceda ou não metade do valor dos bens: no primeiro caso, os bens pertencem integralmente ao herdeiro legitimário e o donatário haverá o resto em dinheiro; no caso inverso, os bens pertencem integralmente ao donatário, tendo este que inteirar em dinheiro ao herdeiro legitimário a importância da redução (art.º 2174.º, nºs 1 e 2, do Código Civil).
Definiu ainda a Relação do Porto, em Acórdão de 26/6/2023 (Carlos Gil), disponível na mesma base de dados, o seguinte:
O bem doado é propriedade do donatário, sendo este por isso administrador do mesmo (nº 2 do artigo 2087º do Código Civil) e bem assim considerado, quanto a frutos e benfeitorias, possuidor de boa-fé até à data do pedido de redução (artigos 2177º, 1270º, 1273º e 1275º, todos do Código Civil e 1118º e 1119º, estes do Código de Processo Civil).
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Dentro deste quadro, vejamos a situação.
A doação em vida do bem imóvel foi efectuada expressamente por conta da quota disponível.
Desse modo, estão afastadas as dúvidas no sentido de que foi efectuada com dispensa de colação e com vista a beneficiar a donatária, herdeira legitimária, perante os demais herdeiros legitimários.
A doação em causa tem, pois, de ser imputada na quota disponível da doadora e o eventual excesso deve ser imputado na legítima da donatária.
Se exceder a quota disponível e a legítima desta, poderá estar sujeita a redução por inoficiosidade nos termos gerais.
No entanto, o valor do bem doado deve ser tido em conta juntamente com os bens existentes no património da autora da sucessão, para o cálculo da legítima, tal como determina o art.º 2162º do Código Civil e, se necessário e isso for requerido pelos restantes herdeiros, a liberalidade terá que ser reduzida por inoficiosidade, de forma a não ofender as legítimas dos restantes herdeiros legitimários.
O valor dos bens doados, ainda que não sujeitos à colação, é aferido à data da abertura da sucessão, tal como dispõe o art.º 2162º do Código Civil.
Mas a questão do presente recurso prende-se com os frutos civis do bem doado (rendas), percebidos no período que decorreu entre a doação e a presente data (em que ainda não foi pedida a redução por inoficiosidade).
E, nos termos articulados do disposto nos art.ºs 1270º, nº 1 e 2177º do Código Civil, a herdeira/donatária é considerada possuidora de boa fé desses frutos civis, percebidos no período em questão, fazendo-os seus.
Sem que o valor desses frutos civis releve para efeitos de ponderação do valor do bem doado e, consequentemente, sem que os mesmos frutos estejam sujeitos à redução por inoficiosidade.
Ao contrário dos frutos da coisa doada sujeita a colação, que, estes sim e nos termos do disposto no 2111º do Código Civil, devem ser conferidos.
O desequilíbrio injusto invocado pelo cabeça de casal não se verifica, pois corresponde à opção legislativa operada pelos referidos art.ºs 1270º, nº1 e 2177º do Código Civil e constitui emanação do privilégio inerente à doação por conta da quota disponível que a inventariada efectuou, em benefício da donatária/herdeira.
Pretendendo, afinal, o cabeça-de-casal obter o mesmo tratamento jurídico à doação sujeita à colação e à doação dispensada de colação (mas sujeita a redução por inoficiosidade), fazendo tábua rasa da distinção legal e ignorando a diferença entre ambas, quanto aos respectivos efeitos no chamamento sucessório.
Pelo que a conclusão será simples, concordando-se com a decisão recorrida: as verbas em questão não devem ser relacionadas.
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Invoca o recorrente um último argumento: o caso julgado formal formado pelo despacho proferido na audiência prévia.
Apurou-se que:
No dia 11/6/2021, foi realizada audiência prévia nos autos principais, constando da respectiva acta o seguinte:
Neste momento, pedida a palavra pelo Ilustre mandatário do cabeça de casal, no seu uso efectuou o seguinte:
=REQUERIMENTO=
Requer o cabeça de casal que lhe seja concedido prazo de 10 dias para que, na sequência dos alegados pontos 9, 10 e 11 da relação de bens, possa indicar verbas que entenda dever ser aditadas e cumprir que os frutos civis, compreenda as rendas relativas ao arrendamento da verba escrita com o n.º 93.
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Seguidamente, pela Mm.ª Juiz foi proferido o seguinte:
=DESPACHO=
“Vai deferido.”
Como nos parece evidente, o despacho proferido na audiência prévia não se debruçou sobre a admissibilidade de relacionamento das rendas recebidas pela donatária.
Apenas foi pelo cabeça-de-casal requerido prazo para acrescentar novas verbas, o que foi concedido.
Sujeitando-se o acto de relação complementar depois efectuado às regras processuais atinentes, como a notificação aos restantes interessados, a dedução de oposição e a apreciação do mérito da pretensão.
Não se formou qualquer caso julgado formal relativamente à admissibilidade da relação complementar – sendo que a admitir-se esse caso julgado, sempre a decisão seria nula por falta de fundamentação e por incumprimento do contraditório prévio.
Improcede, pois, também esta última argumentação.
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V. A decisão                                                       
Pelo exposto, os Juízes da 6.ª Secção da Relação de Lisboa acordam em, na improcedência da apelação, manter a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
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Lisboa, 8 de Fevereiro de 2023
Relator: Nuno Lopes Ribeiro
1º Adjunto: António Santos
2ª Adjunta: Teresa Pardal