Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
692/23.2Y4LSB.L1-5
Relator: ANA CLÁUDIA NOGUEIRA
Descritores: RESPONSABILIDADE CONTRA-ORDENACIONAL
OCUPAÇÃO DA VIA PÚBLICA
ENTIDADE EXECUTANTE
DEVER DE CUIDADO
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 01/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário: (da responsabilidade da relatora)
I - Prevendo os art.ºs 31º/1,d, i) e 32º/1 e 3, do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras (ROVPEO) aprovado pela ... que a responsabilidade contraordenacional pela infração consistente em ocupação da via pública sem ser titulada pelo respetivo alvará de licença, cabe ao requerente da licença de ocupação da via pública ou ao dono da obra, caso a licença não tenha sido requerida, sem prejuízo do exercício do seu direito de regresso, designadamente sobre o executante da obra, é sempre àquele que incumbirá zelar pelo cumprimento das obrigações decorrentes do licenciamento para ocupação da via pública no decurso da obra.
II - Se esse responsável à luz da lei aplicável opta por contratar uma terceira entidade para fiscalizar o cumprimento dessas obrigações por parte da entidade executante, assume necessariamente o risco de essa entidade fiscalizadora em quem confiou não executar devidamente o encargo da fiscalização que lhe atribui numa opção organizacional sua; e nesse quadro, o mais que poderá almejar será o exercício do direito de regresso em relação a essas entidades que contratou para executar e para fiscalizar a execução.
III - Não pode considerar-se observado o dever de cuidado da arguida para evitar a infração, nos termos da previsão do art.º 15º do Código Penal, afastando uma sua atuação negligente, com base na circunstância de ter a mesma contratado uma empreiteira que executasse a obra de construção e uma outra empresa para que fiscalizasse o seu trabalho, pois que isso seria o mesmo que admitir a isenção de responsabilidade contraordenacional por essa via, em contrário do estabelecido expressamente na lei, daí derivando ainda a impunidade da conduta infratora.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, as Juízas que compõem a 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público de decisão absolutória proferida em sede de recurso de impugnação judicial interposto pela arguida AA nos termos do art.º 59º do Regime Geral das Contraordenações (RGCO) aprovado pelo D.L. 433/82, de 27/10, em relação a decisão administrativa proferida pela ..., nos termos da qual foi condenada na coima de 7.200,00€, pela prática de uma contraordenação prevista e punida pelo art.º 31º/1, d), i), do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação …/AM./2014, de ... de ... de 2014, por violação do art.º 12º/4 do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras.
2. O recorrente defende que deverão considerar-se provados os factos dados como não provados e peticiona que seja a arguida condenada pela prática da aludida contraordenação, numa coima, cujo montante deverá ser fixado entre 12 e 24 vezes a retribuição mínima mensal garantida, formulando as seguintes conclusões [transcrição]:
«(…)
I - Na douta sentença ora em crise foi decidido, absolver a Recorrente BB, da prática, como autora material, de uma contraordenação prevista e punida pelo artigo 31.º, n.º 1, alínea d), ponto i) do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação n.º …/AM./2014, de ... de ... de 2014, por violação do artigo 12.º, n.º 4 do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras. O presente recurso funda-se na discordância com a aplicação de tal sanção à Recorrente.
II – A recorrente era dona da obra e titular da licença de ocupação da via pública.
III – A recorrente foi assim requerendo a prorrogação daquela licença ao longo do decurso da obra.
III – A recorrente tinha o poder de fiscalizar a obra.
IV – A ocupação da via pública que estava a ser feita, era por demais extensa e evidente para que não fosse detectada por qualquer homem médio, colocado na posição da recorrente, titular da licença.
V – E se a recorrente não fiscalizou a obra e consequentemente não verificou o espaço da via pública que estava a ser efectivamente usado, foi porque não quis (e confiou que o empreiteiro respeitaria a licença existente), até porque o local onde a ocupação estava a ser feita – na placa central da ... - e respectiva extensão – perímetro com cerca de 50 m2 - era bastante evidente.
VI – A responsabilidade contraordenacional pela infração prevista no ponto i. da alínea d) do n.º 1 do artigo anterior é do requerente da licença de ocupação da via pública - artigo 32º, nº1 do Regulamento de Ocupação da Via Pública Com Estaleiros de Obras – i.e., a recorrente, que ainda que tenha actuado com falta de cuidado, não deixa de ver a sua conduta punida nos termos do art.º 31º, nº 2 do cit. Regulamento.
(…)».
3. O recurso veio a ser admitido a subir nos próprios autos, de imediato e com efeito suspensivo do processo.
4. Em resposta, a arguida pugnou pela manutenção da decisão recorrida.
5. Subidos os autos a esta Relação, o Exm.º Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer mediante o qual corroborou as alegações de recurso, entendendo haver nos autos elementos suficientes para se concluir por uma efetiva violação objetiva do dever de cuidado por parte da arguida, sendo por isso infundada a absolvição decretada; mas vai mais além nos fundamentos do recurso: afirma haver contradição da decisão, entre os factos provados 1 a 4 e os factos não provados identificados sob as alíneas a) e b), sendo evidente a desatenção ou a indiferença da arguida ante os factos que consubstanciam a infração, assim como erro de direito, com decisão contra legem, na parte em que admite que o requerente da licença de ocupação da via pública delegue a responsabilidade de vigilância da conformidade administrativa da obra quanto a essa ocupação, em terceiros, contrariando o disposto no art.º 32º/3 do citado Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros e Obra (de …).
6. O processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art.º 419º/3, b) do Código de Processo Penal.

II- FUNDAMENTAÇÃO
1. QUESTÕES A DECIDIR
Dispõe o art.º 412º/1 do Código de Processo Penal que «A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.».
São as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e determinam o âmbito do recurso e os seus fundamentos, delimitando, assim, para o tribunal superior, as questões a decidir e as razões por que devem ser decididas em determinado sentido.1
Esta limitação dos poderes de cognição do Tribunal Superior será sempre sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso a que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal, conforme jurisprudência fixada no acórdão do STJ 7/95, de 28 de dezembro, DR, I Série-A, de 28/12/95.
No caso vertente, atentas as conclusões formuladas pelo recorrente e o teor do Parecer emitido pelo Sr. Procurador Geral Adjunto junto desta Relação, em associação com os fundamentos da decisão recorrida, são as seguintes as questões a decidir:
1.ª Ocorre vício da decisão recorrida quanto à matéria de facto, nomeadamente contradição insanável da fundamentação ou erro notório na apreciação da prova?
2.ª O Tribunal recorrido cometeu erro na aplicação do Direito ao considerar passível de ser transferida para terceiros a responsabilidade contraordenacional derivada da infração do alvará de licença de ocupação da via pública emitido à arguida?
3.ª Em caso afirmativo, sendo caso de condenação da arguida pela prática da contraordenação que na decisão administrativa lhe estava imputada, determinação da medida da coima a aplicar.
2. APRECIAÇÃO DO RECURSO
1. Decisão recorrida
É do seguinte teor a decisão sob recurso, na parte relevante para análise das questões a decidir [transcrição]:
«(…)
I. Relatório
BB, inconformada com a decisão proferida pela ..., nos termos da qual foi condenada na coima de 7.200,00€, pela prática de uma contraordenação prevista e punida pelo artigo 31.º, n.º 1, alínea d), ponto i) do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação n.º …/AM./2014, de ... de ... de 2014, por violação do artigo 12.º, n.º 4 do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, veio, ao abrigo do artigo 59.º do Regime Geral das Contraordenações, apresentar impugnação judicial.
Para o efeito alegou, em síntese, que adjudicou a execução da obra em questão à sociedade CC, pelo que esta é que detinha a responsabilidade pelo cumprimento de todas as diretrizes definidas no projeto de obra e na licença de ocupação do espaço público.
Da mesma forma, alegou ainda a recorrente que nunca poderia ter sido dado como provado que a mesma agiu com dolo, uma vez que nunca representou nem se conformou com a realização da infração.
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O Ministério Público apresentou o recurso a julgamento, tendo apresentado prova.
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Por despacho datado de ...-...-2023 (ref.ª citius: ...), foi o recurso admitido e foi designada data para audiência de discussão e julgamento.
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Procedeu-se ao julgamento com observância das formalidades legais.
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Inexistem quaisquer questões prévias ou incidentais, exceções ou quaisquer nulidades de que cumpra apreciar e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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II. Dos Factos
1. Factos Provados
Resultaram provados, com relevância para a boa decisão da causa, os seguintes factos:
1) No dia ... de ... de 2019, pelas 15h50m, a arguida promovia obras de ampliação, que incidiam sobre o imóvel sito na ..., obras essas sujeitas a licença;
2) No ato de fiscalização, foi verificado que, para apoio das referidas obras, a placa central da … (zona de estacionamento …), foi ocupada num perímetro com cerca de 50m2, fora do tapume, com uma vedação com módulos de rede amovível e tela de cobertura plástica, encontrando-se no seu interior, dois contentores metálicos próprios para recolha de resíduos, diversos Big Bags e outros inertes amontoados;
3) No dia ... de ... de 2019 a arguida era titular da Licença de Via Pública n.º …2017, a que se refere o processo municipal n.º …2017, prorrogada pelos Alvarás de Ocupação da Via Pública n.º …2018, a que se refere o processo municipal n.º …2017, Alvará de Ocupação da Via Pública n.º …2018, a que se refere o processo municipal n.º …2018, Alvará de Ocupação da Via Pública n.º …2018, a que se refere o processo municipal n.º …2018, Alvará de Ocupação da Via Pública n.º …2018, a que se refere o processo municipal n.º …2018 e Alvará de Ocupação da Via Pública n.º …2019, a que se refere o processo municipal n.º …2018;
4) A licença referida em 3) apenas autorizava, para o local referido em 1), a seguinte tipologia de ocupação:
a. Tapume, grua e instalações de apoio, com início a ...-...-2018 e fim a ...-...-2019;
b. Andaime com início em ...-...-2018 e fim em ...-...-2019.
Mais resultou provado que:
5) No dia ... de ... de 2019, era executante da obra, ou seja, empreiteira, a sociedade CC, pessoa coletiva n.º ..., com sede na ...;
6) A recorrente contratou a empresa de fiscalização DD (…) para verificar a conformidade de toda a obra, não tendo a mesma alertado para qualquer inconformidade.
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2. Factos não provados.
a) A arguida, enquanto dona das obras levadas a cabo, e usando como referência o critério de um conhecimento médio exigível a quem se encontra nessa qualidade e, ainda, titular das Licenças de Ocupação da Via Pública n.ºs …2017, prorrogada pelo Alvará de Ocupação da Via Pública n.º …2018, …2018, …2018, …2018, …2019, tinha conhecimento da ocupação da via pública, nos termos do ponto 4. e da inexistência de alvará de licença que o permitisse;
b) Consciente de que não pode ocupar a via pública, sem alvará de licença para o efeito, a arguida, ao ter ocupado a via pública, nos termos do ponto 2), sem título emitido pela ..., representou como consequência possível ou provável da sua conduta a prática de um facto ilícito e punível, tendo-se conformado com a sua realização.
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Os restantes factos mencionados na decisão da autoridade administrativa e no recurso da arguida não constam do elenco dos factos provados nem dos não provados por se ter entendido que eram repetitivos ou que continham matéria conclusiva, irrelevante ou de direito.
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3. Motivação da matéria de facto
O Tribunal formou a sua convicção com base na apreciação crítica e conjugada da prova anteriormente junta aos autos, conjugada com a prova produzida na audiência de julgamento, isto é, nos depoimentos das testemunhas EE, agente da PSP que fiscalizou a obra; FF, engenheiro civil que trabalha para uma sociedade que presta serviços à recorrente; e GG, engenheira civil que trabalhou como gestora de projeto para a recorrente. A valoração da prova foi norteada pelo princípio da livre apreciação da prova consagrado pelo legislador no artigo 127.º do Código de Processo Penal, ex vi do artigo 41.º do Regime Geral das Contraordenações.
No que respeita aos factos dados como provados em 1, 2, 3 e 4, o Tribunal alicerçou a sua convicção probatória no teor do auto de notícia e respetivos registos fotográficos (fls. 1 a 5), na informação n.º … de ...-...-2019, elaborada pela Polícia Municipal de … (fls. 6) e nos Alvarás de Licença e respetivos averbamentos (fls. 7 a 15), conjugados com o depoimento da testemunha EE, agente da PSP responsável pela fiscalização em causa, que confirmou o auto de notícia por si redigido e todos os factos nele constantes, não tendo os mesmos sido contrariados pela defesa. Quanto aos factos provados n.º 5 e 6, estes foram assim considerados com base nos depoimentos das testemunhas FF e GG, que foram prestados de forma sincera e espontânea, tendo, por esse motivo, merecido total credibilidade por parte do Tribunal.
Já no que respeita ao elemento subjetivo do dolo, o Tribunal entendeu julgar não provado que a recorrente tinha conhecimento da ocupação da via pública, nos termos do ponto 4 e da inexistência de alvará de licença que o permitisse, tendo representado como possível ou provável da sua conduta a prática de um facto ilícito e punível, tendo-se conformado com a sua realização (factos não provados a) e b)) com base nas declarações de ambas as testemunhas envolvidas no projeto de remodelação, que explicitaram, de forma clara, objetiva e espontânea, que, pese embora quem tratasse da submissão formal do pedido de licença fosse a recorrente, quem informava de qual era o espaço que necessitava e ia ajustando a sua ocupação material, era a entidade executante, não tendo a BB alguma vez constatado qualquer incumprimento, nem sequer representado essa possibilidade, uma vez que confiava inteiramente na entidade executante.
Ora, estes depoimentos conjugados com o facto de não ter sido trazida qualquer prova do conhecimento da ocupação da via pública em incumprimento do alvará de licença por parte da sociedade arguida, serviu para formar a convicção do Tribunal de que tal conhecimento não existia.
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III. Do Direito
1. Enquadramento jurídico-contraordenacional dos factos
Assente a matéria de facto, cumpre proceder ao seu enquadramento jurídico-contraordenacional.
A autoridade administrativa condenou a arguida BB, pela prática de uma contraordenação p. e p. pelo artigo 31.º, n.º 1, alínea d), ponto i) do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação n.º …/AM./2014, de ... de ... de 2014, por violação do artigo 12.º, n.º 4 do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras (doravante ROVPEO), numa coima de 7.500,00€.
O referido diploma legal estabelece as regras a observar na ocupação do domínio público municipal com estaleiros de obras de edificação, promovidas pelo Município ou por qualquer outra entidade pública ou privada, utilizando tapumes, vedações, andaimes, condutas para descarga de entulhos, depósitos de materiais e entulhos, amassadouros, contentores, cargas e descargas, bombagens de betão, gruas, guindastes ou outros equipamentos ou instalações – cfr. artigo 2.º, n.º 1 do ROVPEO.
Por outro lado, dispõe o artigo 7.º, n.º 1 do mesmo diploma legal que “a ocupação da via pública ou de outros espaços públicos, nas situações definidas no artigo 2.º do presente regulamento, depende da atribuição de licença pela ..., sem prejuízo do número seguinte”.
Mais, dispõe o artigo 12.º, n.º 4 que “a ocupação de via pública objeto de licenciamento é titulada por alvará, o qual é emitido desde que se mostrem pagas as taxas devidas, nos termos do artigo 29.º do presente regulamento, e é condição de eficácia da respetiva licença”.
Por último, dispõe o artigo 31.º, n.º 1, alínea d) que “Encontram-se sujeitas a coima graduada entre 7 a 9 vezes o valor da retribuição mínima nacional, no caso de pessoa singular, e de 24 a 48 vezes o valor da retribuição mínima nacional, no caso de pessoa coletiva, as seguintes infrações: (i) A ocupação da via pública ou de outros espaços sem ser titulada pelo respetivo alvará de licença, nos termos do n.º 4 artigo 12.º”.
In casu, resultou provado que a recorrente promovia obras de ampliação que incidiam sobre o imóvel sito na ..., tendo sido verificado que a placa central da … foi ocupada num perímetro com cerca de 50 m2, fora do tapume com a vedação com módulos de rede amovível e tela de cobertura plástica, encontrando-se no seu interior, dois contentores metálicos próprios para recolha de resíduos, diversos Big Bags e outros inertes amontoados.
Mais resultou provado que a recorrente detinha a Licença de Via Pública n.º …2017, licença essa que apenas autorizava: (i) tapume, grua e instalações de apoio, com início a ...-...-2018 e fim a ...-...-2019 e (ii) andaime com início em ...-...-2018 e fim em ...-...-2019.
Assim, uma vez que a recorrente ocupava a via pública num espaço que não estava titulado pelo alvará, encontram-se preenchidos os pressupostos objetivos de punibilidade.
No entanto, argumenta a arguida que quem é responsável pela infração prevista é a entidade executante, isto é, a CC, uma vez que esta é que detinha os poderes de controlar a obra em curso, bem como a responsabilidade pelo cumprimento de todas as diretrizes definidas no projeto de obra e na licença de ocupação do espaço público.
Entende-se que não assiste razão, neste aspeto, à recorrente, porquanto a lei é clara, estipulando no artigo 32.º, n.º 1 do ROVPEO que “a responsabilidade contraordenacional pela infração prevista no ponto i. da alínea d) do n.º 1 do artigo anterior é do requerente da licença de ocupação da via pública ou do dono da obra, caso a licença não tenha sido requerida.”, acrescentando o n.º 3 que “o disposto nos números anteriores, não prejudica o direito de regresso do responsável contraordenacional, designadamente sobre o executante da obra.”.
Desta forma, resulta claro que a responsabilidade contraordenacional, a existir, será sempre imputada à recorrente, enquanto dona da obra, nos termos deste artigo, podendo, no entanto, a mesma reclamar do executante da obra o direito de regresso da quantia por si paga.
Posto isto, entendendo-se, por um lado, que se encontram verificados os pressupostos objetivos da punibilidade e, por outro, que é a recorrente a responsável pelo cumprimento da norma, importa agora aferir se se encontram verificados os elementos subjetivos da punibilidade.
In casu, não resultou provado que a recorrida tivesse conhecimento da ocupação da via pública nos termos aferidos e da inexistência de alvará de licença que o permitisse, nem tão-pouco que a mesma estava consciente de que não podia ocupar a via pública naqueles termos e que representou como consequência possível ou provável da sua conduta a prática de um facto ilícito e punível, tendo-se conformado com a sua realização. Desta forma, não resultou provado o elemento subjetivo do dolo eventual, como considerado na decisão administrativa.
Por outro lado, também não resultou provado qualquer facto que pudesse levar o Tribunal a concluir que existiu uma conduta negligente por parte da recorrente, considerando que não resultou provado que a recorrente tivesse representado como possível a realização típica, mas atuado sem se conformar com essa realização (negligência consciente), nem que a mesma, não tendo representado a possibilidade de realização típica, não procedeu com o cuidado a que, conforme as circunstâncias, estaria obrigada e de que é capaz (negligência inconsciente).
Assim se entendeu, porquanto resultou provado que a recorrente, além de ter contratado uma empreiteira para executar a obra, tendo confiado nos seus serviços, ainda contratou uma empresa de fiscalização para verificar a conformidade de toda a obra, considerando-se, por isso, que a recorrente procedeu com o cuidado que lhe era exigível, tendo delegado funções a entidades especializadas.
Ademais, não se pode esperar que, além de ter contratado esta empresa fiscalizadora, fosse exigível à recorrente vigiar a obra permanentemente de forma a aferir se a empreiteira estava a utilizar o espaço previsto no alvará de licença.
Pelo exposto, entendendo o Tribunal não se encontrarem verificados os elementos subjetivos do ilícito contraordenacional pelo qual a arguida vem condenada, nada mais restará senão absolve-la da sua condenação.
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IV. Custas
Tendo em conta o provimento da impugnação judicial e consequente absolvição da arguida, considera-se que não são devidas custas nos termos do artigo 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, a contrario, aplicável por força do artigo 92.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações.
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V. Dispositivo
Em face do exposto, decide-se julgar o presente recurso de impugnação judicial totalmente procedente, e, em consequência, absolver a recorrente BB da contraordenação pela qual tinha sido condenada pela autoridade administrativa.
(…)».
2. Do recurso
2.2.1 O recurso da matéria de facto em processo de contraordenação
Dispõe o art.º 75º/1 do Regime Geral das Contraordenações aprovado pelo D.L. 433/82, de 27/10 (doravante, RGCO) que «Se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões.».
Desta disposição decorre que, em matéria de recurso de decisões relativas a processos de contraordenação, o Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista e como última instância, estando o seu poder de cognição limitado à matéria de direito, embora sem prejuízo do conhecimento oficioso2 de qualquer dos vícios indicados no nº 2 do art.º 410º do Código de Processo Penal, subsidiariamente aplicável por força do disposto no art.º 41º/1 do RGCO (revista ampliada).3
No caso em mãos, a decisão recorrida, de absolvição da arguida, funda-se na não prova dos factos atinentes ao elemento subjetivo típico da contraordenação imputada, considerando-se não provado que:
«a) A arguida, enquanto dona das obras levadas a cabo, e usando como referência o critério de um conhecimento médio exigível a quem se encontra nessa qualidade e, ainda, titular das Licenças de Ocupação da Via Pública n.ºs …2017, prorrogada pelo Alvará de Ocupação da Via Pública n.º …2018, …2018, …2018, …2018, …2019, tinha conhecimento da ocupação da via pública, nos termos do ponto 4. e da inexistência de alvará de licença que o permitisse;
b) Consciente de que não pode ocupar a via pública, sem alvará de licença para o efeito, a arguida, ao ter ocupado a via pública, nos termos do ponto 2), sem título emitido pela ..., representou como consequência possível ou provável da sua conduta a prática de um facto ilícito e punível, tendo-se conformado com a sua realização.».
O Tribunal a quo fundamenta essa decisão relativa à matéria de facto essencialmente na seguinte apreciação da prova produzida:
« Já no que respeita ao elemento subjetivo do dolo, o Tribunal entendeu julgar não provado que a recorrente tinha conhecimento da ocupação da via pública, nos termos do ponto 4 e da inexistência de alvará de licença que o permitisse, tendo representado como possível ou provável da sua conduta a prática de um facto ilícito e punível, tendo-se conformado com a sua realização (factos não provados a) e b)) com base nas declarações de ambas as testemunhas envolvidas no projeto de remodelação, que explicitaram, de forma clara, objetiva e espontânea, que, pese embora quem tratasse da submissão formal do pedido de licença fosse a recorrente, quem informava de qual era o espaço que necessitava e ia ajustando a sua ocupação material, era a entidade executante, não tendo a BB alguma vez constatado qualquer incumprimento, nem sequer representado essa possibilidade, uma vez que confiava inteiramente na entidade executante.
Ora, estes depoimentos conjugados com o facto de não ter sido trazida qualquer prova do conhecimento da ocupação da via pública em incumprimento do alvará de licença por parte da sociedade arguida, serviu para formar a convicção do Tribunal de que tal conhecimento não existia.
(…)».
No recurso interposto pelo Ministério Público é manifestada discordância quanto a esta decisão de facto, defendendo-se que:
«(…) deverão ser dados por provados ambos os factos que o não foram e consequentemente, ser a recorrente condenada em conformidade, pela prática da contra-ordenação prevista e punida pelo artigo 31.º, n.º 1, alínea d), ponto i) do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, aprovado pela Deliberação n.º …/AM./2014, de ... de ... de 2014, por violação do artigo 12.º, n.º 4 do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras, ainda que a título negligente.» (negrito nosso).
Ou seja, pretende o Digno recorrente impugnar a decisão proferida pelo Tribunal a quo sobre a matéria de facto, oferecendo para tanto uma diferente leitura da prova produzida, sem, no entanto, apontar à decisão recorrida qualquer dos vícios previstos no art.º 410º/2 do Código de Processo Penal – a) insuficiência pra a decisão da matéria de facto provada; b) contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) erro notório na apreciação da prova.
Todavia, em sede de Parecer, o Senhor Procurador Geral Adjunto junto desta Relação, afirma já haver contradição da decisão, entre os factos provados 1 a 4 e os factos não provados identificados sob as alíneas a) e b), e sinaliza a evidência da desatenção ou da indiferença da arguida ante os factos que consubstanciam a infração, associado a erro de direito, com decisão contra legem, na parte em que admite que o requerente da licença de ocupação da via pública delegue a responsabilidade de vigilância da conformidade administrativa da obra quanto a essa ocupação, em terceiros, contrariando o disposto no art.º 32º/1 e 3 do citado Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros e Obra (de …).
Tratando-se de vício relativo à matéria de facto que, como referimos, é de conhecimento oficioso, e de um invocado erro de direito, importa então aferir se algum deles se verifica.
Para tanto importa notar que, conforme resulta expressis verbis do preceituado no art.º 410º/2 do Código de Processo Penal, os vícios aí referidos, constituindo um defeito estrutural da decisão, têm de resultar do respetivo texto, na sua globalidade, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, estando vedado o recurso a elementos a ela estranhos para fundamentar a sua verificação, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.4 Tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença, esta terá que ser autossuficiente quanto a eles, não se podendo recorrer à prova documentada.
Este o ponto fulcral de distinção desta forma de impugnação da matéria de facto, da impugnação ampla assente em erro de julgamento, que pressupõe que a prova produzida, analisada e valorada, não podia conduzir à fixação da matéria de facto provada e não provada nos termos em que o foi; o recurso visa, então, a reapreciação da prova gravada em primeira instância, impondo-se a sua audição pelo Tribunal de recurso, cujos poderes de cognição não se restringem ao texto da decisão recorrida, como acontece com os vícios previstos no art.º 410º/2, do Código de Processo Penal, alargando-se à apreciação do que contém e se pode extrair da prova documentada e produzida em audiência, sempre delimitada pelo recorrente através do ónus de especificação previsto nos nºs 3 e 4 do art.º 412º do Código de Processo Penal.
Em suma: no âmbito da revista alargada, aqui em causa, contrariamente ao que sucede com a impugnação ampla, o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto no sentido da reapreciação da prova, limitando-se a detetar os vícios que a sentença em si mesmo evidencia e, não podendo saná-los, a determinar o reenvio do processo para novo julgamento tendo em vista essa sanação, nos termos do disposto no art.º 426º/1 do Código de Processo Penal e 75º/2,b) do RGCO.
Vejamos então se a decisão recorrida padece de algum dos vícios assinalados no Parecer do Ministério Público.
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2.2.2. Da alegada contradição da fundamentação
Especificamente quanto ao vício da contradição insanável a que alude art.º 410º/2,b), tal como se expende no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/03/20155, «(…) o vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito.».
Nas palavras de Simas Santos e Leal Henriques6, «por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade.».
Tal vício consiste, assim, numa incompatibilidade, não ultrapassável através da própria decisão recorrida, entre a fundamentação ou entre esta e a decisão.
A contradição insanável da fundamentação respeita não só à contradição na própria matéria de facto (entre os factos provados ou entre estes e os não provados), mas também à contradição na fundamentação probatória da matéria factual.
Assim, pode afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até na fundamentação probatória da matéria de facto.
Com efeito, tal contradição da fundamentação pode consistir basicamente numa incompatibilidade entre a matéria de facto provada, quando, por exemplo, se dão como provados dois ou mais factos que estão, entre si, em oposição, sendo, por isso, logicamente incompatíveis, excluindo-se mutuamente; ou numa incompatibilidade entre a matéria de facto provada e a matéria de facto não provada, dando-se, por exemplo, como provado e como não provado o mesmo facto; ou ainda numa incoerência da fundamentação probatória da matéria de facto, como por exemplo quando se dá como provado um determinado facto e da motivação da convicção resulta, face à valoração probatória e ao raciocínio lógico-dedutivo exposto, que seria outra a decisão de facto correta.7
*
Entende o Ministério Público que existe essa contradição (embora não a qualifique de insanável) na fundamentação da decisão recorrida porquanto não podia o Tribunal a quo ter dado como provado que:
«1) No dia ... de ... de 2019, pelas 15h50m, a arguida promovia obras de ampliação, que incidiam sobre o imóvel sito na ..., obras essas sujeitas a licença;
2) No ato de fiscalização, foi verificado que, para apoio das referidas obras, a placa central da … (zona de estacionamento …), foi ocupada num perímetro com cerca de 50m2, fora do tapume, com uma vedação com módulos de rede amovível e tela de cobertura plástica, encontrando-se no seu interior, dois contentores metálicos próprios para recolha de resíduos, diversos Big Bags e outros inertes amontoados;
3) No dia ... de ... de 2019 a arguida era titular da Licença de Via Pública n.º …2017, a que se refere o processo municipal n.º …2017, prorrogada pelos Alvarás de Ocupação da Via Pública n.º …2018, a que se refere o processo municipal n.º …2017, Alvará de Ocupação da Via Pública n.º …2018, a que se refere o processo municipal n.º …2018, Alvará de Ocupação da Via Pública n.º …2018, a que se refere o processo municipal n.º …2018, Alvará de Ocupação da Via Pública n.º …2018, a que se refere o processo municipal n.º …2018 e Alvará de Ocupação da Via Pública n.º …2019, a que se refere o processo municipal n.º …2018;
4) A licença referida em 3) apenas autorizava, para o local referido em 1), a seguinte tipologia de ocupação:
a. Tapume, grua e instalações de apoio, com início a ...-...-2018 e fim a ...-...-2019;
b. Andaime com início em ...-...-2018 e fim em ...-...-2019.»;
e como não provado que:
«a) A arguida, enquanto dona das obras levadas a cabo, e usando como referência o critério de um conhecimento médio exigível a quem se encontra nessa qualidade e, ainda, titular das Licenças de Ocupação da Via Pública n.ºs …2017, prorrogada pelo Alvará de Ocupação da Via Pública n.º …2018, …2018, …2018, …2018, …2019, tinha conhecimento da ocupação da via pública, nos termos do ponto 4. e da inexistência de alvará de licença que o permitisse;
b) Consciente de que não pode ocupar a via pública, sem alvará de licença para o efeito, a arguida, ao ter ocupado a via pública, nos termos do ponto 2), sem título emitido pela ..., representou como consequência possível ou provável da sua conduta a prática de um facto ilícito e punível, tendo-se conformado com a sua realização.».
Ora, do mero confronto destes factos se evidencia inexistir a apontada contradição.
Isto porque, na realidade, na factualidade provada se descrevem factos objetivos exteriores ou exteriorizados, ao passo que na factualidade não provada se inserem factos atinentes à disposição interior atribuída à arguida, subjacente àqueles factos objetivos.
Afirmar a verificação de contradição insanável entre a prova de uns e a não prova de outros seria o mesmo que afirmar que a prova dos factos consubstanciadores dos elementos objetivos típicos da contraordenação determinava a prova dos factos correspondentes ao respetivo elemento subjetivo, tudo redundando, na prática, numa imputação objetiva da responsabilidade contraordenacional, inadmissível à luz do princípio da culpa que a enforma, como expressamente previsto no art.º 8º do RGCO.
Inexiste, pois, a contradição na decisão sobre a matéria de facto que é invocada no parecer do Ministério Público, entre os factos provados e os factos não provados.
2.2.3. Do eventual erro notório na apreciação da prova
Nas alegações de recurso do Ministério Público afirma-se que a ocupação da via pública que estava a ser feita pela arguida era por demais extensa e evidente para que não fosse detectada por qualquer homem médio, colocado na posição da recorrente, titular da licença (…) até porque o local onde a ocupação estava a ser feita – na placa central da ... - e respectiva extensão – perímetro com cerca de 50 m2 - era bastante evidente.
No Parecer emitido pelo Ministério Público junto desta Relação defende-se que dos factos provados resulta «evidente» a desatenção ou indiferença da arguida neles revelada, porquanto «o cidadão médio sabe que numa obra, os inertes, o entulho e o lixo a retirar, sendo uma parte muito problemática de qualquer obra, não podem ser depositados na via pública, sendo necessário recorrer aos chamados Big Bags e ou aos contentores metálicos para recolha de resíduos.».
Poderia aqui divisar-se a invocação de erro notório na apreciação da prova, embora sem invocação expressa do vício, ao defender-se, na prática, que segundo as regras da experiência, a arguida não podia desconhecer a desconformidade entre a efetiva ocupação da via pública com o estaleiro da obra e o âmbito da licença camarária obtida para o efeito.
Sucede que o Tribunal a quo, com base na inquirição de duas testemunhas «envolvidas no processo de remodelação», concluiu que a arguida não teria tido conhecimento da infração cometida consistente na ocupação da via pública e da inexistência de alvará de licença que o permitisse; essas testemunhas «explicitaram, de forma clara, objetiva e espontânea, que, pese embora quem tratasse da submissão formal do pedido de licença fosse a recorrente, quem informava de qual era o espaço que necessitava e ia ajustando a sua ocupação material, era a entidade executante, não tendo a BB alguma vez constatado qualquer incumprimento, nem sequer representado essa possibilidade, uma vez que confiava inteiramente na entidade executante.».
E concluiu: «Ora, estes depoimentos conjugados com o facto de não ter sido trazida qualquer prova do conhecimento da ocupação da via pública em incumprimento do alvará de licença por parte da sociedade arguida, serviu para formar a convicção do Tribunal de que tal conhecimento não existia.».
Ainda que se possam suscitar dúvidas acerca desta conclusão, considerando, por um lado, que:
- sendo a arguida a requerente e titular da licença de ocupação da via pública, não pode deixar de ter conhecimento da abrangência da mesma e, bem assim, em termos gerais, como empresa do ramo imobiliário, das necessidades de ocupação de espaço para recolha dos resíduos resultantes da execução da obra;
E por outro lado que:
- não podia a arguida desconhecer que era sobre si que impendia a obrigação de verificar se os termos desse licenciamento estavam a ser respeitados, e não sobre o executante da obra ou qualquer outra entidade contratada pela arguida, nomeadamente para fiscalizar a execução da obra, como decorre do disposto no art.º 32º/1 do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras (doravante ROVPEO), tal como se afirmou na decisão recorrida;
mas também que:
- os depoimentos testemunhais referidos para sustentar o desconhecimento dos factos infratores foram prestados por FF e GG, que na ata de audiência de julgamento se identificam como engenheiros civis a prestar serviços para a arguida, pessoas, por isso, comprometidas com os interesses da arguida; e, por fim, que
- como tem vindo a entender-se em geral em processo penal, com transposição para o processo contraordenacional, a prova relativa aos factos interiores que integram os elementos subjetivos típicos, de crimes e contraordenações, raramente será direta (porventura apenas em caso de confissão), sendo, por regra, colhida a partir da leitura de prova indiciária;
ainda assim, não podemos concluir que ocorreu erro notório na apreciação da prova quando o Tribunal recorrido, com base na prova testemunhal produzida, à qual confere credibilidade, conclui não terem sido do conhecimento da arguida os factos em que se consubstanciou a infração contraordenacional.
Recorde-se que neste âmbito da apreciação de erro notório na apreciação da prova se questiona, não o conteúdo da prova em si, nomeadamente do que foi dito no depoimento ou nas declarações prestadas, cujo teor se aceita, mas a utilização que foi dada à referida prova, no sentido de a mesma suportar a demonstração de um determinado facto, na medida em que o tribunal valorou a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados.
E, na verdade, estamos perante a livre convicção do Tribunal a quo formada a partir de dois depoimentos testemunhais que, de acordo com um princípio de imediação e sem que seja notório algum choque com as regras de experiência e da normalidade, foram considerados credíveis no sentido de afastar o conhecimento por parte da arguida de que estava a decorrer a infração objeto do processo, ou seja, ficou o Tribunal recorrido convencido de que a arguida não sabia que a entidade executante por si contratada realizou ocupação da via pública em medida superior ao que havia sido licenciado.
Não podemos, pois, concluir pela verificação de erro notório na apreciação da prova.
*
2.2.4. Do erro na aplicação do Direito
Mas dito isto quanto à decisão sobre os factos, que deverá manter-se na ausência de verificação de algum dos vícios previstos no art.º 410º/2 do Código de Processo Penal, entendemos já ter já existido erro na aplicação do Direito, como se argumenta também no Parecer do Ministério Público junto desta Relação, no que concerne à interpretação e aplicação do disposto no art.º 32º/1 Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras (doravante, ROVPEO)8 e ao preenchimento dos elementos típicos da negligência.
Partamos, pois, da não prova de que a arguida tivesse tido conhecimento da infração, que teria sido cometida pela entidade executante, ou seja, pela empresa empreiteira que a arguida contratou para executar a obra e na qual, segundo alega, teria confiado quanto ao cumprimento das obrigações decorrentes da licença de ocupação da via pública que requereu enquanto dona da obra e que a si foi concedida.
Ainda assim, não poderia ser, como foi excluída a responsabilidade contraordenacional da arguida, e bem assim a sua culpa, sob a forma de negligência.
Expliquemos porquê.
O Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras (ROVPEO) «estabelece as regras a que obedece a ocupação do domínio público municipal, em qualquer área do território do ...», nomeadamente «com estaleiros de obras de edificação, promovidas pelo Município ou por qualquer outra entidade pública ou privada, utilizando tapumes, vedações, andaimes, condutas para descarga de entulhos, depósitos de materiais e entulhos, amassadouros, contentores, cargas e descargas, bombagens de betão, gruas, guindastes ou outros equipamentos ou instalações – art.º 2º/1 e 3 (negritos nossos).
Nos termos do disposto no art.º 7º/1 do ROVPEO «A ocupação da via pública ou de outros espaços públicos, nas situações definidas no artigo 2.º do presente regulamento, depende da atribuição de licença pela ..., (…).»
Estabelece depois o art.º 12º/4 e 5, do ROVPEO que:
«(…)
4- A ocupação de via pública objeto de licenciamento é titulada por alvará, o qual é emitido desde que se mostrem pagas as taxas devidas, nos termos do artigo 29.º do presente regulamento, e é condição de eficácia da respetiva licença.
5- Com a emissão do alvará de licença de ocupação de via pública é fornecida, ao requerente, uma cópia da planta da ocupação da via pública aprovada, onde é aposta, manual ou digitalmente, carimbo ou outro elemento que ateste a sua proveniência da ... por forma a facilitar a sua fiscalização.
(…)».
Nos termos do art.º 31º/1, d), i), do ROVPEO, sob a epígrafe «Sanções»:
«1 - Constituem contraordenações as infrações ao disposto no presente regulamento, nos termos dos números seguintes, sem prejuízo da responsabilidade civil, criminal e disciplinar em que incorram os respetivos agentes:
(…)
d) Encontram-se sujeitas a coima graduada entre 7 a 9 vezes o valor da retribuição mínima nacional, no caso de pessoa singular, e de 24 a 48 vezes o valor da retribuição mínima nacional, no caso de pessoa coletiva, as seguintes infrações:
i) A ocupação da via pública ou de outros espaços sem ser titulada pelo respetivo alvará de licença, nos termos do n.º 4 artigo 12.º; (…)»
Prevê o art.º 32º/1 do ROVPEO, sob a epígrafe «Imputabilidade das infrações» que:
«1- A responsabilidade contraordenacional pela infração prevista no ponto i) da alínea d) do n.º 1 do artigo anterior é do requerente da licença de ocupação da via pública ou do dono da obra, caso a licença não tenha sido requerida.
2- A responsabilidade contraordenacional pelas demais infrações previstas no presente regulamento é do titular do alvará de licença de ocupação da via pública.
3- O disposto nos números anteriores, não prejudica o direito de regresso do responsável contraordenacional, designadamente sobre o executante da obra.».
Ou seja, é sempre ao dono da obra ou requerente da licença, qualidades que no caso coincidem na arguida, titular do alvará de licença de ocupação da via pública, a quem é entregue cópia da planta de ocupação, que incumbe zelar pelo cumprimento das obrigações decorrentes do licenciamento para ocupação da via pública no decurso da obra.
É também sobre ele que recairá o sancionamento da infração às obrigações decorrentes dos limites desse licenciamento, sendo essas infrações punidas a título de contraordenação.
É hoje consensual e legalmente consagrada a responsabilidade das pessoas coletivas e equiparadas pelas contraordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das respetivas funções ou por causa delas, nos termos do art.º 7º/2 do RGCO.
Isto porque, sendo naturalmente incapazes de praticar a ação física, as pessoas coletivas não deixam de ser dotadas de consciência e vontade próprias, exteriorizadas através do modo de funcionamento da sua estrutura organizativa, sendo, pois, suscetíveis de culpa pela violação das normas de que são destinatárias e que visam proteger bens jurídicos9.
A sua responsabilidade pelas infrações cometidas há-de assim derivar dos comportamentos, ativos ou omissivos, levados a cabo por determinadas pessoas singulares ou físicas, que lhes são atribuídos segundo um certo modelo de imputação, legalmente definido.
Assim é que a expressão "órgãos no exercício das suas funções", utilizada no acima citado art.º 7º/2 do RGCO, definidora do modelo de imputação adotado para a responsabilidade contraordenacional, abrange, por interpretação extensiva, os trabalhadores ao serviço da pessoa coletiva, mas também os seus representantes ou mandatários, que são quem pratica ou omite os atos suscetíveis de censura contraordenacional, desde que atuem no exercício das suas funções ou por causa delas, exceto quando atuem contra ordens expressas ou no seu interesse exclusivo10.
Deste modo, como se conclui no Parecer 11/2013 da Procuradoria-Geral da República11, «A responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas assenta numa imputação direta e autónoma, quer o fundamento dessa responsabilidade se encontre num “defeito estrutural da organização empresarial” (defective corporate organization) ou “culpa autónoma por défice de organização”, quer pela imputação a uma pessoa singular funcionalmente ligada à pessoa coletiva, que nem sequer precisa de ser identificada nem individualizada.
«A imputação da infração à pessoa coletiva resulta de se considerar autor desta o sujeito que tiver violado (por ação ou por omissão) a proibição legal ou o dever jurídico cuja violação a lei comina com contraordenação, solução que é coerente com o facto de no Direito contraordenacional a ilicitude não assentar numa censura ético-jurídica mas sim na violação de um dever legal.».
Ao nível da imputação subjetiva, nos termos gerais previstos sob o art.º 8º/1 do RGCO, «só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.».
De acordo com o preceituado no art.º 31º/2 do ROVPEO «A tentativa e a negligência são puníveis sendo, nestes casos, os montantes mínimo e máximo das coimas previstas nos números anteriores reduzidos para metade.».
Nos termos do disposto no art.º 15° do Código Penal ex vi do art.º 32° do RGCO:
«Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a. Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime, mas atuar sem se conformar com essa realização;
b. Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.»
Do ponto de vista da culpa, diz-se ainda no Parecer 11/2013 da PGR já citado que:
«O ilícito de mera ordenação social corresponde a uma censura de natureza social e administrativa cujo fundamento dogmático é a subsidiariedade do Direito Penal e a necessidade de sancionar comportamentos ilícitos, mas axiologicamente neutros. Do ponto de vista teleológico, as contraordenações são uma medida de proteção da legalidade, o que justifica a maior flexibilidade na análise dos pressupostos da imputação, designadamente da culpa, que é diferente da culpa penal.» (negrito nosso).
Ora, postas estas premissas legais, e ante os factos dados como provados, que preenchem o tipo legal contraordenacional da infração prevista sob o art.º 31º/1,d), i) do ROVPEO, afigura-se-nos que não podia o Tribunal a quo deixar de proceder à imputação subjetiva dos mesmos à aqui arguida, pelo menos a título de negligência inconsciente, sendo de rejeitar por desconformes com a lei aplicável, os argumentos usados para a afastar.
Senão vejamos.
A decisão administrativa impugnada junto do Tribunal a quo, imputou à arguida factos configuradores, ao nível do elemento cognitivo, de uma situação típica de dolo, pois que lhe atribuiu o conhecimento da ocupação indevida da via pública e da inexistência de alvará de licença que o permitisse – a) dos factos não provados - , e ao nível do elemento volitivo, imputava-lhe a consciência de não poder ocupar a via pública, sem alvará de licença para o efeito, representando como consequência possível ou provável da sua conduta a prática de um facto ilícito e punível, tendo-se conformado com a sua realização – b) dos factos não provados.
Ou seja, a decisão administrativa imputou os factos subjetivamente à arguida a título de dolo eventual – art.ºs 8º e 32º, do RGCO, e 14º/3 do Código Penal -, imputação que, por via da decisão de facto proferida na sentença recorrida, seria afastada na fundamentação de direito da mesma decisão, não sem se pronunciar também pelo afastamento da negligência, aí constando a esse propósito o seguinte:
«(…)
também não resultou provado qualquer facto que pudesse levar o Tribunal a concluir que existiu uma conduta negligente por parte da recorrente, considerando que não resultou provado que a recorrente tivesse representado como possível a realização típica, mas atuado sem se conformar com essa realização (negligência consciente), nem que a mesma, não tendo representado a possibilidade de realização típica, não procedeu com o cuidado a que, conforme as circunstâncias, estaria obrigada e de que é capaz (negligência inconsciente).
Assim se entendeu, porquanto resultou provado que a recorrente, além de ter contratado uma empreiteira para executar a obra, tendo confiado nos seus serviços, ainda contratou uma empresa de fiscalização para verificar a conformidade de toda a obra, considerando-se, por isso, que a recorrente procedeu com o cuidado que lhe era exigível, tendo delegado funções a entidades especializadas.
Ademais, não se pode esperar que, além de ter contratado esta empresa fiscalizadora, fosse exigível à recorrente vigiar a obra permanentemente de forma a aferir se a empreiteira estava a utilizar o espaço previsto no alvará de licença.» (sublinhado nosso).
*
Todavia, uns parágrafos antes destes, expendeu-se o seguinte na mesma decisão:
«(…)
No entanto, argumenta a arguida que quem é responsável pela infração prevista é a entidade executante, isto é, a CC, uma vez que esta é que detinha os poderes de controlar a obra em curso, bem como a responsabilidade pelo cumprimento de todas as diretrizes definidas no projeto de obra e na licença de ocupação do espaço público.
Entende-se que não assiste razão, neste aspeto, à recorrente, porquanto a lei é clara, estipulando no artigo 32.º, n.º 1 do ROVPEO que “a responsabilidade contraordenacional pela infração prevista no ponto i. da alínea d) do n.º 1 do artigo anterior é do requerente da licença de ocupação da via pública ou do dono da obra, caso a licença não tenha sido requerida.”, acrescentando o n.º 3 que “o disposto nos números anteriores, não prejudica o direito de regresso do responsável contraordenacional, designadamente sobre o executante da obra.”.
Desta forma, resulta claro que a responsabilidade contraordenacional, a existir, será sempre imputada à recorrente, enquanto dona da obra, nos termos deste artigo, podendo, no entanto, a mesma reclamar do executante da obra o direito de regresso da quantia por si paga.» (sublinhado nosso).
Ou seja, reconhecendo que nos termos da lei aplicável, no caso por força do disposto no art.º 32º/1 do ROVPEO, nunca a arguida, enquanto dona da obra e requerente, titular, do alvará da licença de ocupação da via pública, poderia alijar a sua responsabilidade contraordenacional por violação dos termos desse licenciamento, apenas porque se serviu do trabalho de terceiros para executar a obra em causa, acaba por usar esse facto como fator de desresponsabilização por via da imputação subjetiva da infração.
Mas mais: aduz como argumento decisivo para rejeitar essa imputação subjetiva a título de negligência, o facto de a sociedade arguida ter encarregado uma outra entidade da fiscalização do cumprimento das suas obrigações pela entidade executante, quando o mesmo raciocínio que utilizou para afastar a argumentação da arguida no que toca à sua desresponsabilização quanto ao sucedido por ter contratado uma empresa para executar a obra, era igualmente devido em relação à contratação de entidade terceira para fiscalizar a execução da obra.
Isto porque, assim como não pode a arguida eximir-se da sua responsabilidade por esta infração pelo facto de não ser a executante da obra, cuja execução, por opção sua, entregou a “CC”, face ao expressamente previsto no art.º 32º/1 do ROVPEO, também não fica isenta dessa responsabilidade só porque optou igualmente, no âmbito da sua estratégia organizacional, por contratar uma outra empresa para realizar a fiscalização que permitiria constatar e evitar a infração, fiscalização que constitui sua incumbência legal na qualidade de dona da obra e titular do alvará de licença de ocupação da via pública.
Relembre-se que nos termos do citado art.º 32º/1 do ROVPEO:
«A responsabilidade contraordenacional pela infração prevista no ponto i) da alínea d) do n.º 1 do artigo anterior é do requerente da licença de ocupação da via pública ou do dono da obra, caso a licença não tenha sido requerida.».
E que no nº 3 do mesmo preceito se acrescenta: «O disposto nos números anteriores, não prejudica o direito de regresso do responsável contraordenacional, designadamente sobre o executante da obra.».
Ou seja, de acordo com a lei, expressa, é sempre ao dono da obra ou requerente da licença, qualidades que no caso coincidem na arguida, que incumbe zelar pelo cumprimento das obrigações decorrentes do licenciamento para ocupação da via pública no decurso da obra nos termos do art.º 12º/4 e 31º/1, d), i), do ROVPEO.
E não é porque esse responsável contratou alguém para fazer aquilo que era, nos termos da lei, da sua incumbência, que isso deixa de ser uma sua incumbência.
O mesmo é dizer que, se esse responsável à luz da lei aplicável opta por contratar uma terceira entidade para fiscalizar o cumprimento dessas obrigações por parte da entidade executante, assume necessariamente o risco de essa entidade fiscalizadora em quem confiou não executar devidamente o encargo da fiscalização que lhe atribui numa opção organizacional sua; nesse quadro, o mais que poderá almejar será o exercício do direito de regresso em relação a essas entidades que contratou para executar e para fiscalizar a execução, não havendo, pois, razão para distinguir uma de outra na aplicação do acima citado art.º 32º.
Era, pois, à arguida, necessariamente conhecedora do âmbito objetivo da licença que requereu e lhe foi concedida para ocupação da via pública – a ela e mais ninguém foi entregue cópia da planta de ocupação da via pública objeto do licenciamento -, que cabia encetar todas as diligências para que fosse observado esse âmbito, como decorrência do disposto expressamente no art.º 32º/1 do ROVPEO.
O raciocínio desenvolvido na decisão recorrida, permite, porém, fazer entrar pela janela (da imputação subjetiva) o que não se quis (pôde) deixar entrar pela porta (da imputação objetiva), desse modo se decidindo em contradição com a lei.
Como se diz na decisão recorrida, a lei é clara ao não autorizar a transferência para terceiros da responsabilidade contraordenacional por incumprimento do alvará de licença de ocupação da via pública emitido à dona da obra ou requerente do alvará, pelo que viola essa lei erigir a contratação desse terceiro em fator de isenção dessa responsabilidade por via da imputação subjetiva da contraordenação.
De resto, pergunta-se: em que é que pode considerar-se observado o dever de cuidado da arguida para que não ocorresse a infração, pela contratação de uma empreiteira que execute a obra de construção e uma outra empresa para que fiscalize o seu trabalho?
Se a observância do dever de cuidado neste particular se bastasse com a contratação de uma empresa para execução e outra para fiscalização da obra, então isso seria o mesmo que admitir a isenção da responsabilidade contraordenacional por essa via, em contrário do estabelecido expressamente na lei, e a consequente impunidade da conduta infratora.
Com efeito, estaria assim encontrada a forma de “contornar” e tornar letra morta a lei que impõe ao dono da obra e titular da licença de ocupação este tipo de obrigações na execução de obras com ocupação de espaço da via pública: bastaria a contratação de terceiros para a execução e fiscalização da obra, remetendo-se em seguida à ignorância acerca do modo como seria dada execução a essas obrigações, não se deslocando à obra e nada visualizando, alegando depois desconhecimento de tudo.
Sendo que, inexistindo fundamento legal para a responsabilização contraordenacional das entidades executante e fiscalizadora da obra, em face do teor expresso do já citado art.º 32º/1 do ROVPEO, visto não serem os titulares da licença de ocupação da via pública nem os donos da obra, nunca alguém responderia contraordenacionalmente pela violação cometida.
Nestes termos, somos a concluir que, ao delegar em terceiros a fiscalização do cumprimento da sua própria obrigação legal de ocupar a via pública nos estritos limites do alvará de licença que lhe foi, a si, concedido, desligando-se do que pudesse estar a acontecer nessa matéria, ao invés do considerado na decisão recorrida, comporta, outrossim, uma conduta, omissiva, de violação do dever de cuidado a que estava obrigada e de que era capaz.
E se é certo que não será exigível que a arguida esteja a todas as horas e a todos os minutos no local da obra para se certificar de que tudo corre em conformidade com a lei, não é menos certo que, sabendo-se a responsável nos termos da lei pelo cumprimento dos limites do alvará que a si foi concedido para a ocupação da via pública, lhe é exigido um especial cuidado, nomeadamente com visitas regulares à obra, a fim de efetuar essa verificação, não deixando de ser da sua responsabilidade a escolha das pessoas ou entidades em quem confia para fazer, por si, essa monitorização, e junto das quais poderá sempre exercer o assinalado direito de regresso.
Nessa medida, com os limites da factualidade dada como provada, não pode a arguida deixar de responder por essa contraordenação a título de negligência inconsciente, por não ter atuado com o cuidado que, segundo as circunstâncias, estava obrigada e de que era capaz, ainda que, por causa disso, não tenha chegado a representar a possibilidade de verificação da infração – art.º 15º/b) do Código Penal.
Procede, por isso, o recurso do Ministério Público.
3. Da coima a aplicar
Dito isto, importa fixar o valor da coima a aplicar.
De acordo com o preceituado no art.º 31º/2 do ROVPEO «A tentativa e a negligência são puníveis sendo, nestes casos, os montantes mínimo e máximo das coimas previstas nos números anteriores reduzidos para metade.».
Pelo que, considerando a moldura legal prevista no art.º 31º/1, d) do ROVPEO para a coima a aplicar a pessoas coletivas, de 24 a 48 vezes a retribuição mínima mensal garantida, teremos que encontrar a sua medida concreta na moldura de 12 a 24 vezes essa retribuição.
Atento o disposto no art.º 2º do D.L. 117/2018, de 27/10, esse valor estava fixado à data da prática dos factos em €600 (seiscentos euros) – art.ºs 3º/1 e 5, do RGCO.
Ou seja, a moldura abstrata da coima a considerar será de 7.200€ a 14.400€.
Preceitua o art.º 18º do RGCO acerca dos critérios de determinação da medida da coima que:
«1 - A determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contraordenação.
2 - Se o agente retirou da infração um benefício económico calculável superior ao limite máximo da coima, e não existirem outros meios de o eliminar, pode este elevar-se até ao montante do benefício não devendo, todavia a elevação exceder um terço do limite máximo legalmente estabelecido.
3 - Quando houver lugar à atenuação especial da punição por contraordenação, os limites máximo e mínimo da coima são reduzidos para metade.».
A ... entendeu na decisão administrativa que existiam «circunstâncias especialmente atenuadoras relevantes para a determinação da medida da coima, situando-a no seu limite mínimo reduzido para metade, nos termos do disposto no nº 3 do agora citado art.º 18º do RGCO e do art.º 72º do Código Penal, por ter adquirido a convicção de que a coima nessa medida afastaria futuramente a arguida da prática de novos ilícitos.
Ponderou, para tanto, o seguinte [transcrição]:
«(…) a ausência de antecedentes contraordenacionais nesta Câmara, o seu comportamento posterior, desconhecendo-se a prática de novas infrações, desta ou de outra natureza, o efeito preventivo pretendido com a aplicação de uma coima pode ser atingido com uma coima de montante inferior.
Efetivamente, revelar-se-ia manifestamente desproporcional, inadequada e injusta, a aplicação de uma coima de €14.400,00 (limite mínimo), para punir o comportamento em concreto.
Assim, afigura-se adequada a aplicação de uma coima especialmente atenuada e próxima do seu limite mínimo, que satisfaça ainda as legítimas expectativas da Comunidade na validade da norma e na ação da Autoridade administrativa, e se entende como suficiente para acautelar as finalidades da punição e para garantir que a arguida não voltará a ocupar a via pública sem estes estar munida do cometente título que a legitime, em cumprimento do Regulamento de Ocupação da Via Pública com Estaleiros de Obras.».
O Ministério Público não pôs em causa no decurso do processo a aplicação desta atenuação especial da pena, não vendo nós razões para não o fazer também nesta sede, subscrevendo-se para tanto a fundamentação da autoridade administrativa acabada de transcrever.
Na verdade, tudo apontando para que esta terá sido uma situação ocasional de infração, em que apesar de tudo a arguida terá confiado nas empresas por si contratadas para que observassem e fizessem observar as regras relativas à ocupação da via pública no decurso da construção da obra de que era dona, nos termos do disposto no art.º 72º/1 do Código Penal ex vi do art.º 18º/3 do RGCO, proceder-se-á a atenuação especial da coima, ficando desta feita o mínimo da moldura em 3.600€ ([12 RMMG:2] X 600€] e o máximo em 7.200€ [(24 RMMG:2) X 600].
Pois bem.
Estando em causa uma situação de negligência inconsciente, a forma de culpa mais leve, não se tendo apurado o benefício económico obtido, mas sem olvidar que a ocupação efetuada indevidamente da via pública diz respeito a uma área relevante com um perímetro de 50 m2, numa artéria de grande movimento em Lisboa, com reflexo no grau de ilicitude da conduta, entendemos adequada e justa uma coima de €5.000 (cinco mil euros).
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III- DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam as Juízas do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso e, em consequência, revogar a decisão recorrida, condenando a arguida pela prática de uma contraordenação prevista e punida pelo disposto nos art.ºs 2º/2 e 3, 7º/2, 31º/1, d) i), 2 e 32º/1, todos do ROVPEO aprovado pela Deliberação …/AM./2014, de 21/10/2014 da ..., numa coima de 5.000€ (cinco mil euros).
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Custas pela arguida/recorrida, com taxa de justiça de 3 (três) unidades de conta, - arts. 513º do Código de Processo Penal ex vi do art.º 92º/1 do RGCO, e 8º/9, do Regulamento das Custas Processuais, com referência à Tabela III anexa a este último diploma.
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Notifique.
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Lisboa,

23 de janeiro de 2024
Ana Cláudia Nogueira
Alda Tomé Casimiro
Sandra Oliveira Pinto
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1. Neste sentido a jurisprudência pacífica e constante, de que são exemplo os acórdãos do STJ de 15/04/2010 e 19/05/2010 acessíveis em www.dgsi.pt .
2, Vide o acórdão do STJ uniformizador de jurisprudência 7/95, de 19/19/1995, publicado no D.R., I.ª Série, A, de 28/12/1995.
3. Neste sentido, os acórdãos da Relação de Lisboa de 08/02/2012, relatado no processo n.º 272/11.5TTBRR.L1-4, e da Relação de Coimbra de 07/10/2015, relatado no processo n.º 1/14.1T8VLF.C1, ambos acessíveis em www.dgsi.pt.
4. Vide Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., pág. 729; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339; e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., pág. 77 e sgs..
5. No processo 418/11.3GAACB.C1.S1, 3.ª Secção, acessível em www.dgsi.pt .
6. In Código de Processo Penal anotado, II volume, 2ª Edição, 2000, editora Rei dos Livros, Lisboa, pág. 379.
7. Cfr. acórdãos do STJ de 13/03/1996, relatado no processo 48932, e de 11/05/1994, relatado no processo n.º 45987, citados por Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em processo penal, 5ª ed., 2002, Rei dos Livros, pág. 65.
8. Aprovado pela ..., deliberação 263/AML/2014, de 21/10/2014, Anexo B, publicado no Boletim Municipal da ..., 2º Suplemento ao Boletim Municipal de nº 1079.
9. Vide acórdão da Relação de Guimarães de 27/01/2020, relatado por Jorge Bispo no processo 510/19.6T8FAF.G1, acessível em www.dgsi.pt .
10. Neste sentido, além do acórdão da Relação de Guimarães citado na nota anterior, o Parecer da PGR 11/2013, que em seguida é citado no texto deste acórdão.
11. In https://www.dgsi.pt/pgrp .