Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
16506/20.2YIPRT.L2-7
Relator: ANA RODRIGUES DA SILVA
Descritores: CONTRATO
EMPREITADA
PAGAMENTO DO PREÇO
PROVA DOCUMENTAL
FACTURAS
FORÇA PROBATÓRIA
Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 02/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Texto Parcial: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Sumário: 1. O art. 44º do Cód. Comercial refere-se à força probatória dos livros de escrituração comercial, os quais podem ser admitidos em juízo a fazer prova entre comerciantes, em factos do seu comércio, em determinadas circunstâncias;
2. As facturas não são livros de escrituração comercial, não lhes sendo aplicável este regime probatório, mas sim o que resulta das normas do CC de direito probatório material;
3. A mera junção de facturas não permite dar como assente o fornecimento dos bens e ou serviços que constem das mesmas;
4. O contrato de empreitada tem natureza sinalagmática, na medida em que gera para o empreiteiro a obrigação de realizar a obra convencionada, e para o dono da obra a obrigação de pagar o preço acordado;
5. Inexistindo convenção em contrário quanto ao modo de pagamento, o preço apenas é devido após a realização e entrega da obra, cfr. art. 1211º do CC.
Decisão Texto Parcial:
Decisão Texto Integral: Acordam na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. A [ …., Lda ]  intentou a presente acção de injunção contra B e C  pedindo a condenação destes a pagar-lhe € 12 300,00, acrescidos de juros, alegando que, no âmbito da sua actividade, forneceu aos RR. diversos produtos e serviços, adjudicados de acordo com orçamentos, para obra sita na Rua ..., nº …., no …, freguesia e concelho de Loures, o que originou a emissão das duas facturas relativas a “arranjos exteriores”, não tendo aqueles procedido ao pagamento da respectiva contrapartida. Mais alega que a situação se trata de uma obrigação emergente de transacção comercial e que se trata de um contrato com consumidor.
2. Os RR. contestaram, impugnando a factualidade alegada pela A. e defendendo não ser aplicável aos autos o estabelecido no DL 62/2013 de 10/05.
3. Remetidos os autos à distribuição, foi proferido despacho convidando a A. a apresentar petição inicial onde concretize “quais os exatos termos do negócio jurídico celebrado com os réus, designadamente quais os “arranjos exteriores" concretamente acordados entre si e os réus e quais os por si levados a cabo” e ainda os motivos pelos quais se trata de uma transacção comercial.
4. Apresentou a A. nova petição inicial, tendo os RR. exercido o contraditório.
5. Os RR. requereram a apensação a estes autos de outro relativo às mesmas partes e com objecto idêntico, o que foi deferido.
6. Na mesma data, foi proferida sentença absolvendo os RR. da instância por ter sido usada de forma indevida o procedimento de injunção, situação que configura uma exceção dilatória inominada, de conhecimento oficioso, que obsta ao conhecimento do mérito da causa e dá lugar à absolvição da instância, nos termos dos artigos 576.º, n.º 2 e 577º do CPC.
7. Inconformada, a A. recorreu dessa decisão, tendo sido proferido acórdão julgando procedente a apelação, revogando a decisão recorrida e determinando o prosseguimento dos autos.
8. Regressados os autos à primeira instância, realizou-se audiência de discussão de julgamento, após o que foi proferida sentença absolvendo os RR. do pedido.
9. A A. interpõe recurso desta decisão, terminando as suas alegações de recurso com as seguintes conclusões:
“I. Por sentença que se recorre, o Tribunal ad quo, decidiu julgar a acção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu os Requeridos, aqui Recorridos, de todo o pedido, o que a Recorrente discorda na integra com tal decisão.
II. O presente Recurso incide sobre a decisão do douto tribunal a quo de considerar que o valor remanescente da factura n.º 19/51, de € 4.600,00, referente à construção de muros, bem como as facturas n.º 19/50 referente à ultima prestação do orçamento de arranjos exteriores, no valor de € 6.150,00 e a factura n.º 19/49, referente à segunda prestação do orçamento de arranjos exteriores, no montante de € 6.150,00, que têm por base o orçamento para arranjos exteriores n.º 125/2019 de 18/10/2019, não são devidas pelos Requeridos, em virtude de falta de prova pela Recorrente.
III. A Recorrente não pode concordar com a douta interpretação, pois juntou as facturas, as quais não foram objecto de reclamação, bem como o contrato de empreitada celebrado entre as partes, que ambos reconhecem e aceitam, cfr. Facto provado em 2 e ainda foi junto o orçamento dos arranjos exteriores, que também é aceite por ambos, cfr. Facto provado em 3.
IV) Não pode a Recorrente concordar com o facto considerado provado 10, cujo refere que “ os trabalhos descritos nos pontos 4 e 8 não foram concluídos pela Autora, pois através de vistoria ao local da obra foi visível que existia efectuado os trabalhos referidos no orçamento adjudicado, sendo que no máximo a tinta branca a levar nos muros ainda faltava uma demão com a conclusão da obra, nos acabamentos finais, que não foi possível executar em virtude da obra ter parado por falta de licenciamento.
V) Foi convencionado entre as partes que o pagamento seria efectuado com a emissão das respectivas facturas e dos esclarecimentos prestados pelo legal representante de parte não se infere, de maneira nenhuma, a inexistência de um acordo neste sentido, mas sim que o mesmo efectuou os trabalhos na obra e estes não lhe foram pagos pelos RR.
VI) Das declarações prestadas pelos Réus resulta inequívoco que existia um acordo entre as partes relativamente à realização dos trabalhos na obra, com contrato de empreitada e orçamentos adjudicados.
VII) As três facturas reclamadas pela A. aos RR., sem estas serem objecto de reclamação por estes, ora tal facto constitui um claro reconhecimento de dívida nos termos e para os efeitos do artigo 458.º do Código Civil, pelo que sempre competiria aos Recorridos demonstrar que o valor ali referido não respeitava os critérios acordados entre as partes, o que não aconteceu, sendo que os Recorridos não puseram em causa a força probatória das três facturas em devido tempo.
VIII) Pelo exposto, a decisão do Tribunal de 1.ª Instância merece reparo, devendo ser objecto de alteração o seu teor, existindo fundamento para a procedência do recurso da Recorrente.
IX) Mal andou ou interpretou o tribunal “a quo” o disposto nos artº 458º, 376º, 366º, 233º, e 342º do CC., artº 2º e 3º DL 290-D/99 de 02/08, na sua última redação que lhe foi conferida pelo DL 88/2009 de 09/04, sendo que estabelece o artigo 1167º b) do Código Civil, aplicável “ex vi” do artigo 1156º do mesmo diploma como uma das obrigações do mandante é o pagamento da retribuição que ao caso competir.
X) Dos factos resulta igualmente que os RR. não pagaram o valor dos serviços prestados pela A., colocando-se assim, na situação de devedor da mesma. (cfr. artigo 798º do Código Civil).
XI) No entendimento da apelante, o conteúdo dos documentos oferecidos impõe claramente uma outra decisão sobre a apreciação da matéria de facto dada como não provada, impondo que à mesma se tivesse respondido no sentido de a dar como provada e consequentemente configurasse a condenação dos Réus.
XII) Pelo que deve ser dado como provado que a apelante forneceu ao apelado os bens e serviços constantes nas Três facturas juntas aos autos, que emitiu em nome destes, respeitantes aos bens e serviços prestados na obra sita na Rua ..., n.º ….., …, Loures, conforme resulta do 2. facto provado.
XIII) O conjunto de todos estes factos, que são objectivos comuns do processamento de uma vulgar transacção, integradores das normas e práticas usuais do comércio que o tribunal a quo deveria, à luz do conhecimento da realidade comercial e do senso comum, ter interpretado no sentido oposto e ter concluído claramente pela existência do invocado fornecimento bens e serviços pela apelante aos apelados.
XIV) Ocorre, pois, manifesto erro na apreciação e valoração da prova, com violação do disposto nos arts. 712/1 a) e b), 515, 653/2 CPC e 376/1 CC, que este Tribunal pode reapreciar e modificar, dando como provados os factos acima indicados (cfr. Ac. RP no proc. 0722274 de 11/12/07), assim alterando a matéria de facto fixada pela instância e decidindo no sentido peticionado na acção, já que se verificam todos os factos que constituem a causa de pedir – art. 712/1 a) e b) CPC.
XV) Além de ser prática, uso e costume comercial, a emissão de factura referente e sustentando um qualquer acto de comércio, constitui obrigação legal – cfr. arts. 35, 28 e 3/3 e) Cód. IVA, sendo que as facturas emitidas pelos comerciantes são parte integrante da sua escrituração mercantil - arts. 29.º e sgs, nomeadamente 34.º e 35.º Cód. Comercial e fazem prova a favor do seu titular desde que a parte contrária não apresente prova que infirme aquela ou produza prova em contrário – art. 44/2 Cód.
Com, pelo que ocorre, pois, aqui uma inversão do ónus da prova previsto no direito civil – arts. 342.º e 344.º in fine CC – art. 3.º Cód. Comercial.
XVI) Os apelados não fizeram prova de que não receberam os bens e serviços descritos nas facturas reclamadas pagamento pela Apelante, pelo que há uma violação do disposto nos arts. 1, 2, 3, 6, 29, 34, 35 e 44/2 Cód. Com. e arts. 35, 28, 3/3 e) Cód. IVA e 342 e 344 in fine do CC.
XVII) Termos em que a apelação deve ser julgada procedente e decidir-se pela procedência da acção, condenando-se os apelados no pedido, nos termos peticionados.”.
8. Em sede de contra-alegações, os RR. defenderam a improcedência do recurso.
*
II. QUESTÕES A DECIDIR
Considerando o disposto nos arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC, nos termos dos quais as questões submetidas a recurso são delimitadas pelas conclusões de recurso, impõe-se concluir que as questões submetidas a recurso, delimitadas pelas aludidas conclusões, são:
- da impugnação da matéria de facto;
- da condenação dos RR. nos montantes peticionados.
*
III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Discutida a causa, o tribunal recorrido fixou a factualidade assente do seguinte modo:
i. Factos provados com relevância para a apreciação da causa (excluindo-se factos e considerações meramente conclusivas e jurídicas, bem como os factos desprovidos de relevância para a decisão da causa constantes dos articulados):
1. A Autora dedica-se entre outras, à actividade de construção civil;
2. No âmbito da sua atividade, acordou com o réu a realização de uma obra sita na Rua ... n.º …., …, Loures;
3. As partes acordaram na realização de trabalhos “extra” através do orçamento n.º 125/2019, aceite por ambas as partes;
4. Faziam parte deste orçamento a execução dos seguintes trabalhos:
a. Fazer desaterro para construção de saída na cava com placa de betão armado e rampa;
b. Fazer escadas de acesso à sala, alpendre e cozinha;
c. Ligação de placa à zona da churrasqueira;
d. Fazer entrada principal com escadas;
e. Acabar rampa de acesso à garagem e passadeira desde a rampa à entrada da moradia;
f. Colocação de pavimentos;
g. Arranjos de terras;
5. O preço constante desse orçamento era de 20.000,00€ acrescido de IVA a liquidar da seguinte forma: 10.000,00€ após a adjudicação; 5.000,00€ quando toda a estrutura fosse feita e 5.000,00€ quando o pavimento estivesse finalizado;
6. A autora emitiu as seguintes facturas n.º 19/50 e 19/49, no valor individual de 6.150,00€, referentes à última prestação e à segunda prestação do valor do orçamento referido no ponto 3 “supra”;
7. No decurso da obra foi ainda acordada pelas partes a execução pela autora de muros de vedação pelo valor global de 24.600,00€ (orçamento n.º 103/2019);
8. Esse orçamento previa a construção de um muro com 1,20 m de altura em blocos de cimento e pilares; o muro seria todo rebocado com cimento tipo roscone e pitado com demão de isolamento e duas demãos de cor branca e outra cor;
9. A autora emitiu a fatura n.º 19/51, no valor de 24.600,00€ (IVA incluído) referente a estes trabalhos;
10. Os trabalhos descritos nos pontos 4 e 8 “supra” não foram concluídos pela autora;
*
ii. Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa, não se apurou a seguinte factualidade:
A. Os requeridos pagaram o montante total de 22.300,00€ quanto aos trabalhos referentes ao orçamento n.º 125/2019;
B. Os requeridos pagaram o montante total de 20.960,00€ dos trabalhos acordados sob o poto 8 “supra”;
C. A autora despendeu para cobrança das facturas indicadas e com honorários de advogado a quantia de 250,00€.”.
*
IV. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Face ao teor das alegações de recurso e às questões a decidir, importa iniciar a sua análise de forma lógica, o que se passa a efectuar.
1. Da impugnação da matéria de facto:
Nos termos do art. 662º, nº 1 do CPC, “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.
Por outro lado, dispõe o art. 640º, nº 1 do CPC que “Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
Tal como vem sendo entendido pela Doutrina e pela Jurisprudência, resulta deste preceito o ónus de fundamentação da discordância quanto à decisão de facto proferida, fundamentando os pontos da divergência, o que implica a análise crítica da valoração da prova feita em primeira instância, abarcando a totalidade da prova produzida em primeira instância. Ou seja, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto tem como objectivo colocar em crise a decisão do tribunal recorrido, quanto aos seus argumentos e ponderação dos elementos de prova em que se baseou.
Quer isto dizer que incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição, indicar com exactidão as passagens da gravação em que funda o recurso, podendo transcrever os excertos relevantes. Por seu turno, o recorrido indicará os meios de prova que entenda como relevantes para sustentar tese diversa, indicando as passagens da gravação em que se funda a sua defesa, podendo também transcrever os excertos que considere importantes, isto sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal.
Tem sido entendido que, ao abrigo do disposto no art. 662º do CPC, a Relação tem os mesmos poderes de apreciação da prova do que a 1ª instância, por forma a garantir um segundo grau de jurisdição em matéria de facto. Donde, deve a Relação apreciar a prova e sindicar a formação da convicção do juiz, analisando o processo lógico da decisão e recorrendo às regras de experiência comum e demais princípios da livre apreciação da prova, reexaminando as provas indicadas pelo recorrente, pelo recorrido e na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto. Neste sentido, vide António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, pág. 283 e ss..
Por outro lado, no seguimento deste mesmo Autor, “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações:
a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635º, nº 4, e 641º, nº 2, al. b));
b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, nº 1, al. a));
c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.):
d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;
e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, ob. cit., págs. 168 e 169.
Entende a apelada que, no caso dos autos, não se mostra observado o ónus constante do art. 640º do CPC, pelo que deve ser rejeitada a impugnação da matéria de facto.
Analisadas as alegações, verifica-se que a apelante refere não concordar com o facto nº 10, alegando que “através de vistoria ao local da obra foi visível que existia efectuado os trabalhos referidos no orçamento adjudicado, sendo que no máximo a tinta branca a levar nos muros ainda faltava uma demão com a conclusão da obra, nos acabamentos finais, que não foi possível executar em virtude da obra ter parado por falta de licenciamento” (Cls. IV).
Mais alega que resulta das declarações de parte dos RR. a existência de um acordo relativamente ao pagamento dos montantes em falta (Cls. V e VI).
Alega ainda que as facturas apresentadas não foram objecto de reclamação pelos RR., o que “constitui um claro reconhecimento de dívida nos termos e para os efeitos do artigo 458.º do Código Civil, pelo que sempre competiria aos Recorridos demonstrar que o valor ali referido não respeitava os critérios acordados entre as partes, o que não aconteceu, sendo que os Recorridos não puseram em causa a força probatória das três facturas em devido tempo” (Cls. VII).
Termina a apelante a sua argumentação referindo que “o conteúdo dos documentos oferecidos impõe claramente uma outra decisão sobre a apreciação da matéria de facto dada como não provada”, pelo que “deve ser dado como provado que a apelante forneceu ao apelado os bens e serviços constantes nas Três facturas juntas aos autos, que emitiu em nome destes, respeitantes aos bens e serviços prestados na obra sita na Rua ..., n.º …, …, Loures, conforme resulta do 2. facto provado” (Cls. XI e XII).
Verifica-se, assim, que a apelante se insurge, por um lado, com o facto provado nº 10, com base na conjugação das declarações de parte e na inspecção realizada, e, por outro lado, com os factos não provados, pretendendo a inserção de um novo facto provado com base na valoração das facturas juntas aos autos.
Relativamente à impugnação do facto provado nº 10, a apelante limita-se a dizer que as declarações de parte e a inspecção efectuada determinariam apreciação diferente, nomeadamente que parte dos trabalhos foram realizados, sem que coloque efectivamente em causa a não conclusão dos trabalhos em causa. Isto é, não é possível apreender qual o sentido da impugnação pretendida, sendo certo que também não indica as passagens da gravação em que se funda e/ou quais os trechos dos depoimentos prestados que levariam a alterar a matéria de facto provada, nem indica sequer os termos exactos da alteração pretendida.
Impõe-se, pois, a conclusão que, quanto à impugnação do facto provado nº 10, a apelante não logrou cumprir o ónus de concretização e especificação constante do art. 640º, nº 1 do CPC, pelo que deve ser rejeitado este segmento da impugnação da matéria de facto.
No que se refere à inserção de um novo facto provado relativo ao fornecimento dos bens e serviços constantes das facturas juntas aos autos, verifica-se que a apelante invoca a violação de regras relativas ao ónus da prova, impondo-se assim a apreciação de tal questão.
Com interesse para esta matéria, convém recordar que foi dado como assente que a A. emitiu as facturas nºs 19/50, 19/49 e 19/51, relativas aos trabalhos acordados entre as partes, cfr. factos provados nºs 6 e 9.
Questão diversa é se essas facturas, não impugnadas pela R., podem levar a que se dê como provado o fornecimento dos bens e serviços nelas mencionados.
Alega a apelante as facturas em causa “fazem prova a favor do seu titular desde que a parte contrária não apresente prova que infirme aquela ou produza prova em contrário – art. 44/2 Cód. Com.”, levando a “uma inversão do ónus da prova previsto no direito civil – arts. 342.º e 344.º in fine CC – art. 3.º Cód. Comercial”.
Antes de mais, há que salientar que o art. 44º do Cód. Comercial se refere à força probatória dos livros de escrituração comercial, os quais podem ser admitidos em juízo a fazer prova entre comerciantes, em factos do seu comércio, em determinadas circunstâncias.
Ora, as facturas não são livros de escrituração comercial, não lhes sendo aplicável este regime probatório, mas sim o que resulta das normas do CC de direito probatório material.
Consequentemente, não existe qualquer inversão do ónus da prova na apreciação a efectuar quanto a esta questão.
Como se explica no Ac. TRG de 19-09-2019, proc. 36210/18.0YIPRT.G1, relator Ana Cristina Duarte, “Como é sabido, a factura é um documento comercial, contabilístico, correspondente a actos comerciais de venda e entrega de produtos, documento esse que é passado pelo vendedor.
(…)
O direito comercial não tem qualquer regra específica que liberte o vendedor do ónus probatório dos factos constitutivos do seu direito, donde, estar aquele submetido ao regime geral do art. 342.º-1 do CC.
“No domínio das relações comerciais, a apresentação de faturas não acarreta a inversão do ónus da prova previsto no direito civil – artigo 3.º do CComercial e 342.º e 344.º in fine do CC” – Acórdão da Relação de Lisboa de 04/02/2010, processo n.º 224338/08.7YIPRT.L1-8 (Carla Mendes), in www.dgsi.pt.”.
Face ao que se vem de expor, entende-se que a mera junção das facturas não permite dar como assente o fornecimento dos bens e ou serviços que constem das mesmas, independentemente de as mesmas terem ou não sido impugnadas. Na verdade, tais facturas, enquanto documentos particulares gozam, nos termos do disposto no art. 376º, nº 1, do CC, de força probatória plena quanto à materialidade das declarações atribuídas ao seu autor, se apresentados contra este. Sendo apresentadas pelo seu autor, como foi o caso, as facturas ficam sujeitas à livre apreciação do Tribunal, impondo-se ao seu emitente fazer prova da prestação dos serviços titulados nas facturas, o que não sucedeu no caso dos autos.
Por outro lado, importa referir que não decorre dos autos que o tribunal recorrido tenha violado o disposto no art. 574º, nº 1 e 2 do CPC e nos arts. 342º, nº 1 e 374º, nº 2, ambos do C. Civil, na medida em que valorou de forma correcta a prova carreada para os autos, impondo à A., ora apelante, o ónus de provar o fornecimento dos bens e serviços constantes das facturas juntas aos autos.
Do que se expôs resulta ainda a impossibilidade de alterar os factos não provados com base no conteúdo dos documentos oferecidos, como pretendido pela apelante.
Consequentemente, a pretensão da apelante com vista à alteração da matéria de facto mostra-se infundada, o que determina, e sem necessidade de ulteriores considerações, a improcedência da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
2. Da condenação dos RR. nos montantes peticionados:
Pretende a apelante a revogação da sentença recorrida, com a condenação dos RR. nos montantes peticionados na petição inicial, por entender que existe um reconhecimento de dívida em virtude de as facturas juntas aos autos não terem sido reclamadas, invocando, para tanto, o disposto no art. 458º do CC.
Nos termos do art. 458º, nº 2 do CC, “Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário”, dispondo o seu nº 2 que “A promessa ou reconhecimento deve, porém, constar de documento escrito, se outras formalidades não forem exigidas para a prova da relação fundamental”.
Este preceito faz presumir a existência de uma relação causal subjacente na medida em que nela se contém o reconhecimento unilateral de uma dívida. Esse reconhecimento não constitui obrigações, tendo apenas o efeito de inverter o ónus da prova da existência do crédito, mas não afastando o ónus de alegação dos factos essenciais alegados pelo credor.
Ora, este preceito não tem qualquer aplicação ao caso dos autos.
Com efeito, não resulta dos autos qual tenha sido a conduta dos RR. aquando do recebimento das facturas em causa nos autos, mas apenas as mesmas não foram pagas, o que inculca a ideia da sua não aceitação, bem como da não aceitação da obra.
Acresce que estamos no âmbito de um contrato de empreitada, o qual tem natureza sinalagmática, na medida em que gera para o empreiteiro a obrigação de realizar a obra convencionada, e para o dono da obra a obrigação de pagar o preço acordado.
Isto é, o pagamento do preço está relacionado com a obrigação da realização da obra, pelo que, inexistindo convenção em contrário quanto ao modo de pagamento, o preço apenas é devido após a realização e entrega da obra, cfr. art. 1211º do CC.
No caso dos autos, não foi apurada qualquer convenção em sentido contrário, sendo importante salientar que incumbia à apelante a prova de tal acordo, bem como da conclusão e entrega da obra.
Da inexistência desse acordo resulta que a exigibilidade do pagamento do preço esteja dependente da prévia aceitação da obra por parte do seu dono, expressa ou presumida, cfr. arts. 1211º, nº 2 e 1218º do CC.
Assim sendo, não resultando dos autos qualquer elemento de onde se possa extrair o reconhecimento da dívida por parte dos RR. ou a aceitação da obra, falece esta argumentação da apelante.
No mais, e uma vez que o enquadramento jurídico efectuado na sentença recorrida se mostra correcto, improcedem todas as conclusões da apelante em sentido contrário.
Pelo exposto, improcedendo todas as conclusões do recurso, impõe-se a manutenção da decisão recorrida.
As custas devidas pela presente apelação, na modalidade de custas de parte, ficam a cargo da apelante, cfr. art. 527º do CPC.
*
V. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
*
Lisboa, 6 de Fevereiro de 2024
Ana Rodrigues da Silva
Cristina Coelho
Paulo Ramos de Faria