Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
1032/18.8T8VNF-E.G1
Relator: JOÃO PAULO PEREIRA
Descritores: OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS
JUROS COMPULSÓRIOS
INCONSTITUCIONALIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Os juros compensatórios previstos no artigo 829.º-A, n.º 4, do Código Civil constituem uma sanção pecuniária compulsória legal, no âmbito das obrigações pecuniárias, que funciona automaticamente, sem necessidade de ser requerida e operando sem qualquer intervenção do juiz. A obrigação do respectivo pagamento, na parte devida ao Estado, não pode ser imputada ao credor/exequente, mas apenas ao devedor/executado.
II - Fundamento para a invocação de qualquer inconstitucionalidade é a existência de um concreto objecto normativo como alvo de apreciação – norma ou interpretação normativa aplicada – e não apenas o enunciar de normas e princípios constitucionais alegadamente violados.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães,

I – Relatório

A presente execução de decisão judicial condenatória, para pagamento de quantia certa, foi movida por “FGA - Fundo de Garantia Automóvel” contra ... para pagamento da quantia global de € 138.938,18 (dos quais € 77.505,59 correspondiam a indemnizações satisfeitas pela exequente ao lesado, € 5.461,85 a despesas com a instrução do processo, € 24.875,88 a juros de mora vencidos e 31.094,86 a juros compulsórios), acrescida de juros vincendos até efetivo e integral pagamento.
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O executado deduziu embargos, tendo no respectivo apenso sido proferida sentença, transitada em julgado, onde se decidiu:

a) homologar a redução do pedido executivo para o valor do capital de € 73.294,33 fixados na sentença e respectivos juros, absolvendo o Executado/ Embargante do capital e juros remanescente;
b) declarar prescritos os juros de mora e compulsórios vencidos até 14 de Fevereiro de 2013, ordenando o prosseguimento da execução para pagamento do capital de € 73.294,33 acrescido dos juros de mora e juros compulsórios vencidos a partir de 15 de Fevereiro de 2013.
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Em 18/11/2022 deu entrada em juízo requerimento assinado por ambas as partes, o qual denominaram de “transação”, com o seguinte teor:
«Fundo de Garantia Automóvel e ..., respectivamente Exequente e Executado, vêm aos autos em epígrafe, ao abrigo do disposto no artigo 806º do CPC, apresentar Transação por terem chegado a acordo quanto ao litígio em mérito, pela forma que segue:
1st
O Executado estava em dívida para com o Exequente na quantia global de € 107.605,01 (cento e sete mil seiscentos e cinco euros e um cêntimo).
2nd
Da referida quantia, o Executado já procedeu ao pagamento ao Exequente da quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros).
3rd
Assim, o Executado está, à presente data, em dívida para com o Exequente na quantia global de € 87.605,01 (oitenta e sete mil seiscentos e cinco euros e um cêntimo).
4th
A quantia exequenda em dívida, € 87.605,01 (oitenta e sete mil seiscentos e cinco euros e um cêntimo) será liquidada nas condições e datas melhor discriminadas no doc. 1, conforme Plano de Pagamento em Prestações.
5th
O Executado obriga-se a pagar tal quantia em 585 prestações, mensais e sucessivas, sendo as 584 primeiras prestações no valor de € 150,00 cada e a 585ª (última) no valor de €5,01, conforme Plano de Pagamento em Prestações.
6th
A falta de pagamento de qualquer das prestações, importa o vencimento imediato das seguintes, podendo o Exequente requerer a renovação da execução, aplicando-se o disposto no artigo 850º nº 4 CPC, nos termos do disposto no artigo 808º nº 1 do CPC.
7th
As custas em dívida a juízo serão suportadas pelo Executado, prescindindo ambas as partes de custas de parte.
8th
Pelo que requerem a extinção da instância, de acordo com os trâmites legais e processuais aplicáveis.».
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Por decisão de 15/06/2023 proferida pela Srª. Agente de Execução foi determinado o prosseguimento dos autos até efetivo e integral pagamento das despesas e honorários da AE, bem como ½ dos juros compulsórios devidos ao Estado.
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O executado apresentou em 21/06/2023 reclamação contra o prosseguimento da execução, onde defendeu que o valor indicado na transacção de € 107.605,01 incorporava já o total a pagar por si, pelo que nada mais teria de liquidar, até porque beneficiava também de apoio judiciário.
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Por despacho de 19/07/2023, devidamente notificado às partes e transitado em julgado, foi proferida a seguinte decisão quanto à aludida reclamação:

a) Quanto às despesas e honorários da Sr. Agente de Execução foi decidido que a execução não podia prosseguir para o seu pagamento, tendo nesta parte sido julgada procedente a reclamação do Executado.
b) Quanto aos juros compulsórios, foi decidido que a responsabilidade pelo seu pagamento cabe ao executado, pelo que a reclamação foi julgada improcedente nesta parte.
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Em 05/11/2023 o exequente foi, de novo, notificado pela Srª. Agente de Execução para, no prazo de 10 dias, comprovar «o depósito do montante (…) relativo a 1/2 dos juros compulsórios devidos ao Estado…», tendo respondido em 21/11/2024 invocando não ser por si devida, mas sim pelo executado, de acordo com a referida decisão de 20/07/2023.
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Notificado o exequente para, no prazo de 10 dias, informar se os juros compulsórios foram incluídos no plano de pagamento em prestações, pelo mesmo foi respondido em 10-01-2025 que os mesmos não foram incluídos no plano de pagamento em prestações, mas antes nas custas em dívida a juízo, que seriam todas as despesas que do processo resultassem, pelo que o correspondente valor deveria ser liquidado directamente pelo executado à Srª. Agente de Execução.
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Por sua vez, o executado apresentou requerimento em 28/01/2025 invocando que o acordo incluiu todos os valores, incluindo os alegados juros compulsórios, não podendo estes estar incluídos nas custas em dívida.
Reiterou, assim, que não tem de suportar qualquer outro valor para além da quantia global de € 107.605,01, pelo que o pagamento dos juros compulsórios cabe ao exequente.
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Foram os autos com vista ao M.P., que promoveu o seguinte:
«No que concerne aos juros compulsórios, resulta dos autos que o acordo de pagamento celebrado entre executado e exequente não incluiu os juros compulsórios.
Por outro lado, também resulta da lei que a responsabilidade pelo pagamento de tais juros é do executado e não do exequente (cfr. artigo 716.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
Assim sendo, tendo ocorrido acordo no pagamento da quantia exequenda em prestações, cabia à Sr.ª Agente de Execução proceder à liquidação dos juros compulsórios, notificando o executado de tal liquidação, conforme determinado pelo n.º 3 do artigo 716.º do Código de Processo Civil.
Face ao exposto, requer-se que:
- se indefira o requerido pelo executado, nesta parte; e
- se notifique a senhora Agente de Execução em conformidade e para diligenciar pela emissão do respetivo DUC relativo aos juros compulsórios devidos ao Estado e que, após, seja o executado notificada para, no prazo de dez dias, proceder e juntar aos autos o respetivo comprovativo de pagamento.».
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O exequente também se pronunciou sobre o requerimento de 28/01/2025 apresentado pelo executado (requerimento de 24-02-2025), reiterando, em suma, o que havia já invocado em 10/01/2025.
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Em 16/03/2025 foi proferido despacho com o seguinte teor (na parte que aqui releva):

«Reclamação apresentada pelo Executado - Ref.ª ...63, de 28/01/2025
No que concerne aos juros compulsórios, concorda-se integralmente com a posição vertida na douta promoção do Ministério Público, uma vez que resulta dos autos que o acordo de pagamento celebrado entre executado e exequente não incluiu os juros compulsórios (veja-se acordo junto em 18-11-2022 sob a ref.ª ...45).

Conforme já decidido, em 19-07-2023, (despacho que neste segmento decisório há muito se mostra transitado em julgado):
« B) Quanto aos juros compulsórios:
Os juros compulsórios são, indubitavelmente da responsabilidade do Executado, cabendo-lhe o seu pagamento.
Assim e na senda da douta promoção antecedente, deverá o Executado ser notificado para, no prazo de dez dias, comprovar nos autos o pagamento dos juros compulsórios devidos ao Estado, sob pena de, o não fazendo, se requerer o oportuno cumprimento do art 35º, do RCP (envio de certidão à AT paras efeitos de execução fiscal).
Seja como for a execução, extinta pelo acordo de pagamento em prestações, também não pode prosseguir apenas para o pagamento dos juros compulsórios, devendo, nesse caso, os mesmos, tal como consta da douta promoção ser cobrados em execução fiscal.
(…)
Ordeno à Sr. (ª) Agente de Execução que informe, face ao expediente de 27.6.2023, se foram já satisfeitos os juros compulsórios, ou se os mesmos foram incluídos no plano de pagamento em prestações.
Na hipótese negativa, deverá o Executado ser notificado para, no prazo de dez dias, comprovar nos autos o pagamento dos juros compulsórios devidos ao Estado, sob pena de, o não fazendo, se requerer o oportuno cumprimento do art 35º, do RCP (envio de certidão à AT paras efeitos de execução fiscal).»
Daí que a Sr.(ª) Agente de Execução tenha notificado o Executado para o pagamento dos juros compulsórios, sendo que já em 20-12-2023 solicitava informação sobre a data do trânsito da sentença exequenda para proceder a esse cálculo.
Assim, neste ponto não assiste qualquer razão ao Executado, devendo a Sr.(ª) Agente de Execução em conformidade e para diligenciar pela emissão do respetivo DUC relativo aos juros compulsórios devidos ao Estado e que, após, seja o executado notificada para, no prazo de dez dias, proceder e juntar aos autos o respetivo comprovativo de pagamento.
(…)».
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Inconformado com esta parte do despacho, dele interpôs o executado o presente recurso, pugnando pela sua revogação e pela sua substituição por outro que o desonere do pagamento dos juros compensatórios.

Para o efeito, formulou as seguintes conclusões:
«1ª Vem o presente recurso interposto da despacho que, julgando parcialmente procedente a reclamação, no que concerne aos juros compulsórios, decidindo que “neste ponto não assiste qualquer razão ao Executado, devendo a Sr.ª Agente de Execução em conformidade e para diligenciar pela emissão do respetivo DUC relativo aos juros compulsórios devidos ao Estado e que, após, seja o executado notificada para, no prazo de dez dias, proceder e juntar aos autos o respetivo comprovativo de pagamento”.”
2ª Com o devido respeito, existe discordância do Recorrente em face do despacho no que concerne a este ponto “quanto aos juros compulsórios”.
3 ª Na verdade e com o devido respeito, entende o ora Recorrente não serem devidos pelo mesmo quaisquer juros, porquanto os mesmos juros compulsórios foram incluídos no plano de pagamento em prestações, ao contrário do alegado pelo Exequente.
4ª Na verdade, ao contrário do alegado pelo Exequente, uma vez mais, o acordo incluiu todos os valores, incluindo os alegados juros compulsórios, que, salvo melhor entendimento, também o entendimento da Sr.ª Agente de Execução de 26-01-2023 e considerada esta hipótese positiva, os mesmos (juros compulsórios) foram incluídos no plano de pagamentos, sendo a responsabilidade pelo seu pagamento do Exequente.
5ª Também na esteira do art.º 721.º e 540.º, ambos do CPC, dever-se-á interpretar no sentido da responsabilidade em causa ser imputada ao Exequente, tanto mais que "os embargos de executado foram parcialmente procedentes, que o pedido executivo fora reduzido para o valor do capital de €73.294,33, que o Embargante e o Embargado foram condenados nas custas, na proporção dos respetivos decaimentos, sem prejuízo do direito da proteção jurídica de que (eventualmente) beneficiem," o nosso entendimento não poderia ser outro: o ora Recorrente e Executado não tem de suportar qualquer outro valor para além da quantia global de € 107.605,01 (cento e sete mil seiscentos e cinco euros e um cêntimo).
6ª In fine, o plano de pagamentos em prestações e os termos da Transação apresentados pelo Exequente como Documento 1 - Informação junto aos presentes autos a fls., permitem aferir, ao contrário do alegado pelo Exequente, que os alegados juros compulsórios foram incluídos no plano de pagamento em prestações, pelo que serão devidos pelo mesmo Executado, ora Recorrido.
7ª Poderão ainda estar em causa princípios constitucionais: “Princípio do Estado de Direito Democrático (artigos 2.º e 9.º, alínea b), ambos da CRP); Princípio do Acesso ao Direito e da Tutela Jurisdicional Efectiva (art.º 20. º , da CRP); o Princípio da Igualdade (art. º 13. º , da CRP); o Princípio da Força Jurídica dos Preceitos Constitucionais e da Inadmissibilidade de Restrições aos Direitos, Liberdades e Garantias (art.º 18.º, da CRP); Princípio da Função Jurisdicional (art.º 202.º, da CRP); e da Justiça e da Fundamentação dos actos judiciais, consagrado no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”, que se invocam para os devidos e legais efeitos.
8 ª Por outro lado, ao ora Recorrente poder-se-á ter vedado a possibilidade do exercício pleno do contraditório e da sua defesa, ao valorar, sem cabal contraditório em audiência de julgamento para o efeito, o alegado pelo Exequente.
9ª E acrescerão as alegadas inconstitucionalidades invocadas.
10ª Está assim, pois, verificado o circunstancialismo que deverá levar à procedência do presente Recurso.».
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O exequente apresentou resposta às alegações de recurso do executado, considerando que o despacho objecto do recurso foi proferido em conformidade a correta aplicação do direito e invocando que o pagamento dos juros compulsórios não foi incluído no plano de pagamento em prestações, encontrando-se estes juros abrangidos pela parte das custas em dívida a juízo, que corresponderiam a todas as despesas que do processo resultassem, pelo que a responsabilidade do pagamento dos juros compulsórios devidos ao Estado cabe ao executado.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, em separado e com efeito meramente devolutivo.
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Nesta Relação foi considerado o recurso corretamente admitido e com o efeito legalmente previsto.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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II – Das questões a decidir

O âmbito dos recursos, tal como resulta das disposições conjugadas dos art.ºs 635.º, n.º 4, 639.º, n.ºs 1 e 2 e 641.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil (doravante, CPC), é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente.
Isto, com ressalva das questões de conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado ou das que se prendem com a qualificação jurídica dos factos (cfr., a este propósito, o disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 663.º, n.º 2 e 5.º, n.º 3 do CPC).
Assim, a principal questão que importa apreciar e decidir, neste recurso, é a seguinte:
- saber a quem cabe a responsabilidade pelo pagamento dos juros compensatórios e se os mesmos se poderão ou não considerar incluídos no plano de pagamento acordado entre exequente e executado.
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III – Fundamentação

III – I. Da Fundamentação de facto
Os factos que aqui importa considerar e que, em função dos elementos constantes dos autos, se mostram provados, são os acima descritos no relatório desta decisão, os quais, por razões de economia processual, se dão aqui por integralmente reproduzidos.
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III - II. Do objeto do recurso
Passemos, então, ao tratamento das questões enunciadas.
O recorrente apresentou em 28/01/2025 requerimento invocando que o acordo de pagamento em prestações subscrito pelas partes, indicado supra e junto aos autos de execução em 18/11/2022, contém todos os valores por si devidos, incluindo os juros compulsórios.
Entendendo este requerimento como uma reclamação, a 1ª. Instância proferiu decisão sobre esta pretensão do executado, indeferindo a mesma e concluindo, ao invés, que o aludido acordo de pagamento não incluiu os juros compulsórios, pelo que deveria ser notificado para, no prazo de dez dias, comprovar nos autos o pagamento dos juros compulsórios devidos ao Estado, sob pena de, o não fazendo, se requerer o oportuno cumprimento do art 35º, do RCP (envio de certidão à AT paras efeitos de execução fiscal).
Além do mais, nesta decisão foi invocado, ainda, um anterior despacho sobre a questão, datado de 19-07-2023, já transitado em julgado, onde se decidiu então que «Os juros compulsórios são, indubitavelmente da responsabilidade do Executado, cabendo-lhe o seu pagamento.».
Não obstante existir já um despacho prévio sobre a mesma questão atribuindo essa responsabilidade ao executado, o qual produziu caso julgado formal, atendendo a que foi entretanto apresentada pela Srª. Agente de Execução nova liquidação e que foram invocados por aquele outros fundamentos distintos dos inicialmente aduzidos, irá passar-se a conhecer do objecto do presente recurso.
Para o efeito, comecemos previamente que analisar a natureza e escopo dos juros compensatórios.
Os juros compensatórios encontram-se previstos no n.º 4 do art.º 829.º-A do Cód. Civil, que estabelece que “Quando for estipulado ou judicialmente determinado qualquer pagamento em dinheiro corrente, são automaticamente devidos juros à taxa de 5% ao ano, desde a data em que a sentença de condenação transitar em julgado, os quais acrescerão aos juros de mora, se estes forem também devidos, ou à indemnização a que houver lugar”.
Tratam-se de uma sanção pecuniária compulsória legal no âmbito das obrigações pecuniárias que funciona automaticamente, sem necessidade de ser requerida (cfr. João Calvão da Silva, in Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, 1987, Coimbra, pág. 456).
E compreende-se que assim seja, operando sem qualquer intervenção do juiz, pois os juros compulsórios não têm natureza indemnizatória, servindo antes o escopo de pressionar ou até forçar ou compelir (como, aliás, resulta etimologicamente da denominação dada pelo legislador) ao cumprimento da obrigação que impende sobre o devedor, desmotivando um eventual incumprimento e, assim, assegurando e reforçando, também, o respeito e o acatamento das decisões judiciais e, em suma, o prestígio da justiça (neste sentido, vd. o Acórdão do STJ de 23/01/2003, proc. nº. 02B4173, relatado pelo Cons. Araújo Barros, in www.dgsi.pt).
Sendo automáticos e sem necessidade de intervenção das partes ou do próprio juiz, a sua liquidação não viola quaisquer direitos de defesa do devedor, nomeadamente o exercício do direito ao contraditório, podendo este apenas reclamar de alguma eventual desconformidade na respectiva nota.
Aquele duplo escopo justifica, ainda, que a lei faça reverter os juros compulsórios, em partes iguais, para o credor e para o Estado, pois caso contrário, se tivessem a natureza de indemnização moratória, destinar-se-iam integralmente ao credor.
No caso em apreço, resulta da liquidação efectuada pela Srª. Agente de Execução que apenas se encontra a ser reclamada ao aqui executado a parte dos juros compensatórios destinada ao Estado, correspondente, como vimos, a 50% da totalidade.
Ora, no tocante a esta parte, o montante em questão não se encontra na disponibilidade do credor (aqui exequente), não podendo por isso ser incluídos em qualquer acordo de pagamento em prestações celebrado entre executado e exequente, nem ficar a cargo deste último, uma vez que não se trata de um crédito do exequente.
Aliás, conforme se pode ver pela simples análise dos termos do concreto acordo firmado pelas partes e junto aos autos, ao contrário do que parece entender o executado, não resulta do mesmo, expressa ou implicitamente, qualquer menção aos juros compulsórios, nomeadamente a estipulação de que a responsabilidade pelo seu pagamento passe a caber ao exequente, ou que esteja de qualquer forma aí contemplado.
Sobre esta questão da responsabilidade pelo pagamento dos juros compulsórios escreveu J. H. Delgado de Carvalho, em artigo publicado pelo IPPC 19/05/2023, “Juros compulsórios: o problema da precipuidade” o seguinte: «a obrigação de pagamento dos juros compulsórios não é da responsabilidade do credor exequente ou reclamante, dado que o sujeito passivo da obrigação de pagamento daqueles juros é a parte vencida na ação na qual foi proferida a sentença em execução ou, por outras palavras, a parte que tiver sido condenada quanto ao objeto do litígio (cf. art.º 829.º-A, n.º 4, do CC), salvo acordo em contrário das partes. Assim, o responsável pelo pagamento dos juros compulsórios é sempre o executado.».
Defende, ainda, o executado que é aplicável ao caso em apreço o disposto nos arts. 721.º e 540.º do C.P.C., que estabelecem, respectivamente, que «Os honorários devidos ao agente de execução e o reembolso das despesas por ele efetuadas, bem como os débitos a terceiros a que a venda executiva dê origem, são suportados pelo exequente, podendo este reclamar o seu reembolso ao executado nos casos em que não seja possível aplicar o disposto no artigo 541.º.» (n.º 1) e que «Os mandatários judiciais e técnicos da parte vencedora podem requerer que o seu crédito por honorários, despesas e adiantamentos seja, total ou parcialmente, satisfeito pelas custas que o seu constituinte tem direito a receber da parte vencida, sendo sempre ouvida a parte vencedora.».
Porém, como se depreende facilmente do acima exposto, os juros compulsórios não se inserem em nenhuma destas categorias, não se tratando nem podendo ser equiparados a honorários e despesas efectuadas pelo Agente de Execução ou por mandatários judiciais e técnicos, nem tão-pouco se enquadram nas custas e nas custas de parte (como defende o exequente na sua resposta às alegações do executado e como também parece querer invocar o recorrente, ao escudar-se no benefício do apoio judiciário de que goza, para justificar não ter que pagar quaisquer outras quantias para além das fixadas no acordo de pagamento).
Na verdade, como também refere Delgado de Carvalho no mesmo artigo, «Os juros compulsórios a que aludem o artigo 13.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do RPOP e o artigo 829.º-A, n.º 4, do CC não são nem juros moratórios, nem integram o conceito de custas processuais, nomeadamente, como encargos ou custas de parte (cfr. artigo 3.º do RCP); eles fazem parte da dívida exequenda, embora sejam um acréscimo legal autónomo.
(…)
Por conseguinte, os juros correspondentes à sanção legal prevista no artigo 13.º, n.º 1, alínea d), 2.ª parte, do RPOP e no artigo 829.º-A, n.º 4, do CC não gozam da regra de precipuidade (cfr. artigo 541.º do CPC); à vista disso, aqueles juros só podem ser pagos pelo executado, não pelo credor (exequente ou reclamante).».
Em conformidade com o exposto, conclui-se de forma clara que a obrigação de pagamentos dos juros compensatórios não pode ser imputada ao exequente, mas apenas ao executado/recorrente, como bem decidiu a 1ª. Instância.
É ao Agente de Execução que compete liquidar os juros compulsórios e notificar o executado dessa liquidação, para que este proceda ao pagamento no prazo que lhe for fixado (cfr. art.º 716.º, n.º 3, do CPC), como sucedeu no caso concreto.
Na falta desse pagamento, compete à secretaria judicial promover a entrega à administração tributária da certidão daquela liquidação, juntamente com a decisão transitada em julgado que constitui título executivo quanto a estes montantes.
Improcedem, assim, as respectivas conclusões de recurso apresentadas pelo recorrente.
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Nas conclusões 7ª e 9ª o recorrente refere invocar inconstitucionalidades, tendo para o efeito escrito o seguinte: «Poderão ainda estar em causa princípios constitucionais: “Princípio do Estado de Direito Democrático (artigos 2.º e 9.º, alínea b), ambos da CRP); Princípio do Acesso ao Direito e da Tutela Jurisdicional Efectiva (art.º 20. º , da CRP); o Princípio da Igualdade (art. º 13. º , da CRP); o Princípio da Força Jurídica dos Preceitos Constitucionais e da Inadmissibilidade de Restrições aos Direitos, Liberdades e Garantias (art.º 18.º, da CRP); Princípio da Função Jurisdicional (art.º 202.º, da CRP); e da Justiça e da Fundamentação dos actos judiciais, consagrado no artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa”, que se invocam para os devidos e legais efeitos.».
No entanto, como se vê, limita-se a elencar os referidos princípios constitucionais, sem fazer alusão expressa ou implícita a normas legais e sua interpretação que considere em concreto ter violado aqueles princípios.
Ora, como tem vindo a ser entendido de forma unânime pelos nossos tribunais, um dos pressupostos para a invocação de qualquer inconstitucionalidade é a existência de um objecto normativo – norma ou interpretação normativa aplicada – como alvo de apreciação. Também para a admissão de qualquer recurso para o Tribunal Constitucionalidade este pressuposto é fulcral, juntando-se ao mesmo, entre outros, a suscitação prévia da questão de constitucionalidade normativa, de modo processualmente adequado e tempestivo, perante o tribunal a quo (artigo 280.º, n.º 1, alínea b), da CRP e artigo 72.º n.º 2 da LOTC).
Porém, o recorrente limitou-se a invocar uma pretensa desconformidade com os citados princípios e normais constitucionais, sem fundamentação concreta em qualquer segmento normativo ou interpretação aplicados, não tendo tão-pouco explicitado em que medida se poderia entender afetados os aludidos preceitos e princípios constitucionais.
Só o fazendo poderia suscitar o dever de pronúncia sobre esta questão. Na verdade, a identificação da inconstitucionalidade deve ser feita em termos de o Tribunal «a poder enunciar na decisão, de modo a que os respetivos destinatários e os operadores do direito em geral fiquem a saber que essa norma não pode ser aplicada em tal sentido» (cfr., entre muitos, o Acórdão n.º 367/94, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt).
Como se decidiu no Ac. da R.G, de 07/10/2021 (Proc.º n.º 1782/20.9T8BRG.G1, Relatora: Des. Maria Leonor Barroso), objeto do recurso é sempre a (in)constitucionalidade de uma norma e não de uma decisão judicial.
O juízo incide apenas sob a norma aplicada ou não-aplicada no processo (art.º 79.º-C, n.º 1, da LOTC). O que é uma decorrência da prejudicialidade da questão (o objecto do processo não é esse, a inconstitucionalidade é instrumental) e do princípio processual do pedido – Jorge Miranda, “O Regime de Fiscalização Concreta da Constitucionalidade em Portugal, CJO, Instituto de Ciências Jurídico-políticas, p. 10; acórdão do TC de 10-03-2010, processo 11/10, 1ª Secção, Relator Cons. Carlos Pamplona de Oliveira, www.dgsi.pt (citados na decisão identificada).
Prossegue, ainda, o mesmo acórdão da Relação de Guimarães: “Suscitar a questão da inconstitucionalidade não equivale a sindicar a decisão impugnada ou os seus fundamentos. Na verdade, a parte tem o dever de: (i) identificar e pedir a desaplicação da norma ordinária que considera inconstitucional e (ii) indicar o princípio constitucional violado.”.
Nada disto foi feito pelo recorrente.
Consequentemente, não tendo sido cumprido o ónus de suscitação de uma verdadeira questão de constitucionalidade normativa, este tribunal não pode tomar conhecimento da questão (vd., ainda, o Ac. do S.T.J, de 23-01-2024, Proc.º n.º 7962/21.2T8VNG.P1.S1; Rleatora: Cons. Maria Clara Sottomayor).
De todo o modo, a entender-se, no entanto, que o recorrente pretende referir-se à aplicação do n.º 4 do art.º 829.º-A do Cód. Civil e à interpretação de que o pagamento dos juros compulsórios aí previstos, na parte devida ao Estado, é da responsabilidade do devedor, facilmente se conclui que não se verifica qualquer violação dos referidos princípios e normas constitucionais.
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Improcede, pois, a apelação na totalidade.
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IV – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores da 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, manter o despacho recorrido.
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Custas da apelação pelo Apelante, por ter ficado vencido no recurso (art.ºs 527.º e 529.º do CPC).
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Notifique.
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25/09/2025

Relator: João Paulo Pereira
1.ª Adjunta: Maria Amália Santos
2.ª Adjunta: Elisabete Coelho de Moura Alves
(assinado eletronicamente)