Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | MARIA GORETE MORAIS | ||
| Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO ÓNUS DE IMPUGNAÇÃO ANÁLISE CRÍTICA DA PROVA REAPRECIAÇÃO DA PROVA REJEIÇÃO DE RECURSO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 09/25/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE COM * DEC VOT | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I- O recorrente que pretenda impugnar validamente a decisão sobre a matéria de facto, ao enunciar os concretos meios de prova que, na sua perspetiva, conduzem a uma decisão diversa, deve fundar tal pretensão numa análise crítica de todos os meios de prova produzidos sobre a materialidade objeto dessa impugnação, não bastando, quando esteja em causa prova pessoal, limitar-se a reproduzir excertos de depoimentos/declarações produzidos na audiência final. II- O artigo 1371º do Código Civil estabelece uma presunção de compropriedade das paredes ou muros que sejam divisórios, aplicando-se aos casos em que a parede ou muro não pertence apenas a um dos proprietários confinantes, já que, nesta última situação, o que pode ocorrer é uma compropriedade forçada, nos termos previstos no artigo 1370º do mesmo diploma. III - A simples prova de a construção do muro ter sido feita a expensas de um dos proprietários, quando o muro é divisório, não implica, só por si e sem mais, o afastamento da presunção de compropriedade. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: I- RELATÓRIO AA e BB intentaram a presente ação declarativa sob a forma de processo comum contra CC e DD peticionando a: a) Condenação dos réus a reconhecer que o muro é meeiro, da propriedade dos autores e dos réus, na proporção de metade; b) Caso assim não se entenda, a condenação dos réus a reconhecerem que o muro é meeiro, da propriedade dos autores e réus na proporção de metade, por via da comunhão forçada, de acordo com o disposto no artigo 1370.º do Código Civil, devendo para o efeito os autores pagarem metade do valor que vier a ser apurado. Para substanciar tais pretensões alegam os autores, em suma, que são donos e legítimos possuidores do prédio identificado no artigo 1º da petição inicial, sendo os réus donos e legítimos possuidores do prédio identificado no artigo 10º da petição inicial, prédios esses que confrontam entre si, estando separados por um muro existente na confrontação nascente do seu prédio. Mais alegam que esse muro separa o logradouro dos dois prédios, o qual sempre foi descrito e conhecido como sendo um muro meeiro, pertencente em partes iguais aos proprietários dos mesmos. Referem ainda que esse muro estava em ruínas, com alinhamento enviesado, tendo os autores e os réus acordado quanto ao novo alinhamento desse muro que foi reconstruído entre julho e setembro de 2022, tendo os autores cedido cerca de 3 m2 de terreno, cedendo os réus, por seu turno, cerca de 1,5 m2 de terreno para esse efeito. Sustentam que tentaram pagar aos réus metade do valor despendido com a reconstrução do muro, o que estes não aceitaram, necessitando de colocar um portão na sua entrada, fixando-o ao muro divisório. Regularmente citados, os réus deduziram contestação onde impugnaram os factos alegados pelos autores, concluindo pela improcedência da ação. Findos os articulados, foi proferido despacho saneador em termos tabelares. Realizou-se a audiência final com observância das formalidades legais, vindo a ser proferida sentença que julgou procedente o pedido principal deduzido pelos autores, culminando com o seguinte dispositivo: “a) Condenar os réus a reconhecer que o muro identificado em 6) e em 7) da factualidade provada é comum aos autores e aos réus na proporção de metade; b) Julgar prejudicado o pedido subsidiário formulado pelos autores à luz do disposto nos artigos 554º, nº 1 e 608.º, n.º 2, 1.ª parte do CPC. (...)”. Inconformados com o decidido, os réus interpuseram recurso, finalizando as suas alegações com as seguintes CONCLUSÕES: 1.ª Como atrás se referiu, a discordância dos RR., Apelantes, prende-se com a matéria de facto dada como provada e não provada e melhor transcrita supra, porquanto em seu entender; 2.ª Deveria o n.º 9 dos factos provados (“Os autores e os réus acordaram quanto ao alinhamento do muro referido em 6), a executar pelo empreiteiro identificado em 5), e acordaram em reconstruir esse muro numa linha reta desde o seu início junto à pedra em granito ao alto existente no rossio contíguo à via pública e acordaram em alterar a largura do local onde a mesma estava colocada, seguindo o muro em linha reta até ao muro em bloco de cimento construído no prédio identificado em 1) dos Factos Provados” da douta sentença recorrida ter sido dado como facto não provado; 3.ª Deveriam os B. (“O muro existente na confrontação nascente do prédio identificado em 1) e que separa esse prédio do prédio identificado em 3) foi construído há mais de 20 anos no interior do prédio identificado em 3); C. (“Há mais de 20, 30 e 50 anos que a face tosca, bruta e irregular das pedras desse muro está voltada para o prédio identificado em 3) e, há mais de 20, 30 e 50 anos que a face principal das pedras está voltada para o prédio identificado em 1);”), D. (“O muro referido em 6) é um muro único que veda todo o prédio identificado em 3); E. (“O muro referido em 6) contornava a sul toda a casa de habitação existente no prédio identificado em 3); e F. (“Há mais de 20, 30, 50 anos, os réus executam os trabalhos de limpeza, manutenção, restauro e reconstrução do muro, o que fazem à vista de todos e sem oposição de ninguém.”) dos Factos Não Provados terem sido dados como Factos Provados; 4.ª Pois que é isso mesmo que resulta da prova quer documental junta quer da testemunhal produzida em sede de Audiência de Discussão e Julgamento. 5.ª Da Prova Documental: Documento n.º 10 junto pelos AA., Apelados e Documento(s) n.º 2 junto(s) pelos RR., Apelantes: (Um muro em pedra granítica, que, para quem está no caminho público e de frente para cada um dos prédios urbanos de cada uma das partes do presente pleito, se inicia então nesse mesmo caminho público de acesso a cada um dos logradouros de cada um dos melhor identificados supra prédios urbanos (a poente do prédio urbano dos RR., Apelantes – lado esquerdo nas fotos/a nascente do prédio dos AA., Apelados – lado direito nas fotos), com cerca de 28cm/30cm de largura, prolonga-se por cerca de 9,5m/10m de comprimento, findo os quais, dobra à esquerda, contornando, a sul, toda a casa de habitação propriedade dos RR., Apelados dela fazendo parte integrante e sendo esse o muro que divide o prédio urbano propriedade dos RR., Apelantes quer dos AA, Apelados, a poente, quer do(s) restante(s) prédio(s) vizinhos/propriedade(s), a sul, Um único e um mesmo muro, Um muro que antes de chegar à propriedade dos AA., Apelados (ainda) tinha um rego de água de consortes a separar, Um muro com a face tosca/bruta/irregular das pedras do lado dos RR., Apelantes e com a face principal dessas mesmas pedras do lado dos AA., Apelados, e Um muro à mesma cota entre prédios); 6.ª Da prova testemunhal: O depoimento de parte de AA e de DD e das testemunhas, EE, FF e GG; 7.ª Impondo-se decisão diversa da matéria de facto, devendo ser dado como não provado o facto seguinte: - Os autores e os réus acordaram quanto ao alinhamento do muro referido em 6), a executar pelo empreiteiro identificado em 5), e acordaram em reconstruir esse muro numa linha reta desde o seu início junto à pedra em granito ao alto existente no rossio contiguo à via pública e acordaram em alterar a largura do local onde a mesma estava colocada, seguindo o muro em linha reta até ao muro em bloco de cimento construído no prédio identificado em 1); 8.ª E impondo-se decisão diversa da matéria de facto, devendo ser dados como provados os factos seguintes: - Os réus acordaram quanto ao alinhamento do muro referido em 6), a executar pelo empreiteiro identificado em 5), e acordaram em reconstruir esse muro numa linha reta desde o seu início junto à pedra em granito ao alto existente no rossio contiguo à via pública e acordaram em alterar a largura do local onde a mesma estava colocada, seguindo o muro em linha reta até ao muro em bloco de cimento construído no prédio identificado em 1); - O muro existente na confrontação nascente do prédio identificado em 1) e que separa esse prédio do prédio identificado em 3) foi construído há mais de 20 anos no interior do prédio identificado em 3); - Há mais de 20, 30 e 50 anos que a face tosca, bruta e irregular das pedras desse muro está voltada para o prédio identificado em 3) e, há mais de 20, 30 e 50 anos que a face principal das pedras está voltada para o prédio identificado em 1); - O muro referido em 6) é um muro único que veda todo o prédio identificado em 3); - O muro referido em 6) contornava a sul toda a casa de habitação existente no prédio identificado em 3); - Há mais de 20, 30, 50 anos, os réus executam os trabalhos de limpeza, manutenção, restauro e reconstrução do muro, o que fazem à vista de todos e sem oposição de ninguém. 9.ª Estatui o artigo 1371º nº 1 do Código Civil que a parede ou muro divisório entre dois edifícios presume-se comum em toda a sua altura, sendo os edifícios iguais, e até à altura do inferior, se o não forem; 10.ª E o nº 2 do mesmo normativo dispõe que os muros entre prédios rústicos, ou entre pátios ou quintais de prédios urbanos, presumem-se igualmente comuns, não havendo sinal em contrário; 11.ª A “ratio” deste normativo legal está assim justificada por António Carvalho Martins (in “Paredes e Muros de Meação”, pg. 41) quando um muro divisório foi construído há poucos anos, é fácil provar quem é o seu proprietário, sendo que a simples circunstância de ser situado junto da extrema não prova que ele seja comum; 12.ª Há, porém, muros divisórios com idade de alguns séculos e pode tornar-se preciso, num dado momento, provar se certo muro é comum ou pertence exclusivamente ao proprietário do prédio situado a um dos lados; 13.ª Por isso, o legislador estabeleceu uma série de presunções, baseadas em simples probabilidades, presunções que são, como sempre, exceções ao direito geral e, por isso, devem ser interpretadas restritivamente; 14.ª Tratando-se de presunções legais, a sua relevância jurídico-factual desmerecerá se contra elas se vier a produzir prova diversa do que nelas se consigna; 15.ª E, se assim acontecer, a comunhão assim delineada deixa de ter esse pormenorizado apoio e passa a partir daí a valer a prova que sobre essa particularizada realidade se faz; 16.ª Estabelecem, pois, os acima citados nºs. 1 e 2 do artigo 1371º do Código Civil presunções legais que determinam a compropriedade da parede ou do muro divisório entre dois edifícios e a compropriedade dos muros entre prédios rústicos, ou entre pátios e quintais de prédios urbanos. 17.ª No entanto, o legislador teve o cuidado de retirar esta presunção de comunhão a determinados casos que tipifica e enumera no artigo 1371º nº 3 do Código Civil: A existência de espigão em ladeira só para um lado; haver no muro, só de um lado, cachorros de pedra salientes encravados em toda a largura dele; e não estar o prédio contíguo igualmente murado pelos outros lados; 18.ª Deste regime legal assim enunciado, verificamos que resultam duas conclusões: -A verdade assim presumida e descrita na lei tão só vale se não for provado que os muros ou paredes pertencem só a um dos proprietários dos edifícios ou prédios rústicos que eles dividem, designadamente porque foi o dono de um dos edifícios, prédio rústico, pátio ou quintal quem os construiu a sua expensas ou que, por título validamente expresso, os adquiriu fora da defendida comunhão, e -As mencionadas presunções (do artigo 1371º nºs. 1 e 2 do Código Civil) são afastadas se ficarem comprovados os sinais relacionados no artigo 1371º nº 3 do Código Civil; 19.ª Com esta observação queremos dizer que a análise deste último dispositivo legal está inexoravelmente ligada ao que dispõem os seus nºs. 1 e 2, ou seja, só se verifica a sua acuidade interpretativa no caso de, presumindo-se a comunhão, se mostrarem existentes os vestígios referidos no nº 3 do artigo 1371º do Código Civil. 20.ª Ora, e “in casu”, apurou-se que: Os prédios em causa (dos AA., Apelados e dos RR., Apelantes) confrontam entre si. Mais se provou que há mais de 50 anos que existe um muro que delimita os dois prédios. Um muro em pedra granítica, que, para quem está no caminho público e de frente para cada um dos prédios urbanos de cada uma das partes do presente pleito, se inicia então nesse mesmo caminho público de acesso a cada um dos logradouros de cada um dos melhor identificados supra prédios urbanos (a poente do prédio urbano dos RR., Apelantes/a nascente do prédio dos AA., Apelados), com cerca de 28cm/30cm de largura, prolonga-se por cerca de 9,5m/10m de comprimento, findo os quais, dobra à esquerda, contornando, a sul, toda a casa de habitação propriedade dos RR., Apelados dela fazendo parte integrante e sendo esse o muro que divide o prédio urbano propriedade dos RR., Apelantes quer dos AA, Apelados, a poente, quer do(s) restante(s) prédio(s) vizinhos/propriedade(s), a sul, Um único e um mesmo muro, Um muro que antes de chegar à propriedade dos AA., Apelados (ainda) tinha um rego de água de consortes a separar, Um muro com a face tosca/bruta/irregular das pedras do lado dos RR., Apelantes e com a face principal dessas mesmas pedras do lado dos AA., Apelados, e Um muro à mesma cota entre prédios; 21.ª Não se apurando com precisão, a compropriedade do muro; 22.ª Há aqui então que fazer apelo à presunção estabelecida no artigo 1371º nº 1 do Código Civil, na parte em que dispõe que o muro divisório entre dois edifícios se presume comum; 23.ª Não ilidiram os AA., Apelados tal presunção (provando, por exemplo, alguma das circunstâncias previstas no artigo 1371º nº 3 do Código Civil), sendo certo que era a eles que incumbia tal ónus; e 24.ª Teremos, pois, de concluir pela natureza do muro em causa como pertencente exclusivamente ao proprietário do prédio situado a um dos lados, ou seja, dos RR., Apelantes. Termos em que, e nos melhores de Direito, * Os autores apelados apresentaram contra-alegações, onde pugnam pela confirmação do decidido, finalizando com as seguintes CONCLUSÕES I – A douta sentença não merece censura, quer na fundamentação, quer na decisão propriamente dita. II - O conjunto da prova produzida, nomeadamente acervo documental, conjugado com a inspeção ao local e depoimentos prestados em audiência, justificam e impõem a resposta do Tribunal à matéria provada e não provada. III - Não foi produzido qualquer depoimento ou outro meio de prova que justifique ou imponha a alteração da matéria de facto dada como provada e não provada. IV – Os recorrentes tentam alterar a convicção do tribunal através de expressões e textos dos depoimentos, desarticulados, truncados, parciais e fora do contexto em que foram produzidos, não podendo ser consideradas nem interpretadas tais declarações como fazem os recorrentes, forma e modo que este Tribunal certamente não acolherá. V – Para mais, mesmo analisando os depoimentos parcialmente transcritos, truncados e descontextualizados dos recorrentes nas suas Alegações, estes não traduzem qualquer referência, ou mera indicação/suspeição que permitam por em causa a matéria dada como provada e não provada pelo Tribunal “a quo”. VI – Deste modo, o tribunal a quo fez uma correta ponderação e análise crítica da prova produzida e um adequado julgamento dos factos em questão, retirando a ilação lógica de acordo com a presunção legal estabelecida pelo artigo 1371º do Código Civil: “1. A parede ou muro divisório entre dois edifícios presume-se comum em toda a sua altura, sendo os edifícios iguais, e até à altura do inferior, se o não forem. 2. Os muros entre prédios rústicos, ou entre pátios e quintais de prédios urbanos, presumem-se igualmente comuns, não havendo sinal em contrário.”, VII - Reconhecendo que o muro é comum/meeiro, pois não foram alegados e muito menos verificados quaisquer sinais que excluem tal presunção. VIII – De forma coerente, lógica e harmónica com a lei, o Tribunal “a quo” reconheceu que o muro divisório em causa nos autos é comum aos autores e aos réus em iguais proporções, na proporção de metade para cada um, e condenar os réus a reconhecer o direito de compropriedade dos autores sobre esse muro. IX – Faz assim a sentença correta apreciação dos factos provados e não provados, mostra-se bem fundamentada e faz a devida aplicação das normas dos artigos 1371º e 350º de Código Civil. * O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo. * Após os vistos legais, cumpre decidir. *** II- DO MÉRITO DO RECURSO1. Definição do objeto do recurso O âmbito do recurso, sempre ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, encontra-se delimitado pelas conclusões que nele foram apresentadas e que atrás se transcreveram – cfr. arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do Código de Processo Civil[1]. Como assim, atentas as conclusões formuladas, são as seguintes as questões a decidir: (i) - determinar se o tribunal a quo incorreu num error in iudicando, por deficiente avaliação ou apreciação das provas e assim na decisão da matéria de facto; (ii) - Decidir em conformidade face à alteração, ou não, da matéria factual, mormente dilucidar se o quadro factual apurado permite suportar conclusão no sentido pretendido pelos réus de que o ajuizado muro lhes pertence em exclusivo. * 2. Recurso da matéria de facto 2.1. Factualidade considerada provada na sentença Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos: 1. Por escritura de dação em pagamento outorgada em 10.05.2017, HH da HH declarou transmitir a AA a propriedade do prédio urbano composto de casa de ... e andar para habitação, sito no Lugar ... ou Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ..., inscrito na matriz sob o artigo ...80 e descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...34, para pagamento integral de uma dívida no valor de € 13.500,00, o que AA aceitou. 2. Encontra-se registada na Conservatória de Registo Predial ... a favor dos autores a aquisição do prédio composto de casa de ... e andar para habitação com ..., sito na Rua ..., ..., freguesia ..., em ..., inscrito na matriz sob o artigo ...80 e descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...27. 3. Encontra-se registada na Conservatória de Registo Predial ... a favor dos réus a aquisição do prédio composto de casa de ... para habitação com logradouro, sito em ..., freguesia ..., em ..., inscrito na matriz sob o artigo ...88 e descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...07. 4. Os autores, por si e ante possuidores, há mais de 40 anos, habitam no prédio identificado em 1), nele executam trabalhos de manutenção, reconstrução, de restauro e de limpeza, custeiam os seus impostos e despesas de conservação e de reparação, o que fazem sem qualquer interrupção, à vista de todos, sem oposição de ninguém, sem violência e ignorando lesar outrem e na convicção de serem donos exclusivos desse prédio. 5. No ano de 2020, os autores decidiram renovar e reconstruir a casa referida em 1) e adjudicaram essa obra à empresa de construção civil EMP01..., Lda.. 6. No decurso da obra referida em 5), os autores tiveram necessidade de reconstruir o muro em granito existente na confrontação nascente do prédio identificado em 1) e que separa esse prédio do prédio identificado em 3). 7. O muro referido em 6) separava e ainda hoje separa os logradouros dos prédios identificados em 1) e em 3). 8. O muro referido em 6) encontrava-se em ruínas, com o alinhamento torto e enviesado e os autores solicitaram a colaboração dos réus para acordarem um novo alinhamento desse muro. 9. Os autores e os réus acordaram quanto ao alinhamento do muro referido em 6), a executar pelo empreiteiro identificado em 5), e acordaram em reconstruir esse muro numa linha reta desde o seu início junto à pedra em granito ao alto existente no rossio contíguo à via pública e acordaram em alterar a largura do local onde a mesma estava colocada, seguindo o muro em linha reta até ao muro em bloco de cimento construído no prédio identificado em 1). 10. Com o alinhamento referido em 9), os autores cederam cerca de 1,00 m2 de terreno e os réus cederam cerca de 20 centímetros de terreno para alinhamento do muro reconstruído referido em 6). 11. Os réus solicitaram um orçamento ao gerente da empresa de construção civil EMP01..., Lda., no caso, a EE, mandaram executar a obra referida em 6) e pagaram a totalidade do seu valor. 12. EE contactou os autores e estes solicitaram a execução do muro de acordo com o alinhamento referido em 9), em granito, em linha reta e com a altura de 1,80 metros de altura desde o solo do prédio identificado em 1). 13. O muro referido em 12) foi edificado entre os meses de julho e setembro de 2022 por EMP01..., Lda.. 14. Por carta datada de 15.06.2023 remetida aos réus em 16.06.2023, os autores solicitaram aos réus que indicassem o valor total da obra referida em 11) para pagarem metade do custo da reconstrução do muro. 15. Os autores têm necessidade de colocar um portão na entrada do prédio identificado em 1) e fixá-lo no muro referido em 6). 16. No dia 15 de abril de 2022, os réus receberam uma carta com o seguinte assunto “reparação de muro em ruína parcial, situado no lugar de ..., ..., cuja propriedade é invocada por V. Exa.ª e pela minha constituinte. D. AA”. 17. Os réus têm um documento no qual constam como primeiros outorgantes os réus e como segundo outorgantes os autores, documento que não foi assinado e que tem as seguintes menções “Os Segundos outorgantes declaram que o muro divisório pertence na sua totalidade aos Primeiros outorgantes e que renunciam a ver reconhecido ou a adquirirem a metade do indicado muro divisório dos prédios desde que, cumulativamente, os 1ºs Outorgantes, no prazo de 90 dias, reconstruam a suas exclusivas expensas o muro, em granito castanho, em linha reta e com a altura de 1,80 metros (um metro e oitenta centímetros) contada do solo do prédio dos Segundos outorgantes (junta-se fotografias do estado atual do muro como docs. 6,7 e 8)”. 18. O muro identificado em 6), antes das obras, iniciava-se no caminho público, prolongava-se e no final virava à esquerda para o lado do prédio identificado em 3). 19. A reconstrução do muro referido em 12) foi efetuada com pedras de granito retiradas de uma eira existente no interior do prédio identificado em 3) e a extração dessas pedras foi efetuada por EMP01..., Lda. * 2.2. Factualidade considerada não provada na sentença O tribunal de 1ª instância considerou não provados os seguintes factos: A. O documento referido 17) foi elaborado na sequência da carta referida em 16) e das negociações encetadas pelos autores e pelos réus que culminaram com a elaboração desse documento; B. O muro existente na confrontação nascente do prédio identificado em 1) e que separa esse prédio do prédio identificado em 3) foi construído há mais de 20 anos no interior do prédio identificado em 3); C. Há mais de 20, 30 e 50 anos que a face tosca, bruta e irregular das pedras desse muro está voltada para o prédio identificado em 3) e, há mais de 20, 30 e 50 anos que a face principal das pedras está voltada para o prédio identificado em 1); D. O muro referido em 6) é um muro único que veda todo o prédio identificado em 3); E. O muro referido em 6) contornava a sul toda a casa de habitação existente no prédio identificado em 3); F. Há mais de 20, 30, 50 anos, os réus executam os trabalhos de limpeza, manutenção, restauro e reconstrução do muro, o que fazem à vista de todos e sem oposição de ninguém. *** 2.3. Apreciação da impugnação da matéria de factoNas conclusões recursivas vieram os apelantes requerer a reapreciação da decisão de facto, em relação a um conjunto de factos julgados provados e não provados, com fundamento em erro na apreciação da prova. Como é consabido, o art. 640º estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos: “1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes”. O presente regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova. Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar – delimitar o objeto do recurso -, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto - fundamentação - e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação. No caso concreto, realizou-se o julgamento com gravação dos depoimentos prestados em audiência e os apelantes impugnaram a decisão da matéria de facto, com indicação dos pontos de facto impugnados, prova a reapreciar e decisão que sugerem. Tal como dispõe o nº 1 do art. 662º a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “ […] se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que, na economia do preceito, significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham inequivocamente (em termos de convicção autónoma) uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância. A respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração, como sublinha ABRANTES GERALDES[2], que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova. Assim, competirá ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, tendo em atenção o conteúdo das alegações do recorrente e recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. Decorre deste regime que o Tribunal da Relação tem acesso direto à gravação oportunamente efetuada, mesmo para além dos concretos meios probatórios que tenham sido indicados pelo recorrente e por este transcritos nas alegações, o que constitui uma forma de atenuar a quebra dos princípios da imediação e da oralidade suscetíveis de exercer influência sobre a convicção do julgador, ao mesmo tempo que corresponderá a uma solução justificada por razões de economia e celeridade processuais[3]. Cumpre ainda considerar a respeito da reapreciação da prova, que neste âmbito vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art. 396º do Cód. Civil. Daí compreender-se o comando estabelecido na lei adjetiva (cfr. art. 607º, nº 4) que impõe ao julgador o dever de fundamentação da materialidade que considerou provada e não provada. Esta exigência de especificar os fundamentos decisivos para a convicção quanto a toda a matéria de facto é essencial para o Tribunal da Relação, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, poder alterar ou confirmar essa decisão. É através dos fundamentos constantes do segmento decisório que fixou o quadro factual considerado provado e não provado que este Tribunal vai controlar, através das regras da lógica e da experiência, a razoabilidade da convicção do juiz do Tribunal de 1ª instância. Atenta a posição que adrede vem sendo expressa na doutrina e na jurisprudência, quando o Tribunal da Relação é chamado a pronunciar-se sobre a reapreciação da prova, no caso de se mostrarem gravados os depoimentos, deve considerar os meios de prova indicados pelas partes e confrontá-los com outros meios de prova que se mostrem acessíveis, a fim de verificar se foi cometido ou não erro de apreciação que deva ser corrigido[4]. Tendo presentes estes princípios orientadores, cumpre agora dilucidar se assiste razão aos apelantes, neste segmento recursório da impugnação da matéria de facto, nos termos por eles preconizados. Como emerge das respetivas conclusões recursivas, os recorrentes advogam que deve transitar para o elenco dos factos não provados a afirmação de facto inserta no ponto nº 9 dos factos provados, devendo constar dos factos provados os enunciados fácticos vertidos nas alíneas B, C, D, E) e F) dos factos não provados. No referido ponto nº 9 deu-se como provado que: . Os autores e os réus acordaram quanto ao alinhamento do muro referido em 6), a executar pelo empreiteiro identificado em 5), e acordaram em reconstruir esse muro numa linha reta desde o seu inicio junto à pedra em granito ao alto existente no rossio contiguo à via pública e acordaram em alterar a largura do local onde a mesma estava colocada, seguindo o muro em linha reta até ao muro em bloco de cimento construído no prédio identificado em 1). Já no concernente às alíneas B), C), D), E) e F) deu-se como não provado que: . O muro existente na confrontação nascente do prédio identificado em 1) e que separa esse prédio do prédio identificado em 3) foi construído há mais de 20 anos no interior do prédio identificado em 3) - (alínea B); . Há mais de 20, 30 e 50 anos que a face tosca, bruta e irregular das pedras desse muro está voltada para o prédio identificado em 3) e, há mais de 20, 30 e 50 anos que a face principal das pedras está voltada para o prédio identificado em 1) - (alínea C); . O muro referido em 6) é um muro único que veda todo o prédio identificado em 3) - (alínea D); . O muro referido em 6) contornava a sul toda a casa de habitação existente no prédio identificado em 3) - (alínea E); . Há mais de 20, 30, 50 anos, os réus executam os trabalhos de limpeza, manutenção, restauro e reconstrução do muro, o que fazem à vista de todos e sem oposição de ninguém. - (alínea F). Em sustentação do juízo probatório positivo e negativo referente à transcrita materialidade, na respetiva motivação de facto, o decisor de 1ª instância discorreu nos seguintes termos: «[N]o apuramento da factualidade julgada provada e não provada, o Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica, global e conjunta da prova produzida em julgamento em conjugação com os documentos juntos aos autos, conjugados e valorados à luz das regras do ónus da prova, consagradas nos artigos 342.º e seguintes do Código Civil. (…) Os factos referidos em 8) e em 9) resultaram provados pelas declarações de parte da autora AA em conjugação com as declarações de parte da ré DD e com o depoimento prestado pela testemunha EE (construtor civil que executou a obra em causa nos autos) que de forma consonante, espontânea, segura e objetiva descreveram tais factos, tendo revelado conhecimento pessoal e direto dos mesmos. (…) Por sua vez, os factos referidos em A), B), C) e em F) resultaram não provados por não terem sido produzidos quaisquer elementos probatórios que permitissem demonstrar tais factos. De referir ainda que pese embora na prova por inspeção judicial tivesse resultado demonstrado que “o muro na parte que se encontra voltada para interior do prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial é composto por uma face regular com pedras alinhadas, de face alisada e trabalhada, e a parte do muro voltada para o interior do prédio identificado no artigo 10.º da petição inicial tem a face tosca, com pedras de altura irregular e não alisadas” (cf. ponto 8 do auto de inspeção), o que aí consta expresso reporta-se ao muro existente atualmente no local e que foi reconstruído pelos réus, não tendo sido produzidos meios de prova que permitissem demonstrar que o facto referido em C) se verificava no período temporal aí referido, alegado pelos réus na contestação, razão pela qual o tribunal julgou não provado o facto referido em C). Os factos referidos em D) e em E) resultaram não provados por não terem sido produzidos meios de prova que permitissem demonstrar tais factos de forma segura e consistente. Na verdade, da prova por inspeção judicial resultou que o prédio identificado em 3) “é delimitado pelas paredes da casa na sua parte norte e nascente, a poente é delimitado pelo muro referido em 2) e a sua parte sul é delimitada por um logradouro que não está murado” (ponto 6 do auto de inspeção). De igual modo, da prova por inspeção judicial resultou ainda que “o muro, na sua parte sul, encaixa em duas pedras existentes na parede sul do prédio identificado no artigo 10.º da petição inicial” e que “o muro em causa nos autos estende-se e está unido à parede que delimita à nascente e a sul o prédio identificado no artigo 1.º da petição inicial” (pontos 10 e 12 do auto de inspeção judicial), o que demonstra que o muro que existe entre os prédios identificados em 1) e em 3) tanto encaixa/está unido aos muros que delimitam a estrema sul desses dois prédios. A par disso, das fotografias juntas aos autos com a contestação e juntas em audiência de julgamento, obtidas pelo Tribunal aquando da inspeção judicial, constatamos que das mesmas não resulta que o muro em causa nos autos vede todo o prédio identificado em 3) nem que contorne a casa aí existente. Nenhum outro meio de prova foi produzido que permitisse demonstrar tais factos. Pelo que em face das considerações expostas, o tribunal julgou não provados os factos referidos em D) e em E).” Para sustentar a alteração do juízo probatório emitido relativamente às sindicadas afirmações de facto, os apelantes nas suas conclusões recursórias convocam alguma prova documental e pessoal produzida em sede de audiência final. Concretamente ancoram-se no documento nº 10 junto pelos autores apelados com a petição inicial (uma carta enviada pelo mandatário dos autores aos réus a solicitar que estes indiquem qual foi o valor total da obra efetuada com vista a pagarem a sua parte da mesma) e no documento nº 2 junto pelos réus apelantes com a contestação (foto do muro). No que concerne à prova pessoal, apelam às declarações de parte prestadas por AA e DD, socorrendo-se ainda dos depoimentos das testemunhas, EE, FF e GG. Da exegese das conclusões de recurso resulta também que os apelantes, após expressarem que pretendem a alteração da matéria de facto quanto aos pontos que mencionam, logo de seguida, se limitam a referir que os meios de prova que assinalaram impõem decisão diversa da que foi adotada pelo Tribunal a quo, transcrevendo excertos dessas declarações e desses depoimentos no corpo alegatório. A questão que se coloca é a de saber se, dessa forma, os apelantes impugnam a matéria de facto a que acima se fez alusão de forma processualmente válida. E a resposta é necessariamente negativa. Como já assinalado supra, por imposição do disposto no art. 640º, na motivação de um recurso, para além da alegação da discordância, é outrossim fundamental a alegação do porquê dessa discordância, isto é, torna-se mister evidenciar a razão pelo qual o recorrente entende existir divergência entre o decidido e o que consta dos meios de prova invocados. Nesse sentido tem sido interpretado o segmento normativo “impunham decisão diversa da recorrida” constante da 2ª parte da al. b) do nº 1 do citado art. 640º, acentuando-se que o cabal exercício do princípio do contraditório pela parte contrária impõe que sejam conhecidos de forma clara os concretos argumentos do impugnante[5]. Com efeito, da mesma maneira que ao tribunal de 1ª instância é atribuído o dever de fundamentação e de motivação crítica da prova que o conduziu a declarar quais os factos que julga provados e não provados (art. 607º, nº 4), devendo especificar, por razões de sindicabilidade e de transparência, os fundamentos que concretamente se tenham revelado decisivos para formar a sua convicção, facilmente se compreende que, em contraponto, o legislador tenha imposto à parte que pretenda impugnar a decisão de facto o respetivo ónus de impugnação, devendo expor os argumentos que, extraídos de uma apreciação crítica dos meios de prova, determinem, em seu entender, um resultado diverso do decidido pelo tribunal a quo. Portanto, como sublinha ANA LUÍSA GERALDES[6], o recorrente ao enunciar os concretos meios de prova que devem conduzir a uma decisão diversa, “deve fundar tal pretensão numa análise (crítica) dos meios de prova, não bastando reproduzir um ou outro segmento descontextualizado dos depoimentos”. Exige-se, pois, o confronto desses elementos com os restantes que serviram de suporte para a formulação da convicção do Tribunal de 1ª instância (e que ficaram expressos na decisão), com recurso, se necessário, aos restantes meios probatórios, v.g., documentos, relatórios periciais, etc., apontando as eventuais disparidades e contradições que infirmem a decisão impugnada e é com esses elementos que a parte contrária deverá ser confrontada, a fim de exercer o contraditório, no âmbito do qual poderá proceder à indicação dos meios de prova que, em seu entender, refutem as conclusões do recorrente. Cumpre, de igual modo, ressaltar que o objetivo do 2º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é pura e simples repetição das audiências perante a Relação mas a deteção e correção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, sem prejuízo de aquando da apreciação dos meios probatórios colocados à sua disposição formar uma convicção autónoma sobre a materialidade impugnada. Por via disso, a jurisprudência tem vindo a considerar que o recorrente que impugne a decisão da matéria de facto terá de alegar, especificar e esclarecer o porquê da discordância, isto é, como e qual a razão por que é que determinados meios probatórios indicados e especificados contrariam/infirmam a conclusão factual do Tribunal de 1ª instância. Encontra-se, pois, constituído no ónus, como se decidiu no acórdão do STJ de 15.09.2011[7], “de apontar a divergência concreta entre o decidido e o que consta do depoimento ou parte dele, ou seja, obrigado está o recorrente a concretizar e a apreciar criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa; (…) é exatamente esse o sentido da expressão legal «quais os concretos meios probatórios de registo ou gravação que imponham decisão, sobre os pontos da matéria de facto impugnados, diversa da recorrida»”. Sucede, porém, que os apelantes nas respetivas alegações recursórias não realizaram esse exercício, limitando-se a (1) dizer que da prova produzida em audiência a resposta aos pontos cujo resultado impugna deveria ser diversa à que efetivamente foi dada, (2) a aludir aos documentos nºs 10 e 2 juntos por autores e réus respetivamente e (3) a transcrever excertos das declarações de parte e dos depoimentos das pessoas que identificaram, não evidenciando em que medida as mesmas possam abalar o sentido decisório que quanto à factualidade em crise foi acolhido pelo decisor de 1ª instância. Ora, como é bom de ver, na sequência das considerações supra expendidas, a impugnação da decisão da matéria de facto não se basta com uma manifestação de discordância em relação à forma como essa materialidade foi decidida, antes se exige da parte que pretende usar desta faculdade a demonstração da existência de incongruências na apreciação do valor probatório dos meios de prova que efetivamente, no caso, foram produzidos, limitando, como se referiu, a fazer referências esparsa a extratos de alguns dos depoimentos produzidos na audiência final e aos mencionados documentos, dos quais não se extrai qualquer elemento significante comprovativo de que o ajuizado muro fosse exclusivamente construído em terreno pertencente aos recorrentes. Daí que, em consonância com o disposto na 1ª parte da al. a) do nº 2 do citado art. 640º, impõe-se a rejeição, nessa parte, do recurso, sendo que, dada a expressão perentória da lei (através do emprego do adjetivo imediata), não cabe convite ao aperfeiçoamento no sentido de lograr suprir a inobservância desses ónus[8]. Deste modo, perante o evidenciado inadimplemento, nenhuma alteração se poderá introduzir na matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada e não provada. Improcede assim este argumento recursório. *** III. FUNDAMENTOS DE DIREITOOs apelantes insurgem-se contra a sentença recorrida que julgou procedente o pedido principal deduzido pelos autores, afirmando que o muro divisório em causa nos autos é comum aos autores e aos réus em iguais proporções, condenando em consequência estes a reconhecer o direito de compropriedade daqueles sobre o mesmo. Fundamentalmente a divergência recursiva dos apelantes traduz-se no propósito de reconhecimento da sua dominialidade em exclusivo sobre o ajuizado muro. Certo é que, em resultado da inalteração do substrato factual apurado, não se antolha válido fundamento para a modificação do julgado. Na verdade, por operância da presunção legal estabelecida no nº 2 do art. 1371º do Cód. Civil – que apesar da sua natureza juris tantum, não foi afastada pelos réus interessados na sua elisão (cfr. art. 350º, nº 1, a contrario, do Cód. Civil) - ter-se-á de considerar que o muro em questão pertence em compropriedade a autores e réus, na proporção de metade para cada um deles. A essa conclusão não obsta a circunstância de terem sido os apelantes a suportar o custeio da sua remodelação/reconstrução, na justa medida em que – tal como vem sendo sublinhado na jurisprudência[9] – esse facto, quando o muro é divisório, não importa, per se, o afastamento da presunção de compropriedade. Impõe-se, por isso, a improcedência do recurso. *** III- DISPOSITIVOPelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação interposta pelos réus, confirmando-se a decisão recorrida. Custas a cargo dos apelantes (art. 527º, nºs 1 e 2). Guimarães, 25.09.2025 Maria Gorete Morais Pedro Maurício Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade (com a seguinte declaração de voto: A falta de juízo crítico sobre a valoração que o Tribunal a quo fez da prova produzida, a insuficiência ou mediocridade desse juízo (a menor suficiência da fundamentação probatória do recorrente – cfr. Ac. do STJ de 19/2/2015, processo n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1, www.dgsi.pt), a subjetividade ou inidoneidade da fundamentação apresentada pelo recorrido para ver alterada a decisão de facto, quando a motivação da mesma se funda em prova sujeita à livre apreciação (o Tribunal a quo ponderou a prova indicada, fez a sua valoração, concatenando toda a prova produzida face às regras da experiência), conforme a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça produzida no âmbito da atual versão do CPC que tendemos a seguir, não releva como requisito formal do ónus de impugnação, mas, quando muito, como parâmetro da reapreciação da decisão de facto, na valoração das provas, exigindo maior ou menor grau de fundamentação, por parte do tribunal de recurso, consoante a densidade ou consistência daquela fundamentação; levará, por isso, não à rejeição da impugnação, mas à sua provável, quase inelutável, improcedência (cfr. Acs. do STJ de 4/7/2023, processo n.º7997/20.2T8SNT.L1.S1, e de 02-03-2023, processo n.º 2093/21.8T8BRG.G1.S1). No caso em apreço a fronteira entre o incumprimento dos ónus formais e a falta de fundamentação é muito ténue; contudo, como parâmetro e orientação (e atentos os princípios da proporcionalidade e razoabilidade, presentes nesta apreciação), temos o facto do recorrido ter exercido de forma cabal o contraditório (cfr. contra-alegações de recurso). Em suma, teria antes apreciado o mérito da impugnação da matéria de facto, e, face à falta de argumentos bastantes para sustentar a posição dos recorrentes, teria julgado a mesma improcedente). [1] Diploma a atender sempre que se citar disposição legal sem menção de origem. [2] In Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 225; no mesmo sentido milita REMÉDIO MARQUES (in A ação declarativa, à luz do Código Revisto, 3ª edição, págs. 638 e seguinte), onde critica a conceção minimalista sobre os poderes da Relação quanto à reapreciação da matéria de facto que vem sendo seguida por alguma jurisprudência. [3] Isso mesmo é ressaltado por ABRANTES GERALDES, in Temas da Reforma de Processo Civil, vol. II, 3ª ed. revista e ampliada, pág. 272. [4] Assim ABRANTES GERALDES Recursos, pág. 299 e acórdãos do STJ de 03.11.2009 (processo nº 3931/03.2TVPRT.S1) e de 01.07.2010 (processo nº 4740/04.7TBVFX-A.L1.S1),ambos acessíveis em www.dgsi.pt. [5] Cfr., neste sentido, acórdão do STJ de 15.09.2011 (processo nº 1079/07.0TVPRT.P1.S1), de 2.12.2013 (processo nº 34/11.0TBPNI.L1.S1) e de 22.10.2015 (processo nº 212/06), acórdãos da Relação do Porto de 5.11.2012 (processo nº 434/09.5TTVFR.P1) e de 17.03.2014 (processo nº 3785/11.5TBVFR.P1) e acórdãos da Relação de Guimarães de 15.09.2014 (processo nº 2183/12.TBGMR.G1) e de 15.10.2015 (processo nº 132/14.8T8BCL.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. [6] Impugnação e reapreciação da decisão da matéria de facto, pág. 4 e seguinte, trabalho disponível em ww.cjlp.org/materias/Ana_Luisa_Geraldes_Impugnacao_e_Reapreciacao_da_Decisao_da_Materia_de_Facto.pdf. [7] Processo nº 1079/07.0TVPRT.P1.S1. No mesmo sentido se pronunciaram, inter alia, os acórdãos do STJ de 2.12.2013 (processo nº 34/11.0TBPNI.L1.S1) e de 22.10.2015 (processo nº 212/06), acórdãos da Relação do Porto de 5.11.2012 (processo nº 434/09.5TTVFR.P1) e de 17.03.2014 (processo nº 3785/11.5TBVFR.P1) e acórdãos da Relação de Guimarães de 15.09.2014 (processo nº 2183/12.TBGMR.G1) e de 15.10.2015 (processo nº 132/14.8T8BCL.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. [8] A este propósito, a doutrina, praticamente una voce, tem considerado que o incumprimento de tal ónus implica a rejeição do recurso, na parte respeitante, sem possibilidade sequer de introdução de despacho de aperfeiçoamento – cfr., por todos, ABRANTES GERALDES, ob. citada, pág. 134 e AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, pág. 170; LOPES DO REGO, Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, pág. 585 e LEBRE DE FREITAS et alii, Código de Processo Civil Anotado, vol. III, 2ª edição, pág. 62. Idêntico entendimento tem sido trilhado na jurisprudência, de que constituem exemplo, inter alia, os acórdãos do STJ de 9.02.2012 (processo nº 1858/06.5TBMFR. L1.S1), de 22.09.2011 (processo nº 1368/04.5TBBNV.S1), de 15.09.2011 (processo nº 455/07.2TBCCH.E1.S1), de 21.06.2011 (processo nº 7352/05.4TCLRS.L1.S1), acórdãos da Relação de Lisboa de 13.03.2014 (processo nº 569/12.7TVLSB.L1) e de 12.02.2014 (processo nº 26/10.6TTBRR.L1) e acórdão da Relação de Guimarães de 12.06.2014 (processo nº 1218/10.3TBBCL.G1), todos disponíveis em www.dgsi.pt. Registe-se que sobre esta temática, ainda que no domínio da jurisdição penal, o Tribunal Constitucional já foi chamado a pronunciar-se (v.g. acórdão nº 259/2002, publicado no Diário da República, II série, de 13.12.2002), decidindo pela compatibilidade constitucional de uma solução legislativa segundo a qual a falta de cumprimento dos ónus que impendem sobre o recorrente que pretenda impugnar a matéria de facto tem como efeito o não conhecimento dessa matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir esses vícios. [9] Cfr., neste sentido e inter alia, acórdãos da Relação do Porto de 17.03.1992 (Coletânea de Jurisprudência, Ano XVII, Tomo 2º, pág. 218 e de 16.11.2015 (processo n.º 2794/12.1TBVNG.P1), este último acessível em www.dgsi.pt. |