Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | CARLOS CUNHA COUTINHO | ||
| Descritores: | APLICAÇÃO DE PERDÃO DE PENA PENA ÚNICA EXCLUSÃO DE CRIMES NOVO CÚMULO JURÍDICO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 09/30/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
| Decisão: | PROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
| Sumário: | I – A Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude; II – De acordo com o disposto no artigo 3.º, n.º 4 daquela Lei, «em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única»; III – No entanto, segundo o artigo 7.º, n.º 1, e), iii) do mesmo diploma, não beneficiam do perdão e da amnistia, os condenados pelo crime de «branqueamento, previsto no artigo 368.º-A do Código Penal»; III – Assim, tendo a arguida sido condenada pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, em concurso efectivo com a prática de um crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368.º-A, do Código Penal, o perdão de penas concedido pela Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, apenas poderia ser aplicado à condenação pela prática do crime de burla qualificada; IV - A única forma de compatibilizar os artigos 3.º, n.º 4 e 7.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, é desfazer o cúmulo jurídico, deixando intocada a pena imperdoável (quanto ao crime de branqueamento), e aplicando o perdão à pena em que a arguida foi condenada pela prática do crime de burla qualificada. V - Depois, uma vez conhecidas as novas penas parcelares que resultaram da aplicação do perdão a uma delas, deve ser estabelecido um novo limite mínimo e máximo para a moldura do cúmulo, determinando-se uma nova pena única em conformidade. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes que integram a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: A) Relatório: 1) No Tribunal Judicial da Comarca de Bragança, Juízo Central Cível e Criminal de Bragança – Juiz ..., processo n.º 29/04.0TAVNH, foi proferido Despacho, datado de 16/01/2025, que declarou perdoado 1 (um) ano da pena única de 5 anos e 6 meses de prisão em que a arguida AA tinha sido condenada pela prática dos crimes de burla qualificada e branqueamento. * 2) Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o Ministério Público o presente recurso, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões:1. A Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, estabeleceu um regime de perdão de penas e amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, para todas as sanções penais relativas aos ilícitos os praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto (cf. artigos 1.º e 3.º). 2. Foi a arguida AA condenada nestes autos pela prática de um crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º e 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão, em concurso efectivo com a prática de um crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368.º-A, do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, pena única de 5 anos e 6 meses de prisão. 3. A arguida, nascida a ../../1982, tinha à data da prática dos factos (Março de 2004, e, assim, anterior às 00h00 de 19-06-2023), idade inferior a 30 anos (em concreto, 21 anos de idade). 4. Não sendo a pena única de prisão aplicada superior a 8 anos, impor-se-ia, ao abrigo daquela Lei, determinar o perdão de um ano de prisão, a incidir sobre a pena única (cf. artigos 1.º, 2.º e 3.º, n.ºs 1 e 4). 5. Todavia, o crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368.º-A, do Código Penal, mostra-se excluído do âmbito de aplicação do perdão, por força do estatuído no artigo 7.º, n.º 1, alínea e), iii., da citada Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto. 6. Assim, e uma vez que nos encontramos diante de uma pena única que engloba uma pena parcelar perdoável, pela prática do crime de burla qualificada, e uma outra não perdoável, pela prática do crime de branqueamento, importa alcançar uma solução de compatibilização entre o disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 4 e o artigo 7.º, n.º 1, alínea e), iii., da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto. 7. Ora, conjugando devidamente os citados normativos, outra conclusão não pode extrair-se senão a de que o perdão incide sobre a pena única quando esta é composta exclusivamente por penas parcelares que beneficiam do perdão. 8. Com efeito, a regra prevista no artigo 3.º, n.º 4, da Lei n.º 38-A/2023, de 02 Agosto, de que em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única, mostra-se circunscrita às situações previstas nos n.ºs 1 e 2 do mesmo artigo, isto é, àquelas situações em que todas as penas parcelares englobadas na pena única são perdoáveis; se o perdão for excluído de qualquer uma das penas parcelares, por força das excepções previstas no artigo 7.º, não poderá ser feito incidir sobre a pena única. 9. Nesta senda, quando a pena única for concomitantemente composta por penas que beneficiam de perdão e por penas que não beneficiam do perdão, impor-se-á desfazer o cúmulo jurídico, deixando intocadas as penas imperdoáveis, e aplicando o perdão às penas que dele beneficiem. 10. Neste sentido se vem pronunciando a jurisprudência dos Tribunais superiores, impulsionada pelo Supremo Tribunal de Justiça, que assim decidiu no Acórdão de 20-032024, relatado pela Exma. Sra. Conselheira Ana Barata Brito: «I. Quando se diz, no n.º 4 do art. 3.º Lei 38-A/2023, que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”, está-se a considerar a pena única correspondente a crimes que beneficiam (todos eles) de perdão. II. Com esta disposição quer-se esclarecer que, nos casos de concurso efectivo de crimes – de crimes que beneficiem, todos eles, de perdão -, o perdão se aplica uma única vez, à pena única, e não várias vezes, a cada uma das parcelares que a compõem. Ou seja, só concluído todo o processo de determinação da pena e encontrada e aplicada a pena “final”, então sim, há lugar a aplicação do perdão da Lei n.º 38-A/2023. III. Mas há que compatibilizar o n.º 4 do art. 3.º com o art. 7.º da mesma lei, que determina as excepções ao perdão. Compatibilização que se realiza aplicando-se primeiramente o perdão à pena parcelar que dele beneficia, procedendo-se seguidamente a cúmulo jurídico do remanescente dessa parcelar com a outra pena parcelar, excluída do perdão).» 11. O que não pode suceder, como sucedeu no caso dos autos, é fazer-se incidir o perdão sobre uma pena única que engloba penas parcelares perdoáveis e não perdoáveis. 12. Uma tal solução parece-nos não ser consentânea com uma correcta interpretação dos normativos em crise, desde logo porque, caso a arguida apenas tivesse sido condenada pela prática do crime de branqueamento de capitais, não veria a sua situação penal desagravada, já que o crime em causa está excluído do perdão e ainda porque, ao aplicar o perdão de um ano na pena única, o Tribunal a quo afectou indevidamente a pena parcelar do crime não perdoável que o legislador expressamente excluiu daquela medida de graça. 13. Ademais, entendemos, diferentemente do Tribunal a quo, que o artigo 3.º se reporta exclusivamente a penas que beneficiam de perdão e que, por isso, quando o seu n.º 4 dispõe que «o perdão incide sobre a pena única», se reporta aos casos em que essa pena única resulta de cúmulo de penas todas elas passíveis de perdão; se assim não for, por força das exclusões previstas no artigo 7.º, n.º 1, há que trazer à colação o n.º 3 do mesmo artigo, que esclarece inequivocamente que esta exclusão do perdão não prejudica a sua aplicação quanto a outros crimes cometidos. 14. Nessa conformidade, no caso dos autos, a exclusão do perdão quanto ao crime de branqueamento não prejudica a aplicação deste quanto ao crime de burla qualificada. 15. No entanto, uma correcta aplicação do disposto nos artigos 3.º, n.ºs 1 e 4 e 7.º, n.ºs 1, alínea e), iii.) e 3, da Lei n.º 38-A/2023, impõe que o Tribunal a quo diligencie pela reformulação do cúmulo jurídico, aplicando o perdão de um ano de prisão à pena parcelar do crime de burla qualificada (de 4 anos de prisão), deixando intocada a pena não perdoável do crime de branqueamento (de 3 anos e 6 meses) e, uma vez conhecidas as novas penas parcelares, estabeleça novo limite mínimo e máximo para a moldura do cúmulo, determinando uma nova pena única em conformidade. 16. Por todo o exposto, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine a reformulação do cúmulo jurídico, declarando perdoado um ano de prisão na pena de 4 anos de prisão aplicada à condenada nestes autos pela prática do crime de burla qualificada, mantendo inalterada a pena a pena de 3 anos e 6 meses de prisão aplicada pela prática do crime de branqueamento, procedendo-se, em consequência, a novo cúmulo e aplicando uma nova pena única. 17. Ao decidir conforme decidiu, o Tribunal a quo incorreu em incorrecta interpretação dos normativos vertidos nos artigos 3.º, n.ºs 1 e 4 e 7.º, n.ºs 1, alínea e), iii.) e 3, da Lei n.º 38-A/2023. * 3) Notificada do requerimento de interposição de recurso a arguida não respondeu.* 4) O recurso foi remetido para este Tribunal da Relação e aqui, com vista nos termos do artigo 416.º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Senhor Procurador – Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido de o recurso ser julgado procedente.* 5) Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, a arguida não apresentou resposta.* 6) Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.* Cumpre apreciar e decidir.* B) Fundamentação:1. Âmbito do recurso e questões a decidir: O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, face ao disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”; são, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, nº 3, do mesmo diploma legal)[1]. No caso dos autos, face às conclusões da motivação apresentadas pelo Ministério Público, a única questão a decidir circunscreve-se à aplicação do perdão da Lei n.º 38-A/2023 à pena aplicada em cúmulo jurídico, em relação também ao crime de branqueamento, crime expressamente excluído por aquele diploma. * 2. O Despacho recorrido: Naquilo em que a mesma releva para o conhecimento do objeto do recurso, é o seguinte o teor do despacho impugnado: “Por decisão datada de 28.04.2008, foi a Arguida AA, condenada pela prática de um crime de Burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea a) do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão, e pela prática de um crime de Branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368.º -A do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, em cúmulo jurídico na pena única de 5 anos e 6 meses de prisão. A Arguida esteve presente em Audiência de Discussão e Julgamento, bem como em sessão de leitura de Acórdão. A Arguida interpôs recurso em 21.05.2008, foi proferido Acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça em 07 de Maio de 2009, transitado em 25.05.2009 (ref.ª ...49) que negou provimento ao recurso (ref.ª ...43), o qual foi notificado a Defensor (ref.ª ...08). A Arguida nasceu em ../../1982, sendo que os factos pelos quais foi condenada foram praticados entre Março de 2004 e Fevereiro de 2005. Ou seja, à data da prática dos factos a Condenada tinha menos de 30 anos, mais concretamente menos de 24 anos de idade. Cumpre apreciar e decidir. Dispõe o artigo 3.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, ao que nos interessa, que: “1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 4.º, é perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos.(…) 4 - Em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”. No caso concreto, a Condenada à data da prática dos factos tinha menos de 30 anos mostra-se, pois, preenchido o pressuposto de aplicação da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto (artigo 2.º da citada Lei). O crime de crime de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.º e 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, não se enquadra nas excepções previstas no artigo 7.º, do diploma legal em apreciação. Todavia, já o crime de branqueamento, p. e p. pelo artigo 368.º-A, do Código Penal, encontra-se previsto na excepção consagrada no artigo 7.º, n.º 1, alínea e), iii., da Lei em apreço. Considerando que a Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto declara tão só perdoado 1 ano de prisão a todas as penas de prisão até 8 anos, afigura-se que a operação de refazer operação de cúmulo não é necessária ou imposta, e por outro lado tendo em conta o quantum da pena parcelar aqui em causa não há necessidade de calcular o “peso” que o perdão pode ter no caso – como o dos autos - de o cúmulo incluir penas abrangidas e não abrangidas pelo perdão. Ante o exposto, dispondo o artigo 3.º, n.º 4 da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto que em caso de condenação em cúmulo jurídico o perdão incide sobre a pena única, declara-se perdoado 1 (um) ano na pena única aqui aplicada (de 5 anos e 6 meses de prisão) à Condenada AA, consignando-se ainda que com o presente perdão o remanescente da pena única continua a ser superior à pena mais elevada entre as que não beneficiam de perdão e logo ao limite mínimo abstracto da pena única. Mais se consigna que a presente decisão de sobre a aplicação do perdão é posterior à aplicação da pena de prisão dos autos. Logo sendo a pena efectivamente aplicada em 28.04.2008, posteriormente confirmada e transitada, superior a 5 anos, não há lugar à ponderação da substituição do remanescente da pena resultante da aplicação do perdão. * Notifique, sendo a Arguida com a menção de que o perdão é concedido sob condição resolutiva de não praticar infracção dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infracção superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada”.* 3. Apreciação do recurso:A Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto, veio estabelecer no seu artigo 1.º, «um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude». De acordo com o artigo 2.º, n.º 1 do mesmo diploma legal, «estão abrangidas pela presente lei as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 horas de 19 de junho de 2023, por pessoas que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3.º e 4.º». No entanto, segundo o artigo 7.º, n.º 1, e), iii) do mesmo diploma, não beneficiam do perdão e da amnistia, os condenados pelo crime de «branqueamento, previsto no artigo 368.º-A do Código Penal». No caso dos autos, a arguida AA foi condenada nos autos pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217.º e 218.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão, em concurso efectivo com a prática de um crime de branqueamento, previsto e punido pelo artigo 368.º-A, do Código Penal, na pena de 3 anos e 6 meses de prisão, e, em cúmulo jurídico, pena única de 5 anos e 6 meses de prisão. Ora, é inquestionável que no caso dos autos, o perdão de penas concedido pela Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, apenas poderia ser aplicado à condenação pela prática do crime de burla qualificada, o que não foi, nem podia ser, posto em causa no despacho recorrido. No entanto, o Tribunal recorrido, na interpretação que faz da lei, acabou por estender os efeitos do perdão ao crime de branqueamento, crime expressamente excluído pelo legislador porque declarou “perdoado 1 (um) ano na pena única aqui aplicada (de 5 anos e 6 meses de prisão)”, como se as duas penas se referissem a crimes que beneficiavam de perdão, o que não corresponde à verdade. Vejamos. Como é sabido, decorre das regras básicas de interpretação da lei previstas no artigo 9.º do Código Civil, que «a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (n.º1), não podendo porém, «ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (n.º 2). No caso dos autos, como refere o recorrente, estamos perante uma pena única que “engloba uma pena parcelar perdoável, pela prática do crime de burla qualificada, e uma outra não perdoável, pela prática do crime de branqueamento, importa alcançar uma solução de compatibilização”. Ora, estabelece o artigo 3.º, n.º 4 da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto que «em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única». No entanto, como se escreveu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/09/2024 (Processo n.º 227/18.9T9GRD-A.C1, consultado em www.dgsi.pt), “esta disposição tem e deve ser interpretada cum grano salis, ou seja, o perdão incidirá sobre a pena única se todos os crimes que integram o respetivo cúmulo jurídico não estiverem excluídos do perdão de pena”. Como se escreve no mesmo acórdão embora a propósito de crimes de natureza diversa, “tendo o arguido sido condenado pela prática de um crime de condução de veículo sem habilitação legal na pena de 1 (um) ano de prisão e de um crime de roubo previsto pelo artigo 210.º, n.º1, do Código Penal contra vítima especialmente vulnerável, na pena de dois anos de prisão e em cúmulo jurídico destas duas penas parcelares na pena única de 2 (dois) anos e 5 (cinco) meses de prisão, embora se verifiquem os pressupostos quanto à idade e data da prática de ambos os factos, o perdão apenas pode ser aplicado ao crime de condução de veículo sem habilitação legal dele ficando excluído o crime de roubo”. Nesse mesmo sentido se pronunciou o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão de 20/03/2024 (processo n.º 21/14.6PELRA.C3.S1, consultado em www.dgsi.pt), entendendo que quando consta no n.º 4 do artigo 3.º da Lei 38-A/2023, que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única, está-se necessariamente a considerar a pena única correspondente a crimes que beneficiam todos eles de perdão”. Mas há que compatibilizar o n.º 4 do art. 3.º com o art. 7.º da mesma lei, que determina as excepções ao perdão Compatibilização que se realiza aplicando-se primeiramente o perdão à pena parcelar que dele beneficia, procedendo-se seguidamente a cúmulo jurídico do remanescente dessa parcelar com a outra pena parcelar, excluída do perdão). E ainda no mesmo sentido se pronunciou o mesmo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 04/06/2024 (Processo n.º 890/22.6PDFAMD.L1.S1, consultado em www.dgsi.pt), entendendo que quando se diz que “em caso de condenação em cúmulo jurídico, o perdão incide sobre a pena única”, está-se necessariamente a considerar a pena única correspondente a crimes que beneficiam todos eles de perdão”. Na verdade, a única forma de compatibilizar os artigos 3.º, n.º 4 e 7.º, n.º 1 da Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto, é, como refere o recorrente, desfazer o cúmulo jurídico, deixando intocada a pena imperdoável (quanto ao crime de branqueamento), e aplicando o perdão à pena em que a arguida foi condenada pela prática do crime de burla qualificada. Depois, uma vez conhecidas as novas penas parcelares, deve ser estabelecido um “novo limite mínimo e máximo para a moldura do cúmulo”, determinando-se uma “nova pena única em conformidade”. Salvo o devido respeito por opinião contrária, o entendimento do Tribunal recorrido “deixa entrar pela janela o que se proíbe entrar pela porta, ou seja, aplicar-se-ia, pela solução trilhada pelo tribunal recorrido, a aplicação do perdão, ainda que parcialmente, a um crime legalmente excluído dessa aplicação” – cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra acima citado. De tudo resulta que o Despacho recorrido, ao aplicar o perdão a um crime que está expressamente excluído do perdão concedido pela Lei n.º 38-A/2023, de 02 de Agosto enferma de um erro de direito. O recurso procede, pois, na sua totalidade, assistindo toda a razão ao recorrente, sem necessidade de quaisquer outras considerações por manifestamente despiciendas, devendo o Tribunal recorrido declarar perdoado um ano de prisão na pena de 4 anos de prisão aplicada pela prática do crime de burla qualificada e manter inalterada a pena de 3 anos e 6 meses de prisão aplicada pela prática do crime de branqueamento, procedendo-se depois a novo cúmulo com aplicação de uma nova pena única. * C) Decisão:Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao recurso interposto pelo recorrente e, consequentemente, revogam o Despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que declare perdoado um ano de prisão na pena de 4 anos de prisão aplicada pela prática do crime de burla qualificada e que após, mantendo inalterada a pena a pena de 3 anos e 6 meses de prisão aplicada pela prática do crime de branqueamento, proceda a novo cúmulo jurídico com aplicação de uma nova pena única. * Sem custas.* Notifique.* Carlos da Cunha Coutinho (relator)Guimarães, 30 de Setembro de 2025 (o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos seus signatários – artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal). * Cristina Xavier da Fonseca (1.ª Adjunta) Luísa Maria da Rocha Alvoeiro (2.ª Adjunta) [1] O que é pacífico, tanto a nível da doutrina como da jurisprudência (cf. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113; bem como o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ, n.º 7/95, de 19/10/1995, publicado no DR 1ª série, de 28/12/1995; e ainda, entre muitos, os Acórdãos do STJ de 11/07/2019, consultados em www.dgsi.pt; de 25.06.1998, in BMJ 478, pág. 242; de 03/02/1999, in BMJ 484, pág. 271; de 28/04/1999, in Coletânea de Jurisprudência, acórdãos do STJ, Ano VII, Tomo II, pág. 193 |