Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | JOSÉ FLORES | ||
| Descritores: | CONTRATO DE SEGURO DE GRUPO RISCO DE INVALIDEZ TOTAL E PERMANENTE CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS COMUNICAÇÃO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 09/25/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 3.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | A nulidade da sentença, prevista no art. 615º, nº 1, al. b), do C.P.C., não deve ser confundida com algum vício da mesma, em sede de matéria de facto, previsto no art. 662º, do mesmo Código. Sendo o Autor, ladrilhador de profissão, tendo ficado impedido de exercer a sua actividade profissional habitual e/ou qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional, com limitações físicas determinantes de uma I.P.P. de mais de 73º, de uma I.P.G. de 75%, encontrando-se aposentado desde 2019 e podendo essa sua incapacidade agravar-se no futuro, está preenchida a cobertura do risco de invalidez total e permanente em seguro subscrito por si. Inexiste caso julgado entre uma decisão formal que convida uma parte a fazer intervir um terceiro na lide e uma sentença que aprecia o mérito da lide. Atento o decidido no acórdão do TJUE no seu acórdão de 20 de Abril de 2023, proferido no Processo C 263/22, a não comunicação de uma cláusula limitativa da cobertura do risco segurado pelo tomador de um seguro de grupo, a quem incumbia proceder a essa comunicação, pode ser oposta à seguradora no sentido de se considerar tal cláusula excluída do contrato de seguro. | ||
| Decisão Texto Integral: | ACORDAM OS JUÍZES NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES: 1. RELATÓRIO AA veio propor a presente acção declarativa de condenação contra EMP01... - Companhia de Seguros, S.A. peticionando (i) a condenação da Ré a pagar ao Autor todas as quantias que se vier a apurar que esta pagou ao Banco 1..., S.A. relativamente aos contratos de crédito contratados, desde a data da certificação da invalidez do Autor, 10 de Março de 2017, e até ao trânsito em julgado da sentença, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa legal, desde a data do pagamento de cada uma das prestações, até efectivo e integral pagamento, (ii) a condenação da Ré a pagar ao Autor todas as quantias que se vier a apurar que esta pagou à Ré, relativamente aos contratos de seguros de vida contratados, desde a data da certificação da invalidez do Autor, 10 de Março de 2017, e até ao trânsito em julgado da sentença, acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, contados à taxa legal, desde a data do pagamento de cada uma das prestações, até efectivo e integral pagamento, (iii) a condenação da Ré a pagar ao Banco 1..., S.A. o capital seguro em dívida relativo aos contratos de empréstimo contraídos pelo Autor, e (iv) a condenação da Ré a pagar ao Autor a quantia de € 10.000,00 a título de danos não patrimoniais. Regularmente citada, contestou a Ré por excepção dilatória, invocando a ilegitimidade do Autor, por esta caber ao Banco 1..., S.A., por excepção peremptória, de direito material e por impugnação motivada e por excepção peremptória de direito material. O Autor pronunciou-se sobre as excepções invocadas e invocou a nulidade das cláusulas constantes das condições gerais, cujo texto foi junto aos autos pela Ré. Foi proferido despacho pré-saneador a convidar o Autor a fazer intervir nos autos o tomador do seguro invocado na petição, que veio este fazer, requerendo a intervenção principal do Banco 1..., S.A., como associado da Ré, intervenção que foi admitida por despacho de fl. 98 O Banco 1..., S.A., contestou a acção defendendo-se por impugnação. A final foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: “Em face do exposto, julgo a acção proposta por AA, contra EMP01... – Companhia de Seguros, S.A., em que é Interveniente Principal, como associado da Ré, o Banco 1..., S.A., parcialmente procedente, por parcialmente provada, e, consequentemente: • Condeno a Ré a pagar ao Chamado o capital actualmente em dívida nos empréstimos mencionados na alínea a), do ponto II.1.; • Condeno a Ré a restituir ao Autor todas as quantias referentes às prestações liquidadas por este ao Chamado desde 10.03.2017, em execução dos empréstimos mencionados na alínea a), do ponto II.1., até ao dia do pagamento do capital referido na alínea anterior, acrescidas de juros contados à taxa legal de 4% sobre o valor de cada uma das prestações desde a data de pagamento de cada uma delas, até integral e efectivo pagamento; • Condeno a Ré a restituir ao Autor todas as quantias referentes aos prémios de seguro liquidadas por este entre 03.04.2017 a 02.09.2019, acrescidas de juros contados à taxa legal de 4% sobre o valor de cada um dos prémios desde a data de pagamento de cada um deles, até integral e efectivo pagamento. Absolvo a Ré e o Chamado do demais peticionado. Custas por Autor e Ré, na proporção de 1/8 para a primeira e 7/8 para a segunda, sem prejuízo do decidido administrativamente quanto ao apoio judiciário.” Inconformada com esta decisão, a Ré EMP01... recorreu, formulando as seguintes Conclusões 1 – A sentença recorrida violou o preceituado no art. 4º do DL 176/95, de 26.07, o disposto no artigo 79º do DL nº 72/2008, de 16.04, o preceituado nos artigos 580º, nº 1 e 607º, nºs 3 e 4 do CPC e os artigos 388º, 389º, 398º, 405º e 406º, nº 1 do CC. 2 - Sendo igualmente violadora do disposto nos pontos 1. e 3., al. a) das Condições Especiais do Seguro Complementar de Invalidez Total e Permanente. 3 – Não consta do elenco da matéria de facto dada como provada e constante da sentença recorrida, que o A. não tenha tomado conhecimento das condições contratuais, em concreto no que respeita ao conceito de invalidez total e permanente contratualmente previsto; 4 - Efectivamente, a sentença é completamente omissa, na sua fundamentação de facto, acerca dos factos de que se socorreu e considerou provados ou não provados, para poder concluir pela exclusão das cláusulas enunciadas nas als. c) a f), do ponto II.1 da sentença recorrida. 5 - Sem tais factos e a correspondente fundamentação sobre a convicção que o Tribunal formou sobre os mesmos, não pode ser extraída a consequência jurídica da exclusão das cláusulas enunciadas nas als. c) a f), do ponto II.1, sob pena de violação do preceituado nos nºs 3 e 4 do artigo 607º do CPC, pelo que se impõe a declaração de nulidade da sentença recorrida, nos termos do disposto no artigo 615º, nº 1, al. b) do CPC, o que para os devidos efeitos se invoca; […] 7 - Tendo o Autor ficado perfeitamente ciente de que a cobertura de Invalidez Total e Permanente seria accionada no caso de ficar impossibilitado de trabalhar (de todo), terá necessariamente que se concluir que o Autor bem sabia que tal cobertura não seria aplicável no caso de ficar apenas com uma incapacidade parcial para o trabalho (e não para todo e qualquer trabalho). 8 - Donde, se conclui, que não deverão considerar-se excluídas, por terem sido suficientemente comunicadas, as cláusulas enunciadas nas als. c) a f), do ponto II.1., impondo-se a revogação da sentença recorrida nesta parte; 9 – Neste pressuposto, considerando a definição de Invalidez Total e Permanente contratualmente estipulada, transcrita na al. f) da matéria de facto dada como provada e constante da sentença recorrida e atendendo à factualidade dada como provada constante das als. q), s), w) e x), tendo presente também a definição de invalidez relativa estipulada pela legislação aplicável à atribuição pela Segurança Social de reforma por invalidez, verificamos que o A. não se encontra numa situação de invalidez total e permanente nos termos definidos no contrato de seguro; 10 – Se a esta constatação adicionarmos a circunstância (que nem sequer foi abordada na sentença, mas que não era controvertida) de que o Autor não atinge a perda de ganho de pelo menos 66% contratualmente apresentada como um requisito cumulativo, conforme resulta do documento nº 6 junto com a p.i., concluímos pela inexistência de uma situação de invalidez total e permanente, com a consequente improcedência da pretensão do Autor; 11 – Devendo a sentença recorrida ser revogada em conformidade, também com este fundamento; 12 - Mesmo admitindo a exclusão das cláusulas enunciadas nas als. c) a f), do ponto II.1 da sentença recorrida, o que se alega sem conceder e só por mera cautela de patrocínio se equaciona, a correcta interpretação da expressão Invalidez Total e Permanente, permite concluir, face à matéria de facto dada como provada e constante da sentença recorrida, conjugada com a prova pericial e testemunhal produzidas, que no caso dos presentes autos, o quadro clínico do A. não se enquadra em tal expressão; 13 – A densificação e interpretação do conceito tem sido abordada pela jurisprudência, que tem vindo a considerar invalidez total e permanente como uma situação de total impossibilidade de a pessoa poder angariar os necessários proventos à sua sobrevivência e numa situação consolidada, neste sentido vide, designadamente, Ac. STJ de 10.12.2019 (proc. nº 634/13.3TVPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt), Ac. STJ de 14.07.2020 (proc. nº 1516/13.4TVLSB.L1.S1, in Sumários), Ac. TRP de 23.11.2021 (proc. nº 382/19.0T8PRT.P1, in www.dgsi.pt), Ac. TRG de 13/9/2018 (proc. 428/17.7T8FAF.G1, in www.dgsi.pt) e Ac. STJ de 09.07.2014 (relator Silva Gonçalves), disponível in www.dgsi.pt; […] 14 – No que respeita à determinação da entidade responsável pela violação dos deveres de informação que eventualmente possam levar à exclusão das cláusulas enunciadas nas als. c) a f), do ponto II.1 da sentença recorrida, tal como considerou o Tribunal a quo, cumpre salientar que, ainda na fase dos articulados e quando em sede de resposta à contestação, o Autor alegou que aquando da celebração do contrato, não lhe foram dadas a conhecer pelo Banco mutuante, as condições gerais do contrato de seguro de vida dos presentes autos e, em concreto o conceito de invalidez total e permanente contratualmente estipulado, o Tribunal proferiu despacho a 17.06.2020, no qual tomou posição sobre a questão, pronunciando-se sobre o seu enquadramento jurídico; 15 - Do referido despacho não houve recurso e foi chamado à lide o Banco Tomador, pelo que o mesmo transitou em julgado; 16 – Nos termos de tal despacho, o Tribunal a quo tomou posição clara e transitada em julgado sobre a jurisprudência que acolheu nos autos acerca da sobreposição do Regime Jurídico do Contrato de Seguro sobre o regime geral das Cláusulas Contratuais Gerais, considerando não poder ser imputada à seguradora a violação dos deveres de informação, não sendo a mesma susceptível de ser responsabilizada por um acto ilícito cometido pelo tomador do seguro. (Sublinhado nosso); 17 - Perante esta opção clara do Tribunal a quo, a ora Recorrente ficou, de resto, descansada quanto à questão da, então controvertida, violação dos deveres de informação, não tendo tido, sequer, a preocupação de produzir prova no sentido do cumprimento de tais deveres, uma vez que o ónus a si não pertencia; 18 - Assim, atento o despacho supra transcrito, transitado em julgado e que conheceu, do ponto de vista do mérito, da questão da entidade responsável em caso de violação dos deveres de informação, não pode o Tribunal a quo, em sentença, alterar o seu entendimento, acolhendo a corrente que não desonera a seguradora do cumprimento dos aludidos deveres, sob pena de clara violação do preceituado no artigo 580º, nº 1 do CPC; 19 - Termos em que, se impõe, também com este fundamento, a revogação da sentença recorrida em conformidade, responsabilizando-se o Banco Tomador e não a Ré seguradora, caso se venha a concluir pela violação dos deveres de informação; 20 - Finalmente, sem embargo do supra exposto, certo é que estamos perante um seguro de grupo contributivo, pelo que, seguimos de perto a jurisprudência que defende que a violação dos deveres de informação apenas ao Banco poderá ser imputável, jamais podendo a Ré recorrente ser responsabilizada nos termos em que o foi, neste sentido, vide, por todos, Ac. STJ de 18.02.2021, Relatora Maria dos Prazeres Pizarro Beleza, in www.dgsi.pt; 21 - Termos em que, caso se considere que estão excluídas, por não terem sido comunicadas, as cláusulas enunciadas nas als. c) a f), do ponto II.1. da sentença recorrida e caso se considere que o Autor está numa situação de Invalidez Total e Permanente, o que se alega sem nunca conceder, sempre impenderá sobre o Chamado e não sobre a ora Recorrente, a consequente responsabilidade. 22 - Impondo-se, também com este fundamento a revogação da sentença recorrida. Nestes termos, nos mais de direito e sempre com o mui douto suprimento de V. Exas. deve ser dado provimento ao recurso apresentado pela Recorrente, absolvendo se a mesma do pedido, … A Recorrida Banco 1... respondeu ao recurso, pugnando pelo seu julgamento “como de direito, mas sempre em vista das considerações” que alegou e formulou pedido de ampliação do objecto do recurso, que foi indeferido pela primeira instância. O Recorrido AA contra-alegou concluindo pela falta de provimento do recurso. O Tribunal a quo declarou, ao abrigo do disposto no art. 617º, do Código de Processo Civil, que não ocorre a nulidade invocada pela Recorrente. Foi por este Tribunal proferido acórdão que julgou improcedente a apelação em apreço. Apreciando recurso de revista da Recorrente, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu anular a decisão recorrida, determinando a baixa dos autos ao tribunal recorrido para ampliação da matéria de facto. Cumpre, portanto, refazer o acórdão, procedendo nesses termos… 2. QUESTÕES A DECIDIR Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas[2] que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[3] As questões enunciadas pela recorrente podem sintetizar-se da seguinte forma: - Nulidade da sentença, ex vi art. 615º, nº 1, al. b), do C.P.C.; - Revisão da matéria de facto e revisão do mérito da sentença (inexistência de invalidez e perda de ganho contratualmente relevantes); - A correcta interpretação da expressão invalidez total e permanente; - A entidade responsável pela violação dos deveres de informação e violação do caso julgado; - A entidade responsável pela violação dos deveres de informação e a exclusão da Recorrente. Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir. 3. FUNDAMENTAÇÃO 3.1. Nulidade da sentença A Recorrente conclui que foi violado o disposto nos nºs 3 e 4, do art. 607º, do Código de Processo Civil, por não ter ficado a constar da matéria de facto dada como provada que o A. não teve conhecimento das condições contratuais em apreço. Por isso, defende que a sentença é nula nos termos do disposto no art. 615º, nº 1, al. b), do C.P.C.. O Recorrido AA e o Tribunal a quo defendem o oposto. Cumpre apreciar e decidir. Nos termos do Artigo 615º, nº1, alínea b), do Código de Processo Civil, é nula a sentença quando não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão. Trata-se de um vício formal, em sentido lato, traduzido em error in procedendo ou erro de actividade que afecta a validade da sentença. Ensinava a este propósito ALBERTO DOS REIS que[4] «Há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeita-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto.»[5] Nas palavras precisas de TOMÉ GOMES6, «Assim, a falta de fundamentação de facto ocorre quando, na sentença, se omite ou se mostre de todo ininteligível o Apelações em processo comum e especial (2013)[6] quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adoptada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. / A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão.» Conforme se refere de forma lapidar no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.4.95, Raul Mateus, [7]“ (...) no caso, no aresto em recurso, alinharam-se, de um lado, os fundamentos de facto, e, de outro lado, os fundamentos de direito, nos quais, e em conjunto se baseou a decisão. Isto é tão evidente que uma mera leitura, ainda que oblíqua, de tal acórdão logo mostra que assim é. Se bons, se maus esses fundamentos, isso é outra questão que nesta sede não tem qualquer espécie de relevância.” O mesmo Tribunal precisou que a nulidade da sentença por falta de fundamentação não se verifica quando apenas tenha havido uma justificação deficiente ou pouco persuasiva, antes se impondo, para a verificação da nulidade, a ausência de motivação que impossibilite o anúncio das razões que conduziram à decisão proferida a final (Acórdão de 15.12.2011, Pereira Rodrigues, 2/08). Só a absoluta falta de fundamentação – e não a sua insuficiência, mediocridade, ou erroneidade – integra a previsão da alínea b) do nº1 do Artigo 615º, cabendo o putativo desacerto da decisão no campo do erro de julgamento – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 2.6.2016, Fernanda Isabel Pereira, 781/11.[8] «O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal e persuasivo da decisão – mas não produz nulidade.»9 A não concordância da parte com a subsunção dos factos às normas jurídicas e/ou com a decisão sobre a matéria de facto de modo algum configuram causa de nulidade da sentença[9]. Em face do exposto, é patente que nunca, em tese, a argumentação da Apelante configuraria o vício expresso na citada al. b). Aliás, a Ré é livre de discordar da sentença mas quando, patrocinada por mandatário forense, a impugna deve atender a toda a sua fundamentação. E nesta está, a propósito, expresso, mais do que uma vez, para um bom leitor, que, sic: “incumbia à Ré não só alegar e provar que efectivamente o acordo das partes incidia sobre tais cláusulas pré-elaboradas (neste âmbito, devia ter indagado sobre a versão que corresponde ao acordo celebrado entre as partes uma vez que juntou aos autos dois textos distintos…), mas também provar que existiu uma efectiva comunicação de tais cláusulas ao Autor, ou seja, que este ficou ciente de tal clausulado. E a Ré não o demonstrou (aliás, nem, tão pouco, o Chamado)”. Se não concorda com esta argumentação deve rebatê-la e não limitar-se, a latere, a questionar, sem qualquer fundamento palpável, a forma da sentença. É que, a final, é disso que se trata quando estamos no âmbito do disposto no citado art. 615º, confundindo aqui também a Apelante essa forma como a substância da questão suscitada, que a ter provimento (que não tem), teria antes subsunção à previsão do art. 662º, do Código de Processo Civil, e nunca àquela. Improcede, portanto, esta arguição, aliás, conforme já considerou o Supremo Tribunal de Justiça. 3.2. REAPRECIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO JULGADA No acórdão proferido nestes autos em 17.6.2025, o Supremo Tribunal de Justiça considerou que, sic: “Efectivamente, mostra-se alegado nos autos que o tomador do seguro não comunicou e/ou não explicou ao autor, em momento anterior ou concomitante com a celebração do contrato de seguro, o teor das cláusulas cuja exclusão se discute nos autos e que se reconduzem, tudo visto, ao conceito de incapacidade relevante para efeitos de cobertura do seguro dos autos. (…) No caso dos autos, tendo sido alegado que o tomador de seguro não comunicou, nem explicou ao autor o teor das cláusulas em discussão nos autos e assumindo tais factos particular relevância na economia dos presentes autos, impõe-se a baixa do processo do tribunal recorrido para se proceder à ampliação da matéria de facto, de forma que esta constitua base suficiente para a boa decisão da causa.” Considerando o assim determinado e o disposto no art. 662º, do Código de Processo Civil, importa incluir nos factos a julgar e apreciar à luz da prova produzida (art. 662º, nº 2, al. c)), a seguinte matéria: o tomador do seguro não comunicou e/ou não explicou ao autor, em momento anterior ou concomitante com a celebração do contrato de seguro, o teor das cláusulas cuja exclusão se discute nos autos e que se reconduzem, tudo visto, ao conceito de incapacidade relevante para efeitos de cobertura do seguro dos autos, maxime no que respeita ao conceito de invalidez total e permanente contratualmente previsto. Posto isto, compulsada a prova produzida, nomeadamente aquela que as partes, incluindo a Recorrente, indica agora em sede de recurso como sendo pertinente para sua decisão, julgamos que essa matéria negativa deve ser considerada provada. Com efeito, as declarações do Autor não reconhecem em momento algum que lhe tivesse sido comunicada com um mínimo de rigor, por alguém, as cláusulas contratuais do negócio em apreço, nomeadamente o exacto conceito de invalidez total e permanente unilateralmente definido e em discussão nos autos. Pelo contrário, note-se que a dada altura o Autor afirma que no momento próprio ninguém falou em percentagens nenhumas, explicando assim que esse conceito nunca lhe foi esclarecido ou concretizado (vide declarações transcritas nas alegações do Autor) De resto, as apontadas declarações que o funcionário do banco, que não recorda em concreto o caso do Autor, produziu foram genéricas e circunstanciais sobre o cumprimento da obrigação de comunicar esse clausulado. Por isso, não nos convencem de que, neste caso, historicamente, alguma vez tenha ocorrido esse cumprimento e, positivamente, mais suportam as declarações do autor em sentido inverso e que reproduzem a ligeireza ou facilitismo habitual no cumprimento dessa obrigação que grassava na altura e visava sobretudo convencer o contratante do empréstimo e, rapidamente, concluir esse negócio fundamental para o banco que prestava o mútuo. Neste contexto em que as demandadas não produziram qualquer prova convincente ou assertiva do cumprimento dessa obrigação de informação, as declarações de parte, assim contextualizadas e suportadas, são atendíveis ou relevantes e, por isso, temos de concluir que essa matéria deve ser julgada provada. 3.3. FACTOS A CONSIDERAR I) Factos provados. a) O Autor celebrou com a Ré, em 18 de Agosto de 2011, um acordo, apelidado de vida crédito habitação (2 cabeças), titulado pela apólice nº ...00, associado aos empréstimos nºs. ...34 e ...35, concedidos pelo Chamado (Banco 2.../Banco 1...), com o capital máximo seguro de € 124.990,00, sendo tomador do seguro o Autor, as pessoas seguras o Autor e sua mulher, BB, e beneficiário o Chamado, nos termos das condições particulares, juntas aos autos de fls. 10 a 14 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido; b) Nos termos dessas condições particulares, o benefício irrevogável a favor do Chamado ascende até ao valor máximo de € 124.990,00, em caso de morte e em caso de invalidez total permanente; c) Nos termos da Cláusula 1ª (objecto da cobertura), nº 1, do título cobertura complementar de invalidez absoluta e definitiva, das condições especiais, “em caso de Invalidez Absoluta e Definitiva da Pessoa Segura a Companhia garante pela presente Cobertura Complementar o pagamento de um Capital igual ao garantido em caso de morte pelo seguro principal”; d) E de acordo com o nº 3 da supra citada cláusula, “para efeito desta Cobertura Complementar considera-se que a Pessoa Segura se encontra em estado de Invalidez Absoluta e Definitiva quando por consequência de doença ou acidente, fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade remunerada e na obrigação de recorrer à assistência de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente e ainda: a) nos casos de patologia psíquica, a situação de invalidez permaneça ininterruptamente durante 2 anos; b) nos casos de doença, o estado de invalidez se mantenha, ininterruptamente durante os seis meses”; e) Nos termos da Cláusula 1ª (objecto da cobertura), nº 1, do título cobertura complementar de invalidez total e permanente, das condições especiais, “em caso de Invalidez Total e Permanente do Segurado a Companhia garante pela presente Cobertura Complementar o pagamento de um Capital igual ao garantido em caso de morte pelo seguro principal”; f) E de acordo com o nº 3 da supra citada cláusula, “para efeito desta Cobertura Complementar considera-se que o Segurado se encontra em estado de Invalidez Total e Permanente quando, por consequência de doença ou acidente e independentemente da sua vontade, fique totalmente incapaz de exercer, com carácter permanente e irreversível, a sua profissão ou qualquer outra actividade lucrativa compatível com as suas capacidades, conhecimentos e aptidões e ainda quando desse estado resultar: a) uma incapacidade funcional permanente de grau igual ou superior a 75% de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades em caso de Invalidez Total e Permanente resultante de acidente; b) uma perda de ganho de pelo menos 66%, em caso de Invalidez Total e Permanente resultante de doença. Considera-se perda de ganho, a diferença entre o rendimento mensal auferido, pelo Segurado, em situação de plenas faculdades físicas e mentais e de pleno emprego, e o valor atribuído pelo Sistema Nacional de Saúde por efeitos de uma Invalidez Total e Permanente; c) nos casos de patologia psíquica, a situação de invalidez permanecer, ininterruptamente, durante 2 anos; d) nos casos de doença, o estado de invalidez se mantenha, ininterruptamente durante seis meses”; g) O Autor nasceu a ../../1980; h) O Autor era ladrilhador; i) O Autor, em 10 de Março de 2017, em ..., quando procedia à limpeza da fachada de um edifício, ao puxar a mangueira que utilizava para o efeito, e porque esta se prendeu, sofreu um movimento de retracção nas costas, o que o levou a cair; j) Em consequência desse movimento, o Autor sofreu cervicalgia e lombalgia com ciatalgia direita; k) Com hérnia discal volumosa em C6-C7 com compressão medular e alterações de mielopatia; l) Foi tratado cirurgicamente no Hospital ... (2017), sendo posteriormente seguido em consultas de neurologia (Hospital ...) e de Urologia e Fisiatria (ULS...); m) Como sequelas da patologia apresenta tetraparesia espástica, de predomínio direito (lado dominante) e bexiga e intestino neurogénicos; n) Não consegue cortar a carne com uma faca, abotoar-se, conduzir carros com transmissão manual e deslocar-se em qualquer tipo de terrenos; o) Em 2021, foi submetido a nova cirurgia da coluna lombar; p) As sequelas de que padece são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual, bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional; q) O Autor é portador de uma Incapacidade Permanente Parcial de 73,519%; r) Esta incapacidade é permanente e irreversível, podendo agravar-se no futuro com a evolução das doenças; s) O Autor não se encontra completa e totalmente incapacitado para exercer qualquer tipo de profissão, sem prejuízo do que se deu por provado em n) e p); t) Necessita de ajuda de terceira pessoa de forma parcial para algumas actividades do dia-a-dia, do uso de canadiana para se movimentar e de um veículo com transmissão automática para conduzir; u) Necessita, de forma permanente, de consultas de fisiatria, urologia e de dor crónica; v) Em Janeiro de 2018, o Autor submeteu-se à avaliação de uma Junta Médica, presidida pelo Dr. CC, que lhe atribuiu uma incapacidade permanente global de 75%; w) Encontra-se aposentado por invalidez relativa desde ../../2019; x) Por sentença proferida pelo Juízo do Trabalho, do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, no âmbito do processo de acidente de trabalho nº 901/18.0T8VCT, o Autor foi submetido a perícia de avaliação do dano corporal em direito do trabalho, tendo da mesma resultado que, de acordo com a Tabela Nacional de Incapacidades para Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais, o mesmo ficou a padecer de uma incapacidade permanente parcial de € 66,8800%, conforme se retira de fls. 16 a 18 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido; y) Em 30 de Janeiro de 2018, o Autor comunicou à Ré a sua doença solicitando o accionamento do contrato de seguro celebrado, conforme se retira da missiva cuja cópia se encontra junta aos autos a fl. 58 e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido; z) Com datas de 22 de Fevereiro de 2018 e de 2 de Maio de 2018, a Ré remeteu ao Autor as missivas cujas cópias se encontram a fls. 58v e 59 dos presentes autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido; aa) O Autor apôs as suas assinaturas nos documentos cujas cópias constam de fls. 59v a 62 (proposta do contrato de seguro e anexos) e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido; bb) De 08.04.2017 a 08.04.2024, o Autor liquidou as prestações relativas ao empréstimo nº ...34, no valor global de € 23.163,66; cc) De 08.04.2017 a 08.04.2024, o Autor liquidou as prestações relativas ao empréstimo nº ...35, no valor global de € 9.613,92; dd) De 03.04.2017 a 02.09.2019, o Autor liquidou as quantias mensais do prémio de seguro relativo ao acordo mencionado em a), no valor global de € 962,05. dd) O tomador do seguro não comunicou e/ou não explicou ao autor, em momento anterior ou concomitante com a celebração do contrato de seguro, o teor das cláusulas cuja exclusão se discute nos autos e que se reconduzem, tudo visto, ao conceito de incapacidade relevante para efeitos de cobertura do seguro dos autos, nomeadamente no que respeita ao conceito de invalidez total e permanente contratualmente previsto. II) Factos não provados. (com exclusão dos enunciados fácticos de carácter conclusivo, dos enunciados fácticos irrelevantes e dos enunciados descritores de matéria de direito) Da petição inicial: artigos 1º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea a), 5º a 6º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea i), 16º, sem prejuízo do que se deu por provado nas alíneas n) e p), 23º a 27º, sem prejuízo do que se deu por provado nas alíneas bb) e cc), e 27º a 31º. Da contestação da Ré: artigos 1º, sem prejuízo do que se deu por provado na alínea a), 62º a 66º, 67º a 69º, 71º a 76º e 78º a 81º. Da resposta do Autor: inexistem. Da contestação do Chamado: inexistem.). 3.4. DO DIREITO APLICÁVEL 3.4.1. Da revisão do mérito da sentença com base na factualidade mencionada na 7ª conclusão Nas suas 8ª a 11ª conclusões, a Apelante pretende discutir o mérito da sentença com base em normas convencionais que a decisão recorrida considerou excluídas do negócio em apreço, pressupondo a introdução no objecto da lide da matéria agora invocada no item 7 das mesmas conclusões. Sucede que, apesar de o Supremo Tribunal de Justiça ter considerado, diversamente, a introdução dessa matéria na formulação negativa acima considerada, certo é que o resultado material é idêntico àquele que foi considerado pela primeira instância, onde se teve em conta que a Ré ou o chamado não demonstraram que tenha existido uma efectiva comunicação das cláusulas em apreço ao Autor (cf. parte final da pg. 13). Pelo exposto, improcede o pressuposto (de facto) dessas conclusões e, portanto, fica prejudicado o conhecimento do seu mérito. 3.4.2. A correcta interpretação da expressão invalidez total e permanente No entendimento defendido pela Recorrente (conclusões 12ª a 15ª), o Autor não se encontra numa situação de invalidez total e permanente prevista no contrato, tendo em conta o disposto “sob as als. n), p), q), r), s), t), u), v), w) e x), bem assim como a conclusão constante do relatório pericial”. O Tribunal a quo, por sua vez, considerou o seguinte: “No nosso caso, importa ter presente o que consta das alíneas m), n), p), q), r), t), u) e v), do ponto II.1., ou seja, designadamente: • O Autor apresenta tetraparesia espástica, de predomínio direito (lado dominante) e bexiga e intestino neurogénicos; • Não consegue cortar a carne com uma faca, abotoar-se, conduzir carros com transmissão manual e deslocar-se em qualquer tipo de terrenos; • As sequelas de que padece são impeditivas do exercício da actividade profissional habitual, bem assim como de qualquer outra dentro da sua área de preparação técnico-profissional; • O Autor é portador de uma Incapacidade Permanente Parcial de 73,519%; • Esta incapacidade é permanente e irreversível, podendo agravar-se no futuro com a evolução das doenças; • Necessita de ajuda de terceira pessoa de forma parcial para algumas actividades do dia-a-dia, do uso de canadiana para se movimentar e de um veículo com transmissão automática para conduzir; • Necessita, de forma permanente, de consultas de fisiatria, urologia e de dor crónica; • Em Janeiro de 2018, o Autor submeteu-se à avaliação de uma Junta Médica, presidida pelo Dr. CC, que lhe atribuiu uma incapacidade permanente global de 75%; • Encontra-se aposentado por invalidez relativa desde ../../2019. O quadro factual apresentado, sendo aqui de realçar, não só o elevado grau de IPP, mas também a circunstância da irreversibilidade das sequelas (o Autor não vai melhorar) e do seu possível agravamento, sendo certo que já com este grau de IPP o Autor mostra-se fortemente condicionado, permite-nos afirmar que ocorreu um sinistro enquadrável nos termos do acordo descrito na alínea a), do ponto II.1., e respectiva apólice. Com efeito, sendo o juízo de prognose negativo relativamente a uma possível reconversão profissional, atenta a idade do Autor e as suas aptidões profissionais, a perda da capacidade de ganho, é, pois, total. Consequentemente, e pelo exposto, consideramos que o Autor ficou a padecer de uma situação subsumível ao conceito de Invalidez Total Permanente, prevista no acordo descrito na alínea a), do ponto II.1., pelo que deve a Ré responder civilmente nos termos do contratualmente assumido.” O Recorrido alega nesse mesmo sentido. Vejamos… Está em causa a melhor interpretação da declaração negocial vertida supra no ponto 3.3., I), b), de acordo com a qual se convencionou um benefício irrevogável a favor do Chamado até ao valor máximo de 124990 euros em caso de “invalidez total permanente” do aqui Autor. Como nota prévia, esclarecemos que esta análise terá em conta apenas e só a matéria de facto apurada (registada supra em 3.3.I)) e não qualquer outra que resulte dos meios de prova produzidos nos autos e foi invocada de forma vaga, inadequada e inoportuna nos pontos 12. e 14. das conclusões em apreço. Não estamos na fase dos articulados, o momento do julgamento amplo dos factos e da prova apresentados já passou. Nesta instância de recurso limitamo-nos a rever a decisão proferida, o que, no plano dos factos, só pode ocorrer nos termos acima expostos e que aqui damos reproduzidos. Posto isto, assente que subsistem, como dados relevantes para a interpretação do negócio em causa, os que foram apurados em a) e b), da matéria julgada provada, haverá que, de acordo com a previsão do art. 236º, do Código Civil, interpretar o conceito em apreço. Segundo Pires de Lima e Antunes Varela [10]a regra estabelecida no n.º 1 é a de que o sentido decisivo da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante, exceptuando-se apenas os casos de não poder ser imputado ao declarante, razoavelmente, aquele sentido, ou o de o declaratário conhecer a vontade real do declarante. Consagrou-se uma “doutrina objectivista da interpretação, em que o objectivismo é temperado por uma salutar restrição de inspiração subjectivista” tendo em vista a protecção das legitimas expectativas do declaratário e a não perturbação da segurança do tráfico, conferindo-se à declaração o sentido que seria razoável presumir em face do comportamento do declarante, e não o sentido que este lhe quis efectivamente atribuir, sendo que a normalidade que a lei toma como padrão, “exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante”. O sentido decisivo da declaração negocial é o que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, por alguém medianamente instruído e diligente, capaz de se esclarecer acerca das circunstâncias em que as declarações foram produzidas. Acresce ainda, relativamente aos negócios jurídicos formais, o limite de a declaração não poder valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. artigo 238º, nº 1, do Código Civil); ou seja, o sentido hipotético da declaração que prevalece no quadro objectivo da respectiva interpretação tem que ter um mínimo de literalidade no texto do documento que a envolve. No caso dos autos, estamos perante uma declaração negocial inserida em documento escrito, pelo que o critério interpretativo segundo a impressão de um declaratário normal colocado na posição do real da recorrente está dessa forma limitado pelo referido mínimo de literalidade constante do texto do documento.[11] Neste sentido, perante a factualidade assente, maxime a considerada pela primeira instância, confirmamos o sentido da sua interpretação dessa declaração negocial, seguindo de perto a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça citada pela sentença em crise e na qual ficou expresso o seguinte: “Não existindo uma definição legal, o percurso definidor desse conceito de invalidade permanente tem que considerar as condicionantes aludidas, assumindo natural destaque o interesse (e finalidade racional) do contrato de seguro e o contexto de coligação imposta com os contratos de financiamento. Logo, a nosso ver, não pode deixar de assentar, na sua base, numa deficiência física e/ou intelectual que, não obstante os cuidados, os tratamentos e os acompanhamentos, clínicos e reabilitadores, realizados depois do sinistro, subsiste a título definitivo em sede anatómica-funcional e/ou psicossensorial. Depois, implica esse trilho precisar que esse estado deficitário, independentemente do seu nível ou grau ou percentagem de incapacidade (desde que não seja residual ou insignificante), teve consequência (enquanto impacto decisivo) na alteração ou modificação do estado de vida, pessoal e profissional, anterior ao sinistro. Para esse juízo sobre o reflexo do sinistro, há que ter em conta, numa ponderação múltipla e não individualmente exclusiva, nomeadamente, a actividade anteriormente desenvolvida como fonte de rendimentos, a idade e o tempo restante de vida activa profissional, a perda de independência psico-motora, o tipo de doença ou restrição de saúde, as habilitações e capacidades literárias e profissionais da pessoa segura e a possibilidade de reconversão para actividade compatível com essas habilitações e capacidades com igual ou aproximada medida de rendimentos, sempre com enquadramento na situação remuneratória concreta (e projecção na “capacidade de ganho”) do segurado após a estabilização das sequelas do sinistro. É relevante a invalidez, por isso, que, em concreto, se traduz em restrições que, atendendo aos esforços, capacidades e qualificações específicas da profissão exercida, inviabilizam sem mais a manutenção da profissão ou outra com rendimentos equiparáveis, mesmo que sem necessária articulação com os constrangimentos que frustrem a conservação das tarefas da vida diária com a autonomia apresentadas no momento pré-sinistro. De facto, nela se encontram os requisitos da permanência ou definitividade na afectação da capacidade de ganho que cumprem o interesse do contrato de seguro. Já não será assim, por exemplo, quando o sinistro provoca uma incapacidade elevada para o trabalho mas a subsequente reconversão profissional para outras tarefas na mesma entidade patronal não conduz a alteração remuneratória.” Nesse sentido, atente-se no que se concluiu no Ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 10.7.2024[12]: (…) IV - Provando-se, entre o mais, que, não obstante a apurada patologia do carcinoma da mama e respectivas sequelas, a autora mantém capacidade para o exercício de outras actividades profissionais (com a excepção de cabeleireira, costureira e similares), desde que não impliquem mobilização do membro superior direito acima do nível dos ombros ou em esforço prolongado no tempo, não se pode considerar, no contexto do específico contrato de seguro em análise e perante o quadro de vida apurado, que aquela esteja afectada por uma invalidez absoluta e definitiva. V - Já, porém, com referência a um outro contrato de seguro no qual, para além dessa invalidez absoluta e definitiva, também se previu a cobertura do risco de invalidez total e permanente, deve considerar-se por via interpretativa deste conceito no contexto desse contrato e com referência aos concretos factos provados, que a autora está afectada por tal incapacidade.[13] (…) porque, na economia de tal acordo e tendo em conta os interesses de qualquer das partes, a referida cláusula deve ser integrada com reporte à incapacidade de que a A. efectivamente padece; isto é, à total incapacidade para o exercício da sua profissão de cabeleireira. (…) Por isso, sabendo nós, que a A. era cabeleireira e que a sua formação profissional foi sempre feita nessa área, a questão que se coloca é a de saber qual o significado daquela invalidez (total e permanente), para um declaratário normal colocado na posição da A. e sabendo nós que a mesma aderiu a este contrato apenas para garantir o pagamento do capital que estivesse em dívida ao banco na data da verificação de tal risco e porque essa adesão lhe foi exigida por esse banco. Ora, tendo em conta os critérios interpretativos previstos nos artigos 236.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil, de acordo com os quais, sentido e alcance das declarações negociais valem de acordo com a vontade real do declarante sendo ela conhecida do declaratário, ou, na hipótese contrária, por regra, “com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante”, a menos que este último não possa razoavelmente contar com esse sentido[18], temos para nós como líquido que o único significado objectivo possível é aquele que já indicámos.” No caso presente, julgamos que estão reunidas as premissas que importam que se siga esta jurisprudência, como determina o art. 8º, nº 3, do Código Civil. O Autor, ladrilhador de profissão, está impedido de exercer a sua actividade profissional habitual e/ou qualquer outra dentro da sua área de preparação técnicoprofissional, tendo limitações físicas determinantes de uma I.P.P. de mais de 73º, de uma I.P.G. de 75%, encontrando-se aposentado desde 2019. A sua incapacidade pode agravar-se no futuro. É de presumir (art. 349º, do C.C.), portanto, a impossibilidade de, facilmente, o Autor exercer qualquer outra actividade que lhe venha a permitir auferir o mesmo rendimento de que beneficiava e assim suportar a obrigação subjacente ao risco que segurou, o que nos conduz ao preenchimento do conceito em apreço de acordo com o espirito habitual presente neste tipo de contratos, assim como considerou a jurisprudência acima citada em casos similares. De resto, outro entendimento, perante a gravidade da incapacidade do Autor e o que ela determina na sua vida pessoal e profissional, importando inclusive a sua aposentação por invalidez, seria de considerar abuso do direito, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa fé que deve presidir à relação em apreço, nos termos do art. 334º, do Código Civil. Neste conspecto, improcedem as conclusões em apreço. 3.4.3. A entidade responsável pela violação dos deveres de informação e a violação do caso julgado Nas conclusões 16ª a 21ª, a Recorrente esgrime argumentos no sentido de considerar a existência de caso julgado que imporia a “revogação da sentença”. No seu entender, o Tribunal recorrido cometeu o pecado de emitir o despacho de 17.6.2020 no qual, se bem percebemos a posição da Apelante, antes de apreciar, em sentença, o mérito da lide do Autor, já decidiu que esta estava desresponsabilizada da violação dos mencionados deveres de informação por parte do tomador do seguro. Por isso, sem qualquer exegese do instituto em causa, entende que foi violado o disposto no art. 580º, nº 1, do Código de Processo Civil, ou seja, o caso julgado. Será assim? Nessa decisão de 2020, perante uma apreciação liminar da petição inicial, ficou dito em suma, o seguinte: “Imputando-se a violação de tais deveres de informação ao tomador do seguro, este deve estar na lide, sob pena de violação do litisconsórcio necessário passivo, uma vez que “não podemos definir no âmbito desta acção a responsabilidade contratual da ré, sem discutirmos a questão da válida comunicação das cláusulas contratuais; e não podemos discutir tal questão sem a presença da entidade responsável por esse dever de comunicação”. Em face do exposto, e nos termos do disposto nos artigos 6º, nºs. 1 e 2, 590º, nº 2, 33º, nºs. 2 e 3, do Código de Processo Civil, convido o Autor a, no prazo de 10 dias, fazer intervir nos autos, como associado da Ré, o tomador do seguro invocado.” Posto isto, com a mesma economia que preside às alegações em apreço, julgamos que não está violado o disposto no art. 580º, nº 1, do Código de Processo Civil. Com efeito, neste normativo estipula-se, tão-somente, que (1) as excepções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à excepção do caso julgado. Como é patente, o Apelante não alegou, nem podia porque isso não resulta do confronto das decisões em apreço, que a causa se repetiu de acordo com os requisitos previstos no seguinte art. 581º, do Código de Processo Civil. Por isso, não existe, na sua argumentação expendida ou no objectivo confronto dessas decisões, qualquer violação do julgado em 2020. Na verdade, as alegações da Recorrente cometem o erro fundamental de confundir uma decisão meramente formal ou adjectiva (a de 2020) e uma outra de natureza substantiva, a sentença apelada, a única que se pronunciou sobre a sua responsabilidade no âmbito do contrato em apreço. Improcedem, por isso, as conclusões em causa. 3.4.4. A entidade responsável pela violação dos deveres de informação e a exclusão da Recorrente Por fim, a Apelante argumenta que apenas ao Banco poderá ser imputável a falta que se considerou na sentença apelada e cita em abono da sua tese o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 18.2.2021[14]. Sendo certo que essa jurisprudência aparente dar razão à Apelante (apenas quanto à oposição da referida falta de informação), temos de considerar a ulterior evolução nessa matéria, a qual está plasmada no recente Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 29.2.2024[15], no qual se concluiu, para o que aqui releva, que: I. Nos termos do artigo 91.º do Regulamento do Processo do Tribunal de Justiça, os acórdãos do Tribunal de Justiça da União Europeia, incluindo os proferidos em resposta a reenvio prejudicial, têm força obrigatória desde o dia da sua prolação nos Estados-membros, aplicando-se retroactivamente desde o momento da entrada em vigor da norma interpretada. II. Esta força obrigatória vincula não só o tribunal nacional que procedeu ao reenvio no processo em que o fez, mas a interpretação do direito europeu por ele efectuada passa a vincular os Estados Membros e todos os tribunais nacionais desses Estados, na aplicação futura da legislação objecto de reenvio a casos materialmente idênticos, reflectindo o princípio do primado do direito da União Europeia, o qual a nossa Constituição acolhe no seu artigo 8.º, n.º 4. III. Assim, atento o decidido no acórdão do TJUE no seu acórdão de 20 de Abril de 2023[16], proferido no Processo C263/22, a não comunicação de uma cláusula limitativa da cobertura do risco segurado pelo tomador de um seguro de grupo, a quem incumbia proceder a essa comunicação, pode ser oposta à seguradora no sentido de se considerar tal cláusula excluída do contrato de seguro. Na verdade, como aí se afirma e aqui por economia se reproduz: “Quanto à questão que constitui o único objecto do presente recurso, que é a de saber se a não comunicação de uma cláusula limitativa da cobertura do risco segurado pelo tomador de um seguro de grupo, a quem incumbia proceder a essa comunicação, pode ser oposta à seguradora no sentido de se considerar tal cláusula excluída do contrato de seguro, o Tribunal de Justiça da União Europeia foi bem claro quando nos parágrafos 52 e 53 do seu acórdão afirmou peremptoriamente que essa conclusão não pode ser posta em causa por uma regulamentação nacional, como a referida pelo órgão jurisdicional de reenvio, nos termos da qual um tomador de seguro que não tenha cumprido o dever de comunicação das cláusulas contratuais, que lhe incumbe por força dessa regulamentação, pode ter de indemnizar pelo dano resultante dessa falta de comunicação sem permitir, no entanto, restabelecer a situação de direito e de facto em que o consumidor estaria se tivesse beneficiado dessa cobertura. A referida regulamentação, que é relativa às consequências, em matéria de responsabilidade civil, dessa falta de comunicação, não pode influenciar a inoponibilidade de uma cláusula contratual qualificada de abusiva em relação ao consumidor, em aplicação da Directiva 93/13.” Em face da força obrigatória desta jurisprudência, resta-nos julgar improcedentes estas últimas conclusões da Apelante e, com isto, todo o seu recurso. Fica, assim, de qualquer modo, prejudicado o conhecimento da ampliação motivada pela Recorrida Banco 1... (art. 636º, nº 2, do C.P.C.). 4. DECISÃO Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação. Custas pela Apelante (art. 527º, n.º 1, do C. P. Civil). * Guimarães, 25-09-2025 Rel. – Des. José Manuel Flores 1º Adj. - Des. Luís Miguel Martins 2ª - Adj. - Des. Margarida Alexandra de Meira Pinto Gomes [1] ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106. [2] Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13. [3] ABRANTES GERALDES, Op. Cit., p. 107. [4] In Código de Processo Civil Anotado, V Volume, p. 140 [5] No mesmo sentido, vejam-se Acórdão da Relação de Coimbra de 14.4.93, Ruy Varela, BMJ nº 426, p. 541, Acórdão da Relação do Porto de 6.1.94, António Velho, CJ 1994- I, p. 197, Acórdão da Relação de Évora de 22.5.97, Laura Leonardo, CJ 1997-II, p. 266, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.2004, Oliveira Barros, acessível em www.dgsi.pt/jstj, RODRIGUES BASTOS, Notas ao Código de Processo Civil, III Vol., LEBRE DE FREITAS e OUTROS, Código de Processo Civil Anotado, II Vol., 2001, p. 669. [6] In Da Sentença Cível, p. 39 [7] In CJ 1995 – II, p. 58 [8] No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28.5.2015, Granja da Fonseca, 460/11, de 10.5.2016, João Camilo, 852/13. 9 LUÍS MENDONÇA e HENRIQUE ANTUNES, Dos Recursos, Quid Juris, p. 116. [9] Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.5.2012, Gilberto Jorge, 91/09 [10] In Código Civil Anotado, Volume I, p. 223. [11] Cf. Ac. Tribunal da Relação de Guimarães, 22.2.2024 [12] https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/f2a3373bcd9e697e80258b800037c495?OpenDocument [13] https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/f2a3373bcd9e697e80258b800037c495?OpenDocument [14] In https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/95a1ab53fe969572802586b9007988f7?OpenDocument [15] https://juris.stj.pt/2445%2F22.6T8GMR.G1.S1/9ARyWjjnJ5_Qw5UBLUQaiKzhHE4?search=_Xlv8CqSPZH62wSgCT4 [16] In https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:62022CJ0263&qid=1733850111591 |