Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
907/23.7T8BCL.G1
Relator: PAULA RIBAS
Descritores: COMPRA E VENDA
COISA FUTURA
DESISTÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. indevidamente julgados e em que sentido deveriam ter sido julgados provados ou não provados.
2. As cláusulas relativas às circunstâncias em que é aceite a devolução ou troca de bens não têm aplicação à situação sub judice se, nesta, está em causa não a sua troca ou devolução, mas o cancelamento da encomenda realizada relativa a coisa futura.
3. A encomenda de uma cozinha completa, com as medidas fornecidas pelo cliente, que teria ainda de ser fabricada, sem que se conheçam outras características da coisa, configura um contrato de compra e venda de coisa futura, ainda que nem sempre seja fácil de o distinguir do contrato de empreitada.
4. Ainda assim, pode ser-lhe aplicável o disposto no art.º 1229.º do C. Civil, podendo o cliente cancelar a encomenda da cozinha completa que havia sido realizada tanto mais que, na situação em apreço, a coisa futura ainda não existia quando houve esse cancelamento.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
 
I – Relatório:

AA veio deduzir a presente ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum, contra “EMP01... - SOCIEDADE DISTRIBUIDORA DE BRICOLAGE,
LDA.”, peticionando a sua condenação na restituição da quantia de € 3.544,24, acrescida de juros de mora desde 19/09/2022, bem como no pagamento de uma indemnização nunca inferior a € 5.000,00, a título de danos não patrimoniais.
Invoca como fundamento ter efetuado a encomenda de uma cozinha junto da ré, tendo procedido ao pagamento do preço e que, perante o válido cancelamento da encomenda, aquela se recusa a restituir-lhe a quantia paga em dinheiro, invocando a nulidade da cláusula do contrato invocada pela ré e relativa à devolução do dinheiro apenas em vale e de uso exclusivo no Grupo “EMP02...”, por alegada violação do art.º 5º do DL nº 446/1985, de 25/10, e do princípio da boa-fé. 
Alega ainda que toda esta situação foi geradora de danos não patrimoniais que quantifica no valor por si peticionado.
Regularmente citada a ré, esta contestou, afirmando a inexistência do direito ao arrependimento e a validade da cláusula invocada.
Realizada a audiência de discussão e julgamento, a ação foi julgada improcedente.
Inconformada veio a autora apresentar recurso de apelação, formulando as seguintes conclusões:
[…]
A ré não respondeu.
O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo.
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Encontrando-se os autos neste Tribunal, em 19/09/2025, foi proferido despacho em que se admitiu que pudesse vir a ser convocado regime legal diverso do considerado na sentença proferida, sendo as partes ouvidas sobre a sua eventual aplicação.
Ambas as partes se pronunciaram, tendo a ré requerido a junção de dois documentos.
Cumpre, antes de mais, apreciar a admissibilidade da junção destes documentos, considerando a interpelação que foi dirigida às partes.
A questão que foi suscitada refere-se, apenas, ao enquadramento jurídico dos factos considerados provados na sentença proferida ou que viessem a resultar da impugnação daqueles mesmos factos, perante o recurso
interposto.
Ou esses factos – já provados ou que, por reanálise da prova produzida no âmbito deste recurso viessem a resultar provados – permitem o enquadramento legal a que se refere o despacho de 19/09/2019 ou não o permitem, sem que haja de produzir-se qualquer nova prova. 
Os autos não voltaram à fase de instrução e, como tal, não tendo a ré impugnado a decisão da matéria de facto considerada na sentença proferida, não se vislumbra qualquer fundamento para que, no exercício do princípio de contraditório quanto ao enquadramento jurídico dos factos provados, possa ser admissível a junção de nova prova documental.
Assim, não se admite a junção de documentos a que se reporta o
requerimento da ré de 29/09/2025.
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – Questões a decidir:

Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente – arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por C. P. Civil) -, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:

1 – se a ré impugnou validamente a decisão da matéria de facto da sentença proferida e, em caso de resposta afirmativa, verificar se existe fundamento para a sua alteração;
2 - se, alterada ou não a decisão sobre a matéria de facto, deve ser alterada a decisão de direito, no que diz respeito ao pedido de restituição da quantia entregue a título de preço, em dinheiro, acrescida de juros de mora desde a data em que tal pedido foi formulado pela autora à ré.
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III - Fundamentação de facto:

Os factos que foram dados como provados na decisão proferida são os seguintes:
A) Da PETIÇÃO INICIAL sob a Refª ...51
1. e 2. A Ré tem como objeto comercial exploração de uma unidade comercial sob a insígnia "EMP03..." e exploração de estabelecimentos comerciais que desempenhem as atividades de comercialização de materiais de construção, material de bricolage e de jardinagem, bem como a realização de operações comerciais direta ou indiretamente conexas com o objeto social e o exercício da atividade de intermediário de crédito.
3. A Autora procurou junto da Ré obter orçamentos tendo em vista a compra de uma cozinha completa.
4. e 5. No passado dia 13 de setembro de 2022, a Autora dirigiu-se ao estabelecimento “EMP03...” de ..., onde efetuou a encomenda de uma cozinha completa no valor de 3.544,24 € (três mil e quinhentos e quarenta e quatro euros, e vinte e quatro cêntimos).
6. A Autora efetuou o pagamento de imediato e na totalidade.
7. O produto encomendado não estava pronto para entrega imediata.
9. A Autora deslocou-se, novamente, no dia 19 de setembro de 2022 às instalações da Ré.
10. No dia 20 de setembro de 2022, foi comunicado à Autora, pela respetiva entidade, que a quantia paga só poderia ser restituída através de vale, sendo este unicamente possível de utilizar em lojas do grupo
“EMP02...”, conforme constava nas cláusulas contratuais gerais que faziam parte integrante do contrato celebrado entre as partes.
11. Não concordando com a solução apresentada, a Autora tentou, mais tarde, por via telefónica, chegar a um entendimento comum, todavia sem sucesso.
12. Posteriormente, a Autora enviou missiva à Ré, por correio registado, da qual não obteve resposta.
19. A Ré recusa-se a devolver a quantia recebida por outro meio que não seja por “vale”.

B) Da CONTESTAÇÃO sob a Refª ...20
6. No dia 29 de agosto de 2022, a Autora dirigiu-se à loja da Ré sita em ..., com a finalidade de obter um orçamento para uma cozinha.
7. Esse orçamento foi executado com base em medidas fornecidas pela cliente ora Autora, pelo que foi elaborado um projeto em 3D, como é normal no serviço de orçamentação por medida, e foi apresentado um valor provisório e não vinculativo, pois para dar seguimento ao projeto seria necessário retificar as medidas do espaço em questão, de modo a garantir a maior correção possível do mesmo (bem como definir o preço real da cozinha).
8. Como tal e mediante o grande interesse demonstrado pela Autora, deslocou-se ao domicílio da mesma um parceiro da Ré, na parte da montagem de cozinhas, mas não foi cobrado qualquer custo à Autora, por uma questão de boa-fé e bons préstimos comerciais, para retificar as medidas
da cozinha.
9. O Orçamento (sem os tampos) foi entregue e aceite sem reservas pela Autora.
10. No dia 13 de setembro de 2022, a cliente, ora Autora, deslocou-se novamente às instalações da Ré, desta vez acompanhada pelo marido da mesma, para confirmar a adjudicação do projeto da cozinha visada no orçamento, bem como dois tampos melhor descritos nas faturas juntas com a P.I. sob o n.º 1.
11. Nesse mesmo dia 13 de setembro de 2022, foi transmitido à Autora, de modo claro, que teria de pagar a totalidade do valor da cozinha, uma vez que o produto em questão é um artigo feito por medida e mediante encomenda e não poderia ser reutilizado para outra finalidade.
12. Essa condição foi aceite pela cliente, ora Autora, sendo que a mesma Autora, no próprio dia 13 de setembro de 2022, validou o orçamento e efetuou o pagamento de 3.544,24 € (respeitante ao valor total da cozinha e dos tampos também feitos por medida.
13. Em nenhum momento foi transmitida à Autora a informação de que a cozinha estaria pronta para entrega imediata, nem tal seria possível, uma vez que a encomenda foi realizada no dia 13/09/2022, pelo que não poderia estar pronta para entrega nesse mesmo dia.
14. No dia 19 de setembro de 2022, a Autora voltou à loja da Ré, acompanhada pelo seu filho, com a finalidade de mostrar o projeto a este último.
15. Em momento nenhum nessa data de 19 de setembro de 2022, a
Autora demonstrou interesse em desistir do produto anteriormente encomendado e pago.
16. Quando foi atendida em 19 de setembro de 2022, a Autora explicou que gostaria de trocar um dos tampos (o de valor de € 465,22+IVA por outro no valor de € 54,99 (IVA incluído), troca essa que a título totalmente excecional foi atendida, num gesto de boa-fé comercial, sendo que na mesma forma do pagamento foi restituído o valor de diferença de preço entre os dois tampos, ou seja, € 517,23.
18. A Autora recebeu e assinou a Fatura/Nota de crédito de devolução pela mesma forma do pagamento, junta, como Doc. n.º 2, com a contestação.
20. No dia 20 de setembro de 2022, a Autora contactou telefonicamente a loja da Ré, e afirmou que pretendia resolver unilateralmente o contrato de compra e venda da cozinha e por esse motivo pretendia a devolução do valor pago.
21. Atendendo a tal informação, a Autora foi relembrada da política comercial de devoluções afixada em vários pontos da loja da Ré, escrita de forma sucinta, de modo claro e com o seguinte teor: “Não é aceite a troca e/ ou devolução de animais, plantas, lâmpadas e artigos vendidos por medida ou sob encomenda” e como tal, numa primeira abordagem, foi recusada a devolução do produto e a consequente devolução do preço.
22. A Ré efetuou despesas relativas ao início da produção da cozinha, as quais ascendem ao valor de € 91,00 (noventa e um euros) que se desdobra em mão-de-obra e custos de deslocação no valor de € 66,14 e € 25,00, respetivamente.

C) Da RESPOSTA da Autora, sob a Refª ...70
7. No dia 19/09/2022, a Ré procedeu, a pedido da Autora, à troca do
 aludido tampo e procedeu à devolução à Autora do valor da diferença entre os respetivos preços”.
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IV - Do objeto do recurso:  

1. Da impugnação da decisão sobre a matéria de facto:
Rege, nesta matéria, o disposto no art.º 640.º do C. P. Civil.
A jurisprudência tem entendido que desta norma resulta um conjunto de ónus para o recorrente que visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto.
Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01/10/2015, proc. 824/11.3TTLRS.L1.S1 in www.dgsi.pt, das normas aplicáveis resulta que “recai sobre a parte Recorrente um triplo ónus:
Primo: circunscrever ou delimitar o âmbito do recurso, indicando claramente os segmentos da decisão que considera viciados por erro de julgamento;
Secundo: fundamentar, em termos concludentes, as razões da sua discordância, concretizando e apreciando criticamente os meios probatórios constantes dos autos ou da gravação que, no seu entender, impliquem uma decisão diversa;
Tertio: enunciar qual a decisão que, em seu entender, deve ter lugar relativamente às questões de facto impugnadas.
Ónus tripartido que encontra nos princípios estruturantes da cooperação, da lealdade e boa-fé processuais a sua ratio e que visa garantir, em última análise, a seriedade do próprio recurso instaurado, arredando eventuais manobras dilatórias de protelamento do trânsito em julgado da
decisão”.
Estes ónus exigem que a impugnação da matéria de facto seja precisa, visando o regime vigente dois objetivos: “sanar dúvidas que o anterior preceito ainda suscitava e reforçar o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expressa a decisão alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova” (cfr. Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, pág. 198).
Recai assim sobre o recorrente o ónus de, sob pena de rejeição do recurso, determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretendem questionar (delimitar o objeto do recurso), motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação (fundamentação) que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre cada um dos factos que impugnam e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
No âmbito da impugnação da matéria de facto não há lugar ao convite ao aperfeiçoamento da alegação, ao contrário do que se verifica quanto às alegações de direito (vide, por todos, Abrantes Geraldes, no livro já citado, pág. 199).
Veja-se, ainda, por todos, a jurisprudência citada no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12/10/2023, proc. 1/20.2T8AVR.P1.S1, e em particular o Acórdão do mesmo Tribunal de 10/12/2020 (proc. n.º 274/17.8T8AVR.P1.S1), nele citado, que estabelece que “na verificação do cumprimento dos ónus de alegação previstos no art. 640.º do CPC, os aspetos de ordem formal devem ser modelados em função dos princípios da  proporcionalidade e da razoabilidade, dando-se prevalência à dimensão substancial sobre a estritamente formal”.
Na situação dos autos, a autora refere que não pode conformar-se com a decisão proferida “no que concerne aos factos e ao direito”, entendendo que a decisão “não fez uma adequada subsunção dos mesmos às normas jurídicas”.
Analisadas as alegações apresentadas (no seu conjunto, incluindo as suas conclusões), facilmente percebemos que a recorrente não retirou qualquer consequência da sua discordância quanto aos factos provados e não provados da decisão proferida, limitando-se a afirmar que conclusões entendia puderem ser extraídas de determinados depoimentos, que transcreveu.
A recorrente não indicou quais os factos provados da sentença proferida que entendia deverem passar a constar como não provados ou os que, assim tendo sido considerados ou omitidos, deveriam passar a considerar-se provados.
Não cumpriu, portanto, sequer o primeiro ónus a que estava obrigada para validamente impugnar a matéria de facto provada e não provada da decisão proferida, nos termos do art.º 640.º do C. P. Civil.
Este incumprimento implica a rejeição da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, não havendo, assim, que ponderar qualquer alteração da matéria de facto provada ou não provada, sendo apreciados os fundamentos substantivos da apelação considerando-se como provados apenas os factos que, como tal, foram descritos na decisão do Tribunal de 1.ª Instância.
 
2. Apreciemos os fundamentos da apelação e que, no entendimento da autora, permitiriam a condenação da ré restituir-lhe a quantia que foi paga a  título de preço, em dinheiro, acrescida de juros legais desde a data do pedido
de restituição (basta atentar nas conclusões da apelação para perceber que a autora se conformou com a decisão que julgou inexistir fundamento para a condenação da ré no pagamento de qualquer indemnização por danos não patrimoniais).
Tal como resulta da matéria de facto provada, a pedido da autora, a ré realizou para a autora um projeto em 3D de uma cozinha completa, com as medidas do espaço em que se integraria e retiradas no domicílio daquela, tendo a autora aceite esse projeto e adjudicando à ré a sua realização, pelo preço proposto, em 13/09/2023.
Estando em causa uma cozinha que seria feita por medida e mediante encomenda realizada, foi exigido à autora que pagasse de imediato a totalidade do preço, o que esta aceitou e pagou, no valor de € 3.544,24.
Posteriormente, a autora pretendeu trocar um dos “tampos” dessa cozinha por outro mais barato, troca que foi aceite pela ré, tendo sido devolvida à autora, pela ré, a quantia relativa à diferença, no valor de € 517,23.
Em 20/09/2023 a autora comunicou à ré que não pretendia já a cozinha, exigindo a devolução da quantia que pagou a título de preço.
Desta matéria de facto resulta claro que o preço que a ré não restituiu não coincide com o valor que a autora peticiona - € 3.544,24 -, mas com a diferença entre este valor e a quantia que foi já restituída à autora - € 517,23 -, antes da propositura da ação, e na sequência de uma substituição de uma das peças da cozinha.
No pedido que formulou a autora ignorou a quantia que, por outro motivo, lhe foi já devolvida pela ré e que integrava também o preço que pagou.
Não pode deixar de se notar que a autora começou por alegar na sua resposta à contestação que tal devolução havia sido efetuada em vale (art.º 7.º da resposta) para, agora, em sede de alegações de recurso (conclusão XII) e depois de produzida a prova indicada sobre estes factos, afirmar que tal devolução ocorreu em numerário, para, com esse fundamento, apelidar a conduta da ré de contraditória.   
Contraditória é, evidentemente, nesta particular questão, a conduta da própria autora.
O preço cuja restituição aqui está em causa é, assim, de apenas €
3.027,01.
Perante os factos que foram considerados provados não percebemos como possam ser relevantes as cláusulas contratuais que estabelecem que “não é aceite a troca e/ ou devolução de animais, plantas, lâmpadas e artigos vendidos por medida ou sob encomenda” ou que, ainda que se aceite tal troca / devolução, como refere a ré, essas trocas ou devoluções só podem ser efetuadas através de troca ou reembolso do valor em nota de crédito para ser utilizado no estabelecimento.
A autora não trocou nem devolveu a cozinha (que ainda não existia, nem lhe havia sido transmitida) e, como tal, aquela cláusula não tem aplicação se a autora apenas comunicou que pretendia unilateralmente fazer cessar aquele negócio.
Percebe-se, aliás, tal como a ré refere, o sentido daquela cláusula quando está em causa coisa encomendada e construída especificamente para aquele cliente.
A coisa construída à medida de determinado cliente em regra não terá utilidade para outro cliente e, assim, percebe-se que aquele que a vende ou fabrica não admita a sua troca ou devolução.
Note-se que, como bem sabe a autora, não estão aqui em causa os direitos do consumidor em caso de execução defeituosa da prestação por parte do prestador / vendedor.
A decisão da autora de cancelar a encomenda nada tem a ver com qualquer defeito da coisa que encomendou à ré.
Esse direito de troca ou devolução - sem invocação de qualquer fundamento - não resulta da lei, pois que o direito ao arrependimento a que a autora se reporta (e que tutela o regime dos contratos celebrados à distância) não existe para este tipo de contrato – bens encomendados em loja com medidas específicas que teriam ainda de ser fabricados.
Quer isto dizer que se estivéssemos perante uma devolução de bem vendido ou fabricado sob encomenda, seria absolutamente legítimo à ré acordar com os seus clientes que não aceitava a sua devolução e ainda, que, se a aceitasse não estando a tal obrigada, tal devolução se faria apenas de determinada forma.
Não é, porém, esse o enquadramento factual ou legal do pedido formulado pela autora, pois que esta nada devolveu à ré pela simples circunstância que a cozinha ainda não existia quando a autora cancelou a encomenda (de forma imprópria, porque consubstancia um verdadeiro conceito de direito, foi considerado provado que a autora pretendia resolver o contrato, tentando-se, desta forma, concretizar em termos factuais o que fez a autora).
Quanto as partes negociaram fizeram-no relativamente a coisa futura –
art.º 212.º do C. Civil -, pois que, ao tempo da declaração negocial, a cozinha ainda não estava disponível: iria ser fabricada de acordo com as medidas fornecidas. Estávamos perante um bem sem existência material à data da celebração do contrato.
Está expressamente previsto na lei que o contrato de compra e venda possa versar sobre coisa futura, como resulta do disposto no art.º 880.º do C. Civil (referindo Pires de Lima e Antunes Varela, in Código Civil Anotado, Volume II, 4ª edição revista e atualizada, pág. 169, como exemplo, desta venda de coisa futura, precisamente, a de coisa que o vendedor construirá ou fabricará).  
A decisão de 1.ª Instância expressamente considerou aplicável o regime do contrato de compra e venda, sendo que este, quando está em causa coisa futura a construir ou fabricar pelo vendedor, nem sempre é facilmente destrinçável do contrato de empreitada (vide, neste preciso sentido, Pedro Romano Martinez in Contratos em Especial, 2.ª edição, pág. 57).
Não é relevante, em sede de qualificação jurídica do acordo celebrado entre as partes, que constem da matéria de facto provada referências a conceitos jurídicos (contrato de compra e venda, resolução, adjudicação), pois que, estando em causa a descrição de factos, não foram então utilizados em sentido técnico-jurídico. 
Como refere o autor citado in Contrato de Empreitada, fls. 33, “torna-se difícil distinguir a empreitada da compra e venda, principalmente no caso de alguém se obrigar a construir uma coisa com a obrigação de fornecer os materiais necessários à realização da obra. O facto de a obrigação de fornecer os materiais impender sobre o empreiteiro não é, só por si, decisiva para caracterizar o contrato como sendo de compra e vende de bens futuros e, em casos concretos, podem levantar-se dificuldades de qualificação”.
Depois de analisar vários critérios possíveis que permitiriam tal distinção, este autor conclui que “o contrato pelo qual alguém se obriga a realizar certa obra é, em princípio, uma empreitada, e o fornecimento pelo empreiteiro das matérias necessárias à sua execução não vai, por via de regra, alterar a natureza do contrato. Deve, então, qualificar-se como de empreitada o contrato em que o subministro de material constitui um meio para a realização da obra. Em contrapartida, enquadra-se na noção de compra e venda o contrato mediante o qual alguém se obriga a fornecer um bem fabricado em série ou por encomenda em amostra ou catálogo, desde que não haja de proceder a adaptações consideráveis”.
O acórdão citado pela ré no seu requerimento de 29/09/2025 não diz o que a ré refere no seu requerimento.
Nesse Acórdão (deste Tribunal da Relação e proferido em 25/09/2002, proc. 413/02-1, acessível in www.dgsi.pt) não se questiona se o contrato em causa – e cujas características em concreto se desconhecem – é de compra e venda ou de empreitada, concluindo apenas que é uma relação jurídica abrangida pela Lei 24/96, de 31/07 (Lei de Defesa do Consumidor). Aliás, na situação em apreço, os móveis da cozinha em questão estavam já construídos, pois que o Acórdão versa sobre a falta de brilho em relação ao que era esperado.
Ora, o referido regime legal da proteção do consumidor é aplicável quer se esteja perante um contrato de compra e venda, quer de empreitada, como resulta do disposto no art.º 4.º, pois que estão em causa quaisquer bens e serviços prestados a quem possa ser qualificado como consumidor, neles se incluindo a obra entregue na sequência de um contrato de empreitada.
Veja-se que sob a epigrafe “direitos do consumidor na compra e venda de bens, conteúdos e serviços digitais”, o DL 84/2021, de 18/10, este diploma aplica-se aos contratos de compra e venda celebrados entre consumidores e profissionais, incluindo os contratos celebrados para o fornecimento de bens a fabricar ou a produzir e aos bens fornecidos no âmbito de um contrato de empreitada ou de outra prestação de serviços, como a locação de bens, com as necessárias adaptações - art.º 3.º, n.º 1, alíneas a) e b).
E se é certo que as normas aí estabelecidas se reportam aos direitos e deveres do consumidor / vendedor / fornecedor em caso de falta de conformidade dos bens, não deixa de ser relevante que, para esse efeito, seja indiferente se o bem foi vendido ou foi fornecido ao consumidor no âmbito de um contrato de empreitada.
Na situação em apreço, parece-nos que a circunstância de a cozinha encomendada e paga ter naturalmente de observar as medidas próprias do local onde seria instalada, na ausência de alegação e prova de significativas alterações introduzidas pela autora na cozinha a fabricar, perante o projeto já existente na ré, numa situação de fronteira entre estes dois tipos contratuais, se tem ainda de concluir que as partes celebraram um contrato de compra e venda de coisa futura.
Os contratos devem ser pontualmente cumpridos e só podem extinguirse por mútuo acordo dos contraentes ou nos casos admitidos na lei – art.º 406.º do C. Civil.
Na situação em apreço, o acordo não existiu.
Mas se assim é, parece-nos claro que, ainda que se qualifique o contrato como de compra e venda, tal qualificação não pode obstar à aplicação do regime do art.º 1229.º do C. Civil.
No contrato de empreitada, o dono de obra, ou seja, aquele solicita a sua realização e está obrigado ao pagamento do preço, pode, a todo o tempo, e ainda que a sua execução já se tenha iniciado, desistir da sua realização, assistindo a quem realiza a obra apenas o direito de ser indemnizado pelos gastos e trabalho e do proveito que poderia retirar da obra.
Assim, se o dono de obra desistir da realização da obra, o seu construtor não tem o direito de receber a totalidade do preço, ainda que este já lhe tivesse sido pago.
Com explica Romano Martinez na obra citada, a ratio legis deste preceito é perfeitamente justificável: “mediante um contrato de empreitada pretende-se que o dono de obra obtenha um determinado resultado: a realização de uma obra. Ora pode acontecer que o comitente perca o interesse na obtenção desse resultado, por alteração da sua vida, da sua situação económica etc e então não se justifica que ele continue vinculado àquele negócio jurídico”. 
Esta possibilidade, de colocar termo ao contrato celebrado por decisão unilateral de uma das partes e sem qualquer causa justificativa, não existe no contrato de compra e venda, ainda que este verse sobre coisa futura.
Porém, se tivermos em atenção que, no caso do contrato de compra e venda de coisa futura, enquanto esta não existir, não se verifica a transferência da propriedade da coisa vendida para o comprador, por via do disposto no n.º 2 do art.º 408.º do C. Civil, facilmente percebemos que este está numa posição muito semelhante à do dono de obra perante a obra que se encontra em execução.
Note-se que é o legislador quem, como resulta do DL 84/2021, de 18/10 (e já antes, no DL 67/2023, de 08/04), criou para o fornecimento de bens na sequência de um contrato de compra e venda ou de empreitada um regime legal idêntico, quando, como na situação em apreço, está em causa um consumidor.   
Concluímos, pois, pela aplicação à situação em apreço do regime do disposto no art.º 1229.º do C. Civil, reconhecendo-se à autora o direito de cancelar a encomenda da cozinha que ainda não lhe havia sido entregue e não estava fabricada, por decisão unilateral.
E é a possibilidade desta desistência que obriga a ré a restituir-lhe o preço que estava já integralmente pago pela autora no momento da celebração do contrato e que ainda não lhe foi restituído, deduzidas naturalmente das despesas suportadas pela ré na execução da obra.
Como se referiu supra, neste enquadramento, as cláusulas cuja nulidade foi invocada pela autora não têm qualquer relevância pois que, como se disse, se reportam à troca de bens adquiridos e fornecidos ou à sua devolução (e esta cozinha não foi trocada, nem devolvida).
É certo que a aplicação do art.º 1229.º do C. Civil reconhece à ré o direito de ser indemnizada nos termos que nele estão previstos.
Porém, bastará atentar na sua contestação, para perceber que esta reclamou então, apenas, as despesas realizadas para “o início da produção da cozinha” (art.º 22.º da sua contestação), que tal como se demonstraram ascenderam apenas a € 66,14 e € 25,00.
Era esse o momento processual próprio para que a ré invocasse o seu direito a ser indemnizada pelo proveito que poderia retirar do negócio celebrado e não, como pretendeu fazê-lo, quando foi cumprido o contraditório em relação à eventual aplicação do disposto no art.º 1229.º do C. Civil.
Note-se que a ré percebeu bem que era esse o momento de invocar qualquer direito que pudesse ter sobre o valor entregue a título de preço pela autora, pois que logo referiu que essas despesas deveriam ser tidas em consideração, e que “a R. desde já reclama e requer para os devidos efeitos legais”.
Concluímos assim que a autora tem o direito de exigir da ré a restituição do preço que foi pago e ainda não foi restituído - € 3.027,01 – deduzido das despesas suportadas pela ré e que resultaram provadas – no valor total de € 66,14 e € 25,00 -, ou seja, € 2.935,87, em dinheiro, pois que a esta restituição são inaplicáveis as cláusulas que a ré definiu para a troca e devolução dos produtos que comercializa.
Peticiona ainda a autora a condenação da ré a pagar-lhe juros de mora contabilizados desde o dia 19/09/2022 até efetivo e integral pagamento, sem que seja indicado qualquer fundamento jurídico para que a ré se tenha então constituído em mora
Sendo a obrigação da ré de natureza pecuniária a lei presume, juris et de jure, que há sempre danos em consequência da mora estabelecendo-se que a indemnização corresponde aos juros legais (art.º 806º, nºs 1 e 2, do C. Civil).
A mora mais não é do que a falta de realização da prestação, no tempo devido, por causa imputável ao devedor, sendo a prestação ainda possível.
Importa averiguar a partir de que momento deve considerar-se a ré
constituída em mora.
O art.º 805º, nº 1, dispõe que "o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir", prevendo-se nas alíneas a) a c) do nº 2 do mesmo artigo as situações em que há mora independentemente da interpelação.
Não existe matéria de facto provada que permita considerar qualquer momento de constituição da ré mora anterior à sua citação para esta ação. 
Assim, são devidos pela ré juros de mora, desde a sua citação, à taxa legal de 4% (cfr. arts.º 805.º, nºs 1 e 2, al. a), 806.º, 559.º e Portaria 291/2003, de 08/04), até integral pagamento, sendo de considerar qualquer alteração a esta taxa de juro enquanto aquele não se verificar.
Em conformidade com o presente Acórdão cumprirá julgar parcialmente procedente o recurso, sendo revogada a decisão proferida, com a consequente condenação da ré no pagamento à autora da quantia de € € 2.935,87, acrescida de juros de mora devidos desde a citação da ré, nos termos referidos, absolvendo-se a ré quanto ao restante pedido formulado.
Nos termos do art.º 527.º do C. P. Civil, as partes suportarão as custas da ação e do recurso na proporção do respetivo decaimento.

V – DECISÃO:

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência:

a) não admitem a junção de documentos requerida pela ré no requerimento de 29/09/2025;
b) revogam a decisão proferida, condenando a ré EMP01... – Sociedade Distribuidora de Bricolage Ld.ª a restituir à autora AA a quantia de € 2.935,87 (dois mil novecentos e trinta e cinco euros e oitenta e sete cêntimo) que lhe foi entregue a título de preço, em dinheiro, acrescida de juros de mora contabilizados desde a citação, à taxa de 4%, até integral pagamento, absolvendo a ré quanto ao mais peticionado. 
As custas da ação e deste recurso serão suportadas, na proporção do respetivo decaimento, por autora e ré.
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Guimarães, 09/10/2025
(elaborado, revisto e assinado eletronicamente)

Relator: Paula Ribas
1.ª Adjunta: Maria Amália Santos
2.º Adjunto: João Paulo Dias Pereira