Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
529/22.0T8BGC,G1
Relator: ELISABETE COELHO DE MOURA ALVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL
CAUSALIDADE ADEQUADA
TEORIA DAS ESFERAS DE RISCO
DEVER DE VIGILÂNCIA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 09/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1. A doutrina e a jurisprudência vêm desenvolvendo soluções dogmáticas destinadas a facilitar a prova do nexo de causalidade, construindo alternativas às formulações centradas na ideia de causalidade, entre as quais se destaca a teoria das “esferas de risco” estruturada na base de um nexo de imputação (entre conduta e resultado) que se reconduz a juízos estritamente normativos.
2. Com a teoria da imputação objectiva, o que é relevante não é o facto, mas o juízo normativo acerca da questão de saber a que esfera de risco há-se ser imputada a lesão, através de uma ideia de possibilidade e não estatístico-probabilística.
3. A morte da idosa, no âmbito do quadro factual apurado, compreende-se na esfera de risco inerente ao incumprimento pela ré dos seus deveres de vigilância, cuidado e protecção da integridade física da utente do lar, consubstanciado na omissão de implementação de medidas restritivas /impeditivas de saída do lar dos seus utentes e, em especial, dos mais vulneráveis e à consequente exposição desta a uma situação de perigo e risco de sofrer danos na sua saúde, integridade física/e ou vida, e cuja imputação à esfera ou âmbito da sua responsabilidade apenas seria excluída, se a ré tivesse efectuado a prova de factos que permitissem concluir, com um grau de probabilidade muito elevada, que o dano sempre se teria verificado independentemente da violação do dever de conduta, o que não fez.
4. Mas também no âmbito da tradicional teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, se terá de concluir pela existência de nexo causal entre a violação de deveres/conduta omissiva da ré e o dano, sendo que à luz das regras práticas da experiência, considerando as circunstâncias do caso, era objectivamente provável que a omissão de medidas aptas a evitar a saída do Lar se mostra causa adequada, ainda que indirecta, do desfecho ocorrido.
5. O ónus da alegação e prova de factos e circunstâncias que permitam concluir que a conduta da ré foi, de todo em todo, indiferente para a produção do dano ocorrido, visando o afastamento da relação de causalidade indiciada, caberia à ré.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães
 
I. Relatório  (seguindo no essencial o elaborado na 1ª instância)

AA, casado, reformado, residente na Rua ..., ..., ... ..., por si e na qualidade de cabeça de casal da herança aberta por óbito de BB, CC, casado, reformado, residente na Rua ..., ... ..., DD, divorciada, reformada, residente na Rua ..., ... ..., EE, viúva, reformada, residente em ... ..., FF, casada, assistente social, residente na Rua ..., ... ..., GG, divorciada, reformada, residente na Rua ..., ... ..., HH, casado, reformado, residente em ... ..., II, solteiro, empregado fabril, residente na Avenida ..., ... ..., e JJ, divorciada, reformada, residente em ..., intentaram a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra Santa Casa da Misericórdia ...,
Instituição Particular de Solidariedade Social, com o NIPC ...80, com sede em Rua ..., ..., ... ..., peticionando a condenação desta a pagar-lhes quantia global não inferior a € 100.000,00, a título de indemnização pela perda do direito à vida da sua irmã e tia e pelos danos morais próprios desta, bem assim como a quantia de € 15.000,00 a cada um dos autores, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais destes, quantias acrescidas dos juros de mora vencidos desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Fundamentando tais pretensões, alegam, em suma, que são herdeiros de BB, falecida após ter saído da instituição da ré, onde se encontrava integrada ao abrigo de um contrato de prestação de serviços celebrado com a mesma, tendo a mesma fugido do lar e desaparecido, vindo a ser encontradas as suas ossadas cinco meses após o seu desaparecimento.
Invocam que o contrato aludido impunha, entre os mais, os deveres de a ré garantir a vigilância e o acompanhamento da idosa, deveres que foram incumpridos ao ter permitido que aquela se ausentasse para o exterior da instituição, facto que foi causador da sua morte.
Invocam que, como consequência directa e necessária da conduta omissiva da ré e dos consequentes desaparecimento e falecimento da sua familiar, esta sofreu, como os autores, danos não patrimoniais.
A ré apresentou contestação, impugnando, no essencial, a sua responsabilidade pelo falecimento da idosa, bem assim como os demais danos invocados pelos autores.
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Na pendência da causa, faleceu o autor AA, tendo sido habilitadas como suas sucessoras KK, LL e MM.
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Foi proferido despacho saneador, no qual, entre o mais, se procedeu à identificação do objecto do litígio e à selecção dos temas da prova, não tendo havido reclamações.
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Procedeu-se a julgamento, proferindo-se sentença que julgou a acção parcialmente procedente, nos seguintes termos:

«a) condena-se a ré a pagar aos autores CC e DD
DD e às habilitadas KK, LL e MM, a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros) a título de compensação pela perda do direito à vida de BB, cabendo 1/3 a cada um dos identificados autores e 1/3 às habilitadas;
b) condena-se a ré a pagar aos autores e às habilitadas a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros) a título de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial sofridos por BB antes de falecer, cabendo 1/5 a cada um dos autores CC e DD, 1/5 aos autores FF e II, 1/5 aos autores NN, EE, GG e CC
HH, e 1/5 às habilitadas KK, LL
LL e MM;
c) condena-se a ré a pagar às habilitadas KK, LL e MM, a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) a título de indemnização pelos danos de natureza não patrimonial sofridos por AA;
d) condena-se a ré a pagar os juros de mora, à taxa legal, sobre as quantias referidas nas alíneas a) a c), desde a citação até efectivo e integral pagamento
(cfr. artigos 804.º, 805.º, n.º 3 e 806.º do Código Civil);
e) absolve-se a ré do demais peticionado;
f) condenam-se os autores e a ré nas custas da acção, na proporção do respectivo decaimento, que se fixa em 64% e 36%, respectivamente.»  
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Inconformada com esta decisão, veio a ré ““Santa Casa da Misericórdia ...”  interpor o presente recurso, formulando as seguintes conclusões, que se passam a reproduzir:

«1 - O presente recurso, sobre matéria de direito e sobre matéria de facto, assenta:
▪ por um lado, em erro na apreciação da prova, que implica alteração de matéria de facto dada como provada (que seguidamente se impugnará), pois esses pontos da matéria de facto não reflectem uma correcta valoração da prova,
▪ e por outro, erro de julgamento, por desconformidade com o Direito, violação de lei expressa e dos factos apurados, ou seja, incorrecta valoração da matéria de facto para a decisão proferida e incorrecta aplicação e interpretação do Direito aos factos.

II – DO RECURSO SOBRE MATÉRIA DE FACTO

II.A – Dos concretos pontos de facto incorrectamente julgados e da decisão que sobre os mesmos deve recair
I – DOS FACTOS CONSIDERADOS PROVADOS PELO TRIBUNAL RECORRIDO SOB OS N.ºs 32 e 33 E AQUI IMPUGNADOS POR:
G) INCONGRUÊNCIA, INCOMPATIBILIDADE E CONTRADIÇÃO ENTRE, POR UM LADO, OS FACTOS PROVADOS SOB OS N.ºS 32 E 33 E, POR OUTRO, OS FACTOS PROVADOS SOB OS NÚMEROS 27 A 31;
H) CONTRADIÇÃO ENTRE OS FACTOS PROVADOS SOB OS NÚMEROS 30 E 31 E A FUNDAMENTAÇÃO APRESENTADA PELO TRIBUNAL RECORRIDO PARA DAR COMO
PROVADOS OS FACTOS SOB OS NÚMEROS 32 E 33;
I) OS FACTOS 32 E 33 NÃO CONSTITUEM FACTOS NOTÓRIOS.
2 - O Tribunal Recorrido considerou provados os factos sob os n.ºs 32 e 33 que infra se reproduzem:
32. O desaparecimento da falecida durou mais de 5 meses, tendo perdurado por períodos de calor extremo, com temperaturas que, na região, rondam os 40.º graus, bem como por todo o Inverno da região que, especialmente durante a noite, é particularmente agressivo.
33. Pese embora se desconheça em que altura ocorreu a morte de BB, certo é que terá ocorrido numa situação de desorientação, confusão, medo, desidratação, fome, frio e/ou calor, tendo a idosa vivido momentos de terror, sem encontrar ajuda ou apoio de familiares, experienciando o medo de morrer, o desespero de não encontrar
caminho de volta ao lar ou a qualquer zona habitacional, até ao seu efectivo e solitário perecimento.
- Cfr. «A – Factualidade Provada», inserta em «III- Fundamentação de Facto», páginas 3 e 6 da sentença.
3 - E para considerar os factos sob os números 32 e 33 como provados, apresentou apenas a seguinte justificação:
«Os factos contidos sob os n.ºs 32 e 33 constituem factos notórios. De facto, é seguro, em face das regras da experiência comum e da lógica, deduzir que a morte de BB, pelo local ermo onde foram encontrados os restos mortais e as suas roupas, e considerando o seu estado de saúde, foi uma morte solitária, exposta aos elementos, sem acesso a comida e água.» - Cfr. «C – Motivação da decisão de facto», inserta em «III- Fundamentação de Facto», páginas 9 e 15 da sentença recorrida.
4 - Factos sob os n.ºs 32 e 33 que o Tribunal Recorrido deu como provados e que se impunha que tivesse considerado como factos não provados, pelas seguintes ordens de razões:
J) Incongruência, incompatibilidade e contradição entre, por um lado, os factos provados sob os n.ºs 32 e 33 e, por outro, os factos provados sob os números 27 a 31;
K) Contradição entre os factos provados sob os números 30 e 31 e a fundamentação apresentada pelo Tribunal recorrido para dar como provados os factos sob os números 32 e 33;
L) Os factos 32 e 33 não constituem factos notórios e exigem prova por parte de quem alega (artigo 342.º do Código Civil).
5 - Devendo os mesmos ser inteiramente considerados como não provados ou, caso assim se não entenda, devendo apenas quanto ao facto sob o n.º 33 ser considerado provado que «Desconhece-se em que altura ocorreu a morte de BB».
Vejamos:
D) Da incompatibilidade e contradição entre, por um lado, os factos provados sob os n.ºs 32 e 33 e, por outro, os factos provados sob os números 27 a 31.
e
E) Da contradição entre os factos provados sob os números 30 e 31 e a fundamentação apresentada pelo Tribunal recorrido para dar como provados os factos sob os números 32 e 33 6 - Não se tendo apurado nem a causa da morte de BB, nem a data, hora e local da sua morte, o que resulta de modo expresso dos factos provados sob os números 30 («30. Dado o avançado estado de decomposição do crânio, os exames dos restos cadavéricos e exames antropológicos forenses realizados não foram concludentes quanto à causa de morte.») e 31 («31. Igualmente não se apuraram a data, hora e local do decesso.»),
7 - também não se pode dar como certo ou como provado o que consta na segunda parte até final do facto considerado provado pelo Tribunal recorrido (e neste recurso impugnado) sob o
n.º 33, ou seja, não pode ser considerado provado «certo é que numa situação de desorientação, confusão, medo, desidratação, fome, frio e/ou calor, tendo a idosa vivido momentos de terror, sem encontrar ajuda ou apoio de familiares, experienciando o medo de morrer, o desespero de não encontrar caminho de volta ao lar ou a qualquer zona habitacional, até ao seu efectivo e solitário perecimento».
8 - Ignorando-se a causa da sua morte e ignorando-se a data, hora e local do seu decesso, desconhece-se igualmente o estado, a situação, os sentimentos, a experiência ou momentos vivenciados pela idosa.
9 - Pois efectivamente, desconhecendo-se a causa e o momento do seu perecimento, pode a causa da morte ter sido natural, pode BB ter falecido no próprio dia do seu desaparecimento ou no seguinte, pode não ter sofrido, pode não ter sentido fome nem sede (o que aliás é comum em pessoas de idade), hipóteses que são tão viáveis como quaisquer outras,
10 - não se podendo estabelecer qualquer conexão entre os dias ou meses (5 meses) em que esteve desaparecida com a sua morte, no sentido de não se poder fazer juízos nem dar como provados factos que relacionem tal período de tempo (5 meses) e eventualmente o que experienciou nesse período de tempo (5 meses entre a saída do lar até ser encontrado o crânio) com o seu decesso que não está, reitera-se, determinado no tempo, no espaço ou sequer a sua causa.
11 - Por outras palavras: o período de duração do seu desaparecimento (desde que saiu do lar em Agosto de 2019 até ser encontrado o crânio em Janeiro de 2020) e a sua caracterização em termos meteorológicos não pode servir para daí se extrapolar como foi ou deixou de ser a sua morte, nem como foi ou deixou de ser o período que mediou entre 4/08/2029 até ocorrer o seu decesso, pois verdadeiramente consta como provado que se ignora a causa da sua morte e que se ignora o dia, hora e local do seu falecimento.
F) Os factos insertos nos n.ºs 32 e 33 da factualidade provada não constituem factos notórios.
12 - Os factos notórios não carecem de prova, nem de alegação, pois são já factos de conhecimento geral, são como que factos já provados, já esclarecidos, com base na máxima notoria non agent probatione.
13- O artigo 412.º, n.º1 do Código Processo Civil (CPC) sob a epígrafe «Factos que não carecem de alegação ou de prova», prescreve o seguinte:
«n.º 1 - Não carecem de prova nem de alegação os factos notórios, devendo considerar-se como tais os factos que são do conhecimento geral.»
14 - De acordo com Alberto dos Reis, «os factos notórios podem classificar-se em duas grandes categorias:
a) Acontecimentos de que todos se aperceberam directamente (uma guerra, um ciclone, um eclipse total, um terramoto, etc.);
b) Factos que adquirem o carácter de notórios por via indirecta, isto é, mediante raciocínios formados sobre factos observados pela generalidade dos cidadãos (De Stefano, Il notório, pag. 59).»
15 - Os primeiros - referidos na alínea a) - não suscitam dúvidas.
«Quanto aos segundos, o juiz só deve considerá-los notórios se adquirir a convicção de que o facto originário foi percebido pela generalidade dos portugueses e de que o raciocínio necessário para chegar ao facto derivado estava ao alcance do homem de cultura média»
(Código de Processo Civil Anotado, Volume III, em anotação ao então artigo 518º, página 262) 16 - É como se os factos notórios dispensassem a prova, porque já gozam do conhecimento geral no lugar e no tempo em que o processo se desenrola, contendo em si mesmos, uma prova preconstituída, formada anteriormente ao processo e munida de maiores garantias externas do que as que o processo poderia dar.
17 - À luz deste ensinamento, os factos inscritos nos pontos 32 e 33 da materialidade provada não podem ser havidos como notórios, pois jamais serão do conhecimento comum das pessoas, em relação a uma situação em que se desconhece a causa da morte
32. O desaparecimento da falecida durou mais de 5 meses, tendo perdurado por períodos de calor extremo, com temperaturas que, na região, rondam os 40.º graus, bem como por todo o Inverno da região que, especialmente durante a noite, é particularmente agressivo.
33. Pese embora se desconheça em que altura ocorreu a morte de BB, certo é que terá ocorrido numa situação de desorientação, confusão, medo, desidratação, fome, frio e/ou calor, tendo a idosa vivido momentos de terror, sem encontrar ajuda ou apoio de familiares, experienciando o medo de morrer, o desespero de não encontrar caminho de volta ao lar ou a qualquer zona habitacional, até ao seu efectivo e solitário perecimento.
18 - Pelo que já acima se alegou, os factos contidos sob os n.ºs 32 e 33 não constituem factos notórios, tendo que ser provados pela parte que os alegou, designadamente os Autores (e estando incluídos nos temas de prova, logo factos controvertidos, a exigir prova).
19 - Pelo contrário, segundo as regras da experiência comum e da lógica, ignorando-se a data, hora e local em que BB faleceu e ignorando-se a causa da sua morte, nada se pode deduzir do local onde foram encontrados o seu crânio, casaco e lenço e nada se pode deduzir do modo ou das circunstâncias em que ocorreu a sua morte, pois verdadeiramente aquilo que é seguro, em face das regras da experiência comum e da lógica, não se sabendo a causa da sua morte nem o local e data concretos em que sucedeu, é que se desconhece a envolvência em que ocorreu a sua morte,
20 - não se podendo retirar qualquer dedução do período de tempo que mediou entre a data em que BB sai do lar e a data em que as suas ossadas e roupa são encontradas (5 meses) e das condições climatéricas que eventualmente existiam na região nesse período de 5 meses para gerar uma conclusão quanto à caracterização do contexto ou circunstancialismo em que ocorreu a morte da utente e do que esta sentiu nesse momento, 21 - pois tal é incongruente e contrário aos factos dados como provados sob os itens 30 e 31 segundo os quais a causa da morte da utente é desconhecida, tal como são desconhecidos a data, hora e local em que BB pereceu.
22 - E veja-se que, face à incógnita quanto à causa da sua morte e quanto à data, hora e local do seu perecimento, a utente tanto pode ter falecido no local onde foram encontradas as ossadas, como em qualquer outro sítio, aliás, pode ter falecido em dia próximo do dia ../../2019, pode ter falecido em local resguardado, e considerando o seu estado de saúde (padecia de demência) e idade pode ter falecido de causa natural, sem sentir fome, nem sede, nem qualquer sentimento de terror.
23 - Hipóteses e conclusões acima referidas (no parágrafo imediatamente anterior) que, face ao mistério quanto à causa da sua morte e quanto à data, hora e local do seu falecimento, são tão válidas como quaisquer outras, sendo que a prova de tais factos incumbia, nos termos legais e como já referido, aos Autores (artigo 342.º do Código Civil).
24 - E, como resulta da Sentença, tal prova não foi feita.
25 - Além disso, a alínea d) dos temas de prova, constante do Despacho Saneador, tinha a seguinte redacção: ”Deslindar do sofrimento de BB, nos momentos que mediaram entre a fuga e a morte.”
26 - Ora, se tal factualidade fosse notória, não exigiria prova e, consequentemente, não constaria, como constava, dos temas de prova (antigo questionário).
27 - E, assim sendo, como é, não podem os mesmos ter-se por provados e, subsequentemente, deve soçobrar (porquanto baseada ou alicerçada nessa factualidade dada como provada) a indemnização quanto aos danos não patrimoniais sofridos pela pretensa vítima no período que mediou entre a saída do lar e o seu falecimento.
28 - Em conclusão, não existem no processo meios probatórios, nem foram produzidas provas em sede de audiência de julgamento, que permitissem julgar provados tais factos.

II – DO «FACTO» CONSIDERADO PROVADO PELO TRIBUNAL RECORRIDO SOB O N.º 42 E ORA IMPUGNADO, EM PRIMEIRA LINHA POR CONSTITUIR UMA CONCLUSÃO E NÃO UM FACTO. CASO ASSIM SE NÃO ENTENDA, POR TER DE SER DADO COMO NÃO PROVADO NÃO EXISTINDO PROVA DE TAL FACTO NO PROCESSO JUDICIAL EM CAUSA.

29 - O Tribunal Recorrido considerou provado o «facto» sob o n.º 42 que infra se reproduz:
42. A morte de BB não teria ocorrido se a ré não tivesse omitido a necessária vigilância da mesma. - Cfr. «A – Factualidade Provada», inserta em «III- Fundamentação de Facto», página 7 da sentença.
30 - É a seguinte a fundamentação apresentada pelo Tribunal recorrido para considerar provado o «facto» sob o n.º 42 e neste recurso impugnado:
«A inacção da ré resulta, pois, inquestionável, sendo manifesto que não efectuou qualquer esforço no sentido de debelar o risco de fuga existente.
Sendo que a saída para o exterior da instituição era facilmente evitável, não se tendo tratado de evento que escapou ao controlo da ré.
Por outro lado, igualmente se afigura incontestável que o facto de a porta estar aberta e/ou acessível propiciou a saída da falecida BB.
Caso a porta fosse devidamente vigiada ou não livremente acessível, a falecida BB não teria saído para o exterior da instituição. Tratava-se não só de um evento expectável, como, conforme já referido, absolutamente evitável.

O exterior é, em si mesmo, perigoso para quem, por via de demência, não possui os mais básicos mecanismos de preservação, não se sabendo orientar no espaço, logo, não logrando regressar nem procurar ajuda ou local onde pudesse solicitar ajuda, não se sabendo desenvencilhar uma vez perdida no meio de zona rural sem ajuda de terceiros.
Pelo que não há dúvidas de que se justificava e impunha uma activa e adequada vigilância. O que não ocorreu.
Em face de tudo quanto vem exposto, impunha-se dar como provada a factualidade plasmada sob os n.ºs 16, 17, 41 e 42. - Cfr. «C – Motivação da decisão de facto», inserta em «III- Fundamentação de Facto», páginas 9 e 15 da sentença recorrida.
31 - Apenas os factos materiais são susceptíveis de prova e só os factos materiais podem considerar-se provados.
32 - As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas ser objecto de prova, nem podendo conclusões ser consideradas factos.
33 - Ora a frase «A morte de BB não teria ocorrido se a ré não tivesse omitido a necessária vigilância da mesma.» inserta sob o n.º 42 da factualidade provada não constitui um facto.
34 - «A morte de BB não teria ocorrido se a ré não tivesse omitido a necessária vigilância da mesma.» é uma conclusão.
35 - É uma afirmação com natureza conclusiva que, para além disso, respeita ao tema fulcral controvertido.
36 - Conforme é entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais superiores, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça, as conclusões só se podem extrair de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações.
37 - E tal juízo conclusivo apenas é formulado a jusante, na sentença, na sua fundamentação, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada.
32
38 - Os «factos conclusivos são aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa ou, visto de outro modo, se tais factos fossem considerados provados ou não provados toda a acção seria resolvida (em termos de procedência ou improcedência) com base nessa única resposta». Cfr. Helena Cabrita, A

Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, Coimbra, 2015, pp. 106-107
39 - Daí que, sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado.
40 - A frase sob o n.º42 da factualidade provada integra o próprio objecto do processo e a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites constitui objecto de disputa das partes.
41 - Afirmação de natureza conclusiva que deve ser excluída do elenco factual, por integrar o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objecto do processo a decidir, ou seja, a componente jurídica que suporta a decisão.
42 - Não tendo sido observado pelo tribunal a quo o anteriormente referido e tendo este dada como provada pronunciado uma afirmação conclusiva, deve a mesma ter-se por não escrita.
Acresce que:
43 - O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (art.º 607.º n.º 5, CPC).
44 - A livre apreciação da prova não consente que o julgador forme a sua convicção arbitrariamente, antes lhe impondo um processo de valoração racional, dirigido à formação de um prudente juízo crítico global, o qual deve assentar na ponderação conjugada dos diversos meios de prova, aferidos segundo regras da experiência, atendendo aos princípios de racionalidade lógica e considerando as circunstâncias do caso.
45 - O resultado desse processo deve ter respaldo na prova produzida e tal deve decorrer, em termos suficientemente claros e objectivos, da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
46 - Sucede que da fundamentação da sentença recorrida referente ao «facto» ou conclusão sob o n.º 42 da factualidade provada da sentença recorrida (fundamentação acima transcrita) apenas resulta a ligação entre o risco de fuga da utente e o facto de a porta do lar estar aberta ou acessível, ou seja, a saída da utente do interior do lar para o exterior porque a porta não estava trancada.
47 - E quanto muito, o facto a constar sob o n.º 42 da matéria de facto provada apenas poderia ser, atendendo à prova produzida e à própria fundamentação do Tribunal Recorrido

acima transcrita, o seguinte: «o facto de a porta estar aberta e/ou acessível propiciou a saída da falecida BB do interior do lar para o seu exterior».
48 - Não se podendo afirmar, seja em jeito de conclusão, seja sob a roupagem de “facto material” que «A morte de BB não teria ocorrido se a ré não tivesse omitido a necessária vigilância da mesma.», pois, verdadeiramente, como acima se explicitou e como se encontra provado sob os números 30 e 31 da factualidade provada e não impugnada, desconhece-se a causa da morte da utente, ignora-se o dia, hora e local do seu falecimento, ignoram-se igualmente as circunstâncias concretas do seu perecimento.
49 - «Facto» considerado provado pelo Tribunal Recorrido e que deve ser eliminado da matéria de facto, pois verdadeiramente a frase inserta no n.º 42 da matéria de facto provada da sentença recorrida não constitui um facto material mas uma conclusão, ou, caso, assim se não entenda, deve tal «facto» ser considerado não provado por inexistência no processo da sua prova.
50 - Cumpre apreciar e decidir, após qualificação da relação jurídica contratual, se a Ré violou algum dever decorrente da relação contratual e, na afirmativa, se a violação de tal dever acarretou, como consequência imediata, directa e necessária, a morte de BB.
51 - O contrato celebrado entre BB, seu irmão AA e a Ré Santa Casa da Misericórdia ... é um contrato de prestação de serviços (inominado).
52 - De acordo com o disposto no artigo 1154.º do Código Civil, «o contrato de prestação de serviços é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição».
53 - A lei tipifica, como modalidades do contrato de prestação de serviços (cfr. artigo 1155.º do Código Civil), o contrato de mandato (o contrato pelo qual uma das partes se obriga a pratica um ou mais actos jurídicos por conta da outra: artigo 1157.º), o contrato de depósito (o contrato pelo qual uma das partes entrega à outra uma coisa, móvel ou imóvel, para que a guarde e restitua quando lhe for exigido: artigo 1185.º) e o contrato de empreitada (o contrato pelo qual uma das partes se obriga em relação à outra a realizar certa obra, mediante o pagamento de um preço: artigo 1207.º), mandando aplicar, com as necessárias adaptações, às modalidades do contrato de prestação de serviço que a lei não regule especialmente, as disposições do mandato (cfr. artigo 1156.º do Código Civil).

54 - Tendo a Ré se obrigado a prestar a BB o resultado do seu trabalho manual, contra o pagamento de uma retribuição, nos termos conjugados dos artigos 1154.º e 1155.º do Código Civil, temos que concluir que o contrato celebrado é efectivamente um contrato de prestação de serviços e, porque não reconduzível a qualquer dos tipos contratuais nominados (não estando em causa como serviço a prática de actos jurídicos, a entrega de uma coisa para ser guardada e restituída ou a execução de uma obra), é um contrato de prestação de serviços inominado.
55 - E, estando em causa um contrato inominado, nos termos do artigo 1156.º do Código Civil, salvaguardado o princípio da liberdade contratual (cfr. artigo 405.º, n.º 1 do Código Civil: “Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, celebrar contratos diferentes dos previstos neste código ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver”), na ausência de convenção ou disposição legal em contrário, o mesmo é regulado pelas disposições gerais aplicáveis à generalidade dos contratos e pelas disposições especiais do contrato de mandato, nos termos previstos nos artigos 1157.º a 1184.º do Código Civil.
56 - Dito de outro modo: o contrato de prestação de serviços celebrado entre as partes rege-se pelas disposições imperativas previstas para o contrato de prestação de serviços (aplicando com as devidas adaptações o regime jurídico do contrato de mandato), pelo convencionado entre as partes (que é “a lei as partes”: desde que não contraria disposições legais imperativas) e supletivamente pelas normas do regime jurídico do contrato de mandato e pelas normas jurídicas aplicáveis à generalidade dos contratos. 57 - De acordo com o estipulado no artigo 406.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, que consagra o princípio da eficácia relativa dos contratos, o contrato deve ser pontualmente cumprido, ou seja, a tempo e horas e ponto por ponto, nos termos convencionados entre as partes, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei.
58 - Estando em causa um contrato bilateral e sinalagmático, do qual resultam obrigações para ambas as partes, nos termos do artigo 762.º, n.ºs 1 e 2 do Código Civil, o devedor só cumpre a sua obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado, devendo as partes, no cumprimento das obrigações decorrentes do contrato, assim como no exercício do direito correspondente, proceder de boa fé.

59 - O cumprimento da obrigação é, neste sentido, a realização voluntária da prestação debitória, traduzindo uma execução da relação obrigacional no que toca ao dever de prestar (de onde resulta que BB e seu irmão cumprem a sua obrigação com o pagamento voluntário mensal da prestação acordada e que a ré Santa Casa da Misericórdia ... cumpre a sua obrigação com o fornecimento voluntário dos serviços consignados no contrato).
60 - Por outro lado, a boa fé exigida para o cumprimento das obrigações e para o exercício do direito correspondente é a boa fé objectiva, que remete para os sentimentos de equidade ou para o prudente arbítrio e, assim, para critérios gerais objectivos decorrentes do dever de leal cooperação entre as partes, na realização cabal do interesse do credor, com o menor sacrifício possível para os interesses do devedor, de proceder leal, honesto e diligente – cfr. Antunes Varela (in Das Obrigações em Geral, Vol. II, 5.ª ed., páginas. 7 e ss.).
61 - Assentes quais as obrigações decorrentes para ambas as partes na execução do contrato (de execução duradoira), resulta da factualidade provada que as partes cumpriram as suas obrigações, sem qualquer reclamação, até ao dia 4 do mês de Agosto de 2019 em causa nos autos.
62 - O incumprimento do contrato faz incorrer o devedor em responsabilidade contratual. 63 - Nos termos do artigo 798.º do Código Civil, «o devedor que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável pelo prejuízo que causa ao credor», impendendo ao devedor, nos termos do artigo 799.º, n.º 1 do Código Civil, provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua – sendo a culpa apreciada, de acordo com o n.º 2 do artigo 799.º, nos termos aplicáveis à responsabilidade civil, ou seja, nos termos do artigo 487.º, n.º 2 do Código Civil, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
64 - A existência da obrigação de indemnizar a cargo da Ré (provenha de responsabilidade civil contratual ou extracontratual), depende, como não pode deixar de ser, da verificação de todos os pressupostos da responsabilidade civil.
65 - Com efeito, a responsabilidade contratual, nos termos dos artigos 798.º e 799.º do Código Civil, acaba por ter os mesmos pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, prevista no artigo 483.º, n.º 1 do Código Civil, tendo, assim, como pressupostos:
a) a existência de um facto (acção/omissão) voluntário do devedor (e que é o facto objectivo do não cumprimento);
b) a ilicitude do facto (ilicitude que, nesta sede, corresponde ao “incumprimento da obrigação”, ou seja, à relação de desconformidade entre a conduta devida e o comportamento observado);
c) a culpa do devedor (a actuação pessoalmente censurável ou reprovável e que, em sede contratual, nos termos do artigo 799.º, se presume, fazendo impender sobre o devedor o ónus da prova de que a falta de cumprimento da obrigação não procede de culpa sua – sendo a culpa apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso);
d) a existência de danos;
e) a existência de nexo de causalidade (adequada) entre o facto (e o dever violado) e os danos ocorridos.
66 - A (obrigação de) indemnização civil em matéria de responsabilidade civil, seja de natureza contratual, seja de natureza extracontratual, vem regulada nos artigos 562.º a 572.º do Código Civil, consagrando o artigo 562.º do Código Civil o «princípio geral» nos termos do qual «quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação» - em consonância também com o artigo 483.º, 1 do Código Civil, que estabelece como pressuposto da responsabilidade civil por facto ilícito que o dano “resulte” da violação.
67 - Para determinação dos danos indemnizáveis, sob a epígrafe de «nexo de causalidade», preceitua o artigo 563.º que «a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão».
68 - A nossa doutrina e jurisprudência vêm entendendo de forma pacífica que esta norma consagra «a teoria da causalidade adequada», no sentido de não basta que o facto seja «conditio sine qua non» do resultado ocorrido, impondo-se apurar se o dano é uma consequência adequada do facto praticado, no sentido de ser uma consequência normal típica dessa conduta – excluindo da tipicidade os danos estranhos a essa relação de adequação. 69 - Neste sentido, Almeida Costa sustenta que a ideia fulcral é a de que se considera causa de um prejuízo a condição que, em abstracto, se mostra adequada a produzi-lo.
70 - Partindo da teoria da equivalência das condições, no sentido de que, em princípio, toda a condição «sine qua non» de um evento danoso deve ser considerada como sua causa, essa correspondência entre condicionalidade e causalidade deixará de verificar-se sempre que, de

acordo com a lição da experiência comum e dadas as circunstâncias do caso, não se possa afirmar, em termos de probabilidade, que o facto originaria normalmente o dano.
71 - É necessário, portanto, não só que o facto tenha sido, em concreto, condição «sine qua non» do dano, mas também que constitua, em abstracto, segundo o curso normal das coisas, causa adequada à sua produção (que exista probabilidade).
72 - Deste modo, no domínio da responsabilidade por factos ilícitos culposos, contratuais ou extracontratuais, o facto que atua como condição só deixará de ser causa do dano desde que se revele, pela sua natureza, de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais.
73 - Salientando-se que a doutrina da causalidade adequada não pressupõe a exclusividade da condição, no sentido de que esta haja só por si determinado o dano.
74 - Podem ter colaborado na sua produção outros factos concomitantes ou posteriores. 75 - Assim como não se impõe que o nexo causal entre o facto e o dano se apresente directo ou imediato, pois basta uma causalidade indirecta ou mediata (inexistente no caso “sub judice”). 76 - Será suficiente que o facto, embora não tenha ele mesmo provocado o dano, desencadeie outra condição que directamente o produza, contanto que esta segunda condição se mostre uma consequência adequada do facto que deu origem à primeira.
77 - A doutrina da causalidade adequada não postula especificamente a previsibilidade do dano.
78 - Tal previsibilidade apenas será necessária em relação ao facto constitutivo da responsabilidade, sempre que esta pressuponha culpa do agente, mas não para os danos dele derivados.
79 - Na verdade, na formulação da causalidade adequada, o legislador faz apelo à ideia de probabilidade do dano.
80 - Depois de se assinalar à obrigação de indemnização o escopo de reconstituir a situação em que o lesado se encontraria se o facto constitutivo de responsabilidade não houvesse sido praticado (artigo 562.°), põe o problema da destrinça entre os danos que devem considerar-se consequência do facto lesivo e os que se teriam produzido independentemente da sua verificação (artigo 563.°).
81 - Operando com a situação hipotética do lesado, intervém a noção de probabilidade. 82 - A indemnização confina-se, assim, aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão do seu direito ou interesse protegido.
83 - É este o entendimento, também, de Antunes Varela (in Das Obrigações em Geral, Vol. I, páginas 928 e ss.), que sustenta que o artigo 563.º consagra [para as hipóteses em que a lesão procede de facto ilícito (contratual ou extracontratual)] a formulação negativa da teoria causalidade adequada, no sentido de que (verificando-se a relação de adequação entre o facto e o resultado sempre que este seja uma consequência normal típica daquele) o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto.
84 - O juízo de idoneidade deve ser efectuado com referência ao momento da prática do facto, de acordo com um processo lógico de prognose póstuma, como se a produção do resultado se não tivesse ainda verificado, devendo tal juízo ser feito segundo as regras da experiência comum aplicadas às circunstâncias do caso concreto.
85 - Daqui decorrendo que, sempre que o resultado for previsível e de verificação normal na situação concreta (o que não aconteceu no caso “sub judice”), em face do facto praticado, deve o mesmo ser imputado objectivamente à acção do agente – a idoneidade abstracta da acção para conduzir ao resultado determina a imputação objectiva do resultado à actuação do agente, afastando-se tal juízo de idoneidade quando para a produção do resultado tiverem contribuído, decisivamente, circunstâncias anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto e, assim, interromperam o percurso causal.
86 - Sendo que a prova dos requisitos ou pressupostos da responsabilidade civil, incide sobre a parte que alega (artigo 342.º do Código Civil).
87 - Relativamente à Ré Santa Casa da Misericórdia ... é ponto assente que a mesma, no dia 4 de Agosto de 2018, incumpriu o contrato celebrado e também que a BB já se havia ausentado por várias vezes do Lar.
88 - Impõe-se, assim, apreciar se os danos ocorridos são uma consequência necessária e adequada do dever incumprido pela Recorrente Santa Casa da Misericórdia ... (designadamente, se era previsível ou provável, na situação concreta, que a violação do dever imposto à Santa Casa da Misericórdia ... conduzisse ao decesso da utente).
89 - A este respeito, importa apurar quais são os danos ocorridos, para depois apurar se os danos em causa decorrem da violação da obrigação assumida pela ora Recorrente e/ou se existe prova do nexo de causalidade entre a obrigação incumprida e os danos verificados.
90 - Parece-nos uma evidência a constatação de que a morte de BB não é uma consequência adequada (quer em abstracto, quer em concreto) da violação dos deveres contratuais que impendiam sobre a Ré Santa Casa da Misericórdia ..., isto é, não se ficou a dever ao facto de a utente se ter ausentado do lar: ou seja, o facto ilícito é indiferente para a produção do dano, não devendo o mesmo ser imputado ao agente (conditio sine qua non, vertente negativa).
91 - Por outro lado, não era expectável ou compaginável, contrariamente ao propugnado na Sentença objecto de recurso, que a conduta do agente (Santa Casa da Misericórdia ...) tivesse como resultado razoavelmente provável ou possível aquele dano (adequação, vertente positiva).
92 - Ficou provado, com base no relatório de autópsia, que a causa da morte de BB era indeterminada.
93 - E, assim sendo, como é, desconhece-se, com efeito e em concreto, qual a causa de seu decesso.
94 - A morte de BB não é uma consequência imediata, directa e adequada da sua ausência do lar, quer abstracta, quer concretamente (i.e., o facto ilícito é de todo indiferente para a produção do dano, não podendo, consequentemente, ser este imputado ao agente) – por isso, não podem os Autores reclamar uma indemnização da Recorrente Santa Casa da Misericórdia ... correspondente ao valor do dano morte, nem uma indemnização pelos danos não patrimoniais relacionados com a mesma.
95 - Na verdade, formulando-se um juízo de idoneidade «ex ante» (no momento da prática dos factos e como se o resultado não tivesse ainda ocorrido), de acordo com as regras da normalidade dos acontecimentos e da experiência comum, aplicadas às circunstâncias do caso concreto, não se pode dizer que a morte de BB seja um resultado previsível, provável e de verificação normal na situação concreta (o que resulta do facto de a mesma, como também ficou provado e acima se referiu, se ter ausentado do Lar por várias vezes).
96 - Desconhecendo-se, como se desconhece, a que se ficou a dever a morte de BB, não pode fazer-se um juízo de imputação objectiva do resultado (morte) à conduta omissiva da Recorrente; nem pode estabelecer-se, como fez o Tribunal Recorrido, a presunção de que a violação do dever (omissão) conduziu à morte da utente.
97 - Além disso, ainda que se entendesse que competia à Ré, ora Recorrente, fazer a prova de que, para a produção do dano contribuíram circunstâncias excepcionais, anómalas, anormais ou extraordinárias (visando afastar o facto como causa adequada do dano), tal torna-se (e tornou-se) impossível, porquanto se trata de uma “prova diabólica”.
98 - Não se pode impor a uma das partes, neste caso à Ré/Recorrente, a invocação e prova de factos negativos, sob pena de se gerar uma obrigação de prova definitivamente diabólica e impossível de satisfazer.
99 - Ou seja: não se pode estabelecer qualquer nexo de causalidade entre o incumprimento contratual da Ré, incumprindo o dever de vigilância e permitindo a saída da BB para o exterior, e a ocorrência da morte, não se podendo ter como adquirido que, ainda que se mantivesse no interior do Lar, a morte não ocorreria e /ou que a morte da mesma se não ficou a dever a circunstâncias excepcionais (sendo certo que se desconhece a data, a hora e a causa da morte).
100 - Assim, falhando este nexo causal (cuja prova competia aos Autores), não assiste aos Autores o direito de indemnização pelo dano da morte de BB, nem pelos danos não patrimoniais (por si sofridos) decorrentes da morte daquela – ficando prejudicada a apreciação dos danos de natureza não patrimonial alegadamente sofridos pela BB antes da sua morte, que, como vimos, não resultaram provados e que, ainda que se tivessem provado, não podiam imputar-se objectivamente à conduta da Ré (ao incumprimento contratual – à violação dos deveres contratuais).
101 - Assim, fez o Tribunal Recorrido uma errada interpretação e aplicação do Direito, resultando violados, entre outros, os artigos 342.º, 483.º, 491.º, 798.º, 799.º, 800.º do Código Civil e 412.º do Código de Processo Civil.
Termos em que, e nos demais de Direito aplicáveis, deve a presente apelação ser procedente, revogando-se a sentença recorrida, nos termos supra ou em outros que V. Exas suprirão, para assim se fazer Justiça!» 
*
Os recorridos, autores na acção, prescindiram do prazo de contra-alegações.
*
O recurso foi admitido como de apelação, com subida imediata e efeito devolutivo, nada obstando ao seu conhecimento.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
*
As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objecto, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou relativas à qualificação jurídica dos factos, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608.º, n.º 2, ex vi do art.º 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 639.º, n.os 1 a 3, 641.º, n.º 2, alínea b) e 5º, n.º 3, todos do Código de Processo Civil (C.P.C.). 

Face às conclusões da motivação do recurso, as questões a decidir, centramse no seguinte:
- saber se os pontos indicados da matéria de facto, padecem das patalogias indicadas na apelação;
- saber se no caso em apreciação se mostra verificado o nexo de causalidade adequada, requisito da responsabilidade civil e pressuposta da obrigação de indemnizar.
*
III. Fundamentação de facto.

Na decisão proferida, foram elencados os seguintes factos como provados:
1. Os autores são herdeiros da herança aberta por óbito de BB, sendo que os primeiros três autores são irmãos germanos e os restantes são sobrinhos, em representação das pré-falecidas irmãs OO e PP.
2. Nos termos do artigo 1.º, n.º 1 do seu «Compromisso» (estatutos), a ré é uma irmandade de fiéis, com personalidade jurídica católica, visando o serviço e apoio com solidariedade a todos os que precisam.
3. Tem também reconhecida a sua personalidade jurídica civil como IPSS (Instituição Particular de Solidariedade Social), sendo uma pessoa colectiva sem fins lucrativos de utilidade pública.
4. No âmbito da actividade social que prossegue, a ré é proprietária do «Lar ...», que actualmente tem a designação de «Estrutura Residencial para Pessoas Idosas ...» (...), situada na Rua ..., ..., ... ....
5. A falecida BB foi institucionalizada, por solicitação do seu irmão, o autor AA, em 25.05.2017, nas instalações do referido Lar ..., cuja propriedade e gestão pertencem à aqui ré.
6. Por acordo escrito intitulado de “contrato de prestação de serviço com alojamento”, celebrado na data aludida em 5., entre BB, na qualidade de cliente/residente, AA, na qualidade de familiar responsável, e a ré, esta última obrigou-se a prestar àquela os serviços de alojamento, alimentação, tratamento de roupa, cuidados de saúde primários, higiene e conforto pessoal, apoio e animação social.
7. Obrigou-se, assim, a prestar estadia, alimentação, assistência médica, de enfermagem e, intrinsecamente, acompanhamento e vigilância.
8. Os autores pagaram mensalmente à ré, pela estadia da sua familiar, a quantia de € 630,00.
9. A referida BB, à data do internamento na referida instituição, tinha 82 anos de idade e padecia de demência.
10. A ré era conhecedora da factualidade referida em 9.
11. Todo o pessoal de serviço na Residência de Idosos da ré que, no exercício das suas funções, lidava quotidianamente com a falecida BB conhecia o estado da sua doença e a necessidade de a vigiar.
12. A falecida BB não padecia de dificuldades locomotivas ou outras patologias que a impedissem de, por si e sem ajuda de terceiros, se deslocar.
13. No dia 23 de Julho de 2018, BB ausentou-se da instituição identificada em 4. e 5., a pé, tendo sido encontrada numa pastelaria próxima.
14. Em 10.03.2019, BB colocou-se em fuga pelas 07h36, tendo sido encontrada às 10h30, na freguesia ..., em local que dista cerca de 10km ao lar.
15. Ocorreram ainda as seguintes fugas ou tentativas de fugas:
i. em 02.08.2018, tendo sido encontrada na rampa de acesso à instituição, ii. em 17.09.2018, por duas vezes, tendo sido encontrada na zona exterior; iii. em 24.10.2018, tendo sido encontrada no meio da estrada em frente ao
Lar, iv. em 29.10.2018, tendo sido encontrada no exterior junto à rampa de
acesso,
v. em 23.12.2018, tendo sido encontrada na rua;
vi. em 27.12.2018, por duas vezes, tendo sido encontrada na rua; vii. em 19.02.2019, tendo sido encontrada na rua; viii. em 28.07, 29.07 e 31.07, de 2019.
16. O portão exterior e portas de saída encontravam-se quase sempre abertos e as entradas e saídas não eram vigiadas.
17. Pese embora a ré tivesse total conhecimento destas tentativas de saída por parte de BB, permaneceu sem adoptar medidas aptas a impedir a recidiva deste comportamento.
18. De todas as ausências/fugas consumadas da instituição, quer das tentativas, quer da sua predisposição para tanto, foi informado o seu irmão e responsável, o autor AA.
19. A 4 de Agosto de 2019, BB ausentou-se do Lar ... por volta das 07h32 da manhã.
20. Tendo-se dirigido, pelo seu próprio pé, para a porta de saída do Lar.
21. Encaminhando-se para o exterior através de uma porta automática, envidraçada, percorrendo o acesso até ao portão e trespassando-o para a rua.
22. Todo este percurso foi feito sem que houvesse alguém que a tivesse impedido.
23. Só cerca das 9h00, as funcionárias e enfermeira do lar se aperceberam da ausência da idosa na zona de refeições, altura em que encetaram diligências de averiguação do seu paradeiro.
24. Porque as mesmas se revelaram infrutíferas, perto das 10h00 contactaram a GNR ....
25. Com os meios disponíveis, militares da GNR auxiliados pelos Bombeiros, iniciaram as buscas, que se prolongaram por todo esse dia e até 8 de Novembro de 2019.
26. Na procura de BB, e sob a orientação da GNR, durante o dia 4 de Agosto de 2019 e os dez dias seguintes, a ré mobilizou todos os colaboradores que foi possível libertar com a redução das suas respostas sociais aos «serviços mínimos».
27. No dia 26 de Janeiro de 2020, foi encontrado um crânio humano num local ermo denominado “...”, pertencente à freguesia ..., ..., que se veio a confirmar ser da falecida BB.
28. O local onde se encontrava a ossada dista cerca de 4 km do lar.
29. Foram também encontrados um casaco e um lenço, numa zona denominada “...”, que se revelou pertencerem à idosa, a 960 metros de distância da ossada encontrada.
30. Dado o avançado estado de decomposição do crânio, os exames dos restos cadavéricos e exames antropológicos forenses realizados não foram concludentes quanto à causa de morte.
31. Igualmente não se apuraram a data, hora e local do decesso.
32. O desaparecimento da falecida durou mais de 5 meses, tendo perdurado por períodos de calor extremo, com temperaturas que, na região, rondam os 40.º
graus, bem como por todo o Inverno da região que, especialmente durante a noite, é particularmente agressivo.
33. Pese embora se desconheça em que altura ocorreu a morte de BB, certo é que terá ocorrido numa situação de desorientação, confusão, medo, desidratação, fome, frio e/ou calor, tendo a idosa vivido momentos de terror, sem encontrar ajuda ou apoio de familiares, experienciando o medo de morrer, o desespero de não encontrar caminho de volta ao lar ou a qualquer zona habitacional, até ao seu efectivo e solitário perecimento. 34. O autor AA nutria pela sua irmã sentimentos de amor.
35. O autor AA visitava-a regularmente, telefonava com frequência para se inteirar do seu estado e sempre cuidou para que nada lhe faltasse.
36. O autor AA passou por momentos de tristeza, ansiedade, angústia e dor.
37. Sofreu com o facto de a sua irmã ter desaparecido e vagueado sozinha sem que lhe pudesse ter valido.
38. Tendo-se sentido impotente e angustiado por cada noite que passava.
39. Na manhã do dia ../../2019, pelas 07:00h, BB encontrava-se calma.
40. Deslocou-se para o seu quarto na companhia da colaboradora QQ para lhe serem por esta prestados, como foram, cuidados de higiene, mantendo-se calma e colaborante.
41. A ré não tomou as cautelas necessárias para obstar a que a falecida BB saísse do lar para o exterior.
42. A morte de BB não teria ocorrido se a ré não tivesse omitido a necessária vigilância da mesma.
*
B – Factualidade não provada

Com relevo para a decisão da causa, resultou não provada a seguinte factualidade:
a) A morte de BB ocorreu num quadro de completo desespero que a levou a tirar parte do vestuário.
b) A factualidade expendida em 34. a 38. é aplicável aos demais familiares
da falecida, aqui autores.
c) Nas várias visitas que os autores efectuaram sempre lhe manifestaram o
amor que sentiam por ela e proporcionaram-lhe muito carinho.
d) Os autores choraram diariamente o seu desaparecimento.
e) Os autores não dormiram durante noites a fio, insónia causada pela aflição de saber que a sua familiar querida se encontrava perdida, sozinha, em desespero, com fome e frio.
f) Os autores desesperaram com o passar dos dias sem ter notícias.
g) Como católicos, não conseguem ultrapassar a dor de não terem podido realizar um funeral condigno e por saberem que as restantes ossadas de BB continuam perdidas, sem o digno repouso.
h) Continuam a sentir uma imensa dor e saudade da sua familiar e não se conformam com a sua morte, nas circunstâncias em que ocorreu.
i) Vivenciaram sentimentos de negação, sensação de irrealidade, dificuldade de concentração e emocional (e.g. choque emocional, raiva, irritabilidade), comportamentais (inquietação, isolamento social) e físicos/somáticos (perturbação no sono, fraqueza, “falta de energia”, fadiga).
j) Nunca o responsável, AA, confrontado com as «fugas», transmitiu à ré qualquer juízo de reprovação, manifestação de desagrado, imputação de incumprimento contratual ou intenção de pôr termo ao contrato de prestação de serviços que subscreveu.
k) Sobre BB recaía, por parte da ré, um acompanhamento,
vigilância e supervisão acrescidos.
l) Na manhã do dia ../../2019, pelas 07:00h, BB encontrava-se bem-disposta, tendo-se vestido por si só.
m) Nada na sua postura, em tal manhã, fazia antever ou suspeitar de
qualquer intenção ou predisposição para se ausentar das instalações.
n) Durante o período em que BB esteve na instituição ré - de 25.05.2017 até ao dia ../../2019 – apenas foi visitada pelo autor (e sua esposa), seu irmão e responsável pelo seu internamento, AA.
o) Nunca tendo qualquer dos demais autores a visitado.
p) Nem telefonicamente ou por qualquer outro meio com ela comunicado, nem por esse meio (telefone ou telemóvel) ou por qualquer outro
(correspondência, correio electrónico) contactado a instituição para se inteirarem do seu estado de saúde ou das suas necessidades.
q) Sendo as deslocações que a mesma, por razões de saúde, teve que realizar a unidades de saúde ou hospitalar e a consultas médicas sempre diligenciadas pela ré por intermédio dos seus colaboradores e com o recurso às suas viaturas.
r) Bem como foi a ré que assegurou a presença da BB no funeral da sua irmã FF e a visita que a mesma mostrou desejo em fazer à campa do seu falecido marido.
s) BB que durante esse lapso de tempo, sem excepção, na instituição ré passou os dias de Carnaval, de Páscoa, de Natal, de Ano Novo, do seu aniversário ou de seus irmãos e sobrinhos, das festividades da sua terra natal.
t) E os dias de domingo e feriados, santos ou civis, nunca os autores a tendo recolhido para com ela passear, conviver ou privar na intimidade dos seus lares, dela cuidar ou lhe dar qualquer afeto.
*
A demais matéria descrita nos articulados contém alegações de direito ou conclusivas ou matéria irrelevante para a decisão da causa, ou traduz a mera negação de facticidade formulada positivamente no elenco de factos provados.»
 
IV. Fundamentação de direito:

i. Da impugnação da matéria de facto:

Nas suas alegações/conclusões a ré “Santa Casa da Misericórdia ...” começa por sindicar a decisão proferida sobre alguns dos pontos da matéria de facto, sustentada no desrespeito das regras de valoração da prova e na existência de patologias na decisão de facto, por incompatibilidade, incongruência e contradição.
Mais concretamente:
A apelante impugna os factos dados como provados nos artigos 32º e 33º, pugnando para que sejam dados como não provados ou a alteração da redacção do art. 33º nos termos que indica, arguindo como fundamento para tal, as seguintes razões:
- Incongruência, incompatibilidade e contradição entre, por um lado, os factos provados sob os n.ºs 32 e 33 e, por outro, os factos provados sob os números 27 a 31;
- Contradição entre os factos provados sob os números 30 e 31 e a fundamentação apresentada pelo Tribunal recorrido para dar como provados os factos sob os números 32 e 33;
- Os factos 32 e 33 não constituem factos notórios e exigem prova por parte de quem alega (artigo 342.º do Código Civil).
Antes de avançarmos, importa salientar, numa breve súmula, que através da presente acção os autores, herdeiros de BB, vêm demandar a ré “Santa Casa da Misericórdia ...” com fundamento em responsabilidade civil pela violação ilícita por aquela instituição dos deveres que se lhe impunham, decorrente do incumprimento do contrato de prestação de serviços celebrado, designadamente, dos deveres de cuidado e vigilância, e cuja omissão conduziu a que a referida BB, que aí se encontrava internada e que padecia de demência,  se ausentasse da instituição para o exterior, a pé, ficando exposta a intempéries, fome e outras circunstâncias mais ou menos naturais, sem que se lograsse encontrá-la, o que apenas veio a ocorrer 5 meses depois e já sem vida, altura em que num local ermo e a 4 km de distância do lar, foi encontrado um crânio humano que se veio a confirmar ser da mesma. Pelo que concluem, que a morte da falecida BB, pese embora se desconheçam as causas de morte dado o estado avançado de decomposição, ocorreu num quadro circunstancial adequado a provocar o resultado verificado e esse circunstancialismo não teria ocorrido se a Ré não tivesse omitido o seu dever de cuidado e vigilância. 
Como decorre supra, a ré começa por se insurgir contra a prova da factualidade indicada nos pontos 32 e 33 com fundamento na sua incongruência e
contradição com outros factos dados como provados (27 a 31), contradição na fundamentação dos factos 32 e 33 e a prova dos factos 30 e 31, e desrespeito das regras atinentes à prova, por considerar que os factos 32 e 33, não são factos notórios.

Os factos provados em 32 e 33 têm a seguinte redacção:
32. O desaparecimento da falecida durou mais de 5 meses, tendo perdurado por períodos de calor extremo, com temperaturas que, na região, rondam os 40.º graus, bem como por todo o Inverno da região que, especialmente durante a noite, é particularmente agressivo.
33. Pese embora se desconheça em que altura ocorreu a morte de BB, certo é que terá ocorrido numa situação de desorientação, confusão, medo, desidratação, fome, frio e/ou calor, tendo a idosa vivido momentos de terror, sem encontrar ajuda ou apoio de familiares, experienciando o medo de morrer, o desespero de não encontrar caminho de volta ao lar ou a qualquer zona habitacional, até ao seu efectivo e solitário perecimento.

Por sua vez, foi dado como provado nos factos 27 a 31, que:

27. No dia 26 de Janeiro de 2020, foi encontrado um crânio humano num local ermo denominado “...”, pertencente à freguesia ..., ..., que se veio a confirmar ser da falecida BB.
28. O local onde se encontrava a ossada dista cerca de 4 km do lar.
29. Foram também encontrados um casaco e um lenço, numa zona denominada “...”, que se revelou pertencerem à idosa, a 960 metros de distância da ossada encontrada.
30. Dado o avançado estado de decomposição do crânio, os exames dos restos cadavéricos e exames antropológicos forenses realizados não foram concludentes quanto à causa de morte.
31. Igualmente não se apuraram a data, hora e local do decesso.
 
Vejamos:
Na perspectiva da apelante, não se tendo apurado nem a causa da morte de BB, nem a data, hora e local da sua morte, o que resulta de modo expresso dos factos provados sob os números 30 e 31, não se pode dar como certo ou como provado o que consta na segunda parte até final do facto considerado provado pelo Tribunal recorrido sob o n.º 33, desconhecendo-se igualmente o estado, a situação, os sentimentos, a experiência ou momentos vivenciados pela idosa, cuja causa de morte pode ter sido natural, no dia do desaparecimento ou no dia seguinte « não se podendo estabelecer qualquer conexão entre os dias ou meses (5 meses) em que esteve desaparecida com a sua morte, no sentido de não se poder fazer juízos nem dar como provados factos que relacionem tal período de tempo (5 meses) e eventualmente o que experienciou nesse período de tempo (5 meses entre a saída do lar até ser encontrado o crânio) com o seu decesso que não está, reitera-se, determinado no tempo, no espaço ou sequer a sua causa.».
Vejamos:
Existe contradição entre os factos provados quando se dão como provados dois ou mais factos que manifestamente não podem estar simultaneamente provados por as afirmações neles contidas serem absolutamente inconciliáveis entre si, ou como ensina Alberto dos Reis[in CPC Anotado, Vol.IV, págs. 553] citado no Ac. da R.C. de 20.06.2012 in www.dgsi.pt , quando em ambas se façam afirmações inconciliáveis entre si, de modo a que a veracidade de uma exclua a da outra, ou seja "só há contradição de factos quando estes sejam absolutamente incompatíveis entre si, de tal modo que uns não possam coexistir com os outros"[12].
No caso em apreciação tal contradição inconciliável não existe.
De facto, o que se afirma nos pontos 30 e 31 é que os exames dos restos cadavéricos e exames antropológicos forenses realizados não foram concludentes quanto à causa de morte, data, hora e local do decesso, devido ao avançado estado de decomposição dos restos mortais encontrados.  
Ou seja, o que resulta destes pontos é que as perícias médico legais feitas não permitiram em termos técnicos/científicos a formulação de uma conclusão quanto à causa de morte, ou por outras palavras, o que se afirma é, tão só, o resultado dos exames periciais feitos,  o que é distinto e conciliável com as afirmações contidas nos pontos 32 ou 33, que, independentemente da sua bondade que não cabe agora apreciar, decorrem de inferências lógico dedutivas a que o tribunal chegou a partir, seja de outros factos provados, seja de factos notórios.
De facto, o que se diz no ponto 32º é que o desaparecimento da falecida e até ser encontrada (viva ou, infelizmente como aconteceu, os seus restos mortais) durou mais de 5 meses (afirmação que resulta do período que mediou entre o momento do seu desaparecimento e a descoberta dos seus restos mortais), tendo perdurado por períodos de calor extremo, com temperaturas que, na região, rondam os 40.º graus, bem como por todo o Inverno da região que, especialmente durante a noite, é particularmente agressivo, facto que é notório e do conhecimento geral, não se afirmando, ao invés do que parece subentender-se do raciocínio do apelante, que em todo esse período de tempo a pessoa desaparecida tenha estado viva (aliás incompatível com o avançado estado de decomposição dos seus restos mortais). Mas ainda que assim fosse, sempre se dirá, manter-se-ia a conciliabilidade referida com os factos apontados pelo apelante, pois a data da morte e suas circunstâncias poderia, em tese, ter sido alcançada através de outros meios de prova, sem que tal colidisse com o resultado dos exames forenses. 
O mesmo raciocínio se estende ao que vem referido no ponto 33., pois contrariamente ao que refere a apelante, certamente induzida pela afirmação contida na decisão da sua notoriedade, mas que de uma sua leitura atenta se vê reportada em globo aos pontos 32 e 33, sendo certo que o que se depreende da leitura da motivação de facto e da análise crítica feita pelo tribunal recorrido, é que a prova da factualidade inserta no ponto 33. assenta e resulta da inferência e ilação lógica e dedutiva retirada pelo tribunal a quo dos factos provados base da presunção, seu desaparecimento/tempo de duração/ sua situação de saúde/demência (aliás, com agravamento das alterações do comportamento no dia anterior à fuga), local ermo onde foram encontrados os seus restos mortais (distanciado 4 km do Lar) e suas roupas (encontradas a 960 m de distância da ossada) e na evidência de outros (sentimentos em face daquelas circunstâncias/desorientação, medo, fome, frio e ou calor – note-se que o desaparecimento se dá em pleno agosto). Sendo certo, como se refere no sumário do acórdão do STJ de 03-05-2001, in www.dgsi.pt «O julgador não tem que se ater apenas aos factos provados e ilações ou presunções que deles tira, pois que pode também usar os factos notórios.»
Para melhor explicitação do que acaba de ser referido, vejamos o que nos diz a decisão na motivação de facto:
«Os factos contidos sob os n.ºs 32 e 33 constituem factos notórios. De facto, é seguro, em face das regras da experiência comum e da lógica, deduzir que a morte de BB, pelo local ermo onde foram encontrados os restos mortais e as suas roupas, e considerando o seu estado de saúde, foi uma morte solitária, exposta aos elementos, sem acesso a comida e água.
O estado demencial que BB apresentava não inibe os normais sentimentos e sensações humanas, como frio, fome, sede, desconforto, medo ou desamparo.
Aliás, o medo traduz um sentimento natural e irracional, que não carece de razão de ser, podendo ser, por isso, sentido por uma pessoa em situação demencial.»

Antes havia já explicitado de forma elucidativa e concretizada, como se evidencia de alguns segmentos retirados da referida análise crítica da prova:
(…) A factualidade contida sob o n.º 9 emerge da conjugação da sua admissão por acordo (considerando o teor dos artigos 10.º e 11.º da contestação), com o teor do boletim de entrada e nota de admissão (com nota médica anexa) oferecidos como documento n.º 4 com a petição inicial, e da listagem da medicação administrada à falecida junta como documento n.º 5 com o mesmo articulado.
Destes documentos, que instruem o processo interno da falecida BB na ré, consta expressamente a indicação de que aquela, à data da integração no lar, se encontrava “desorientada no tempo e no espaço” e que apresentava “elevado risco de fuga e por vezes com alterações do comportamento, derivado à sua patologia” (cfr. documento n.º 4 oferecido com a petição inicial).
Ademais, consta do mesmo documento que, no dia 03.08.2019 (ou seja, no dia anterior à fuga que resultou no dramático desfecho plasmado na factualidade provada), se verificava um “agravamento das alterações do comportamento desde há 1 semana”.
Além disso, as várias entradas constantes da listagem dos registos de enfermagem juntos como documento n.º 6 com a petição inicial são bem elucidativos das manifestações diárias do estado de saúde da falecida BB, sendo impossível configurar-se a hipótese de ser ignorado por todos quantos lidassem com aquela o estado de demência apresentada bem como a necessidade de a vigiar, considerando o elevado risco de fuga, já sinalizado aquando da admissão e várias vezes confirmado após.» (…)
(…) Quanto ao mais, resultou devidamente explicitada a forma de actuação da ré quanto ao controlo – ou falta dele – das saídas do lar, e bem caracterizada a situação de saúde e comportamental da falecida BB, justificadora de um maior cuidado por parte da ré, o qual, porém, não foi observado.
(…) A inacção da ré resulta, pois, inquestionável, sendo manifesto que não efectuou qualquer esforço no sentido de debelar o risco de fuga existente.
Sendo que a saída para o exterior da instituição era facilmente evitável, não se tendo tratado de evento que escapou ao controlo da ré.
Por outro lado, igualmente se afigura incontestável que o facto de a porta estar aberta e/ou acessível propiciou a saída da falecida BB.

Caso a porta fosse devidamente vigiada ou não livremente acessível, a falecida BB não teria saído para o exterior da instituição. Tratava-se não só de um evento expectável, como, conforme já referido, absolutamente evitável.
O exterior é, em si mesmo, perigoso para quem, por via de demência, não possui os mais básicos mecanismos de preservação, não se sabendo orientar no espaço, logo, não logrando regressar nem procurar ajuda ou local onde pudesse solicitar ajuda, não se sabendo desenvencilhar uma vez perdida no meio de zona rural sem ajuda de terceiros.
Pelo que não há dúvidas de que se justificava e impunha uma activa e adequada vigilância. O que não ocorreu. (…)»
 
Como começámos por referir, para além da sua alegada mas, como vimos, não verificada, contraditoriedade e incongruência, arvora também a apelante como fundamento para afastar a prova dos factos 32. e 33., a sua não notoriedade.
Factos notórios (artº 412º n.1 do CPC) são os de conhecimento geral, os conhecidos pelo cidadão comum, pelas pessoas regularmente informadas, com acesso aos meios normais de informação.
Como acima referimos as referências temporais /climáticas da região referidas no ponto 32. no período do desaparecimento ocorrido no mês de agosto/pleno verão e até serem encontrados os seus restos mortais, em pleno inverno, são factos conhecidos da generalidade das pessoas.
Já no que se refere ao ponto 33. da factualidade (factualidade alegada pelos autores na PI – arts. 30 a 37), e como acima adiantámos, o que está subjacente à sua prova é a inferência, ou ilação, que o tribunal a quo retirou, com o auxílio das regras da experiência a partir de determinados factos base provados, como sejam, as circunstâncias do desaparecimento da utente BB/tempo de duração/altura do ano em que ocorreu, sua situação pessoal de saúde/demência (aliás, com agravamento das alterações do comportamento no dia anterior à fuga), o local ermo onde foram encontrados os seus restos mortais (distanciado 4 km do lar) e as suas roupas (encontradas a 960 m de distância da ossada).

A apelante percebendo o raciocínio lógico dedutivo que conduziu o tribunal a quo na prova do facto em questão, vem agora e também, arguir a sua ilogicidade e ausência de probabilidade e arbitrariedade na sua formulação, insistindo no desconhecimento da causa da morte, do momento e do local em que ocorreu e nas variadas e hipotéticas situações em que poderia ter ocorrido, para com base nessa alegação extrair a sua infirmação.
Mais uma vez sem sucesso, em nosso entender, senão vejamos:

Como      se      salienta      no     Ac.      do      S.T.J.      de      17.01.2023, processo 286/09.5TBSTS.P1.S1, in www.dgsi.pt «É conhecida a clássica distinção entre prova directa e prova indirecta ou indiciária, incidindo aquela directamente sobre o facto probando, enquanto esta – também chamada de prova “circunstancial”, “de presunções”, de “inferências” ou “aberta” – reporta-se sobre factos diversos do tema de prova, mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar.
As presunções judiciais, também designadas materiais, de facto ou de experiência (art.349 do CC), não são, em rigor, verdadeiros meios de prova, mas antes “meios lógicos ou mentais ou operações firmadas nas regras da experiência”, ou, noutra formulação, “operação de elaboração das provas alcançadas por outros meios”, reconduzindo-se, assim, a simples “prova da primeira aparência”, baseada em juízos de probabilidade. Na definição legal, são ilações que o julgador tira de um facto conhecido (facto base da presunção) para afirmar um facto desconhecido (facto presumido), segundo as regras da experiência da vida, da normalidade, dos conhecimentos das várias disciplinas científicas, ou da lógica. Na expressiva lição de Chiovenda, “a presunção equivale, pois, a uma convicção fundada sobre a ordem normal das coisas” (Princípios de Direito Processual Civil, 4ªed., pág. 853).
Note-se que quanto maior for a quantidade de factos-base (“presunção polibásica”) menor é o risco de se obter uma conclusão errada e, por conseguinte, maior a fiabilidade da presunção.
Neste contexto, verifica-se que os Revistantes questionam o uso das presunções utilizadas pela Relação, quanto à ilogicidade. A este propósito, é manifesto ser legalmente admissível no caso concreto o recurso à presunção judicial, por força do art.351 CC, já que, dada a natureza da acção, não há qualquer restrição à admissão da prova testemunhal.

Considerando a noção da presunção judicial, já definida, questiona-se o nexo lógico da presunção e que se traduz no elemento de ligação entre o facto conhecido (facto base) e o facto desconhecido, e esse liame decorre do reconhecimento de uma máxima da experiência. Ora, as máximas da experiência comum que possibilitam o raciocínio inferencial assumem carácter geral e seguem um padrão de normalidade para o raciocínio inferencial, atentas as particularidades do caso concreto.
Com inegável pertinência, afirma Luís Filipe de Sousa, ao discorrer sobre as presunções judiciais, que “o nexo lógico não é um facto, mas um juízo de probabilidade qualificada que assenta e deriva de uma máxima da experiência, tida por aplicável ao caso, segundo a qual, perante a ocorrência de um facto, gera-se uma probabilidade qualificada que se tenha produzido outro” (Direito Probatório Material, 2020, pág. 69).» (…)
Reportando à situação dos autos, considerando as circunstâncias concretas apuradas da fuga e desaparecimento da utente BB, do lar onde se encontrava internada; sua idade – 84 anos; patologia de demência ( e, como se refere na motivação da decisão, quando integrou o lar, encontrava-se desorientada no tempo e no espaço) (facto 9) e quadro agravado de instabilidade em que se encontrava nos últimos dias, não padecendo ao invés, de dificuldades de locomoção ou de outras patologias que a impedissem de, por si, e sem a ajuda de terceiros, se deslocar – facto 12- (como aliás se verifica das anteriores fugas do lar, numa das quais, ocorrida uns meses antes, foi encontrada num local que dista 10 km do lar- factos 14 e 15 provados); altura do ano em que tal ocorreu/pleno agosto e condições climáticas habituais; bem como as circunstâncias de tempo e lugar em que foram encontrados os seus restos mortais e alguma da sua roupa, cerca de 5 meses após o seu desaparecimento, numa zona rural/erma, resulta para nós evidenciado que o juízo inferencial presuntivo feito pelo tribunal a quo não se mostra manifestamente ilógico ou inverosímil ou sequer arbitrário, muito pelo contrário.
De facto, a concatenação dos factos apurados quanto às circunstâncias descritas do desaparecimento da falecida BB, suas condições pessoais /de saúde e comportamentais, circunstâncias das anteriores fugas, e as circunstâncias de tempo e do lugar ermo onde apareceram os seus restos mortais, bem como parte da sua roupa, considerando as regras da experiência e do normal acontecer, e a inferência do ponto de vista lógico que se retira dos mesmos, permite claramente formular um juízo de probabilidade relevante quanto ao facto probando, ocorrência da sua morte numa situação de desorientação, confusão, medo, desidratação, fome, frio e/ou calor, vivencia de terror, sem encontrar ajuda ou apoio de familiares, experienciando o medo de morrer, o desespero de não encontrar caminho de volta ao lar ou a qualquer zona habitacional, até ao seu efectivo e solitário perecimento.  
O raciocínio exposto na decisão recorrida é claro e elucidativo a tal propósito, merecendo a nossa inteira concordância, designadamente quando
refere «O exterior é, em si mesmo, perigoso para quem, por via de demência, não possui os mais básicos mecanismos de preservação, não se sabendo orientar no espaço, logo, não logrando regressar nem procurar ajuda ou local onde pudesse solicitar ajuda, não se sabendo desenvencilhar uma vez perdida no meio de zona rural sem ajuda de terceiros.” E « em face das regras da experiência comum e da lógica, deduzir que a morte de BB, pelo local ermo onde foram encontrados os restos mortais e as suas roupas, e considerando o seu estado de saúde, foi uma morte solitária, exposta aos elementos, sem acesso a comida e
água.
O estado demencial que BB apresentava não inibe os normais sentimentos e sensações humanas, como frio, fome, sede, desconforto, medo ou desamparo.
Aliás, o medo traduz um sentimento natural e irracional, que não carece de razão de ser, podendo ser, por isso, sentido por uma pessoa em situação demencial.» (negrito nosso)
Em suma e como se refere no acórdão do STJ acima citado, perante a conjugação dos factos provados e seguindo o que no âmbito da metodologia da prova se designa por “corroboração das hipóteses relevantes”, e do princípio da “probabilidade lógica prevalecente” ( cf., por ex., Michele Taruffo, La Prueba de Los Hechos, Editorial Trotta, pág., 265 e segs, 298 e segs, Jordi Ferrer Béltran, La Valoración Racional de la Prueba, editorial Pons Marcial, pág..86 e segs, 120 e segs.) é evidente que o juízo inferencial não se revela improvável, irrazoável, arbitrário.
Uma última nota para salientar, que a alusão genérica feita pela apelante a outras possíveis hipóteses de ocorrência da morte, não infirma tudo o que se acabou de expor porquanto como se evidencia dos autos, esta não logrou provar, como se lhe impunha, qualquer facto ou circunstância factual concreta que abalasse e/ou colocasse minimamente em causa o juízo de probabilidade formulado, que tornasse inverosímil o juízo lógico dedutivo que levou à prova do facto presumido, não servindo para tal e como acima referimos, nem a alegação de infinitas possibilidade teóricas da ocorrência da morte, nem o facto de não ter sido possível determinar, nos exames periciais que foram realizados às ossadas dado o avançado estado de decomposição em que se encontravam os restos mortais da falecida BB, a causa da sua morte, local e momento da mesma.
Em conclusão, improcede a impugnação deduzida quanto aos factos provados em 32º e 33º, que se mantêm nos seus precisos termos.
 
Ainda em sede de impugnação da matéria de facto vem a apelante pugnar pela eliminação do facto provado em 42º, por se tratar de um facto conclusivo e de direito que encerra em si a solução do litígio.
Assiste-lhe razão.
Diz-nos este facto, que:
«A morte de BB não teria ocorrido se a ré não tivesse omitido a necessária vigilância da mesma.»
Como se salienta no Ac. STJ de 28.09.2017, in www.dgsi.pt «muito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria susceptível de ser qualificada como questão de direito, conceito que, como vem sendo pacificamente aceite, engloba, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos.» E, como de forma elucidativa salienta o Ac. do STJ de 28.09.2021[1]:
«É entendimento pacífico da jurisprudência do STJ que as conclusões apenas podem extrair-se de factos materiais, concretos e precisos que tenham sido alegados, sobre os quais tenha recaído prova que suporte o sentido dessas alegações, sendo esse juízo conclusivo formulado apenas na sentença, onde cabe fazer a apreciação crítica da matéria de facto provada. Dito de outro modo, só os factos materiais são susceptíveis de prova e, como tal, podem considerar-se provados. As conclusões, envolvam elas juízos valorativos ou um juízo jurídico, devem decorrer dos factos provados, não podendo elas mesmas serem objecto de prova - cfr. Acórdão de 23.9.2009, Proc. n.º 238/06.7TTBGR.S1; de 19.4.2012, Proc.º 30/08.4TTLSB.L1.S1; de 23/05/2012, proc.º 240/10.4TTLMG.P1.S1; de 29/04/2015, Proc .º 306/12. 6TTCVL.C1.S1; de 14/01/2015, Proc.º 488/11.4TTVFR .P1.S1; 14/01/2015, Proc.º 497/12.6TTVRL.P1.S1 todos in dgsi.
Com uma formulação que reúne a síntese significativa de todos eles, o ac.
do STJ de 12-03-2014, afirmou expressamente que “Só acontecimentos ou factos concretos podem integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão, sendo, embora, de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes” – proc. 590/12.5TTLRA. C1. S1, in dgsi.
É por esta razão que as afirmações de natureza conclusiva devem ser excluídas do elenco factual a considerar, se integrarem o thema decidendum, entendendo-se como tal o conjunto de questões de natureza jurídica que integram o objeto do processo a decidir, no fundo, a componente jurídica que suporta a decisão. Daí que sempre que um ponto da matéria de facto integre uma afirmação ou valoração de factos que se insira na análise das questões jurídicas a decidir, comportando uma resposta, ou componente de resposta àquelas questões, tal ponto da matéria de facto deve ser eliminado – ac. STJ de 28-01-2016, Proc. nº 1715/12.6TTPRT.P1.S1, in dgsi.» (negrito nosso)
Reportando à situação dos autos, entendemos e se bem vemos, que a afirmação necessariamente conclusiva contida no ponto 42. dos factos provados, responde directamente a uma das questões de natureza jurídica que integra o objecto do processo a decidir, como seja e desde logo, a atinente ao nexo causal entre a conduta ilícita do lesante e o dano morte, cuja conclusão jurídica, como bem refere a apelante, deve ser formulada a jusante, na aplicação do direito aos factos, já que e conforme veremos melhor infra, o juízo sobre a causalidade integra, por um lado, matéria de facto, certo que se trata de saber se na sequência de determinada dinâmica factual um ou outro facto funcionou efectivamente como condição do desencadear de determinado efeito e, por outro, integra matéria de direito, designadamente, no que se refere à determinação, no plano geral e abstracto, se aquela condição foi ou não causa adequada do evento, ou seja, dada a sua natureza, se era ou não indiferente para a sua verificação[2].
Em conclusão, deve ser eliminado da matéria de facto provada o facto indicado em 42., por se tratar de um facto conclusivo que envolve um juízo valorativo /jurídico a aferir em sede de direito.
 
ii. Direito
 
Como se evidencia das alegações/conclusões da apelante em sede de direito, a única questão que vem suscitada centra-se na aferição do nexo de causalidade que o artigo 563º do C.C. impõe como pressuposto da sua responsabilidade na indemnização dos danos decorrentes da morte da utente do Lar, BB.
Argui que no caso em apreciação nos autos tal nexo de causalidade entre o incumprimento contratual da ré, pelo incumprimento do dever de vigilância, e consequente saída da utente para o exterior e ocorrência da sua morte, contrariamente ao que foi o entendimento do tribunal a quo, não se pode estabelecer, considerando que esta não é uma consequência imediata, directa e adequada da sua ausência do lar, quer abstracta, quer concretamente, não sendo expectável a sua ocorrência.
Sustenta, outrossim, em prol da não verificação deste requisito, que face ao teor do relatório de autópsia a causa de morte da BB é indeterminada, não se podendo ter como adquirido que, ainda que se mantivesse no interior do
Lar, a morte não ocorreria e/ou que a morte da mesma não se tenha ficado a dever a circunstâncias excepcionais.
Como se evidencia da alegação da apelante não é questionada a decisão proferida pelo tribunal a quo quanto à natureza da responsabilidade civil aqui em causa (subsumível à responsabilidade contratual e extra-contratual, pela violação dos deveres do contrato de prestação de serviços celebrado e violação do dever de vigilância) e verificação in casu, dos demais requisitos da responsabilidade civil, como seja a prática de facto ilícito (o incumprimento de obrigação/ violação dos
deveres), a culpa e dano -morte-(questionando apenas e como vimos em sede factual, o sofrimento da lesada), centrando pois a sua divergência na relação causal entre aquele facto ilícito culposo  e a morte.
Desde já adiantamos que acompanhamos no essencial as judiciosas considerações feitas na sentença a propósito desta questão, que após explanação elucidativa e proficiente dos requisitos da responsabilidade civil, considerou, no seu reporte à situação em apreciação, verificada a existência do nexo de causalidade entre a actuação omissiva da ré e o infeliz desfecho da fuga do lar, morte da utente. 
Escreveu-se na decisão a propósito:
«Face à factualidade dada como provada, afigura-se evidente que a ré, responsável, por força do exposto, pela vigilância da falecida BB, omitiu o devido controlo e vigilância da mesma, não tendo adoptado as medidas adequadas e necessárias a acautelar a sua segurança e a evitar o dano que veio a ocorrer. A sua responsabilidade advém quer da omissão de uma adequada vigilância, quer da falta de implementação de razoáveis e necessárias medidas de organização e funcionamento.
É inegável que o sistema de “portas abertas” que existia na instituição da ré se afigura manifestamente inadequado à realidade de uma instituição votada à residência e cuidado de pessoas especialmente vulneráveis como a falecida BB.
Afigura-se, pois, óbvio que a ré não empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias para prevenir o dano ocorrido, designadamente, as cautelas que, em concreto – considerando as especiais circunstâncias da utente em causa, com elevado risco de fuga, várias vezes tentada -, eram exigíveis por forma a garantir a sua segurança.
Assim, ao não evitar que BB saísse das instalações do lar, violou o aludido dever de vigilância, incorrendo, por isso, em incumprimento contratual na modalidade de cumprimento defeituoso da obrigação.
Logo, não há dúvidas quanto à ilicitude da conduta da ré, traduzida na omissão do dever de vigilância a que estava contratualmente obrigada e que estava ao seu alcance executar.
Igualmente não surgem dúvidas quanto à verificação de danos, desde logo, a perda da vida de BB e o sofrimento por esta sentido antes de falecer, e o consequente desgosto sofrido, pelo menos, pelo seu irmão AA.
Sendo igualmente evidente a existência de nexo de causalidade adequada entre o dano da morte e o facto ilícito traduzido na omissão do dever de vigilância por parte da ré, relativamente à falecida BB.
Consagrando a teoria da causalidade adequada, diz-nos o artigo 563.º do CC que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente – em face das regras da experiência comum - não teria sofrido se não fosse a lesão.
Ponderando as regras da experiência comum e o facto de à falecida não ser conhecida qualquer patologia que pudesse justificar o seu decesso, conclui-se, em termos probabilísticos, que a morte daquela não se teria verificado se não fosse a conduta omissiva da ré. Uma adequada vigilância da idosa impediria a sua saída para o exterior e a sua exposição aos perigos que lhe terão, de acordo com as regras da experiência comum, causado a morte.
Ora, como se sintetiza no acórdão da Relação de Guimarães de 23.02.2011, disponível em www.dgsi.pt: “Entre a doutrina e a jurisprudência é pacifico que a nossa lei acolheu a teoria da causalidade adequada na sua formulação negativa, segundo a qual, o facto que actuou como condição do dano, só não deverá ser considerado causa adequada deste se, dada a sua natureza geral e em face das regras da experiência comum, se mostra indiferente para a verificação do dano, não modificando o “círculo de riscos” da sua verificação, tudo sem perder de vista que a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao danos no âmbito da aptidão geral ou abstracta desse facto para produzir o dano.

Indiferença ou inadequação existirá quando o evento segundo o normal decurso das coisas e a experiência da vida não eleva ou favorece, nem modifica, aquele “círculo de riscos” de verificação do dano.
Dito de outro modo: o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como “causa adequada” quando para a sua produção tiverem contribuído decisivamente circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas (“desvios fortuitos”) que intercederam no caso concreto, conclusão essa a retirar segundo um juízo de prognose póstuma.
A causalidade, é sabido também, não tem que ser imediata, directa, pode ainda ser indirecta, bastando que o facto, embora não haja ele mesmo provocado o dano, desencadeie outra condição que directamente o produza, “contando que esta segunda condição se mostre uma consequência adequada do facto que deu origem à primeira”.
No caso, a saída do lar desencadeou o processo causal que conduziu à ocorrência da morte, sendo esta uma consequência expectável da saída para o exterior de quem não possuía mecanismos para se desenvencilhar sozinho.
É manifesto que a saída do lar de uma idosa em processo demencial é causa ou condição idónea ou adequada a produzir a sua morte, sendo certo que, nas circunstâncias factuais conhecidas, não se vislumbra qualquer outro motivo plausível para a ocorrência da sua morte, considerando, desde logo, que não se demonstrou a existência de qualquer circunstância excepcional que tenha interferido no desenvolvimento do processo causal iniciado com a saída da idosa do lar.
Importa notar, quanto ao grau de exigência da prova do nexo de causalidade adequada, que o mesmo não corresponde “a um nível científico de causa de verificação”, devendo fazerse “intervir regras da experiência comum de avaliação da conduta lesiva, como processo lógico e mental de assegurar um coeficiente de probabilidade de verificação do dano que, de outro modo, não se verificaria, ou verificar-se-ia de modo diferente” (cfr. acórdão do STJ de 18.12.2003, citado por José Alberto González, em Direito da Responsabilidade Civil, pág. 212).
De igual forma, o falecimento da idosa é apto a causar desgosto nos seus familiares, de forma a que, sem aquele, este não teria ocorrido.
Resulta, assim, manifesta a relação de causa e efeito entre o facto ilícito e os danos dele advenientes.» 

E refere ainda, mais à frente, de forma elucidativa:
«No caso concreto, a conduta da ré presume-se culposa, ao abrigo do disposto no artigo 799.º do CC, cabendo a esta, para ilidir a referida presunção, provar que o incumprimento em que incorreu não procede de culpa sua, o que não logrou fazer (cfr. artigo 350.º do CC).
Pelo contrário, da factualidade provada extrai-se que quedou demonstrada a culpa da ré, na modalidade de negligência (grosseira), porquanto descurou a vigilância de BB, não providenciando pela implementação das mais básicas medidas de segurança, como o controlo de saídas.
Considerando as prévias tentativas e fugas consumadas, a ocorrência em causa não era imprevista, antes se afigurava expectável e absoluta e facilmente evitável. Por outro lado, não podia a ré deixar de prever que de uma fuga poderia advir perigo para a integridade física ou vida da idosa em causa.
É do conhecimento geral que uma pessoa com um processo demencial carece de uma acrescida vigilância, existindo o risco de, saindo à rua, se desorientar, sendo absolutamente expectável que uma fuga pudesse ter um resultado gravoso, perder-se, ver a sua integridade física afectada ou até, como infortunadamente aconteceu, a sua vida.
O que torna a omissão em causa deveras censurável, na medida em que advém da omissão do mais básico zelo exigível.
Em face da factualidade provada, não há dúvidas que estão preenchidos na sua totalidade os pressupostos da responsabilidade civil contratual, constituindo-se, assim, a ré na obrigação de indemnizar os autores.» (negrito nosso).
Nenhum reparo nos merecem as considerações tecidas pelo tribunal a quo e a conclusão a que chegou, designadamente quanto ao nexo causal, que se subscreve.
E de facto, a circunstância de não se ter logrado determinar pericialmente a causa da morte da falecida BB (devido ao elevado estado de decomposição dos restos mortais encontrados) ou de se poder, em tese, equacionar hipóteses meramente teóricas sobre essas causas, diga-se, sem qualquer suporte factual provado, não infirmam a conclusão alcançada pelo tribunal a quo quanto à verificação de nexo causal, senão vejamos: 

É inquestionável que a responsabilidade civil exige a verificação de determinada relação/conexão entre o facto ilícito e determinado dano, designado nexo de causalidade ou, nas abordagens mais recentes, nexo de imputação (cfr. a propósito o elucidativo acórdão do STJ de 3.11.2023, processo 151/21.8T8OAZ.P1.S1, in www.dgsi.pt).
E como se refere no acórdão acabado de citar, «em face das limitações das teorias tradicionais da causalidade, “incapazes de garantir segurança jurídica e justiça no trato da obrigação de indenizar” mormente para que nalguns casos “este pressuposto da responsabilidade civil não se converta numa prova diabólica ou quase impossível para o lesado” a doutrina e a jurisprudência vêm desenvolvendo soluções dogmáticas destinadas a facilitar a prova do nexo de causalidade, construindo alternativas às formulações centradas na ideia de causalidade.” Entre estas destaca-se a teoria das esferas de risco estruturada na base de um nexo de imputação (entre conduta e resultado) que se reconduz a juízos estritamente normativos.
De acordo com a teoria da imputação objectiva, como se salienta no Ac. STJ de 30.09.2014[3], o que é relevante não é o facto, mas o juízo normativo acerca da questão de saber a que esfera de risco há-se ser imputada a lesão, através de uma ideia de possibilidade e não estatístico-probabilística. Neste quadro, tendo sido a Ré a criar a fonte do perigo, ela dá origem a uma esfera de risco/responsabilidade a seu cargo. Não tendo o lesado contribuído para o dano nem pertencendo este aos riscos comuns ou correntes da vida, verifica-se, assim, necessariamente, uma conexão funcional entre o dano e a esfera de risco posta em marcha pelo lesante.
Reportando tal enquadramento do nexo causal à situação dos autos, é para nós claro que o dano ocorrido - morte da idosa-, no âmbito do quadro factual apurado, se compreende na esfera de risco[4] inerente ao incumprimento ilícito pela ré dos seus deveres de vigilância, cuidado e protecção da integridade física da utente do lar, consubstanciado na omissão de implementação de medidas restritivas /impeditivas de saída do lar dos seus utentes e, em especial, dos mais
vulneráveis, como era o caso da falecida BB (que apenas veio a implementar após esta ocorrência, como se evidencia da motivação da matéria de facto) e à consequente exposição desta a uma situação de perigo e ao risco de sofrer danos na sua saúde, integridade física/e ou vida[5],  e cuja imputação à esfera ou âmbito da sua responsabilidade apenas seria excluída, se a ré tivesse efectuado a prova de factos que permitissem concluir, com um grau de probabilidade muito elevada, que o dano – morte- sempre se teria verificado independentemente da violação do dever de conduta, o que não fez. Como se salienta no Ac. do S.T.J. de 27-04-2023[6] “só esse grau de probabilidade conseguiria excluir totalmente o contributo do incumprimento do dever para o risco de verificação do dano ocorrido”.
Mas também no âmbito da tradicional teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, seguida na decisão recorrida, se chega à mesma conclusão, como veremos.

A questão do nexo de causalidade resolve-se, à luz do art. 563º do C.C., “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”, e que, como tem vindo a ser entendimento dominante, consagra a doutrina da causalidade adequada na sua formulação negativa. Ou seja, o facto que actuou como condição do dano deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza e em face das regras da experiência, se mostrar de todo indiferente para a verificação do mesmo, não modificando o círculo de riscos da sua verificação[7], tendo-o provocado só por virtude de circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto[8] (e cuja prova incumbe ao lesante). 
E, como bem refere o apelante a teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, não pressupõe a exclusividade do facto condicionante do dano (ou seja, não é necessário que o facto, só por si, sem a colaboração de outros, tenha produzido o dano[9]), nem exige que a causalidade tenha de ser directa e imediata, admitindo não só a ocorrência de outros factos condicionantes, como ainda a chamada causalidade indirecta, na qual é suficiente que o facto condicionante desencadeie outro que directamente suscite o dano.
Salientando ainda Antunes Varela, in obra citada(nota 6.) a fls. 867, que a causalidade adequada não se refere ao facto e ao dano isoladamente considerados, mas ao processo factual que, em concreto, conduziu ao dano. É esse processo concreto que há-de caber na aptidão geral ou abstracta do facto para produzir o dano.
Deste modo e fazendo apelo mais uma vez ao Ac. do STJ de 30.09.2014, «a
fórmula usada  no artigo 563º deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido, naturalística ou mecanicamente, certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele: para tanto é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável desse efeito, pelo qual é razoável responsabilizar o agente, do ponto de vista da ordem jurídica e dos valores que esta quer promover.»
E, citando Pessoa Jorge, Ensaio sobre os pressupostos da responsabilidade civil, Almedina, Coimbra,1995, pp. 392-393., salienta ainda : (…) o dano considerar-se-á efeito do facto lesivo se, à luz das regras práticas da experiência e a partir das circunstâncias do caso, era provável que o primeiro decorresse do segundo, de harmonia com a evolução normal (e, portanto, previsível) dos acontecimentos.
Feitos estes considerandos e retornando à situação dos autos, face aos factos provados nos autos (vide factos provados em 6., 7., 9., 16.,17., 19 a 22, 25, 27 a 29, 32 e 33), e lançando mão da formulação negativa da teoria da causalidade adequada, resulta a nosso ver evidenciado que o incumprimento pela ré das obrigações que sobre si impendiam, omitindo as providências exigidas pelas circunstâncias e as cautelas necessárias para obstar a que a sua utente, idosa de 84 anos de idade, que padecia de demência, pudesse aceder livremente ao exterior e viesse sozinha para fora das suas instalações, ficando exposta aos perigos e riscos que o exterior representa, constitui condição do processo causal do dano. 
E, à luz das regras práticas da experiência, considerando as circunstâncias do caso, também não se nos suscitam dúvidas, que era objectivamente provável que a omissão de medidas aptas a evitar a saída da referida BB do Lar se mostra causa adequada, ainda que indirecta, do desfecho ocorrido- morte da utente-, sem que resulte dos autos apurada qualquer circunstância, extraordinária, fortuita ou excepcional, que interviesse na sua produção e evidenciasse que o facto ilícito  se tornou, de todo em todo, indiferente para a produção do dano ocorrido (prova essa que visando o afastamento da relação de causalidade indiciada, caberia ao réu/apelante efectuar).
De facto, tendo em conta a situação concreta aqui apreciada e as circunstâncias apuradas nos autos,  era expectável, num juízo de prognose e à face da experiência comum e do normal acontecer, que uma vez no exterior do Lar, a idosa,  dada a sua situação de demência e desorientação (no tempo e no espaço) se pudesse perder, designadamente por zonas rurais e locais ermos, como tudo indica que aconteceu dada a localização dos seus restos mortais, e vagueasse por estas sem conseguir regressar, nem procurar ajuda ou local onde a pudesse solicitar, ou sobreviver sozinha, ficando, por isso, exposta a fenómenos naturais, como a chuva, o vento, o sol ou outros elementos atmosféricos, e sem acesso a comida ou água, e que de toda essa situação, em termos de um grau de probabilidade muito relevante, viesse a resultar a sua morte.
Em suma, como bem se sintetiza na decisão proferida pelo tribunal a quo: «a saída do Lar desencadeou o processo causal que conduziu à ocorrência da morte, sendo esta uma consequência expectável da saída para o exterior de quem não possuía mecanismos para se desenvencilhar sozinho.
É manifesto que a saída do Lar de uma idosa em processo demencial é causa ou condição idónea ou adequada a produzir a sua morte, sendo certo que, nas circunstâncias factuais conhecidas, não se vislumbra qualquer outro motivo plausível para a ocorrência da sua morte, considerando, desde logo, que não se demonstrou a existência de qualquer circunstância excepcional que tenha interferido no desenvolvimento do processo causal iniciado com a saída da idosa do lar. », sendo que como bem se refere na decisão recorrida, não resulta dos autos qualquer patologia conhecida à falecida que pudesse justificar o seu decesso ou, diremos nós ainda, qualquer factualidade provada que permita afirmar que a conduta ilícita da ré foi, de todo em todo, indiferente ao dano, sendo que o ónus da prova da sua verificação sempre caberia à ré (como refere Antunes Varela na ob. citada em nota 6., págs. 851, «o réu pode afastar a relação de causalidade que parecia envolve-lo, provando-se a existência de uma causa estranha que não lhe é imputável.). 
Donde e aqui chegados, se entende que considerando tudo o que vem de se expor, bem andou o tribunal recorrido ao considerar verificado o nexo de causalidade adequada entre a conduta ilícita da ré e os danos ocorridos.
Pelo que, mostrando-se verificados os demais pressupostos da responsabilidade civil (aqui não colocados em causa), cabia à ré apelante a obrigação de indemnizar o prejuízo causado aos autores.  
Na improcedência das conclusões recursivas, impõe-se, por isso, confirmar a decisão recorrida.

V. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e manter a decisão recorrida.
Custas da apelação pela recorrente. 
 
Guimarães, 25 de setembro de 2025

Elisabete Coelho de Moura Alves (Relatora)
Anizabel Sousa Pereira
José Manuel Flores                              
 

[1] Processo 344/18.5T8AVR.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt  
[2] Como se salienta no Ac. STJ de 21-09-2006, processo 765/16.8T8AVR.P1.S1, in www.dgsi.pt  
[3] Processo 368/04.0TCSNT.L1.S1, in www.dgsi.pt  
[4] Sobre a teoria das esferas de risco vide Mafalda Miranda Barbosa, DO NEXO DE CAUSALIDADE AO NEXO DE IMPUTAÇÃO, in Novos Olhares sobre a responsabilidade Civil, CEJ “colecção Formação Contínua”.
[5] Como se refere no Ac. R.L. de 8.05.2003, processo 5465/2002-6 «(…) constitui obrigação dos lares de idosos garantir-lhes “a prestação de todos os cuidados adequados à satisfação das necessidades dos idosos, designadamente, alimentação, cuidados de higiene e conforto, de ocupação, médicos e de enfermagem, tendo em vista a manutenção da sua autonomia” (cfr. nº 2, alíneas a) e c) do preceito citado).
Daqui deriva que, sem prejuízo da independência e autonomia dos idosos quando possível, cabe aos lares desenvolver todo um conjunto de tarefas necessárias à protecção e segurança dos seus internados, encontrando-se entre estas, necessariamente, a obrigação de controlarem as respectivas saídas, particularmente à noite e de inverno, dada a notória perigosidade que tal acto reveste para pessoas internadas precisamente por não poderem viver autonomamente.
Essa obrigação existe relativamente a todos os idosos e impõe-se particularmente em relação àqueles que, como a autora, tenham evidenciado “comportamentos desajustados” da realidade.»
[6] Processo 19096/19.5T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt que considerou verificado o nexo causal numa situação em que “apesar de se verificar uma probabilidade significativa da hipótese do cumprimento do dever omitido não evitar o dano ocorrido, o incumprimento das legis artis pelas rés agravou o risco de verificação do resultado ocorrido», numa situação em que numa creche se verifica a obstrução das vias respiratórias de um menor de 20 meses de idade quando lhe foi dado um pedaço de banana, não tendo sido de imediato chamado o INEM ou contactado o Centro de Saúde, mas só após efectuadas manobras para tentar a sua desobstrução.
[7] Cfr. Ac. R.C.23.02.2011, processo2051/08.8TBCTB.C1 in www.dgsi.pt  
[8] Vide Antunes Varela “Das Obrigações em Geral”, Vol.I, págs. 861 e segs..
[9] Como salienta o autor citado na nota anterior e obra aí indicada, referindo como exemplo em nota 1 a fls. 865: «Nada impede mesmo que as outras condições do efeito danoso consistam num facto fortuito ou até num acto doloso ou negligente de terceiro. O abandono duma coisa, por negligência do depositário, numa dependência cuja porta se deixou aberta, de noite, não deixa de constituir causa adequada do seu desaparecimento, pela circunstância de a coisa ser furtada.”