Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | MARIA AMÁLIA SANTOS | ||
| Descritores: | CRÉDITOS RELATIVAMENTE IMPENHORÁVEIS CRÉDITOS SALARIAIS CRÉDITOS ABSOLUTAMENTE IMPENHORÁVEIS CRÉDITOS PROVENIENTES DE ACIDENTE DE TRABALHO | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 09/25/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO PROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 3.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I- São impenhoráveis os valores depositados na conta bancária da executada provenientes de créditos irrenunciáveis, nos termos previstos nos arts 738º e 739º do CPC. II- Os créditos provenientes de acidente de trabalho, previstos na LAT são absolutamente impenhoráveis, nos termos do disposto no artigo 78º da LAT (Lei 98/2009), em conjugação com o preceituado no artigo 739º do CPC. III- O artigo 78.º da LAT, ao consagrar a impenhorabilidade do direito à reparação por acidente de trabalho, constitui uma salvaguarda de direitos constitucionalmente protegidos, nomeadamente o direito da dignidade humana do sinistrado (artigo 1.º CRP) e o direito das vítimas de acidentes de trabalho à assistência e justa reparação (artigo 59.º, n.º 1, alínea f) da CRP). IV- No confronto ou conflito de direitos entre o direito do credor a ver realizado o seu crédito e o direito fundamental ao percebimento das pensões emergentes de acidente de trabalho, a lei opta por sacrificar o direito do credor. | ||
| Decisão Texto Integral: | I- RELATÓRIO AA, Executada nos autos em que é Exequente EMP01..., STC, S.A. veio deduzir oposição à penhora efetuada nos autos, peticionando o levantamento da penhora que incidiu sobre o valor de € 6.556.92, depositado na conta bancária por si titulada no Banco 1... com o número ...57. * Alega para tanto, em síntese, que por carta registada remetida pela agente de execução e por si recebida em 11/11/2024, foi notificada da penhora efetuada sobre o valor de € 6.556,92, depositado na sua conta bancária com o número ...01, no Banco 1..., na qual é depositado o seu vencimento mensal enquanto trabalhadora por conta da empresa “EMP02..., Lda”, sendo que o salário ali depositado constitui o seu único rendimento.Alega também que sobre o seu salário mensal já incide uma penhora, no âmbito do processo executivo n.º 335/15.8T8CHV, pelo que o remanescente do valor do seu salário, correspondente ao valor do salário mínimo nacional, é o único rendimento creditado na mencionada conta bancária, sendo o mesmo por si gerido para efetuar pagamentos e para aquisição de bens, necessários à sua própria subsistência, pelo que se trata de um crédito impenhorável. Acrescenta ainda que nos meses de Outubro e Novembro de 2023, foram creditados na mencionada conta os valores parcelares de € 183,00, € 5.541,12 e € 445,25, referentes a indemnização por acidente de trabalho por si sofrido, pelo que, por efeito daqueles movimentos a crédito, a sua conta bancária, em 03/10/2024, apresentava um saldo credor de € 6.556.92, que foi penhorado. Trata-se igualmente de um crédito impenhorável, emergente do direito à reparação por acidente de trabalho, de acordo com o artigo 78.º da Lei dos Acidentes de Trabalho (Lei 98/2009, de 4 de setembro). Conclui assim que a penhora efetuada é ilegal e deve ser levantada. * A exequente veio contestar a oposição à penhora, aduzindo que a penhora efetuada sobre o saldo bancário da executada obedeceu às limitações do n.ºs 4 e 5 do artigo 738.º do CPC, nada havendo de ilegal na mesma, pelo que deve prosseguir a execução com a manutenção da penhora efetuada.* Tramitados regularmente os autos, foi então proferida a seguinte decisão (da qual se recorre):“Pelo exposto, e de harmonia com o disposto no art.º 784.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil, julgo improcedente a presente oposição à penhora. Custas pela Executada/Opoente (art.527.º do Código de Processo Civil)…”. * Não se conformando com a decisão proferida, dela veio a executada interpor o presente recurso de Apelação, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões:“1) Por se tratar de facto alegado pela executada no artigo 5.º da oposição à penhora, que não foi contestado, que está claramente evidenciado nos documentos juntos com o articulado de oposição à penhora, quer nos recibos de vencimento, quer nos extractos dos movimentos bancários da conta sobre a qual incidiu a penhora, e que se reveste de interesse para a decisão, deverá ser aditado à factualidade provada o seguinte facto: A quantia da penhora efectuada no processo 335/15.8T8CHV corresponde ao valor que excede o salário mínimo nacional. 2) O valor penhorado de € 6.556.92 na conta bancária da executada era composto, em parte, pelo montante da indemnização por acidente de trabalho sofrido pela executada, de € 6.169,37, e em parte pelo remanescente do vencimento mensal auferido pela executada depois de deduzida a quantia da penhora. 3) Em 2024, a parte do salário da executada equivalente ao salário mínimo nacional de € 820,00 e depositada mensalmente na sua conta bancária, constituía um crédito impenhorável, pelo que, na parte em que a penhora atingiu o remanescente do salário da executada, tal penhora é legalmente inadmissível, de acordo com o previsto nos artigos 738.º, n.ºs 1 e 3, e 739.º do CPC. 4) Por força da norma do artigo 78.º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, a penhora é também legalmente inadmissível na parte em que atingiu o crédito proveniente do direito da executada à reparação por acidente de trabalho. 5) A manutenção da penhora viola o regime previsto nos artigos 738.º, n.ºs 1 e 3, e 739.º do CPC, assim como o disposto no artigo 78.º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro. 6) Se, por hipótese, fosse legalmente admissível a penhora de 1/3 da indemnização percebida pela executada pelo acidente de trabalho de que foi vítima, como é defendido na sentença recorrida, ainda assim, a penhora efectuada teria desrespeitado essa proporção. Pelo exposto, deve a sentença em recurso ser revogada, sendo declarado que a penhora que incidiu sobre o valor de € 6.556.92 depositado na conta bancária titulada pela executada no Banco 1... com o número ...57 é ilegal, por violação das normas dos artigos 738.º, n.ºs 1 e 3, e 739.º do CPC, assim como do artigo 78.º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, procedendo por isso a oposição à penhora, com o consequente levantamento da mesma…”. * A exequente veio apresentar Resposta ao recurso, pugnando pela sua improcedência.* II- OBJETO DO RECURSO: Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações da recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635º e 639º do CPC), as questões a decidir nos presentes recursos de Apelação (por ordem lógica de conhecimento) são as seguintes: A - A de saber se é de alterar a matéria de facto, no sentido pretendido pela recorrente; e B - Se é penhorável a (totalidade da) quantia depositada na sua conta no Banco 1.... * II- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:Foi a seguinte a matéria de facto considerada na primeira Instância: “Factos a considerar atenta a prova documental junta aos autos, uma vez que não foi produzida qualquer outra prova em sede de audiência de discussão e julgamento: 11)) A exequente instaurou os autos principais de execução oferecendo como título executivo uma sentença proferida e já transitada em julgado no âmbito da ação declarativa especial para cumprimento de obrigações pecuniárias emergentes de contrato, que correu termos sob o n.º 131345/16.0YIPRT no Tribunal Judicial de Vila Real - Juízo Local Cível de Vila Real - Juiz .... 22)) Nesse processo a ora Exequente peticionou a condenação da aí ré, a aqui executada BB, a pagar-lhe a quantia de € 4.752,82 (quatro mil setecentos e cinquenta e dois euros e oitenta e dois cêntimos), decorrentes da utilização dos cartões de crédito números ...51 e ...04. 33)) A Ré, ora executada, regularmente notificada não apresentou contestação, pelo que, nos termos do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 269/98 de 1 de setembro, aquele Tribunal conferiu força executiva à petição inicial. 44)) A executada não procedeu, até à presente data, ao pagamento em que foi condenada. 55)) Em 11/11/2024, a executada foi notificada da penhora já efetuada sobre o valor de € 6.556,92 depositado na conta bancária com o número ...57 titulada pela mesma no Banco 1..., na qual é depositado o vencimento mensal auferido pela executada enquanto trabalhadora por conta da empresa EMP02..., Lda. 66)) O salário recebido pela executada, enquanto trabalhadora por conta da empresa EMP02..., Lda., constitui o seu único rendimento. 77)) Sobre aquele salário mensal da executada, já incide uma penhora, no âmbito do processo executivo n.º 335/15.8T8CHV que corre termos neste juízo de Execução. 88)) O saldo daquela conta bancária, que resulta do remanescente do vencimento mensal depois de deduzida a quantia da penhora, é gerido pela executada para efetuar pagamentos e para aquisição de bens, alimentares e outros, necessários à sua própria subsistência. 99)) No ano de 2023, até ao mês de outubro, o saldo da referida conta oscilava entre os € 800,00 e os € 2.400,00, sendo certo que nos meses de outubro e novembro de 2023, foram creditados na mencionada conta os valores parcelares de € 183,00, € 5.541,12 e € 445,25, referentes a indemnização por acidente de trabalho sofrido pela executada e por efeito daqueles movimentos a crédito, o saldo da conta bancária passou a variar entre os € 5.751,00 e os € 8.247,00 e, em resultado dos movimentos referidos, em 03/10/2024, a conta bancária apresentava um saldo de € 6.556.92. 1100)) Nos autos principais de execução foi requerida pela exequente a penhora de vencimento da Executada nos meses em que o vencimento seja superior ao salário mínimo nacional, penhora essa que não avançou, dado existirem 2 (duas) penhoras anteriores, relativamente aos processos 335/15.8T8CHV e 418/15.4T8CHV. 1111)) Face à existência de penhoras anteriores sobre o vencimento da executada, a Exequente solicitou a penhora dos saldos bancários pertencentes à executada passíveis de serem penhorados face ao seu valor”. * IV- FUNDAMENTAÇÃO JURÌDICA:A- Da impugnação da matéria de facto: Insurge-se a recorrente contra a matéria de facto provada, dizendo que da mesma deveria também constar o facto por si alegado no artigo 5.º da oposição à penhora, que não foi contestado pela exequente, e que se mostra claramente evidenciado nos documentos juntos com o articulado de oposição, quer nos recibos de vencimento, quer nos extratos dos movimentos bancários da conta sobre a qual incidiu a penhora, e que se reveste de interesse para a decisão da causa. E com razão, adiantamos já. Compulsados os autos, verificamos efetivamente que vem alegado pela opoente, nos artºs 3º e ss. da Oposição, que “o salário percebido pela executada enquanto trabalhadora por conta da empresa EMP02..., Lda constitui o seu único rendimento”; que “sobre aquele salário mensal da executada, já incide uma penhora, no âmbito do processo executivo n.º 335/15.8T8CHV (…)”; e que “o referido salário mensal da executada, depois de deduzida a quantia da penhora efectuada no processo 335/15.8T8CHV, que corresponde ao valor que excede o salário mínimo nacional, é o único rendimento creditado na mencionada conta bancária com o número ...57, do Banco 1...”. E que nenhum daqueles factos, designadamente este último - A quantia da penhora efectuada no processo 335/15.8T8CHV corresponde ao valor que excede o salário mínimo nacional – foi contestado pela exequente, que aceita expressamente, aliás, que “no seguimento das pesquisas efetuadas pelo Senhor Agente de Execução para o efeito, apurou-se que a Executada aufere rendimento referente a trabalho dependente na entidade empregadora EMP02..., Lda.”, e que “foi requerida a penhora de vencimento da Executada nos meses em que o vencimento seja superior ao salário mínimo nacional, nos termos e para os efeitos do artigo 779º do CPC”, “Penhora essa, que não avançou, dado existirem 2 (duas) penhoras anteriores, relativamente aos processos 335/15.8T8CHV e 418/15.4T8CHV, não existindo data previsível do seu término”. Resulta ademais dos documentos juntos aos autos pela executada - extrato bancário referente ao mês de Outubro de 2024 (mês em que foi ordenada a penhora) -, que, no dia 04/10/2024, foi depositado, a título de ordenado, o valor de € 820,00, e dos documentos juntos sob os n.ºs 1 e 7, que relativamente ao salário auferido pela executada no mês de Setembro de 2024, foi retido pela empresa EMP02... e pago ao Banco 2..., S.A.. no âmbito do processo 335/15.8T8CHV, a quantia de € 109,22. Verifica-se assim dos documentos juntos aos autos pela executada (não impugnados pela exequente) que no ano de 2024, a executada auferia, ao serviço da empresa EMP02..., o salário mensal de € 871,00, acrescido do subsídio de refeição, sendo que a penhora determinada no processo 335/15.8T8CHV incidia sobre o excedente daquele salário relativamente ao valor do salário mínimo nacional, que, em 2024, era de € 820,00, sendo esse o valor depositado mensalmente. Ora, consideramos esse facto relevante, para melhor esclarecimento da situação, e para melhor decisão da causa, devendo o mesmo ser aditado à matéria de facto provada, o que se determina, nos termos e ao abrigo do disposto no art.º 662º nº 1 do CPC: “A quantia da penhora efectuada no processo 335/15.8T8CHV corresponde ao valor que excede o salário mínimo nacional”. * B- Da penhora do saldo bancário de que é titular a executada:Considera também a recorrente que o valor penhorado de € 6.556.92 na sua conta bancária era composto, em parte, pelo montante da indemnização por acidente de trabalho por si sofrido, no valor global de € 6.169,37, e em parte pelo remanescente do vencimento mensal por si auferido depois de deduzida a quantia da penhora, sendo esse saldo impenhorável na sua totalidade. E esclarece: Em 2024, a parte do seu salário equivalente ao salário mínimo nacional, de € 820,00, e depositado mensalmente na sua conta bancária, constituía um crédito impenhorável, pelo que, a penhora que atingiu essa quantia é legalmente inadmissível, de acordo com o previsto nos artigos 738.º, n.ºs 1 e 3, e 739.º do CPC. E com razão. De acordo com a matéria de facto provada, o salário recebido pela executada, enquanto trabalhadora por conta da empresa “EMP02..., Lda.”, constitui o seu único rendimento, sendo que sobre aquele salário já incide uma penhora, no âmbito do processo executivo n.º 335/15.8T8CHV, correspondendo o valor dessa penhora ao que excede o valor do salário mínimo nacional. Acresce que o valor do vencimento mensal da executada não penhorado é depositado mensalmente na sua conta bancária com o número ...57 no Banco 1.... Resulta assim do exposto, que o valor mensalmente depositado na conta da executada – correspondente ao valor do salário mínimo nacional (€820,00) -, é impenhorável, pelo que a penhora do valor de € 387,55, correspondente à diferença entre o valor total penhorado e o valor depositado referente à indemnização por acidente de trabalho (€ 6.556,92 – 6.169,37), é ilegal (artºs 738º e 739º do CPC). O n.º 1 do art.º 738.º do CPC, subordinado à epígrafe “Bens parcialmente penhoráveis”, dispõe que “São impenhoráveis dois terços da parte líquida dos vencimentos, salários, prestações periódicas pagas a título de aposentação ou de qualquer outra regalia social, seguro, indemnização por acidente, renda vitalícia, ou prestações de qualquer natureza que assegurem a subsistência do executado”, acrescentando o nº 3, que “A impenhorabilidade prescrita no n.º 1 tem como limite máximo o montante equivalente a três salários mínimos nacionais à data de cada apreensão, e como limite mínimo, quando o executado não tenha outro rendimento, o montante equivalente a um salário mínimo nacional”. E prevê-se ainda no art.º 739º do mesmo diploma legal, intitulado “Impenhorabilidade de quantias pecuniárias ou depósitos bancários”, que “São impenhoráveis a quantia em dinheiro ou o depósito bancário resultantes da satisfação de crédito impenhorável, nos mesmos termos em que o era o crédito originariamente existente”. Resulta assim da conjugação dos preceitos legais transcritos, que na parte em que a penhora atingiu o remanescente do salário da executada depositado na sua conta no Banco 1..., tal penhora é legalmente inadmissível, por atingir valores resultantes de um crédito impenhorável. * Relativamente à penhora da restante quantia – de € 6.169,37 – depositada na conta bancária da executada a título de indemnização por acidente de trabalho, defende a mesma que por força da norma do artigo 78.º da Lei 98/2009, de 4 de Setembro, a penhora desse crédito é também legalmente inadmissível.Vejamos: Resulta da matéria de facto provada que nos meses de outubro e novembro de 2023, foram creditados na conta da executada os valores parcelares de € 183,00, € 5.541,12 e € 445,25, referentes a indemnização por acidente de trabalho por ela sofrido, sendo que, em 03/10/2024, a referida conta bancária apresentava um saldo de € 6.556.92, que foi penhorado. E a questão colocada nos autos pela executada/recorrente prende-se com a impenhorabilidade daquela quantia, nos termos em que a mesma vem consagrada no art.º 78º da Lei 98/2009, de 4.9 (Lei dos Acidentes de Trabalho – LAT). Começamos por dizer que tem aqui plena aplicação a regra preconizada no art.º 739º do CPC, que “São impenhoráveis a quantia em dinheiro ou o depósito bancário resultantes da satisfação de crédito impenhorável, nos mesmos termos em que o era o crédito originariamente existente”, pelo que a questão principal a decidir prende-se com a impenhorabilidade (total) do crédito da executada decorrente do acidente de trabalho de que foi vítima, cujo valor foi depositado na sua conta bancária e objeto de penhora. Isto posto, De harmonia com o princípio geral estabelecido no n.º 1 do artigo 735.º do CPC, estão sujeitos à execução todos os bens do devedor que, nos termos da lei substantiva, respondem pela dívida exequenda. Estabelece no entanto o artigo 736.º, alínea a), que são absolutamente impenhoráveis, além dos bens isentos de penhora por disposição especial, as coisas ou direitos inalienáveis. Ou seja, não podem ser penhorados os bens ou direitos que uma lei especial declare isentos de penhora ou que por serem inalienáveis, não há possibilidade de serem ulteriormente transmitidos (v.g. pela sua venda). Nessa “disposição especial”, encontra-se, em nosso entender, o artigo 78.º da Lei dos Acidentes de Trabalho (LAT), que prescreve que “os créditos provenientes do direito à reparação estabelecida na presente lei são inalienáveis, impenhoráveis e irrenunciáveis e gozam de garantias consignadas no Código do Trabalho”. Donde, à luz do artigo 736.º, alínea a) do CPC, e do mencionado art.º 78º da LAT, o direito em causa é absolutamente impenhorável. Nesse sentido se decidiu também no Ac. da Relação de Coimbra, de 09-02-2017 (disponível em www.dgsi.pt), no qual se sumariou que “I - A dignidade humana da vítima de acidente de trabalho é um princípio e uma finalidade transversal ao regime jurídico de reparação dos acidentes de trabalho instituído. II – O art.º 78º da Lei 98/2009, de 4/09, ao consagrar a impenhorabilidade do direito à reparação por acidente de trabalho, constitui uma salvaguarda de direitos constitucionalmente protegidos, nomeadamente o basilar princípio da dignidade humana do sinistrado (art.º 1º CRP) e o direito consagrado no art.º 59º, nº 1, al. f) da CRP. III – Não constitui um sacrifício excessivo ou desproporcionado do direito do credor à satisfação do seu crédito, impossibilitar que o mesmo se concretize por via da penhora do crédito emergente do direito à reparação por acidente de trabalho, uma vez que se tal penhora fosse viabilizada não seriam assegurados os princípios constitucionais garantidos ao sinistrado”. Trata-se de uma norma de cariz marcadamente protecionista, como se defendeu no Ac. desta Relação de Guimarães de 25/06/2015 (também disponível em www.dgsi.pt), que “A reparação dos sinistros laborais tem um cunho marcadamente social e protecionista, visando dar cumprimento aos comandos constitucionais dos artigos 59.º, 1, al. f) e 63.º, 3 da CRP (…). O regime jurídico dos acidentes de trabalho é imperativo e «pretende garantir ao sinistrado, diminuído nas suas capacidades físicas com rebate profissional, a manutenção das condições materiais que tinha antes do sinistro, preservando-se a sua dignidade – art.º 1 da CRP» Acrescentando-se que “A indemnização prevista no âmbito do regime jurídico dos acidentes de trabalho (não mortais) visa alcançar a recuperação física e psíquica do sinistrado, de modo a aproximar-se o mais possível da restauração natural ou quando tal restauração não for possível, nos termos gerais do direito das obrigações, através de uma indemnização pecuniária sucedânea (artigos 562.º e 566.º do Código Civil)”. E que “A conservação da dignidade humana da vítima do acidente de trabalho é um princípio e uma finalidade transversal ao regime jurídico de reparação dos acidentes de trabalho instituído”. Concretizando que “O regime instituído constitui um corolário das garantias constitucionais consagradas nos artigos 1º (dignidade da pessoa humana) e 59.º, n.º 1, alínea f) (direito das vítimas de acidentes de trabalho à assistência e justa reparação)”. Conclui-se assim que “Consagrando (…) o artigo 78.º da Lei 98/2009 uma salvaguarda de direitos constitucionalmente protegidos, nomeadamente o basilar princípio da dignidade humana, contido no espírito do Estado de Direito (…) tal normativo não afronta o direito do credor à satisfação do seu crédito”. Ou seja, “não constitui um sacrifício excessivo ou desproporcionado do direito do credor à satisfação do seu crédito, impossibilitar que o mesmo se concretize por via da penhora do crédito emergente do direito à reparação por acidente de trabalho, uma vez que se tal penhora fosse viabilizada não seriam assegurados os princípios constitucionais garantidos ao sinistrado. A restrição do direito do credor à satisfação do seu crédito é pois adequada, exigível e proporcional…” (O mesmo se decidiu em recente Ac. do Tribunal Central Administrativo Sul, de 11-01-2024). Como se referiu, a norma do art.º 78º da LAT tem um cariz claramente protecionista dos sinistrados, tendo-se mantido em vigor, nos mesmos termos, nos sucessivos regimes de reparação dos acidentes de trabalho no que concerne à consagração da sua natureza impenhorável, inalienável e irrenunciável do crédito proveniente da reparação de um acidente de trabalho. Ou seja, o atual art.º 78º reproduz o que já previa o art.º 35º da Lei nº 100/97, de 13.9, o qual já reproduzia, por sua vez, o que dizia a Base XLI da Lei nº 2127, de 3-8-1965, determinando todas elas que os créditos provenientes dos direitos às prestações estabelecidas pela lei de acidentes de trabalho são impenhoráveis – o que vale integralmente para o caso da remição do capital, pois que também aqui estamos perante um direito de crédito, sucedâneo do direito de crédito ao recebimento periódico das pensões. E baseiam-se todas elas no mesmo princípio basilar, de que a reparação de danos emergentes de acidentes de trabalho não tem um carácter estritamente reparatório, sendo a sua função antes de carácter alimentar e social (art.º 63º nº 3 da Constituição da República Portuguesa). Este último normativo, intitulado “segurança social e solidariedade” reporta-se designadamente à proteção na invalidez enquanto direito social. Ora, como é sabido, em casos de sinistro laborais, o direito é assegurado pelo sistema de seguro privado instituído pelo Código do Trabalho, nos termos da LAT – impondo-se à entidade patronal o dever de transferir a sua responsabilidade para entidade legalmente autorizada a realizar este seguro (artigo 283º nº 5 do CT e 79º da LAT). Mas o cunho social impõe que se este sistema não funcionar, competirá ao Estado, em sua substituição (ao Fundo de Acidentes de Trabalho), assegurar o direito do sinistrado, prevenindo que o mesmo não deixe de receber as prestações que lhe sejam devidas, em função das regras imperativas fixadas na LAT (art.º 82º da LAT). Este cunho social tem a sua natural tradução no caráter imperativo das normas relativas aos acidentes de trabalho. Daí que o direito à reparação destes danos, além de irrenunciável é de exercício necessário. Resulta assim de todo o exposto, que existindo uma colisão ou conflito de direitos entre o direito do credor a ver realizado o seu crédito e o direito fundamental ao percebimento das pensões emergentes de acidente de trabalho, a lei opta por sacrificar o direito do credor. Daí que o art.º 78º da LAT, tendo já sido objeto de apreciação pelo Tribunal Constitucional (através do Acórdão n.º 676/16, de 22 de Fevereiro - processo n.º 430/16, relator José António Teles Pereira, publicado no Diário da República n.º 38/2017, Série II de 2017-02-22), viu a sua constitucionalidade afirmada por aquele Tribunal, ao decidir “Não julgar inconstitucional a norma extraída do artigo 78.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro, no sentido da absoluta impenhorabilidade e impossibilidade de apreensão para a massa insolvente dos créditos de indemnizações atribuídas ao insolvente em virtude de acidente de trabalho.” Concluímos assim que a penhora que incidiu sobre a quantia de € 6.556.92, depositada na conta bancária titulada pela executada no Banco 1... com o número ...57 é ilegal e deve ser levantada. Procede a apelação. * V- DECISÃO:Por todo o exposto, Julga-se procedente a Apelação e revoga-se a sentença recorrida, com o levantamento da penhora da quantia de € 6.556.92, depositada na conta bancária da executada no Banco 1..., número ...57. Custas pela exequente (art.º 527º nº 1 e 2 do CPC). Notifique e DN * Guimarães, 25.9.2025 Maria Amália Santos Paula Ribas Elisabete Coelho de Moura Alves |