Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4031/24.7T8GMR.G2
Relator: ANIZABEL SOUSA PEREIRA
Descritores: DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
PODERES DE ADMINISTRAÇÃO
REPRESENTAÇÃO DO DEVEDOR
AÇÃO DE RECONHECIMENTO DO DIREITO DE PROPRIEDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I- A declaração de insolvência priva o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência.
II- Quanto aos bens patrimoniais não incluídos na massa insolvente, o devedor mantém os seus poderes de administração e de disposição.
III- A circunstância de a ré, numa ação de reconhecimento da propriedade de imóvel e restituição do mesmo imóvel (não apreendido para a massa insolvente), haver previamente sido declarada insolvente, não impede o prosseguimento da mesma ação.
Decisão Texto Integral:
I - Relatório

Inconformada com a decisão que absolveu a Ré EMP01..., Lda., da instância, por ilegitimidade ad causam, veio a autora interpor recurso, finalizando com as seguintes conclusões:

“a. O presente Recurso tem por objeto toda a matéria de direito da Sentença proferida nos presentes autos, que declarou a absolvição da Ré da instância, por ilegitimidade passiva.
b. O Tribunal a quo considerou que:
“(...) Destarte, julga-se verificada a invocada exceção da ilegitimidade passiva com a consequente absolvição da Ré EMP01..., Lda., da instância.
Face ao prosseguimento dos autos para conhecimento do pedido de reconhecimento da propriedade e restituição do imóvel, face à absolvição da instância da Ré EMP01..., Lda., (...)”.
c. A decisão recorrida julgou improcedente a ação e declarou extinta a instância por ilegitimidade passiva da Ré, ora Recorrida, com fundamento na sua insolvência declarada em 11.06.2024.
d. Tal entendimento assenta num erro de direito, porquanto o contrato objeto da presente ação foi validamente resolvido pela ora Recorrente em 02.12.2022, antes da declaração de insolvência.
e. À data da resolução do contrato, a Recorrida não se encontrava insolvente nem havia qualquer processo de insolvência instaurado, pelo que não existia, então, qualquer intervenção da Administradora de Insolvência.
f. A Recorrida continuou (como continua) a ocupar o imóvel sem qualquer título legítimo, causando à Recorrente prejuízos patrimoniais graves e privando-a do uso e fruição do bem.
g. A própria Administradora de Insolvência, em requerimento datado 10.04.2025, com a ref.ª ...62, veio ao processo principal informar que o imóvel em causa não foi apreendido para a massa insolvente, por não estar na propriedade da Insolvente.
h. Face à resolução do contrato antes da insolvência, não se verifica qualquer interesse da massa insolvente no presente litígio, sendo a legitimidade passiva da Recorrida inequívoca.
i. O Tribunal a quo desconsiderou a factualidade relevante e a cronologia dos acontecimentos, efetuando um incorreto enquadramento jurídico da situação.
j. Mais, o Tribunal a quo violou o já decidido por este Venerando Tribunal da Relação, que no âmbito do mesmo processo(4031/24.7T8GMR.G1), expressamente referiu, cita-se: “ caso o imóvel não esteja apreendido para a massa insolvente, não se verifica qualquer inutilidade e a ação é útil, sendo certo que o insolvente nesse caso terá toda a legitimidade para estar em juízo.”.
k. A Recorrida, não tendo perdido a posse do imóvel para a massa insolvente e continuando a ocupá-lo sem título, mantém legitimidade para ser parte no presente processo.
l. Acresce que, conforme referido pela Administradora de Insolvência, a Recorrida encontra-se em plano de recuperação e continua a utilizar, de forma gratuita, as instalações da Recorrente, situação que agrava os prejuízos desta e reforça a urgência na restituição do bem.
m. Assim, não só deve ser reconhecida a legitimidade da Recorrida, como também deve ser determinada a imediata entrega do imóvel à Recorrente, livre de pessoas e bens.
n. A aplicação dos artigos 36.º, 81.º e 85.º do CIRE à presente situação não é adequada, pois pressupõe a existência de bens ou contratos ainda vigentes à data da insolvência, o que não se verifica.
o. A Sentença recorrida incorre, assim, em erro de julgamento de direito, ao afastar a legitimidade passiva da Ré com base na declaração de insolvência ocorrida muito posteriormente à resolução do contrato.
p. Deve, por isso, a decisão ser revogada e substituída por decisão que reconheça a legitimidade da Recorrida e determine o prosseguimento da ação com todas as consequências legais, nomeadamente  a restituição do imóvel.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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Cumpre apreciar e decidir.
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II - Delimitação do objeto do recurso

Tendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso – cfr., artigos 635º, e 639º, do Novo Código de Processo Civil –, a questão a decidir é a seguinte:
1- É a R sociedade, declarada insolvente, parte legítima na presente ação em que se pede o reconhecimento da propriedade e restituição de um imóvel ( arrendado) que não foi apreendido para a massa insolvente por não ser considerado seu património?
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III – Fundamentação

São os seguintes os factos dados como provados:
a) No dia 21-06-2024, a sociedade EMP02..., Lda., com sede na Avenida ..., em ..., interpôs a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra a sociedade EMP01..., Lda., com sede Rua ..., em ..., formulando os seguintes pedidos:
 “ a. Ser a Ré condenada a reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre o prédio urbano sito na Rua ..., ..., freguesia ..., concelho ...;
b. Ser declarada a resolução extrajudicial do contrato de sublocação outorgado entre a Autora e a Ré;
c. Ser a Ré condenada a restituir à Autora o prédio que ocupa, livre de pessoas e bens e nas exatas condições em que se encontrava aquando do contrato de sublocação e,
d. Ser a Ré condenada a pagar à Autora a quantia de €4.000,00, a título de indemnização por cada mês de ocupação abusiva, contados desde a sua citação até entrega efetiva do prédio”. - tudo cfr. petição inicial, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
b) A Ré foi citada aos 01-07-2024- tudo aviso de receção junto aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
c) Por sentença datada de 21-05-2024, transitada em julgado em 11-06-2024, a Ré foi declarada insolvente, tendo sido fixada como morada da sua sede a “Rua ..., ... ...” - tudo cfr. certidão judicial junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
d) Aos 10-04-2025, o(a) Exm(a) Sr(a) Administradora da Insolvência veio prestar a seguinte informação: “(…) o bem imóvel objeto dos autos, não foi apreendido para a massa insolvente por não estar na propriedade da insolvente, assim como a insolvente supra mencionada prosseguiu para Plano de Recuperação.” - tudo informação junta aos autos, cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

Da consulta eletrónica resulta ainda o seguinte contexto:
- Foi proferida sentença a declarar extinta a presente instância por inutilidade superveniente da lide, a qual sofreu recurso, e por acórdão proferido por este TRG, foi confirmada a decisão no que respeita aos pedidos concernentes aos créditos peticionados e resolução do contrato de sublocação, considerando-se que “a credora apenas poderá exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do CIRE, in casu, lançando mão da ação de verificação ulterior de créditos ( e que cremos, já o fez, encontrando-se o crédito reclamado impugnado)” e em relação ao pedido de reconhecimento da propriedade e restituição do imóvel, considerou-se “que a decisão é prematura. Com efeito, neste particular, não existem nos autos elementos para se entender que tal inutilidade se verificará, pois tal apenas sucederia no caso de o imóvel estar apreendido na massa insolvente e, nesse caso, teria o autor que ir suscitar o incidente de restituição e separação de bens ao processo insolvencial, aplicando-se o mesmo raciocínio supra para os créditos. Sem embargo, e caso o imóvel não esteja apreendido para a massa insolvente, não se verifica qualquer inutilidade e a ação é útil, sendo certo que o insolvente nesse caso terá toda a legitimidade para estar em juízo.” E determinou-se o prosseguimento quanto a este pedido.”.

6- Colhidos os elementos necessários, conforme supra, foi proferida sentença ora recorrida, nos termos da qual foi a R absolvida da instância por ilegitimidade.
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IV. APRECIAÇÃO/SUBSUNÇÃO JURÍDICA

Prima facie, importa realçar que por acórdão deste TRG foi confirmada a sentença recorrida na parte em que absolveu a R da instância quanto aos pedidos de condenação nos créditos das rendas não pagas e resolução do contrato de arrendamento e ordenado o prosseguimento da ação em relação aos demais pedidos, por se ter entendido a decisão prematura, a respeito, e ser necessário colher mais elementos.
Baixados os autos, no tribunal a quo, assim foi feito, tendo prosseguido a ação para apuramento dos restantes pedidos de reconhecimento da propriedade do imóvel e bem como assim a sua entrega e restituição por parte da Ré insolvente.
Em relação a estes pedidos, foi proferida sentença, ora recorrida, que concluiu pela verificação da exceção da ilegitimidade passiva e, por consequência, absolveu a ré da instância.
Na decisão recorrida considerou-se a Ré parte ilegítima por se ter entendido que “nos presentes autos o Administrador da Insolvência terá de estar na ação para salvaguarda dos interesses dos credores, para além dos da sociedade insolvente.
Com efeito, veja-se que os autos de insolvência prosseguiram para plano de recuperação e de que a sede da insolvente corresponde ao imóvel objeto dos autos.
Deste modo, a ação necessariamente teria de ser intentada contra a massa insolvente da EMP01..., Lda., representada pelo(a) Exm(a) Sr(a) Administradora da Insolvência nomeado(a) nos autos de insolvência.”.
A Autora novamente apelou, pugnando pela legitimidade da Ré alegando, em resumo, que “ face à resolução do contrato antes da insolvência, não se verifica qualquer interesse da massa insolvente no presente litígio, sendo a legitimidade passiva da Recorrida inequívoca”.
Vejamos.
Ora, já na decisão anteriormente proferida por este TRG tínhamos referido,- na antevisão de o imóvel não estar apreendido para a massa insolvente (como se verificou que “não está apreendido por não estar na propriedade da insolvente”, conforme informação do AI)-  que “  não se verifica qualquer inutilidade e a ação é útil, sendo certo que o insolvente nesse caso terá toda a legitimidade para estar por si em juízo”.
Na verdade, reafirmamos, é nosso entendimento que, neste caso em concreto, a sociedade insolvente tem toda a legitimidade processual para estar em juízo.
Antes de mais, relembre-se a noção de “legitimidade processual”, a qual consiste na suscetibilidade de ser parte num determinado processo jurisdicional, como pressuposto processual (legitimidade processual) e distingue-se da legitimidade material (ou substantiva), que respeita ao mérito da ação.
Sobre a legitimidade processual estabelece o artigo 30º do CPC que “O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer” e acrescenta o nº 2 que os interesses do autor e do réu se exprimem, respetivamente, da utilidade derivada da procedência ou, do prejuízo que dessa procedência advenha, e o nº 3 indica como titulares do interesse para efeito de legitimidade “os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor”.
Socorrendo-nos das palavras de Teixeira de Sousa ( in A Legitimidade Singular-BMJ nº 292, pág.105), a legitimidade «(…) tem de ser apreciada e determinada pela utilidade (ou prejuízo) que da procedência (ou improcedência) da ação possa advir para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que as partes, perante o pedido formulado e a causa de pedir, têm na relação jurídica material controvertida, tal como a apresenta o autor».

No caso sub judicio verifica-se o seguinte quadro: a prolação da sentença de insolvência é muito anterior à propositura da presente ação.
Por isso nunca poderia aqui sequer haver uma impossibilidade ou inutilidade superveniente.
Por outro lado, a existência daquela insolvência da Ré sociedade, nunca a inibiria de ser aqui demandada, como refere a decisão recorrida, antes e apenas afetaria a sua capacidade judiciária, nos termos dos arts. 15º e 16º  do Cód. de Proc. Civil e 81º, nºs 1, 4 do CIRE, aliás conforme configurado pelo AC do STJ de 16-01-2025 ( relatora Isabel Salgado) e que revogou o AC da RG de 29.11.2023, o qual serviu de alicerce para o AC da RG de 18-04-2024 e citado na decisão recorrida).
Ou seja, não afetaria a sua legitimidade, personalidade jurídica e judiciária.
Com efeito, segundo a interpretação do preceito que julgamos adequada, a falta de representação pelo AI não constituiu ilegitimidade processual do devedor insolvente, contemplando, outrossim, a sua (in)capacidade judiciária (artigo 15º do CPC), ao exigir que esteja representado em juízo pelo AI ( vide neste sentido AC do STJ de 16-01-2025, supra citado).
Em verdade, a extensão da substituição do insolvente pelo administrador prevista naquele nº4 do art. 81º do CIRE não pode deixar de estar confinada à finalidade da realidade que serve: proteção do património do insolvente em função do interesse dos credores por forma a salvaguardar a satisfação dos respetivos créditos.
Consequentemente, a inibição processual que afeta o insolvente não é extensível às matérias de natureza pessoal, às patrimoniais estranhas à massa insolvente, bem como as que relacionadas com o património insolvente visem a valorização ou o aumento do mesmo ( vide neste sentido, Acórdão do STJ de 10.12.2019 (proc. 5324/- 07.3TVLSB-A. L1.S1, in www.dgsi.pt. ).

Sem embargo e tomada a questão como ilegitimidade da ré, pergunta-se qual o interesse em contradizer a ação pelo administrador da insolvência (AI)?

Desde logo, quanto ao imóvel em discussão, o autor, proprietário registado, pretende o reconhecimento da sua propriedade, a qual nem sequer é discutida, nem pela Ré insolvente, nem sequer pelo AI, o qual informou os presentes autos de que “não é propriedade da massa insolvente”.
Então, se tal bem continua a ser propriedade do A, não é propriedade da ré, insolvente, e consequentemente não é bem integrante da sua massa insolvente, nem passará a ser por via da procedência de tal pedido de reconhecimento da propriedade.
Nessa medida, tem a ré insolvente legitimidade passiva, no que a tal pedido diz respeito.
Mutatis mudandis, dir-se-á a respeito do pedido de restituição e entrega do imóvel em causa.
Em verdade, repare-se ainda que foi invocado como causa de pedir um contrato de arrendamento, cuja resolução teve lugar antes da declaração de insolvência e cuja entrega é agora pedida.
Ou seja, estamos perante um negócio que não foi resolvido, nem nunca poderia ter sido, em favor da massa.
E, tal como salientam Carvalho Fernandes e João Labareda, quanto aos bens patrimoniais não incluídos na massa insolvente, o devedor mantém os seus poderes de administração e de disposição ( in In Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, Quid Juris, 3ª Edição, pág. 412).
Acresce que o Administrador da Insolvência, notificado para prestar informação aos presentes autos sobre a apreensão ou não do imóvel em questão para a massa insolvente, veio dizer que não pertence à mesma e, tendo conhecimento dos presentes autos, não requereu a sua substituição processual, o que vale por dizer que claramente não tem interesse em contradizer na ação, cuja procedência em nada prejudicará a massa insolvente que representa, pelo que, persistir na exigência da sua intervenção na demanda, afigura-se contrário à celeridade processual.
E este raciocínio não é infirmado pelo facto de o imóvel ter sido a sede da ré sociedade insolvente e de os autos de insolvência terem prosseguido para plano de recuperação.
Mais uma vez reafirma-se que, no plano da alegação, a questão discutida nos presentes autos é estranha à massa insolvente, porquanto estamos perante a discussão de questões jurídicas de um imóvel que não pertence à massa insolvente.
Assim sendo, porque os presentes autos se reportam a ação que visa o reconhecimento da propriedade de um imóvel que não pertence nem foi apreendido para a massa insolvente e cuja entrega é pedida à sociedade insolvente, não estando em causa qualquer atividade do devedor que possa colocar em causa a salvaguarda do seu património em detrimento dos credores, inexiste razão para a aplicação do artigo 81º, do CIRE.
Consequentemente, quem tem interesse em contradizer a ação é a sociedade insolvente, pelo que não carece de ser representada (em substituição) por parte do administrador da insolvência.
O que pode ser aqui equacionado é se o locado está efetivamente na posse da sociedade insolvente ou da a massa insolvente, mas já não é questão de legitimidade processual mas sim material.
Concluímos, assim, que a Ré tem interesse em contradizer por si os pedidos formulados pela Autora, improcedendo a invocada exceção da sua ilegitimidade processual.
Assiste razão à recorrente.

IV. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na procedência da apelação, e em consequência:
a. Revogam a decisão recorrida e, em consequência, deverão os autos prosseguir os seus termos normais.
b. Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, as custas na ação e da apelação ficarão a cargo da recorrida.
c. Notifique.
Guimarães, 9 de outubro de 2025

Relatora: Anizabel Sousa Pereira
Adjuntos: Margarida Pinto Gomes e
                 Luís Miguel Martins