Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
657/24.7T8VVD.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: LEGITIMIDADE PASSIVA
CONDOMÍNIO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Conforme decorre do art. 30º, do Código de Processo Civil, a (i)legitimidade das partes será apurada em função do pedido e da causa de pedir (tal como os apresenta o autor), pois só em função desses dois elementos é possível averiguar do interesse directo, da utilidade ou prejuízo resultantes da acção.
Se a lide emerge, alegadamente, de condutas que são imputadas à administração do condomínio demandado e não a este último, único Réu identificada na acção, deve este ser absolvido da instância, por ser parte passiva ilegítima.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I – Relatório
 
AA intentou contra Condomínio ... sito na Avenida ..., ..., ..., ..., representado pelo Administrador do Condomínio EMP01... Lda., a presente acção declarativa sob a forma de processo comum, formulando os seguintes pedidos:  
“a) Deve a Ré ser condenada: 
a.1) no pagamento ao Autor da quantia de Euros: 10.000,00(quarenta mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos; 
a.2) a reparar os danos provocados na arrecadação da A.; 
a.3) a demolir as chaminés; 
a.4) a demolir o pilar existente na arrecadação da A., que serve de suporte à 2ª chaminé; 
a.5) a desinstalar a tubagem existente na arrecadação da A; 
b) A entregar à A. os documentos / fotocópias seguintes: 
b.1) regulamento do condomínio; 
b.2) título constitutivo da propriedade horizontal; 
b.3) convocatórias das assembleias realizadas em 2022, 2023 e 2024; 
b.4) actas das assembleias gerais ordinárias ou extraordinárias dos anos de
2022, 2023 e 2024; 
b.5) relatório de gestão com receitas, despesas e orçamentos nos anos de
2022 a 2024.” 
 
 O Ré foi citado, tendo contestação, na qual veio, entre o mais, invocar a excepção de ilegitimidade passiva, alegando que a Autora formula e dirige a causa de pedir e o pedido explicitamente não contra o Réu Condomínio, mas contra a administração de Condomínio, a qual não é aqui demandada.  
 Invoca ainda a ineptidão da petição inicial, alegando que o conjunto de factos articulados não permite a inteligibilidade do pedido e da causa de pedir, no sentido de visar o apuramento da responsabilidade e condenação do Réu Condomínio. 
 Notificada a Autora para, querendo, se pronunciar sobre as excepções invocadas, esta veio pugnar pela improcedência das excepções invocadas nos termos e com os fundamentos aí expostos.
 Foi, em saneador, proferida decisão que culminou com o seguinte dispositivo:
“Pelo exposto, nos termos dos artigos 278º nº 1 alínea d), 576.º nº 2 e 577.º alínea e), do Código de Processo Civil, julga-se verificada a exceção de ilegitimidade passiva e, consequentemente, absolve-se o Réu da instância.     Custas a cargo da Autora (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo
Civil).”
 
Inconformada com tal decisão, dela interpôs a Autora o presente recurso de apelação, em cujas alegações formula as seguintes 
conclusões:
[…]
 
O Recorrido apresentou contra-alegações pugnando pela improcedência da apelação.

II – Delimitação do objecto do recurso e questões prévias a apreciar:

Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas[2] que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[3]
No caso, as questões enunciadas pela recorrente prendem-se com a legitimidade passiva do Condomínio demandado e a obscuridade ou insuficiência de parte da petição inicial. 
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos

1. Factos (cf. art. 662º, do Código de Processo Civil)
São os que emergem do processo, nomeadamente os acima relatados.

2. Direito
 A Apelante conclui no seu recurso, em primeiro lugar e em suma, que ocorreu erro de julgamento da excepção de ilegitimidade passiva da Ré, dado que alegou “danos decorrentes da actuação ou omissão do condomínio”, interesse enquadrável na previsão do art. 30º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, e, além disso, os actos da administração vinculam juridicamente o próprio condomínio, “que responde civilmente por tais condutas, nos termos do artigo 1436º, nº 3, do Código
Civil”.

Com ficou relatado acima, a Autora deduziu o seguinte pedido:
“a) Deve a Ré ser condenada: 
a.1) no pagamento ao Autor da quantia de Euros: 10000,00(quarenta mil euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais sofridos; 
a.2) a reparar os danos provocados na arrecadação da A.; 
a.3) a demolir as chaminés; 
a.4) a demolir o pilar existente na arrecadação da A., que serve de suporte à 2ª chaminé; 
a.5) a desinstalar a tubagem existente na arrecadação da A; 
b) A entregar à A. os documentos / fotocópias seguintes: 
b.1) regulamento do condomínio; 
b.2) título constitutivo da propriedade horizontal; 
b.3) convocatórias das assembleias realizadas em 2022, 2023 e 2024; 
b.4) actas das assembleias gerais ordinárias ou extraordinárias dos anos de
2022, 2023 e 2024; 
b.5) relatório de gestão com receitas, despesas e orçamentos nos anos de 2022 a
2024.”
 A Ré, em resposta a este recurso, secunda a posição da sentença, ou seja, a de que a verdadeira visada na causa invocada e nos pedidos formulados em a1.) e b), é a pessoa colectiva (representante) que foi identificada na p.i. e não o Réu, o citado Condomínio.

Vejamos…
Dispõe o fundamental art. 30º, do Código de Processo Civil que (1) o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer. 2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da acção e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha. 3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.
 Posto isto, a (i)legitimidade das partes será apurada em função do pedido e da causa de pedir (tal como os apresenta o autor), pois só em função desses dois elementos é possível averiguar do interesse directo, da utilidade ou prejuízo resultantes da acção.
 Está assim expresso nesta norma que a pessoa demandada é parte legítima quando, de acordo com relação controvertida, desenhada pelo autor, tem interesse em contradizê-la a fim de evitar o prejuízo que decorrerá da procedência da acção.
 Contudo, há que não confundir essa aferição da legitimidade adjectiva ou processual com a substantiva ou material que lhe dá corpo.
 Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13-112003[4], a legitimidade processual, que se não confunde com a denominada legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido, afere-se pelo pedido e causa de pedir, tal como os apresenta o autor, independentemente da prova dos factos que integram a última. Assim, a parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efectivamente seu titular.
Assim, "ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última". [5]
Na verdade, "a relação controvertida, tal como a apresenta o autor e forma o conteúdo jurídico da pretensão deste é que é - em orientação jurídica - o objecto do processo, em face do qual (e, por isso, quase sempre determinável por simples exame da petição inicial) se aferem a legitimidade e os outros pressupostos que desse objecto dependam". Concluindo, "a parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efectivamente seu titular". [6]
 Em face do exposto, merecerá a decisão da primeira instância a impugnação em apreço?
 Compulsada a petição onde tal resposta poderá ser obtida, a da Autora/Apelante, na verdade constatamos uma grande confusão na articulação da matéria considerada pertinente, pois, visando a acção contra o Condomínio demandado, praticamente todas as condutas imputadas e consideradas geradoras da responsabilidade civil invocada, subjacente aos pedidos em causa, têm como sujeito “a Ré”, seja ela qual for, dado que o “Condomínio” demandado é pessoa que não é identificável por esse género.
 Acresce que esse conjunto de alegações essenciais para a definição da lide é encabeçada pela identificação da dita “Ré”, no item 1. da petição, como sendo a “administradora do condomínio” que, contudo, vem identificada no cabeçalho da mesma p.i. como representante do “Condomínio” demandado!
Deste modo, mesmo que quiséssemos, através de uma interpretação correctiva, ler nessa referência à Ré a demanda do citado Condomínio, certo é que o articulado da Autora não deixou, assim, dúvidas sobre isso!
 Mais, quando se trata de concretizar as referidas condutas (em 9. a  54.), que, alegadamente, são causa dos pedidos formulados em a1. e b)., essa interpretação, literal ou contextual, a ser feita, conduz sempre, sem dúvida, ao mesmo sujeito passivo (a mencionada administradora) ou, nos casos referentes às obras alegadamente realizadas ou por fazer, a terceira pessoa não identificada
(como reconhece a Autora, v.g., em 34. da p.i.) cujo comportamento não foi prevenido ou acautelado pela administradora.
 
Neste conspecto, temos de concordar com a decisão da primeira instância quando considerou que, nesta matéria, existe ilegitimidade passiva do Réu condomínio, tal como está configurada a lide.
 E não se diga agora que as actuações da administradora se repercutem na pessoa do condomínio, porque isso não tem fundamento no alegado, não substitui a devida articulação de conduta imputável ao Condomínio e não resulta do citado art. 1436º, nº 3, do Código Civil, que prevê precisamente a responsabilidade singular da própria administração do condomínio nos casos aí previstos.
No que contende com os danos morais alegadamente decorrentes das referidas obras e/ou estragos na fracção da Autora, a interpretação da p.i. conduznos ainda ao mesmo resultado, dado que esta demandante não identifica o alegado terceiro, nem o condomínio, como sujeitos de algum comportamento, por acção ou omissão, que permita a necessária imputação objectiva, pelo que ficamos convencidos de que a Autora pretende, ainda neste ponto, apenas imputar essa responsabilidade à administração, por alegada falta de zelo no acompanhamento dessa situação.
  Essa leitura é também aplicável à restante demanda da Autora, maxime aos pedidos formulados em a.2.), a.3), a.4) e a.5), em que é pedida a condenação, “da Ré”, repete-se, na reparação dos danos provocados na arrecadação, na demolição das chaminés e do pilar e a desinstalar a tubagem na arrecadação, dado que, apesar de alguma confusão suscitada pela passagem, v.g., do item 62. da p.i., que faz alusão ao dever de reparar as zonas comuns do edifício como  sendo imputável ao condomínio, todo o restante arrazoado normativo e factual se centra em conduta imputada à administração do condomínio[7], nomeadamente quando se culmina todo o raciocínio jurídico com uma passagem como a seguinte: “E, além de ilícita, é censurável, na medida em que deveria estar mais atenta às basilares regras de condomínio, ainda para mais, sendo uma empresa cujo objeto social é a gestão de condomínios, da violação sistemática das regras legalmente previstas para a sua actuação enquanto administradora e gestora.”
 
Posto isto, divergimos da sentença recorrida apenas na consideração da p.i. como uma inepta, porque, em rigor, apesar da contradição como seu cabeçalho e com a demanda do referido “Condomínio”, as acções descritas conduzem-nos sempre (no pensamento da Autora vertido na p.i.) a responsabilidade, porventura, solidária, senão exclusiva, da administração do condomínio que aqui não figura como parte mas como mera representante da mesma, ou seja, em rigor, inexiste qualquer obscuridade, é sim claro que, deficientemente, a Autora desenhou toda a demanda para imputar à administração do condomínio a causa de todos os seus males e dos pedidos que formulou.
 Deste modo, é correcto o julgamento da primeira instância ao julgar procedente a invocada excepção de ilegitimidade passiva do Réu Condomínio.
 É com estes fundamentos[8] que julgamos que a apelação carece de sustento e, por isso, deve improceder, com custas a cargo da Apelante (cf. art. 527º, do Código de Processo Civil).

IV. DECISÃO
 
Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação.
 
Condena-se nas custas da apelação, a Recorrente (cf. art. 527º, do Código de Processo Civil). 
N.
*
Guimarães, 09-10-2025

Relator – Des. José Manuel Flores
1º - Adj. Des. João Paulo Dias Pereira
2ª - Adj. Paula Ribas
 
 
[1] ABRANTES GERALDES, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
[2] Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efectivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[3] ABRANTES GERALDES, Op. Cit., p. 107. 
[4] In http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/0/486a2f8bf6d2c0ec80256f48004c3951?OpenDocument  
[5] José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, "Código de Processo Civil Anotado", vol. 1º, Coimbra, 1999, pag. 52.
[6] Castro Mendes, "Manual de Processo Civil", Coimbra, 1963, pags. 260, 261, 262.
[7] Invocando apenas as normas gerais da responsabilidade civil extracontratual e as regras que definem as obrigações/funções da administração do condomínio que entendem terem sido violadas…
[8] Com prejuízo para outros invocados (art. 608º, nº 3, do C.P.C.).