Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04B2212
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: ARAÚJO BARROS
Descritores: LEGITIMIDADE
REPRESENTAÇÃO VOLUNTÁRIA
NEGÓCIO CONSIGO MESMO
ABUSO DE REPRESENTAÇÃO
VENDA DE COISA ALHEIA
ABSOLVIÇÃO DA INSTÂNCIA
Nº do Documento: SJ200410140022127
Data do Acordão: 10/14/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 7627/03
Data: 11/13/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AGRAVO.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Sumário : 1. A legitimidade processual, que se não confunde com a denominada legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido, afere-se pelo pedido e causa de pedir, tal como os apresenta o autor, independentemente da prova dos factos que integram a última. Assim, a parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efectivamente seu titular.
2. O negócio feito pelo representante consigo mesmo é meramente anulável, nos termos do artigo 261º do C.Civil, salvo se o representado tenha expressamente consentido na celebração.
3. Mas tal negócio, se os poderes conferidos na procuração não foram excedidos, não coenvolve abuso de representação ou representação sem poderes, sancionados com a ineficácia em relação ao representado nos arts. 268º e 269º do C.Civil.
4. Só tem legitimidade para invocar a anulabilidade do contrato celebrado consigo mesmo aquele que foi representado no negócio.
5. À venda feita por alguém em representação de terceiro não é aplicável, relativamente ao primeiro, o regime da venda de bens alheios (art. 892º do C.Civil).
6. Pedida a condenação dos réus a reconhecerem o autor como proprietário de uma fracção autónoma, de que são adquirentes e que lhes foi transmitida pelos anteriores titulares do registo de propriedade, não têm aqueles legitimidade para nessa qualidade serem demandados se também não intervierem como réus na acção os anteriores titulares da fracção em causa inscritos no registo predial.
7. Conhecendo uma decisão da legitimidade das partes, considerando que ocorre a ilegitimidade do autor relativamente a dois dos pedidos e a ilegitimidade dos réus quanto aos demais, deve, em consequência, absolver o réu da instância e não dos pedidos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

"A" demandou em acção declarativa com processo ordinário B e mulher, C, e D e mulher, E, pedindo a condenação dos réus a verem declarada nula e de nenhum efeito a venda efectuada a eles próprios pelo mandante e réu D da fracção autónoma designada pela letra "H", correspondente ao rés-do-chão direito, com os n°s .....-B e......-C, pertencente ao prédio sito na Avenida António Enes, nºs ...... a .....-C, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz, sob o n° 00135/061184, bem como a verem declarada nula e de nenhum efeito a escritura de compra e venda outorgada no 20º Cartório Notarial de Lisboa, de fls. 54 a 55 vº, do Livro de notas nº 13-I, em 21 de Janeiro e a reconhecerem o autor como único e exclusivo proprietário de metade da referida fracção autónoma, assim como a entregarem-lhe a dita fracção na proporção de metade indivisa.

Fundamenta-se, para tanto, na intervenção do réu D nessa escritura de venda como procurador dos titulares inscritos no registo, F e mulher, G, figurando como compradores o seu próprio cônjuge, com quem é casado no regime de comunhão de adquiridos e o réu B, em comum e partes iguais.

Naquela procuração, os representados não haviam consentido na celebração do negócio consigo mesmo (art. 261° CC) que daí resultou conforme o regime de bens do procurador, o da comunhão de adquiridos (art. 1724° CC).

Sendo o negócio ineficaz em relação aos vendedores, por o procurador ter abusado da representação, uma vez que os mandantes vendedores apenas conferiram poderes para venda de metade da fracção ao autor (art. 269° CC).

Pois o autor havia celebrado em 12/06/84 com o F um contrato promessa de compra e venda para aquisição em comum daquela fracção, figurando depois na escritura apenas aquele por, como emigrante, beneficiar de redução em juros, mas acordando em que a titularidade seria realmente de ambos.

Na sua contestação invocam os réus a inobservância do disposto no art. 8° C. Registo Predial, a ilegitimidade dos réus e a caducidade da acção (art. 287° CC), impugnando os factos alegados pelo autor, no essencial.

Na réplica o autor alterou o pedido, acrescentando-lhe o pedido de cancelamento dos registos a favor dos réus, alteração que os réus impugnam na tréplica.

No despacho saneador, considerando-se que só os mandantes que outorgaram a procuração teriam legitimidade para arguir a sua anulação, por ter havido negócio consigo mesmo, ou a ineficácia por abuso dos poderes de representação, e considerando ainda quanto aos pedidos de reconhecimento do autor como único e exclusivo proprietário de metade da fracção (e a subsequente entrega desta) que aquele pedido não pode ser invocado relativamente aos réus, adquirentes e não vendedores, não sendo estes partes na acção, decidiu-se a improcedência da acção e a absolvição dos réus dos pedidos formulados pelo autor.

Desta decisão interpôs o autor recurso, vindo, na sequência, o Tribunal da Relação de Lisboa, em acórdão de 13 de Novembro de 2003, desatendendo embora o que o autor pedia nas alegações de recurso, a julgar procedentes e provadas as excepções de ilegitimidade do autor (quanto às alíneas a) e b) de fls. 10 e 105) e dos réus desacompanhados dos anteriores titulares inscritos no registo da propriedade da fracção em causa (quanto às alíneas c) e d) de fis. 10 e 11), alterando o decidido na sentença recorrida (absolvição dos pedidos) para a absolvição dos réus da instância (art. 493°, n°2, do CPC).

Interpôs, de novo, o autor recurso, recebido como agravo de 2ª instância, requerendo:

a) - quanto à ilegitimidade processual passiva, e nos termos do art. 269°, n° 1, do CPC, o suprimento da ilegitimidade por preterição do requisito de ilegitimidade plural (litisconsórcio necessário natural relativamente ao pedido de condenação dos réus a reconhecerem o autor como único e exclusivo proprietário de metade da fracção objecto dos autos e consequentemente procederem à respectiva restituição na proporção de metade indivisa) de acordo com o art. 28°, n° 2, do CPC, a intervenção principal provocada de F e esposa, a intervirem como réus;

b) - a revogação da decisão recorrida, julgando-se o recorrente, A, parte legítima, com os fundamentos legais expendidos nas conclusões acima expostas.

Interpuseram, entretanto, os réus recurso subordinado, pretendendo a alteração do acórdão impugnado na parte em que os absolveu da instância, de forma a manter-se a decisão da 1ª instância que os absolveu dos pedidos.

Após alegações e contra-alegações das partes, indeferido que foi o incidente de intervenção principal deduzido pelo autor, mostrando-se verificados os pressupostos de validade de regularidade da instância e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

Nas alegações do presente recurso formularam os recorrentes, principal e subordinados, as conclusões seguintes (sendo, em princípio, pelo seu teor que se delimitam as questões a apreciar - arts. 690º, nº 1 e 684º, nº 3, do C.Proc.Civil):
O autor, recorrente principal:

1. Não concorda o ora recorrente com a decisão que o julgou parte ilegítima, por falta de interesse em demandar, e improcedente a sua impugnação da matéria de facto.

2. De acordo o art. 26° do CPC é parte legitima quem tiver interesse em demandar do lado activo, aferindo-se pela utilidade que a respectiva acção possa produzir, devendo a utilidade aferir-se em função dos factos trazidos para os autos, pelas partes, independentemente do enquadramento jurídico gizado nos respectivos articulados em vista à procedência de um determinado pedido formulado.

3. Na sua petição inicial, o recorrente invocou a celebração do contrato de promessa celebrado entre o recorrente e os representados, F e esposa, nos termos do qual, o aqui recorrente entregou o preço correspondente a metade da fracção autónoma que lhe foi prometida vender e em contrapartida, a fim de ser celebrado o contrato prometido, os representantes outorgaram, exclusivamente para esses efeitos, procuração em nome do réu D, também ele outorgante do contrato de promessa.

4. Não é possível aferir da ilegitimidade activa do autor se não tendo por base toda a matéria facto invocada pelas partes, atribuindo-se a devida relevância à celebração do referido contrato de promessa, e aos efeitos jurídicos por ele produzidos para apreciação e juízo sobre o comportamento dos réus, em atenção às diversas composições possíveis do litígio, nos termos e de acordo com o art. 26° do CPC.

5. Assim, foram excluídos, quer pela decisão de primeira instância, quer pela decisão recorrida, outros factos principais, provados por documento, essenciais senão mesmo modais quer para a boa decisão da causa quer, inclusivamente, para aferir da legitimidade do autor, ou seja, da utilidade decorrente da procedência da acção e do seu interesse na demanda, mormente os factos alegados na sua petição inicial (no seu art. 36°) e os factos carreados para os autos pela contestação dos Réus B e mulher (vertidos nos arts. 45°, 46° e 49°).

6. Decorre da factualidade supra que o autor é titular de um direito de crédito, cuja fonte contratual se firmou naquele contrato promessa, direito esse que se venceu quando a metade da fracção que lhe foi prometida vender veio a ser alienada pelo procurador e réu D, através de um negócio consigo mesmo, incumprimento assacado exclusivamente a culpa do procurador que agiu claramente em abuso de direito, com intenção dolosa de prejudicar o ora recorrente.

7. Tem o autor o direito de exigir a anulação da venda, porquanto a mesma é nula nos termos do art. 280° do CC.

8. As declarações de vontade emitidas pelo Sr. F, naquele contrato de promessa, lidas perante o notário, na presença do réu D, que também assinou o contrato de promessa, revelam claramente que o contrato celebrado pelo procurador consigo mesmo é contrário à lei, nos termos do art. 280º do CC e como tal nulo.

9. Os réus agiram em termos clamorosamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico socialmente dominante, aproveitando ainda do facto do representado ser emigrante e se encontrar ausente do país há bastantes anos.

10. Os réus intervieram como partes no contrato de promessa, tendo o procurador inclusive se vinculado no cumprimento dos seus termos, enquanto instrumento necessário à sua própria execução.

11. Neste caso, a eficácia obrigacional da promessa é oponível aos réus, enquanto partes e outorgantes da mesma.

12. Pelo que o direito de preferência do autor na compra da metade do imóvel prevalece sobre a alienação efectuada pelo procurador, que incumpriu o contrato de promessa, uma vez que, também ele estava obrigado ao seu cumprimento.

13. Tem ainda o recorrente legitimidade processual activa e interesse em pedir a declaração de ineficácia do negócio atento à existência de um contrato de promessa que materializa o seu direito de crédito e de preferência pela compra de metade da referida fracção.

14. De acordo com o acórdão recorrido e nos termos do art. 269° ex vi 268°, n°1, CC a ineficácia do abuso de representação teria de ser invocada pelo representado.

15. Carece de razão o acórdão recorrido pois estipula a lei que o negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado, fazendo depender a produção dos seus efeitos de um acto de ratificação do mandante.

16. A ineficácia opera automaticamente, nada impedindo que o recorrente, que detém um interesse legítimo na referida declaração, e como terceiro de boa fé, proponha uma acção declarativa pedindo o reconhecimento da ineficácia do negócio relativamente ao mandante, ineficácia essa de que já padecia o negócio jurídico celebrado.

17. Assim, poderá ainda o autor recorrer à execução específica do contrato promessa, pois para efeitos de alienação, a propriedade reclamada pelo ora recorrente ainda se encontra na esfera jurídica dos mandantes.

18. Termos em que se concluiu que a decisão recorrida, ao julgar o autor como parte ilegítima da acção, violou o preceituado nos arts. 26° e 511°, n°1, do CPC.

Os réus, recorrentes subordinados:

1. Todas as ilegitimidades do autor, face a tudo o que supra se expôs, têm e deveriam ter uma única consequência - a absolvição dos réus dos pedidos como muito bem entendeu o Tribunal da 1ª Instância, uma vez que tais pedidos nunca poderiam ser formulados nem aqui nem em qualquer outra acção pelo autor (não tem este fundamentos para o fazer).

2. E nem por qualquer outra pessoa uma vez que a única ou as únicas pessoas que eventualmente teriam fundamento para pedir a anulabilidade da venda eram os referidos vendedores F e esposa e, tanto quanto os réus recorridos sabem, estes vieram agora ratificar o negócio celebrado pelo seu procurador, e também réu D.

3. Quanto à ilegitimidade dos réus perante os pedidos de reconhecimento do autor como único e exclusivo proprietário da metade da fracção objecto dos autos e consequentemente a restituírem na proporção a metade indivisa, não se trata de qualquer ilegitimidade processual que teria por consequência, como teve, a absolvição dos réus da instância no Tribunal da Relação (daí, igualmente o recurso subordinado apresentado pelos ora recorridos), antes se trata de uma verdadeira e própria improcedência de tais pedidos quanto a estes réus, o que terá como consequência (como entendeu o Tribunal da 1ª instância) a absolvição dos réus dos pedidos.

4. Efectivamente, nunca estes pedidos (nem nesta nem em qualquer outra acção) podem ser invocados em relação aos réus (mesmo que acompanhados dos anteriores proprietários da fracção) uma vez que, como muito bem entendeu o Tribunal da 1ª Instância, estes são adquirentes e não vendedores.

5. Aliás, nem mesmo quanto aos vendedores tais pedidos poderiam ser invocados (pois o fundamento de tais pedidos é uma pretensa violação de um contrato promessa que tem mera eficácia obrigacional - não foi estipulada a execução especifica como se disse e reitera, não lhe foi dada qualquer eficácia real), pelo que e quanto a estes vendedores também sempre improcederiam tais pedidos.

6. Pelo que não existe qualquer ilegitimidade suprível e a suprir.

Nas instâncias foi tida como assente a seguinte factualidade:
i) - pela inscrição G-3, encontra-se registado a favor dos réus a fracção autónoma designada pela letra "H", a que corresponde o rés-do-chão direito, loja, dos n°s ........-B e .....-C do prédio sito na Avenida António Enes, Queluz, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz, sob o n° 135 da freguesia de Queluz e inscrito na matriz sob o art. 2782, em partes iguais, conforme documento junto de fls. 162 a 171, cujo teor se dá por integralmente reproduzido;

ii) - por instrumento notarial arquivado em 21 de Janeiro de 1991, no Maço de Documentos referente ao Livro n° 13-1 de Notas para escrituras diversas e que faz parte da escritura lavrada na mesma data a fls. 54, com data de 26 de Maio de 1986, no 20º Cartório Notarial de Lisboa, F e mulher, G, casados no regime da comunhão geral, constituíram seu bastante procurador o ora réu, D, a quem conferiram os necessários poderes para vender pelo preço e demais condições que tiver por convenientes, a fracção autónoma designada pela letra "H" correspondente ao rés-do-chão direito, loja, com os números cinquenta e cinco B e cinquenta e cinco C do prédio sito na Avenida António Enes, em Queluz, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz sob o n° 135 da freguesia de Queluz e inscrito na matriz sob o artigo 2785;

iii) - pelo mesmo instrumento foram-lhe ainda conferidos poderes para outorgar e assinar a escritura, receber a quantia devida e dela dar quitação, representando-os junto de todas as entidades públicas ou privadas, nomeadamente, Conservatórias de Registo Predial, Repartições de Finanças e Câmara Municipal, requerendo e assinando tudo o que se torne necessário aos fins em vista;

iv) - a procuração foi conferida também no interesse do mandatário, não podendo, em consequência, ser revogada sem o acordo do interessado;

v) - por escritura pública realizada em 27 de Janeiro de 1991, no 20º Cartório Notarial de Lisboa e exarada de fls. 54 a 55 verso do Livro de notas n° 13-1, o réu D, na qualidade de procurador de F e mulher, G, vendeu à sua própria mulher, E, com quem é casado no regime da comunhão de adquiridos e ao seu irmão, B e mulher, a fracção autónoma designada pela letra "H" correspondente ao rés-do-chão direito, loja, com os n°s ......-B e ......-C do prédio sito na Avenida António Enes, em Queluz, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz sob o n° 135 da freguesia de Queluz e inscrito na matriz sob o artigo 2785, pelo preço de quatro milhões e quinhentos mil escudos.

No âmbito do recurso principal coloca-se-nos a questão de determinar se, como pretendem os recorrentes, e ao contrário do decidido, devem as partes na acção, quer o autor quer os réus, ser consideradas legítimas (legitimidade activa e passiva).

A legitimidade processual, pressuposto de cuja verificação depende o conhecimento do mérito da causa (art. 288º, nº 1, al. d), do C.Proc.Civil) - que se não confunde com a denominada legitimidade substantiva, requisito da procedência do pedido - afere-se pelo interesse directo do autor em demandar e pelo interesse directo do réu em contradizer (art. 26º, nº 1, do mesmo diploma).

Sendo certo que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor (nº 3 do citado art. 26º).

Assim, "ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última". (1)

Na verdade, "a relação controvertida, tal como a apresenta o autor e forma o conteúdo jurídico da pretensão deste é que é - em orientação jurídica - o objecto do processo, em face do qual (e, por isso, quase sempre determinável por simples exame da petição inicial) se aferem a legitimidade e os outros pressupostos que desse objecto dependam". Concluindo, "a parte é legítima quando, admitindo-se que existe a relação material controvertida, ela for efectivamente seu titular". (2)

Perante o exposto, desde logo nos surge como inaceitável a posição do recorrente quando sustenta que o acórdão recorrido excluiu da matéria de facto outros factos principais, provados por documento, essenciais senão mesmo modais quer para a boa decisão da causa quer, inclusivamente, para aferir da legitimidade do autor, designadamente no que concerne aos factos alegados no art. 36º da petição inicial e carreados para os autos pela contestação dos réus B e mulher nos arts. 45º, 46º e 49º da contestação.
Como bem se afirma no acórdão recorrido, não havia que fixar a base instrutória, seleccionando a matéria de facto relevante para a decisão da causa (art. 511° n°1 C.P.C.) mas - porque se não conheceu, nem podia conhecer, dos pedidos formulados pelo autor, antes e apenas das excepções dilatórias de ilegitimidade - tão só estabelecer a matéria de facto em que assentou o conhecimento dessas excepções.

Será, desta forma, apenas pelo exame da petição inicial (sujeitos, pedido e causa de pedir) que há-de decidir-se das excepções dilatórias em causa - ilegitimidade activa e ilegitimidade passiva.

Vejamos, pois.

Em primeiro lugar, no que respeita aos pedidos de condenação dos réus a verem declarada nula e de nenhum efeito a venda efectuada a eles próprios pelo mandante e réu D da fracção autónoma designada pela letra "H", correspondente ao rés-do-chão direito, com os n°s ........-B e .......-C, do prédio sito na Avenida António Enes, bem como a verem declarada nula e de nenhum efeito a escritura de compra e venda outorgada no 20º Cartório Notarial de Lisboa, de fls. 54 a 55 vº, do Livro de notas nº 13-I, em 21 de Janeiro é evidente a ilegitimidade do autor.

É certo que tal venda configura um negócio consigo mesmo (na parte em que foi feita pelo procurador à sua mulher E, com quem era casado segundo o regime da comunhão de adquiridos) que é anulável, nos termos do artigo 261º, nº 1, do C.Civil, porquanto foi celebrado por quem tinha poderes de representação sem que no instrumento que lhe conferia os referidos poderes ficasse expressamente a constar que os representados - F e mulher G - consentiam na celebração de tal negócio.

Com efeito, "o negócio celebrado pelo representante consigo mesmo (negotium a semet ipso), seja nomine proprio seja nomine alieno (em representação de terceiro), é meramente anulável, a não ser que o representado tenha especificamente consentido na celebração, ou que o negócio exclua, por sua natureza, a possibilidade de um conflito de interesses - n.º 1 do art. 261º do C. Civil". (3)

Mas, como parece óbvio, tal negócio não coenvolve abuso de representação ou representação sem poderes, sancionados com a ineficácia em relação ao representado nos arts. 268º e 269º do C.Civil.

De facto, o legislador não qualificou - se o pretendesse fazer tê-lo-ia expressamente declarado - o negócio consigo mesmo como um negócio com abuso de poderes representativos, sancionado este com a ineficácia, antes o considerou apenas inquinado por vício determinante da sua anulabilidade. (4)

Ora, não excedeu o representado os poderes que lhe foram conferidos pela procuração de fls. 34 - poderes para vender pelo preço e demais condições que tiver por convenientes, a fracção autónoma designada pela letra "H" correspondente ao rés-do-chão direito, loja, com os números cinquenta e cinco B e cinquenta e cinco C do prédio sito na Avenida António Enes, em Queluz, descrito na Conservatória do Registo Predial de Queluz sob o n° 135 da freguesia de Queluz e inscrito na matriz sob o artigo 2785 - limitando-se a celebrar a compra e venda em conformidade com os poderes que lhe foram outorgados, embora na escritura interviesse como compradora a sua mulher.
Daí que tenha ocorrido apenas a celebração de um negócio consigo mesmo (com a sua mulher) anulável nos termos do art. 261º e não também ineficaz como preceituam os arts. 268º e 269º porquanto nele não existiu abuso de representação.

Ora, estabelece o art. 287º, nº 1, do C.Civil que "só têm legitimidade para arguir a anulabilidade as pessoas em cujo interesse a lei a estabelece" ".

Assim, "não basta ter interesse na anulação para legitimar a intervenção da parte que a invoca. Esse é o regime da nulidade. Agora exige-se que seja a pessoa no interesse da qual a lei estabelece a anulabilidade. Há, portanto, sempre que resolver uma questão de direito e não, como na nulidade, apreciar somente o facto do interesse na destruição dos efeitos do negócio". (5)

Em consequência, a anulabilidade do contrato de compra e venda celebrado em 27 de Janeiro de 1991 só podia ser invocada pelos representados, faltando, por isso, ao autor, legitimidade para o fazer (e, em todo o caso, ainda que se considerasse existir ineficácia do negócio por abuso de representação, também essa ineficácia só poderia ser invocada pelos representados (arts. 268° e 269° C.Civil). (6)

Doutro passo, face à existência da procuração, não pode pretender-se aplicável à situação dos autos o regime legal da venda de coisa alheia (art. 892º do C.Civil). (7)

Na verdade, enquanto o negócio não vier a ser anulado - e já vimos que o autor não tem legitimidade para pedir a respectiva anulação - é, provisoriamente, um negócio válido, produzindo, a nível da realidade jurídica, todos os seus efeitos. (8)

Assim, porque o negócio jurídico realizado pelo representante em nome do representado produz os seus efeitos jurídicos na esfera deste último (art. 258º) tudo se passa como se tivessem sido os representados F e mulher G a alienarem onerosamente para os réus compradores a fracção objecto da identificada escritura.

Refere, é certo, o recorrente, a existência de um contrato-promessa, celebrado com aqueles representados, que, por força da aludida escritura, quedaria incumprido. Ainda assim, porque o contrato-promessa se reveste de mera natureza obrigacional, não goza o autor de direito de sequela sobre a fracção alienada, restando-lhe, como é óbvio, instaurar a competente acção (não contra os aqui réus, meros representantes) contra os promitentes vendedores, únicos sujeitos dessa relação contratual.

Donde, claramente se infere a ausência de razão por parte do recorrente, mostrando-se, em contrapartida, juridicamente correcta a decisão impugnada.

De igual modo - e no que respeita aos pedidos deduzidos em terceiro e quarto lugar (a condenação dos réus a reconhecerem o autor como único e exclusivo proprietário de metade da referida fracção autónoma, assim como a entregarem-lhe a dita fracção na proporção de metade indivisa - a que acresce o posterior pedido de cancelamento dos registos a favor dos réus) - não assiste ao recorrente qualquer razão, porquanto é patente a ilegitimidade dos réus para intervirem como réus na acção.

Na verdade, relativamente à fracção em apreço, os réus foram meros adquirentes e não vendedores, sendo que, para este efeito, os vendedores são o F e mulher G que não são parte na acção.

Ora, constando do registo competente a propriedade registada anteriormente a favor destes F e esposa G, sendo estes (embora por representação) os alienantes da fracção aos réus, a declaração de que o autor é proprietário da referida fracção em acção intentada apenas contra os réus, simples adquirentes, não produz o seu efeito útil normal, já que, não estando os transmitentes na causa, nunca seriam abrangidos pelo caso julgado material formado pela decisão que viesse a ser proferida.

Desta forma, não vinculando a decisão que viesse a ser proferida aqueles transmitentes, ainda que a acção fosse julgada procedente não poderia regular definitivamente a situação concreta das partes relativamente aos pedidos formulados (art. 28º, nº 2, do C.Proc.Civil).

Em derradeira análise, fundando o autor estes últimos pedidos na aquisição derivada (advinda de contrato-promessa celebrado) a legitimidade passiva situa-se, prima facie, nas pessoas de quem adquiriu a propriedade que (já vimos) são os representados F e esposa (e não os réus demandados) únicos que, perante a situação material controvertida, têm interesse em contradizer a pretensão daquele.

Situação que ocorre ainda, mesmo quando se admita que o autor goza do alegado direito à execução específica do contrato-promessa que celebrou com os referidos F e mulher G. É que, mesmo que assim fosse, sempre a acção de execução específica teria que ser intentada contra estes, promitentes vendedores que (já o dissemos devidamente representados) alienaram a fracção prometida vender, na medida em que só eles - e não também os réus - são os sujeitos da relação material consubstanciada (obrigação de celebrar o contrato definitivo) pelo contrato-promessa a que se alude.

Em consequência, tal como se decidiu no acórdão impugnado, são os réus parte ilegítima para serem demandados na acção.

Também neste aspecto, pois, haverá que confirmar o acórdão em crise.

Por último cumpre apreciar o recurso subordinado, no qual pretendem os réus ser absolvidos dos pedidos formulados pelo autor, assim discordando do acórdão recorrido que os absolveu da instância.

Não é, no entanto, minimamente razoável esse desiderato.

O acórdão recorrido conheceu exclusivamente da legitimidade adjectiva das partes, considerando (e bem) que ocorre a ilegitimidade do autor relativamente a dois dos pedidos e a ilegitimidade dos réus quanto aos demais.

Ora, como já acima referimos, a legitimidade constitui um pressuposto processual de cuja verificação depende que o tribunal conheça do mérito da causa, e profira, acerca dos pedidos deduzidos, uma decisão de fundo.

"Não se verificando algum desses requisitos, como a legitimidade das partes (") o juiz terá, em princípio, que abster-se de apreciar a procedência ou improcedência do pedido, por falta de um pressuposto processual para o efeito". (9)

Daí que, em conformidade com o afirmado e o disposto nos arts. 493º, nº 2, 494º, al. e) e 288º, nº 1, al. d), do C.Proc.Civil, outra atitude não podia o acórdão adoptar que não a de "abster-se de conhecer do pedido e absolver o réu da instância".

Mostra-se, desta forma, inteiramente correcta a decisão recorrida, improcedendo, por isso, o recurso subordinado.

Pelo exposto, decide-se:
a) - negar provimento ao recurso de agravo interposto pelo autor A, bem como ao recurso subordinado interposto pelos réus B, C, D e E;
b) - confirmar inteiramente o acórdão recorrido;
c) - condenar o autor nas custas do agravo e os réus nas custas do recurso subordinado.

Lisboa, 14 de Outubro de 2004
Araújo de Barros
Oliveira Barros
Salvador da Costa
-----------------------------
(1) José Lebre de Freitas, João Redinha e Rui Pinto, "Código de Processo Civil Anotado", vol. 1º, Coimbra, 1999, pag. 52.
(2) Castro Mendes, "Manual de Processo Civil", Coimbra, 1963, pags. 260, 261, 262.
(3) Ac. STJ de 26/06/2003, no Proc. 1826/03 da 2ª secção (relator Ferreira de Almeida).
(4) Repare-se até na diversa inserção sistemática das normas referidas.
(5) Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª edição, com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra, 1987, pag. 264.
(6) Ac. STJ de 09/03/2004, no Proc. 106/04 da 6ª secção (relator Silva Salazar).
(7) Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. II, 3ª edição, Coimbra, 1986, pag. 190.
(8) Cfr. Heinrich Horster, "A Parte Geral do Código Civil Português", Coimbra, 1992, pag. 589; Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", citado vol. I, pag. 263.
(9) Antunes Varela, J. M. Bezerra e Sampaio e Nora, "Manual de Processo Civil", 2ª edição, Coimbra, 1985, pag. 104. Acrescentam, aliás, os autores, em nota, que "a falta do pressuposto processual não impedirá o juiz apenas de proferir sentença sobre o mérito da acção, mas também de entrar na apreciação e discussão da matéria que interesse à decisão de fundo, sustando nomeadamente a produção de prova sobre os fundamentos do pedido".