Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
228/24.8T8CBT.G1
Relator: CARLA OLIVEIRA
Descritores: UNIÃO DE FACTO
ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA
AÇÃO NÃO CONTESTADA
LIQUIDAÇÃO POSTERIOR
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 11/13/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - No seguro de vida, aquando da morte ou incapacidade da pessoa segura, por efeito da designação beneficiária, o direito de crédito sobre o capital seguro surge directamente no património do beneficiário, nunca chegando a integrar o património da pessoa segura.
II – Carece, pois, de fundamento legal a pretensão do autor de receber da ré (com quem viveu em união de facto) metade das quantias pagas pela seguradora a uma entidade bancária mutuante, ao abrigo do seguro de vida associado ao crédito por esta concedido ao autor e à ré, na sequência da incapacidade de que o autor ficou a padecer em virtude de doença.
III - Só a completa inconcludência da existência do direito é que conduz à improcedência da acção, justificando-se que se profira condenação ilíquida, perante a mera ausência de elementos suficientes para determinar o montante a pagar/restituir ao autor.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I. Relatório

AA,
instaurou a presente acção declarativa de condenação, na forma de processo comum, contra
BB,
formulando os seguintes pedidos, com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa:
a. Ser declarado que A. e R. viveram em união de facto, em comunhão de mesa, leito e habitação, desde, pelo menos, 2002 a agosto de 2019.
b. Ser declarada dissolvida a união de facto entre A. e R. desde agosto de 2019.
c. Ser a R. condenada a restituir ao A. a quantia de € 2.626,96 (dois mil seiscentos e vinte e seis euros e noventa e seis cêntimos), correspondente a metade do valor de 10 prestações (agosto de 2019 a março de 2020 e de outubro e novembro de 2021) pagas pelo A. no contrato de mútuo n.º ...73.
d. Ser a R. condenada a restituir ao A. a quantia de € 634,06 (seiscentos e trinta e quatro euros e seis cêntimos), correspondente a metade do valor de 10 prestações (agosto de 2019 a março de 2020 e de outubro e novembro de 2021) pagas pelo A. no contrato de mútuo n.º ...93.
e. Ser a R. condenada a restituir ao A. a quantia de € 29.732,77 (vinte e nove mil setecentos e trinta e dois euros e setenta e sete cêntimos), correspondente a metade do montante da amortização antecipada do contrato de mútuo n.º ...73, em virtude da incapacidade atribuída ao A..
f. Ser a R. condenada a restituir ao A. a quantia de € 6.333,30 (seis mil trezentos e trinta e três euros e trinta cêntimos), correspondente a metade do montante da amortização antecipada do contrato de mútuo n.º ...93, em virtude da incapacidade atribuída ao A..
g. Ser a R. ser condenada a restituir ao A. a quantia de € 174,58 (cento e setenta e quatro euros e cinquenta e oito cêntimos), correspondente a metade da totalidade dos citados prémios de seguro multirriscos indexados ao contrato de crédito n.º ...73 pagos pelo A..
h. Ser a R. ser condenada a restituir ao A. a totalidade das prestações do seu seguro de vida com a apólice n.º ...40, certificado n.º ...83 e ordem de pagamento ... EMP01... SEGUROS ..., associado aos contratos de mútuo n.º ...73 e ...93, que o A. liquidou na integra, desde agosto de 2019 a dezembro de 2021, num total de €597,38 (quinhentos e noventa e sete euros e trinta e oito cêntimos).
i. Ser a R. condenada a restituir ao A. a quantia paga por este pela totalidade das quotas de condomínios desde janeiro de 2019 a dezembro de 2023, num total de € 667,65 (seiscentos e sessenta e sete euros e sessenta e cinco cêntimos).
j. Ser a R. ser condenada a restituir ao A. a quantia de €3.595,22 (três mil quinhentos e noventa e cinco euros e vinte e dois cêntimos), correspondente a metade do montante total despendido pelo A. com a liquidação das 27 prestações do contrato de crédito pessoal n.º ...22.
k. Ser a R. condenada a restituir ao A. da quantia de €3.774,68 (três mil setecentos e setenta e quatro euros e sessenta e oito cêntimos), correspondente a metade do valor que se encontrava em débito no cartão de crédito n.º ...33, à data da rutura da união de facto e que o A. vem liquidando.
l. Ser a R. ser condenada a restituir ao A. a totalidade do montante pago por este a título de imposto único de circulação nos anos de 2021, 2022 e 2023, no montante total de €131,67 (cento e trinta e um euros e sessenta e sete cêntimos).”.
Regularmente citada, a ré não apresentou contestação.
Foram julgados confessados os factos articulados pelo autor e ordenado o cumprimento do disposto no art.º 567º, nº 2, do NCPC.
Foram apresentadas alegações escritas pelo autor.
Na sequência foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção, tendo declarado a existência de uma relação de união de facto entre o autor e a ré desde 2002 a Agosto de 2019 e a dissolução dessa relação de união de facto em agosto de 2019 e condenado a ré a pagar ao autor a quantia de € 6.797,01, absolvendo-se a ré do demais peticionado.
Para o que ora interessa, o tribunal recorrido considerou totalmente improcedentes os pedidos formulados pelo autor sob as als. e), f) e k), da petição inicial.

Inconformado com o decidido pelo tribunal a quo relativamente a tais pedidos, apelou o autor, concluindo as suas alegações da seguinte forma:
“a) A douta decisão padece de erro de julgamento, porquanto desconsidera totalmente o facto de que a R. viu o seu passivo extinto, sem que tivesse contribuído para o seu pagamento.
b) Exclusivamente por causa do sinistro ocorrido apenas com o A./recorrente.
c) O sacrifício patrimonial que permitiu o cumprimento do contrato de seguro adveio exclusivamente da situação pessoal do A./recorrente.
d) A R. não suportou qualquer custo (prémio do seguro ou risco de sinistro), mas beneficiou da extinção integral da obrigação mutuária.
e) O que consubstancia uma clara e inequívoca vantagem patrimonial.
f) A ré passou a deter um bem livre de ónus, na sua quota-parte, sem ter contribuído para esse benefício.
g) Ficou desonerada da dívida, devido ao pagamento efectuado exclusivamente pela outra parte (recorrente), via seguro.
h) Sendo inequívoco que a ré foi beneficiada.
i) A jurisprudência tem vindo a reconhecer que, quando uma prestação é feita por terceiro (neste caso a seguradora), o benefício recebido sem causa justificativa pode configurar enriquecimento sem causa, se existir desequilíbrio patrimonial entre os mutuários.
j) O douto Tribunal a quo não ponderou devidamente o desequilíbrio nas prestações: o sinistro e a consequente ativação do seguro foram provocados unicamente pela condição clínica do recorrente, sendo esta a causa exclusiva do pagamento dos valores em causa.
k) A R. beneficiou da extinção da sua dívida, de forma gratuita e até à custa do A./recorrente, adveniente num evento que apenas respeita ao recorrente.
l) Tal constitui um enriquecimento patrimonial injustificado.
m) Mostram-se preenchidos os pressupostos do artigo 473.º do CC, porquanto: a ré obteve um enriquecimento (extinção da dívida); à custa do autor/recorrente; a condição pessoal do recorrente (incapacidade) foi a causa direta do acionamento do seguro; sem causa justificativa, pois o contrato de seguro foi acionado por motivo alheio à ré e inexiste ação mais adequada que possibilite ao recorrente ser indemnizado ou restituído, pois os restantes meios legais não permitem reparar este desequilíbrio.
n) Preceitua o art.º 1.º, n.º 2, da Lei n.º 7/2001, de 11.05, na redação dada pela Lei n.º 23/2010, de 30.08, a definição de união de facto como “a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.
o) Aos unidos de facto não são aplicáveis as normas do casamento quanto às relações patrimoniais.
p) A dissolução da união de facto dá origem a uma liquidação dos bens e interesses ativos e passivos reunidos pelos seus membros durante a convivência da união de facto e durante o tempo em que viveram como se de um casal se tratasse. (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08/02/2022, processo n.º 3762/18.5T8AVR.P1)
q) Escreveu-se no Ac. do STJ de 27.06.2019, in www.dgsi.pt que: “I. Para além de pontuais normas de protecção, próprias de diversas áreas (trabalho, fiscal, funcionalismo público e segurança social), o regime legal nada prevê sobre as relações patrimoniais entre os membros da união de facto: não existe um regime de bens, nem têm aplicação as regras que disciplinam os efeitos patrimoniais do casamento, independente do regime de bens – administração de bens, dívidas, liquidação e partilha.”
r) Ficando, assim, afastada a possibilidade de aplicação analógica das normas reguladoras das relações patrimoniais do casamento e nada tendo sido acordado entre os membros da união de facto (através dos designados contratos de coabitação), as relações patrimoniais entre estes ficam sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais. (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08/02/2022, processo n.º 3762/18.5T8AVR.P1)
s) E, “Não sendo viáveis, (…), outras soluções jurídicas (…) resta, para resolver os problemas patrimoniais causados pela ruptura da união de facto, o recurso ao enriquecimento sem causa”. (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 08/02/2022, processo n.º 3762/18.5T8AVR.P1) [negrito e sublinhado nosso]
t) “A obrigação de restituir ancorada no enriquecimento sem causa ou locupletamento à coisa alheia apenas nasce quando ocorre a verificação cumulativa dos seguintes três requisitos:
1.º Tem de existir um enriquecimento, que consiste na obtenção de uma vantagem de carácter patrimonial, que tanto pode constituir um aumento do ativo patrimonial como uma diminuição do passivo, com origem num negócio jurídico, como num ato jurídico não negocial ou num simples ato material.
2.º O enriquecimento não apresenta causa justificativa, que tanto pode ser por a mesma nunca ter ocorrido, como por ter deixado de existir, apesar de inicialmente existir. A causa justificativa do enriquecimento sem causa não tem uma definição legal concreta, mas podemos acolher como princípio geral de que a mesma não existe quando, de acordo com a lei, o enriquecimento deva pertencer a outra pessoa. Para aferirmos se tal ocorre, devemos efetuar sempre um juízo direcionado para o caso concreto, pois o mesmo depende sempre da fonte de que emerge, e deve ser interpretado e integrando a lei à luz dos factos apurados.
3.º A obrigação de restituir pressupõe que o enriquecimento tenha ocorrido à custa de quem requer a restituição, isto é, é exigida uma correlação entre o enriquecimento e o empobrecimento, pois que o benefício obtido pelo enriquecido deve decorrer de um prejuízo ou desvantagem do empobrecido.” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14/03/2023, proferido no processo n.º 5837/19.4T8GMR.G2.S1) [negrito nosso]
u) No que concerne ao pedido de reembolso de metade do valor do saldo do cartão de crédito (pedido K da P.I.)
v) O douto Tribunal entende que o recorrente não alegou as quantias que pagou ao banco.
w) Incorrendo assim em erro de julgamento, porquanto desconsidera os elementos constantes dos autos que permitem concluir que o autor/recorrente alegou expressamente que tem vindo a liquidar essa dívida desde a rutura da união de facto, conforme consta do artigo 91 e 92 da P.I.
x) Ao afirmar que o autor "não alegou, muito menos demonstrou" ter efetuado qualquer pagamento, a douta sentença ignora e/ou desvaloriza indevidamente os elementos probatórios disponíveis.
y) Além disso, o douto tribunal omitiu diligenciar no sentido de apurar a realidade dos pagamentos, podendo – e devendo – ter recorrido, se necessário, ao disposto no art. 411.º do CPC, ou mesmo convidado à junção de elementos adicionais, ao abrigo do dever de cooperação processual.
z) Sendo excessiva a exigência da prova de pagamento integral e imediato da dívida para prova do empobrecimento do recorrente e o correlativo enriquecimento injustificado da ré.
aa) Bastando a prova de que o recorrente tem vindo a pagar regularmente prestações correspondentes a encargos comuns, sem participação da ré/recorrida.
bb) Ao exigir-se do recorrente a prova do vencimento imediato da dívida ou da totalidade dos pagamentos, a douta sentença impõe um ónus que não se coaduna com os princípios da equidade e da boa-fé aplicáveis à repartição de encargos comuns.
cc) Para a procedência da ação, basta a demonstração de que a dívida foi contraída por ambos para o seu benefício comum e que um deles a está a pagar sozinho, sem qualquer contribuição do outro.
dd) Após a instauração da acção, o recorrente procedeu a vários pagamentos, no montante global de 7.225,37€ (sete mil duzentos e vinte e cinco euros e trinta e sete cêntimos), conforme doc.1 que aqui se junta e se dá por integralmente reproduzido.
ee) Tendo já liquidado toda a quantia devida à Banco 1..., S.A. - Sucursal em Portugal, relativa ao contrato de crédito n.º ...33.
ff) Assim, nos termos dos art.s 651º n.º 1 e 662º n.º 2 do CPC, requer-se a junção do documento n.º 1, para prova de pagamento da totalidade desta divida.
gg) A produção desta prova adicional, permitirá demonstrar empobrecimento do recorrente e o enriquecimento da ré.
hh) Devendo esta ser condenada a pagar ao recorrente a quantia de 3.612,68€ (três mil seiscentos e doze euros e sessenta e oito cêntimos), correspondente a metade do valor que se encontrava em débito no cartão de crédito n.º ...33.
ii) Em consequência, deverá ser proferido acórdão que condene a ré no pagamento ao autor da quantia de 3.612,68€ (três mil seiscentos e doze euros e sessenta e oito cêntimos), correspondente a metade da dívida comum liquidada por este, ou, subsidiariamente, que os autos baixem à 1.ª instância para ampliação da matéria de facto.”.
A ré contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida, mais referindo que o documento junto pelo autor com a alegação de recurso é extemporâneo.
Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
*
*
II. Questão prévia [da admissibilidade da junção de documentos em sede de recurso]
O autor/recorrente veio juntar aos autos com as alegações de recurso documento(s) supostamente demonstrativo(s) de ter liquidado o valor que se encontrava em débito no cartão de crédito n.º ...33; tendo realizado diversos pagamentos para tal efeito após a instauração da presente acção.
Porém, como vimos, a ré/recorrida veio pugnar pela inadmissibilidade, por intempestiva, da junção aos autos do documento assim oferecido pelo autor/recorrente.
Vejamos.
De acordo com o disposto no art.º 423º, do NCPC, os momentos para a junção dos documentos destinados a fazer a prova dos fundamentos da acção e da defesa, em princípio, são: (1) com o articulado respectivo; (2) ou até 20 dias antes da data em que se realize a audiência final com multa (ou sem ela, se feita a prova da indisponibilidade no primeiro momento); ou (3) até ao encerramento da discussão em 1ª instância, caso se demonstre que a apresentação não foi possível até aquele momento ou que a apresentação se tenha tornado necessária em virtude de ocorrência posterior.
Contudo, o art.º 425º do mesmo compêndio legal dispõe que depois do encerramento da discussão e, no caso de recurso, são ainda admitidos os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
Sendo que o art.º 651º, nº 1, do NCPC refere ainda que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excepcionais a que se refere o artigo 425º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1ª instância.”.
Da conjugação destas normas resulta que a junção de documentos em sede de recurso (junção que é admitida apenas a título excepcional) depende da alegação e prova de uma de duas situações:
a) a impossibilidade de apresentação do documento em momento anterior ao recurso; e
b) o julgamento da primeira instância ter introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional, que até aí – até ao julgamento em primeira instância – se mostrava desfasada do objecto da acção ou inútil relativamente a este.  
No que tange à impossibilidade de apresentação anterior, afirmam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, 2º Vol., Coimbra Editora, 2001, p. 426, que “Constituem exemplos de impossibilidade de apresentação o de o documento se encontrar em poder de terceiro, que só posteriormente o disponibiliza, de a certidão de documento arquivado em notário ou outra repartição pública, atempadamente requerida, só posteriormente ser emitida [superveniência objetiva] ou de a parte só posteriormente ter conhecimento da existência do documento [superveniência subjetiva]. Nos dois primeiros casos, será necessário que se tenham esgotado anteriormente os meios dos arts. 531 a 537 [atuais Artigos 432º a 437º do Código de Processo Civil].”.
Rui Pinto (in, Notas ao Código de Processo Civil, Coimbra Editora, 2014, p. 265) alerta, porém, que: “Os documentos apresentados referem-se a factos já trazidos ao processo, nos articulados normais ou nos articulados supervenientes (cf. artigos 588º e ss.). Portanto, a regra é a de que os documentos supervenientes não trazem ao processo factos supervenientes.”.
Já quanto à necessidade da junção em virtude do julgamento da primeira instância (nos termos do art.º 651º, nº 1, do NCPC), Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, p. 184-185, afirma que: “Podem ainda ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, máxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.
A jurisprudência anterior sobre esta matéria não hesita em recusar a junção de documentos para provar factos que já antes da sentença a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.”.
Destarte, o regime do art.º 651º, nº 1, do NCPC, não abrange a hipótese da parte pretender juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1ª instância. Dito de outra forma, não é admissível a junção, com a alegação de recurso, de um documento potencialmente útil à causa ab initio e não apenas após a sentença, ou seja, não é admissível a junção de documentos para provar factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado.
Ora, no caso, a junção do(s) documento(s) em causa não se mostra justificada à luz dos ensinamentos ora expendidos.
Na verdade, o recorrente não alega que não lhe foi possível apresentar o documento em data anterior, nem que a junção do documento se revelou necessária em face do julgamento proferido. Pretende, como vimos, com a referida junção comprovar que, já após a instauração da acção, procedeu a diversos pagamentos relativos ao valor que se encontrava em débito no cartão de crédito n.º ...33, tendo, entretanto, liquidado integralmente a referida dívida e, consequentemente, acrescentamos nós, que tal materialidade fáctica seja adicionada aos factos provados.
Ora, tal pretensão do recorrente – de modificação da decisão de facto no sentido de se considerar integralmente liquidado o referido valor – não foi oportunamente invocada, mormente através do competente articulado superveniente.
E, assim sendo, afigura-se-nos que a junção do documento em causa nesta sede não é admissível.
Isto porque, como é sabido, está vedado ao tribunal de recurso reapreciar a prova produzida com vista a aquilatar a demonstração de factos essenciais que apenas venham a ser alegados no recurso e não no momento processual adequado. Cfr. neste sentido o ac. STJ de 15.09.2021, nº de processo 559/18.6T8VIS.C1.S1, acessível in www.dgsi.pt.
Com efeito, os factos novos ou questões novas antes não suscitadas nem apreciadas pelo tribunal a quo nos termos do art.º 608º, nº 2 do NCPC, não podem pelo tribunal de recurso ser consideradas [vide ainda, entre outros, o ac. da RC de 14.01.14, processo nº 154/12.3TBMGR.C1; os acs. da RP de 16.10.2017, processo nº 379/16.2T8PVZ.P1 e de 10.02.2020, processo nº 22441/16.1T8PRT-A.P1; e o ac. desta RG de 08.11.2018, processo nº 212/16.5T8PTL.G1, todos também acessíveis in www.dgsi.pt].
Nestes termos, e salvo o devido respeito, a junção do(s) documento(s) ora em questão nesta sede não se mostra justificada.
Em consequência, determina-se o seu desentranhamento.
*
*
III. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º, nº 2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal).
*
As questões a decidir, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente são a de saber se o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento ao considerar não estarem preenchidos os requisitos subjacentes ao instituto do enriquecimento sem causa quanto aos pedidos formulados sob as als. e) e f), da petição inicial [relativos ao reembolso de metade do pagamento antecipado dos contratos de mútuos bancários outorgados pelo autor e pela ré] e ao julgar improcedente o pedido deduzido sob a al. k), do articulado inicial [referente a metade do valor que se encontrava em débito no cartão de crédito n.º ...33].
*
*
IV. Fundamentação

4.1. Fundamentação de facto
O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos:
1. A. e R. viveram juntos, partilhando a mesma casa, tomaram juntos as refeições e dormiram na mesma cama, desde o ano de 2002 até agosto de 2019.
2. Em 20 de fevereiro de 2004, A. e R. adquiriram, na proporção de metade cada um, para sua habitação própria e permanente e nela constituírem casa de morada de família, a fração autónoma designada pela letra ... (terceiro e quarto piso do lado direito da porta número um), integrada no prédio urbano sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., constituído em regime de propriedade horizontal, destinado à habitação, tipo T-três, duplex, um terraço, um lugar de garagem e um arrumo na cave, com a letra ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...01... e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...68..., com o valor patrimonial de 69.850,00€. (cfr. doc. 1 e 2)
3. Encontrando-se tal prédio, descrito na citada Conservatória do Registo Predial, registado definitivamente a favor do A. e R. pela Ap. ... de 2003/11/27, (cfr. doc. 2)
4. Para a realização do negócio referido em 2), recorreram a empréstimo bancário com hipoteca voluntária, concedido pelo à data Banco 2..., S.A., NIPC ...67, com sede na Avenida ..., ..., ..., tendo-lhes sido mutuado por aquela instituição financeira a quantia de cem mil euros, pelo prazo de 30 anos (contrato de mútuo para aquisição de habitação própria e permanente n.º ...73). (cfr. doc. 1)
5. Encontra-se registada hipoteca voluntária a favor do Banco 3..., SA, Sociedade Aberta, pela Ap. ...3 de 2007/12/03, com capital máximo assegurado de 121.414,40€ (cento e vinte e um mil quatrocentos e catorze euros e quarenta cêntimos) sobre o prédio referido em 2). (cfr. doc. 2)
6. Ademais, A. e R. celebraram, ainda, com o Banco 3..., SA, Sociedade Aberta, um outro contrato de mútuo com hipoteca para execução de obras no prédio descrito em 2, mais concretamente o contrato de crédito n.º ...93.
7. O certo é que, por conta dos preditos contratos de mútuo com hipoteca (n.º ...73 e ...93) e indexados aos mesmos, A. e R. celebraram contrato de seguro de vida com a EMP01..., ..., S.A. – Sucursal em Portugal, NIPC ...95, com a apólice n.º ...24, e após atualização com a apólice n.º ...40, a favor do credor hipotecário Banco 3..., SA, Sociedade Aberta. (cfr. doc. 3 e 4)
8. Sendo que, naquele contrato seguro vida figuram A. e R. como tomadores do seguro, nos seguintes termos:
a. Cobertura de morte ou invalidez absoluta e definitiva (IAD), para a pessoa segura AA, com o capital seguro de €78.905,29, com um prémio comercial anual de €715,63 e com data de vencimento a 01/01/2038; (cfr. doc. 3)
b. Cobertura de invalidez total e permanente (ITP), para a pessoa segura AA, com o capital seguro de €78.905,29, com um prémio comercial anual de €198,05 e com data de vencimento a 01/01/2028; (cfr. doc. 3)
c. Cobertura de morte ou invalidez absoluta e definitiva (IAD), para a pessoa segura BB, com o capital seguro de €72.838,00, com um prémio comercial anual de €182,64 e com data de vencimento a 01/01/2038; (cfr. doc. 4)
d. Cobertura de invalidez total e permanente (ITP), para a pessoa segura BB, com o capital seguro de €72.838,00, com um prémio comercial anual de €62,64 e com data de vencimento a 01/01/2038. (cfr. doc. 4)
9. À data de agosto de 2019, encontrava-se em dívida no contrato de mútuo com hipoteca (crédito à habitação) n.º ...73 a quantia de 62.127,86€ (sessenta e dois mil cento e vinte e sete euros e oitenta e seis cêntimos), (cfr. doc. 5)
10. E no contrato de mútuo com hipoteca (concedido para obras) n.º ...93, a quantia de €13.281,62 (treze mil duzentos e oitenta e um euros e sessenta e dois cêntimos). (cfr. doc. 5).
11. O certo é que, após agosto de 2019, a R. não mais liquidou a sua quota-parte das prestações inerentes àqueles contratos de mútuo que, entretanto, se foram vencendo,
12. Sendo que, desde agosto de 2019 a março de 2020 e nos meses de outubro e novembro de 2021, o aqui A. liquidou, junto do Banco 3..., a totalidade das prestações (capital e comissões) daquele contrato de mútuo n.º ...73, no montante de €2.626,96 (dois mil seiscentos e vinte e seis euros e noventa e seis cêntimos). (cfr. doc. 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14 e 15)
13. O A. liquidou, também, junto do Banco 3..., o montante de €634,06 (seiscentos e trinta e quatro euros e seis cêntimos), referente à totalidade das prestações que se venceram no contrato de mútuo n.º ...93, desde agosto de 2019 a março de 2020 e nos meses de outubro, novembro e dezembro de 2021. (cfr. doc. 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15 e 16)
14. Não tendo o A. liquidado qualquer prestação, quer no contrato n.º ...73 quer no contrato n.º ...93, desde abril de 2020 a setembro de 2021, pelo facto de ter aderido às medidas excecionais de proteção dos créditos das famílias no âmbito da pandemia da doença COVID-19, nos termos definidos no Decreto-Lei n.º 10-J/2020,
15. O que lhe permitiu beneficiar da suspensão do pagamento das prestações entre o momento em que a moratória foi solicitada (em abril de 2020) e o dia 30 de setembro de 2021.
16. O certo é que, após agosto de 2019 e sem qualquer causa justificativa, a R. não liquidou a sua quota parte das prestações que se venceram nos citados contratos de mútuo, que assumira juntamento com o aqui A.,
17. E, ainda assim, viu liquidadas todas essas prestações na sua totalidade, sem que para tanto tivesse despendido do seu próprio património.
Ademais,
18. Foi diagnosticado ao A. doença cardiovascular classe II e doença do foro psiquiátrico com perturbações funcionais importantes e com acentuada modificação dos padrões de atividade diária,
19. Tendo sido submetido a exame por junta médica,
20. E sido atribuído ao A., a 31 de março de 2021, atestado médico de incapacidade multiusos com um grau de incapacidade de 66%. (cfr. doc. 17)
21. Sendo que, por conta da incapacidade atribuída ao A., tomador do seguro, AA, foi acionado o seguro de vida com a apólice n.º ...40, indexado aos contratos de mútuo n.º ...73 e ...93,
22. E nessa sequência o Banco mutuante lançou em conta, em dezembro de 2021, o movimento de reembolso antecipado total do contrato de mútuo n.º ...73, no montante em dívida àquela data, ou seja, no valor de €59.465,54 (cinquenta e nove mil quatrocentos e sessenta e cinco euros e cinquenta e quatro cêntimos). (cfr. doc. 18)
23. E, nessa mesma data, o Banco mutuante lançou em conta o movimento de reembolso antecipado total do contrato de mútuo n.º ...93, do montante total em dívida de €12.666,59 (doze mil seiscentos e sessenta e seis euros e cinquenta e nove cêntimos). (cfr. doc. 19)
24. Tendo sido, desta forma, integralmente liquidados, perante o beneficiário daquele contrato de seguro vida (Banco 3...), os montantes em dívida nos contratos de mútuo n.º ...73 e ...93. (cfr. doc. 16, 18 e 19)
Por outro lado, e sempre sem prescindir,
25. Aquando da outorga do contrato de mútuo n.º ...73 e como condição imposta pelo mutuante à respetiva outorga, A. e R. celebraram contrato de seguro multirriscos habitação, atualizado anualmente, com a apólice n.º ...79 e, após atualização já no ano de 2021, com a apólice ...75, que era pago com a economia comum do extinto casal, composto pelo ora A. e R., também anualmente.
26. Sucede que, desde agosto de 2019, não mais a R. liquidou a sua quota parte naquele prémio de seguro.
27. Pelo que, o A., por forma a assegurar a manutenção daquele contrato de seguro e proteção da habitação (património que também é seu), procedeu à liquidação da totalidade daqueles prémios de seguro, nomeadamente:
a. Seguro multirriscos, com a apólice n.º ...79, válido de 19/08/2019 a 18/08/2020, no valor de €125,32 (cento e vinte e cinco euros e trinta e dois cêntimos); (cfr. doc. 20)
b. Seguro multirriscos, com a apólice n.º ...79, válido de 19/08/2020 a 18/08/2021, no valor de €125,32 (cento e vinte e cinco euros e trinta e dois cêntimos); (cfr. doc. 21)
c. Seguro multirriscos, com a apólice n.º ...75, válido de 22/10/2021 a 21/10/2022, no valor de €98,52 (noventa e oito euros e cinquenta e dois cêntimos); (cfr. doc. 22)
28. Num total global de €349,16 (trezentos e quarenta e nove euros e dezasseis cêntimos).
Ademais,
29. Aquando da outorga dos citados contratos de mútuo n.º ...73 e ...93, A. e R. celebraram com a EMP01..., EMP02..., S.A. seguro de vida grupo, com a apólice n.º ...24 e após atualização com a apólice n.º ...40. (cfr. doc. 3 e 4)
30. Figurando, nesse contrato de seguro vida, como tomadores e pessoas seguras:
a. AA, certificado n.º ...82, (cfr. doc. 3)
b. BB, certificado n.º ...83. (cfr. doc. 4)
31. Sendo que, por conta da diferença de idades entre o ora A. e R., foi atribuído àquele contrato de seguro dois prémios de seguro,
32. Um para cada uma das pessoas seguras, ou seja, um para o A. e outro para a R.,
33. Cada um deles pago em prestações mensais, iguais e sucessivas,
34. Sendo que o do A. tinha ordem de pagamento ... EMP01... SEGUROS ...,
35. E o da R., ordem de pagamento ... EMP01... SEGUROS ....
36. O certo é que foi sempre o A., com o produto do seu trabalho, por viver em economia comum com a ora R., quem liquidou a totalidade das prestações de ambos prémios de seguro.
37. Sendo que, nem após agosto de 2019 a R. procedeu ao pagamento das prestações inerentes ao seu prémio de seguro,
38. Tendo o A. após agosto de 2019 liquidado as prestações do seu prémio de seguro vida,
39. Bem como, por se tratar de uma única apólice de seguro e com receio que a mesma fosse cancelada por falta de pagamento do prémio de seguro da R., continuado a liquidar as prestações inerentes ao prémio de seguro da R.,
40. O que fez desde agosto de 2019 até dezembro de 2021, altura em que o presente seguro vida procedeu ao reembolso antecipado total do montante em dívida nos supra mencionados contratos de mútuo, por doença diagnosticada ao A..
41. Assim, e desde agosto de 2019 a dezembro de 2021, o A. liquidou 29 prestações do prémio do seguro de vida da R.,
42. No montante global de €597,38. (cfr. doc. 23, 6, 24, 7, 25, 8, 26, 9, 27, 10, 28, 11, 29, 12, 30, 13, 31, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 14, 68, 15, 69 e 16)
Para além disso,
43. Desde agosto de 2019, a R. não mais liquidou a sua metade das quotas de condomínio da fração melhor identificada em 2.
44. Tendo o A. procedido ao pagamento integral da totalidade das quotas de condomínio daquela fração, desde janeiro de 2019 até dezembro de 2023, nomeadamente:
a. No ano de 2019 pagou a quantia de €289,14 (duzentos e oitenta e nove euros e catorze cêntimos), conforme recibo n.º ...20; (cfr. doc. 70)
b. No ano de 2020 pagou a quantia de €239,80 (duzentos e trinta e nove euros e oitenta cêntimos), conforme recibo n.º ...; (cfr. doc. 71)
c. No ano de 2021 pagou a quantia de €239,80 (duzentos e trinta e nove euros e oitenta cêntimos), conforme recibos n.º ...1 e ...3; (cfr. doc. 72 e 73)
d. No ano de 2022 pagou a quantia de €283,28 (duzentos e oitenta e três nove euros e vinte e oito cêntimos), conforme recibo n.º ...49; (cfr. doc. 74)
e. No ano de 2023 pagou a quantia de €283,28 (duzentos e oitenta e três euros e vinte e oito cêntimos), conforme recibos n.º ...49 e ...90; (cfr. doc. 74 e 75)
45. Num total global de €1.335,30 (mil trezentos e trinta e cinco euros e trinta cêntimos).
Por outro lado, ainda,
46. Enquanto viveram juntos, A. e R., devido à situação económica difícil de ambos em virtude da R. não auferir qualquer rendimento e para fazer face às mais elementares despesas do dia-a-dia, celebraram contrato de crédito pessoal n.º ...22, com o Banco 3..., no qual os progenitores do A. figuraram como fiadores, sendo as prestações daquele mútuo debitadas na conta n.º ...06, titulada conjuntamente por A. e R.. (cfr. doc. 5)
47. Ora, em julho de 2019, ainda se encontrava em débito, naquele crédito pessoal, a quantia de €5.758,64 (cinco mil setecentos e cinquenta e oito euros e sessenta e quatro cêntimos), (cfr. doc. 5)
48. Quantia que, desde 2020 e por conta da subida das taxas de juro em consequência da pandemia Covid 19 e guerra na Ucrânia, veio a aumentar.
49. O certo é que, após essa data (julho de 2019) e bem sabendo que também havia contraído aquele mútuo, a R. não mais liquidou qualquer prestação referente ao citado crédito pessoal, nem sequer contribuído, de qualquer forma, para o pagamento da sua quota parte daquelas prestações.
50. Tendo, portanto, de modo a não entrar em incumprimento com aquela instituição financeira e com recurso ao seu vencimento e pensão de invalidez, o A. procedido à liquidação da totalidade das referidas prestações daquele crédito pessoal, desde agosto de 2019 a outubro de 2022, num total de 27 (vinte e sete) prestações, no montante global de €7.190,44 (sete mil cento e noventa euros e quarenta e quatro cêntimos) (cfr. doc. 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 32, 56, 58, 60, 62, 64, 66, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83 e 84)
Ademais,
51. Enquanto viveram juntos, em virtude da situação económica difícil de ambos e pelo facto de a R. não auferir qualquer rendimento, A. e R. adquiriram sucessivamente cartões de crédito para fazer face aos seus débitos e às demais despesas da vida corrente.
52. Tendo adquirido, designadamente, junto da Banco 1..., S.A. – Sucursal em Portugal e em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde inícios de 2017, o cartão de crédito n.º ...33, com limite de crédito de €8.260,00 (oito mil duzentos e sessenta euros).
53. Sendo aquele cartão de crédito liquidado com os rendimentos comuns do extinto casal e da conta comum destes com o IBAN  ...33 e autorização de débito direto n.º ...50.
54. O certo é que, em agosto de 2019, encontrava-se em dívida, naquele cartão de crédito e por conta dos gastos de A. e R. enquanto casal, a quantia de €7.549,36 (sete mil quinhentos e quarenta e nove euros e trinta e seis cêntimos). (cfr. doc. 85)
55. Quantia que o A. vem liquidando desde essa data até ao presente.
56. Não tendo, no entanto, a R. liquidado qualquer das prestações inerentes àquele débito,
57. Nem sequer contribuído para o pagamento das mesmas, designadamente com o pagamento da sua quota-parte (50% do valor de cada uma das prestações).
Por outro lado, ainda,
58. Enquanto viveram juntos, A. e R. adquiriram um veículo automóvel da marca ..., com a matrícula ..-..-XJ, encontrando-se o A. registado como proprietário no respetivo certificado de matrícula. (cfr. doc. 86)
59. Sendo que, em agosto de 2019, A. e R. acordaram que aquele veículo ficaria para a R., o que, efetivamente sucedeu, ficando, desde então, a R. com a utilização exclusiva do citado veículo, tendo a 05/09/2023 sido efetuado o pedido de registo automóvel daquela viatura a favor da R. (cfr. doc. 86).
60. O certo é que, embora a R. detivesse e utilizasse em exclusivo o veículo em apreço, aproveitando-se do facto do mesmo ainda se encontrar registado em nome do A., a R. jamais procedeu ao pagamento do respetivo imposto único de circulação do mesmo.
61. Tendo o A., para não entrar em incumprimento junto da Autoridade Tributária e Aduaneira, liquidado, desde 2021 até à data em que foi registado o veículo a favor da R., a totalidade daquele imposto, designadamente:
a. Imposto único de circulação do ano de 2021, documento n.º 2021 279017803, no valor de €43,27. (cfr. doc. 87)
b. Imposto único de circulação do ano de 2022, documento n.º 2022 300697103, no valor de €43,27. (cfr. doc. 88)
c. Imposto único de circulação do ano de 2023, documento n.º 2023 295392903, no valor de €45,13. (cfr. doc. 89)
62. Num total de €131,67 (cento e trinta e um euros e sessenta e sete cêntimos).”.
*
4.2. Fundamentação de direito
O recorrente instaurou a presente acção pretendendo que lhe sejam reconhecidos diversos direitos de crédito sobre a ré, baseando a sua pretensão no facto de ter vivido com esta em união de facto e no instituto do enriquecimento sem causa.
Foi entendimento do tribunal a quo plasmado na sentença recorrida que, não obstante resultar inequívoco dos autos que o autor e a ré viveram em união de facto e que a convivência em comum já cessou, a) não ficaram demonstrados os requisitos subjacentes ao instituto do enriquecimento sem causa, no que concerne aos pedidos formulados sob as als. e) e f) - relativos ao reembolso de metade do pagamento antecipado dos contratos de mútuos bancários outorgados pelo autor e pela ré -; b) o autor não alegou factualidade suficiente para a procedência do pedido deduzido sob a al. k) – referente a metade do valor que se encontrava em débito no cartão de crédito n.º ...33.
É contra este entendimento que se insurge o recorrente.

Vejamos então se lhe assiste razão.
a)
No caso, como vimos, não vem questionado nos autos que o autor e a ré viveram em união de facto e que tal união foi dissolvida, estando apenas em causa apreciar a tutela dos efeitos patrimoniais decorrentes dessa união de facto.
A união de facto vem definida no art.º 1º, nº 2, da Lei 7/2001, de 11.05, na redacção dada pela Lei 23/2010, de 30.08, como a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.
Podendo ser considerada uma relação jurídica familiar, concretizando um direito, que é constitucionalmente garantido – o direito de constituir família (art.º 36º, nº 1, da CRP) – é consensual que tal não significa que deva ser concedido aos unidos de facto um tratamento igual ao que é dispensado aos cônjuges.
Casamento e união de facto são situações materialmente diferentes, não se justificando, nem havendo fundamento legal para estender a esta situação de facto as normas que disciplinam o casamento e respectivos efeitos.
Acresce que, não obstante a união de facto seja objecto de cada vez mais alargada protecção jurídica, o legislador não curou de estabelecer um regime legal de bens pré-definido com o objectivo de regular o património adquirido pelos unidos de facto, durante a comunhão de vida.
Deste modo, a doutrina e jurisprudência têm entendido que, apesar de não ser de equiparar à união de facto o regime do casamento, designadamente quanto aos efeitos patrimoniais, e que, após a cessação da união de facto, a situação pessoal e patrimonial não é igual à dos casados, tal não significa, que a união de facto, para além dos seus domínios de protecção específicos e regulamentados, não possa relevar, em termos gerais, como situação de facto geradora de efeitos, designadamente no que respeita aos efeitos patrimoniais emergentes da vivência em comum e, em particular, à liquidação dos mesmos em consequência da cessação dessa vida em comum (neste sentido, entre outros, vide o ac. do STJ de 26.11.2024, processo nº 54/22.9T8PRT.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt).
Refere a propósito Guilherme de Oliveira (in, Manual de Direito da Família, com a colaboração de Rui Moura Ramos, 2020, p. 347) que como na união de facto «não há um “regime de bens”, nem tem aplicação as regras que disciplinam os efeitos patrimoniais do casamento independentes do regime de bens”, as relações patrimoniais dos membros da união de facto ficam “sujeitas ao regime geral das relações obrigacionais e reais”.
Note-se que a falta de regulação expressa de tais efeitos não significa que os unidos de facto estejam impedidos de adquirir bens conjuntamente, podendo-o, aliás, fazer sem quaisquer restrições, ficando nesse caso sujeitos ao regime da compropriedade (art.ºs 1403º e seguintes do CC).
Por outro lado, nada impede também a celebração de acordos entre os membros da união de facto para regular os aspectos patrimoniais da relação, ao abrigo do princípio da autonomia privada, designadamente, através dos chamados “contratos de coabitação” [sobre a celebração de contratos de coabitação nas uniões de facto, vide Ana Rita Ferraz Laranja Pontes, Os efeitos patrimoniais decorrentes da cessação da união de facto: a divisão do património no final da vida em comum, in https://repositorio.ucp.pt].
Com efeito, «caso os conviventes tenham, ao abrigo da autonomia privada, celebrado um denominado “contrato de coabitação”, nos termos do qual tenham designadamente acordado acerca da propriedade dos bens resultantes da comunhão de vida e acerca das contribuições patrimoniais efectuadas, naturalmente que rege o referido contrato.» (cfr. ac. desta Relação de Guimarães de 15.04.2021, processo nº 4801/19.8T8GMR.G1, consultável in www.dgsi.pt).
Nada sendo acordado entre os unidos de factos com vista a regular os aspectos patrimoniais da relação, têm a doutrina e a jurisprudência portuguesas admitido o recurso ao instituto do enriquecimento sem causa por qualquer um dos conviventes, com vista a obter a restituição de bens ou valores com que o outro convivente se tenha indevidamente locupletado à custa do seu património, nos termos que defluem do disposto nos art.ºs 473º e seguintes do CC (ver neste sentido, entre outros, o já citado ac. da RG de 15.04.2021 e ainda o ac. da RC de 29.09.2019, processo nº 266/18.0T8MBR.C1 e o ac. do STJ de 27.06.2019, processo 944/16.8T8VRL.G1.S2, disponível como os demais in www.dgsi.pt e com citação de doutrina e jurisprudência ilustrativa desse entendimento).
Sendo o instituto do enriquecimento sem causa chamado a resolver as situações em que se discutam os efeitos patrimoniais da dissolução da união de facto, é necessário que a parte que dele se pretenda socorrer articule os factos integradores da correspondente causa de pedir e deduza o respectivo pedido (cfr. ac. da RE de 13.07.2020, processo nº 305/16.09T8EVR.E1, acessível in www.dgsi.pt).
No caso em apreço, foi esta a via seguida pelo autor que, alegando exactamente o enriquecimento sem causa, pretende que seja reconhecido ser titular de diversos direitos de crédito sobre o património da ré.
Deste modo, com vimos, é ao autor que pretende obter a restituição com fundamento em enriquecimento sem causa que incumbe o ónus de alegar e provar a verificação daqueles pressupostos, como factos constitutivos que são do respectivo direito (art.º 342º, nº 1, do CC).
Tais pressupostos encontram-se elencados no art.º 473º, nº 1 do CC, o qual dispõe que “Aquele que, sem causa justificativa, enriquecer à custa de outrem é obrigado a restituir aquilo com que injustamente se locupletou”; e que “A obrigação de restituir, por enriquecimento sem causa, tem de modo especial por objecto o que for indevidamente recebido, ou o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir ou em vista de um efeito que não se verificou (nº 2).”.
Por outro lado, resulta do art.º 479º do mesmo diploma que “A obrigação de restituir fundada no enriquecimento sem causa compreende tudo quanto se tenha obtido à custa do empobrecido ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente” (nº 1) e que “A obrigação de restituir não pode exceder a medida do locupletamento à data da verificação de algum dos factos referidos nas duas alíneas do artigo seguinte (nº 2).”.
Podemos então dizer de forma sintética que são requisitos do enriquecimento sem causa: o favorecimento de um património à custa do empobrecimento de outro e a falta de causa justificativa dessa valorização patrimonial.
Deve ainda salientar-se que o instituto do enriquecimento sem causa se caracteriza pela sua natureza subsidiária, só sendo de aplicar quando a lei não faculte ao empobrecido qualquer meio legal de ser indemnizado ou restituído (cfr. art.º 474º do CC).
A falta de causa justificativa, em situações de enriquecimento de prestação, verifica-se quando alguém tenha recebido coisa indevidamente, isto é, sem qualquer fonte ou título jurídico a suportá-la, ou que tendo por base causa, esta tenha deixado de existir, ou quando a prestação assim efectuada tivesse em vista um efeito que acabou por não se verificar. 
Conforme refere Mário Júlio de Almeida Costa (Direito das Obrigações, 3ª Edição, p. 334 e 335) o enriquecimento diz-se sem causa quando o direito o não aprova ou consente, porque não existe uma relação ou um facto que, de acordo com os princípios do sistema jurídico, justifique a deslocação patrimonial.
Transpondo estes considerandos para o caso vertente, importa começar por referir que se nos afigura evidente ter o tribunal recorrido decidido de forma acertada quando considerou não estarem verificados os requisitos do referido instituto do enriquecimento sem causa no que concerne ao pretendido reembolso de metade do pagamento antecipado dos contratos de mútuos bancários outorgados pelo autor e pela ré.
Desde logo, falece de razão o recorrente quando argumenta que a ré/recorrida beneficiou da extinção integral da obrigação mutuária e passou a deter um bem livre de ónus, na sua quota-parte, devido ao pagamento efectuado exclusivamente pelo recorrente, via seguro”.
Na verdade, e ao contrário do que afirma o recorrente, a liquidação do valor dos mútuos não foi suportada pelo autor, mas apenas e tão só pela companhia de seguros com quem o autor e a ré celebraram um contrato de seguro, na modalidade de seguro de vida.
Com efeito, da factualidade dada como provada ressuma que o autor e a ré subscreveram um contrato de seguro, na modalidade de seguro de vida, associado a dois contratos de mútuo com hipoteca concedidos por uma entidade bancária para aquisição de habitação própria e para execução de obras.
Esse contrato de seguro garantia o pagamento do capital devido pelos aqui autor e ré (tomadores do seguro/pessoas seguras) ao Banco credor hipotecário (beneficiário do seguro), por via da concessão de crédito à habitação e execução de obras (contrato de mútuo com hipoteca), estando garantidos pela companhia seguradora os riscos de morte ou de invalidez total e permanente dos mutuários, isto é, a liquidação ao Banco mutuante do montante dos créditos hipotecários em dívida à data do sinistro, até ao montante do capital seguro.
Nesse contrato de seguro, os segurados não são beneficiários directos, sendo apenas as pessoas sujeitas aos riscos que, nos termos acordados, são objecto do contrato.
Por força do contrato de seguro celebrado, e em virtude das doenças de que padece o autor - uma das pessoas seguras no contrato -, a liquidação do valor do capital em dívida, relativo à quantia mutuada, passou a recair sobre a companhia seguradora e, não já, sobre as pessoas seguras, neste caso, sobre o autor e a ré, sendo que o titular desse direito de crédito é o Banco financiador.
Nesta conformidade, tem-se entendido na doutrina e na jurisprudência que, no seguro de vida, aquando da morte ou incapacidade da pessoa segura, por efeito da designação beneficiária, o direito de crédito sobre o capital seguro surge directamente no património do beneficiário (cfr. Margarida Lima Rego, in Contrato de Seguro e Terceiros - Estudo de Direito Civil, p. 497 e os acs. da RP de 24.09.2020, processo nº 1385/18.8T8PFR, da RL de 25.01.2024, processo nº 4140/21.4T8ALM.L1 e desta Relação de Guimarães de 16.02.2017, processo nº 396/14.7T8PRT.G1 e de 19.02.2022, processo nº 827/20.7T8BRG.G1, todos disponíveis in www.dgsi.pt).
Assim, conforme assertivamente se refere no citado ac. desta Relação de Guimarães de 16.02.2017, “em consequência desta configuração jurídica do contrato de seguro, nestes casos, o direito de crédito eventualmente existente sobre a Seguradora, nunca chega a integrar o património da pessoa segura (nem dos seus herdeiros).”.
Destas considerações decorre que tal contrato de seguro, como se diz na decisão recorrida, configura um verdadeiro contrato a favor de terceiro - cfr. art.º 443º, nº 1 do CC - ou seja, a favor do único beneficiário, o Banco mutuante.
Note-se que em momento algum foi contratualizado pelo autor ou pela ré qualquer outro beneficiário que não a referida instituição bancária.
O beneficiário do capital segurado não foi, portanto, nem o autor, nem a ré, mas apenas a instituição bancária que lhes concedeu os créditos.
Afigura-se-nos, pois, e salvo o devido respeito, que o recorrente está a confundir o contrato de seguro de vida em causa nestes autos com um contrato de seguro de vida “tout court”, que tem como cobertura a morte ou a invalidez total e permanente, no qual o beneficiário é, em regra, a pessoa segura (e, por morte desta, os seus herdeiros), estando a seguradora obrigada a pagar-lhe o valor do capital seguro, no caso de ocorrer o sinistro que o contrato de seguro celebrado entre as partes visou acautelar.
Só nesse caso é que o valor pago pela companhia seguradora integraria o património do segurado/beneficiário e, caso fosse utilizado para solver uma dívida da responsabilidade do autor e da ré, seria susceptível de gerar um direito crédito a favor do autor sobre o património da ré. 
No caso, tal não sucedeu, pelo que não tendo sido retirado do património do autor o montante que liquidou o valor dos mútuos em questão, é manifesto que a ré não obteve qualquer benefício à custa de um empobrecimento do autor.
Ou seja, não podemos deixar de concordar com o sentido da decisão recorrida quando conclui que não se demonstrou ter havido um enriquecimento da ré à custa de um correspectivo empobrecimento do recorrente.
Ademais, e ainda que se entenda que a ré obteve um benefício, tal ocorreu por força da celebração do contrato de seguro acima referenciado e do aí acordado entre as partes outorgantes. Ou seja, no caso, tal suposto benefício da ré encontra inteira justificação e causa bastante num negócio jurídico – contrato de seguro de vida -, cuja validade e eficácia não foi posta em causa, e no cumprimento do expressamente clausulado nesse contrato de seguro [no referido contrato ficou expressamente estabelecido que, ocorrendo um sinistro relativamente a qualquer um dos sinistrados, a seguradora ficava obrigada a pagar a totalidade do capital em dívida e não apenas a quota parte do sinistrado].
Neste mesmo sentido, veja-se o ac. desta Relação de Guimarães de 13.10.2022, processo nº 4408/21.0T8BRG, acessível in www.dgsi.pt, citado na decisão recorrida e em que intervieram os Exmºs Srs. Desembargadores que também subscrevem o presente acórdão como adjuntos.
 Carece, pois, de fundamento legal a pretensão do autor de receber da ré (com quem viveu em união de facto) metade das quantias pagas pela seguradora a uma entidade bancária mutuante, ao abrigo do seguro de vida associado ao crédito por esta concedido ao autor e à ré, na sequência da incapacidade de que o autor ficou a padecer em virtude de doença.
Na verdade, como vimos, para se reconhecer a obrigação de restituir sustentada no enriquecimento sem causa era necessário que o recorrente tivesse logrado demonstrar a obtenção duma vantagem patrimonial, à sua custa, por parte da ré, sem que exista uma causa justificativa para essa deslocação patrimonial, sendo que a obtenção de tal vantagem à sua custa e a falta (originária ou subsequente) de causa justificativa do enriquecimento são elementos constitutivos do direito à restituição que se arrogava pelo que se impunha ao recorrente, ao reclamar a restituição por enriquecimento sem causa, o ónus da demonstração dos respectivos factos constitutivos.
E o recorrente não demonstrou que tenha havido um enriquecimento por parte da ré à sua custa, e sem qualquer causa justificativa, de onde decorre, não poder proceder nesta parte a sua pretensão, sendo de manter a decisão recorrida neste segmento [mantendo-se, pois, a decisão de improcedência dos pedidos deduzidos pelo autor sob as als. e) e f), da petição inicial].
b)
Insurge-se ainda o recorrente quanto ao decidido pelo tribunal a quo relativamente ao pedido formulado na al. k) da petição inicial, pretendendo que o tribunal ad quem conclua pela procedência de tal pedido ou que lhe seja permitido realizar a prova de ter procedido ao pagamento integral do valor que se encontrava em débito no cartão de crédito n.º ...33, à data da ruptura da união de facto.
Com efeito, na presente acção, o autor peticionou a condenação da ré no pagamento da quantia de € 3.774,68, correspondente a metade do valor que se encontrava em débito no cartão de crédito n.º ...33, à data da ruptura da união de facto, na quantia de € 7.549,36.
Para tanto, contudo, limitou-se a alegar no articulado inicial que vinha liquidando tal quantia desde a referida data até ao “presente” (referindo-se naturalmente à data da propositura da acção) e que a ré não liquidou qualquer das prestações inerentes àquele débito, nem contribuiu para o pagamento das mesmas.
Assim sendo, é manifesto que o autor/apelante não concretizou as quantias que pagou ao banco mutuante e muito menos alegou ter procedido à liquidação total de tal débito resultante da utilização do cartão de crédito pelas aqui partes. Só o fez em sede de recurso e, como já vimos supra, está vedado ao tribunal de recurso conhecer de factos essenciais que não foram alegados oportunamente na 1ª instância e que, consequentemente, não puderam ser tomados em consideração na decisão recorrida.
De todo o modo e ao contrário do que concluiu o tribunal recorrido, o apelante alegou – e tal foi dado como provado, em consequência da falta de contestação da ré – que efectuou, desde agosto de 2019 (data da separação), pagamentos ao banco mutuante. Só ficou por apurar o montante concretamente liquidado.
E, assim sendo, ou seja, não tendo sido possível apurar o concreto valor pago a esse título pelo apelante, nada mais resta que relegar a sua liquidação para momento posterior, nos termos previstos no citado art.º 609º, nº 2, do NCPC.
Com efeito, dispõe este normativo, que “Se não houver elementos para fixar o objecto ou a quantidade, o tribunal condenará no que vier a ser liquidado, sem prejuízo de condenação imediata na parte que já seja líquida”.
E embora tenha existido alguma jurisprudência que interpretava a aludida disposição legal (mais concretamente a norma do anterior CPC que lhe correspondia), sustentando que apenas seria aplicável quando, no momento da sentença, ainda não fosse possível conhecer todos os factos necessários à liquidação da obrigação, não sendo, todavia, aplicável quando esses factos já haviam ocorrido e muito menos quando esses mesmos factos haviam sido alegados mas não provados (vg, o ac. do STJ de 17.01.1995, proferido no processo nº 085801, disponível in www.dgsi.pt), pensamos poder afirmar que essa corrente jurisprudencial está ultrapassada, não merecendo acolhimento na jurisprudência mais recente do STJ e não colhendo o necessário apoio na letra da lei e no pensamento legislativo.
Na verdade, nada na letra da lei nos induz a fazer tal interpretação (restritiva), uma vez que a previsão da norma em questão reporta-se à falta de elementos para fixar o objecto ou a quantidade da condenação sem fazer qualquer distinção entre as situações em que esses elementos não existem por ainda não terem ocorrido os factos que permitiriam fixar o objecto ou a quantidade da obrigação e as situações em que esses factos já ocorreram, já são conhecidos e até foram alegados, sucedendo apenas que não foram provados. Em qualquer uma dessas situações, o tribunal – no momento em que profere a sentença – não dispõe desses elementos e, portanto, está impossibilitado de fixar o objecto ou a quantidade da prestação e, ao que nos parece, é apenas essa circunstância que está subjacente à norma em questão.
O que ali se pretende salvaguardar é a possibilidade de o tribunal proferir uma decisão condenatória, nas situações em que, apesar de se ter apurado a existência do direito e respectiva obrigação, não se determinou o objecto ou a quantidade dessa obrigação. Ou seja, o juiz apurou a efectiva existência de uma obrigação – sabendo, portanto, que o réu terá que ser condenado – mas não apurou qual é o concreto objecto ou a quantidade exacta dessa prestação – não podendo, por isso, determinar o objecto da condenação.
Numa situação dessas, e como refere Alberto dos Reis (in, Código de Processo Civil Anotado, vol. V, p. 71) “…nem seria admissível que a sentença absolvesse o réu, nem seria tolerável que o condenasse à toa, naquilo que ao juiz apetecesse. A única solução jurídica é a que o texto consagra: proferir condenação ilíquida. O juiz condenará o réu no que se liquidar em execução de sentença”.
Temos, portanto, como certo que tal disposição será aplicável a todos os casos em que o tribunal, no momento em que profere a decisão, carece de elementos para fixar o objecto ou a quantidade da condenação, seja porque ainda não ocorreram os factos constitutivos da liquidação da obrigação, seja porque, apesar de esses factos já terem ocorrido e terem sido alegados, não foi feita a sua prova.
Neste sentido, pronunciaram-se ainda José Lebre de Freitas (in, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 2ª ed., p. 682), Vaz Serra (in, RLJ, Ano 114º, p. 309 e 310) e, entre outros, o ac. do STJ de 22.09.2016, proferido no processo nº 681/14.8TVLSB.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt.
Concluímos, portanto, que, para efeito de aplicação da norma citada, é irrelevante que o autor tenha formulado um pedido líquido ou específico sem que tenha conseguido provar os factos que havia alegado e dos quais dependia a fixação ou quantificação do objecto da prestação; também essa situação se insere no âmbito de previsão da norma citada e, portanto, também nesse caso o tribunal deverá condenar no que vier a ser liquidado.
O que é absolutamente necessário é que se prove a existência da obrigação, uma vez que aquilo que pode ser relegado para posterior liquidação, ao abrigo da citada disposição legal, não é a existência da obrigação – porque esta, constituindo um pressuposto necessário para que seja proferida uma decisão condenatória, tem que ser previamente demonstrada – mas sim e apenas o objecto ou a quantidade dessa obrigação. Vide, assim, o ac. RC de 11.10.2017, processo nº 228/15.9T8SEI.C1 e o ac. da RP 13.11.2023, processo nº 1285/22.7T8GDM.P1, ambos igualmente disponíveis in www.dgsi.pt.
Deste modo, só a completa inconcludência da existência do direito é que conduziria à improcedência da acção, justificando-se que se profira condenação ilíquida, perante a mera ausência de elementos suficientes para determinar o montante a restituir ao autor.
Procede, pois, ainda que parcialmente a apelação nesta parte.
*
Em suma, conclui-se pela procedência parcial do recurso, devendo, em consequência, ser revogada parcialmente a sentença recorrida e, em consequência, mantendo-se a condenação da ré a pagar ao autor a quantia de € 6.797,01, decide-se condenar ainda a ré a restituir ao autor metade das quantias pagas por este relativamente ao débito no cartão de crédito n.º ...33 entre Agosto de 2019 e a data da propositura da acção, a liquidar posteriormente; absolvendo-se a ré do demais peticionado.
As custas do presente recurso são a suportar pela recorrente e recorrido, na proporção do respectivo decaimento e as custas da acção a suportar pelo autor e pelas rés, igualmente na proporção do respectivo decaimento (cfr. art.º 527º, nºs 1 e 2, do NCPC).
*
*
SUMÁRIO (art.º 663º nº 7 do NCPC):
*
*
V. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o recurso, devendo, em consequência, ser revogada parcialmente a sentença recorrida e, em consequência, mantendo-se a condenação da ré a pagar ao autor a quantia de € 6.797,01 (seis mil setecentos e noventa e sete euros e um cêntimo), decide-se condenar ainda a ré BB a restituir ao autor AA, metade das quantias pagas por este relativamente ao débito no cartão de crédito n.º ...33 entre Agosto de 2019 e a data da propositura da acção, a liquidar posteriormente; absolvendo-se a ré do demais peticionado.
As custas do presente recurso são a suportar pela recorrente e recorrido, na proporção do respectivo decaimento e as custas da acção a suportar pelo autor e pelas rés, igualmente na proporção do respectivo decaimento (cfr. art.º 527º, nºs 1 e 2, do NCPC).
*
Guimarães, 13.11.2025
Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária

Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira
1º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Alcides Rodrigues
2º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Afonso Cabral de Andrade