Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
23/25.7T9PNI.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SANDRA FERREIRA
Descritores: EXAME CRÍTICO DA PROVA
PRINCÍPIO DA LIBERDADE DE PROVA
CONTRAORDENAÇÕES AMBIENTAIS
INSTITUTO DE CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E DAS FLORESTAS/ICNF
RESERVA NATURAL
RESERVA NATURAL DAS BERLENGAS
RESPONSABILIDADE CONTRAORDENACIONAL DAS PESSOAS COLECTIVAS
LEGITIMIDADE PARA A EMISSÃO DE ORDENS OU MANDADOS PELA AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
DIREITO DO AMBIENTE
PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E TIPICIDADE AO ÂMBITO CONTRAORDENACIONAL
OPÇÕES DO LEGISLADOR
PRINCIPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
REFORMATIO IN PEJUS
Data do Acordão: 10/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE PENICHE
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 13.º, 18.º, N.º 2, E 66.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGOS 127.º E 374.º, N.º 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGOS 1.º, 22.º, 25.º, 27.º E 75.º DA LEI N.º 50/2006, DE 29 DE AGOSTO/LEI QUADRO DAS CONTRAORDENAÇÕES AMBIENTAIS/LQCA
ARTIGOS 7.º, N.º 2, E 41.º, DO D.L. N.º 433/82, DE 27 DE OUTUBRO/REGIME GERAL DAS CONTRAORDENAÇÕES/RGCO
ARTIGOS 10.º E 47.º DO REGULAMENTO DO PLANO DE ORDENAMENTO DA RESERVA NATURAL DAS BERLENGAS, APROVADO PELA RESOLUÇÃO DO CONSELHO DE MINISTROS Nº 180/2008 DE 24 DE NOVEMBRO, IN DIÁRIO DA REPÚBLICA Nº 228/2008 SÉRIE I, DE 24-11-2008
ARTIGO 4.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO D.L. N.º 43/2019, DE 29 DE MARÇO/APROVA A ORGÂNICA DO INSTITUTO DA CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E DAS FLORESTAS, I. P.
ARTIGO 18.º DO D.L. N.º 142/2008 DE 24 DE JULHO/REGIME JURÍDICO DA CONSERVAÇÃO DA NATUREZA E DA BIODIVERSIDADE
Sumário: I - O rigor e a suficiência do exame crítico da prova são aferidos por critérios de razoabilidade, sendo imprescindível, mas bastante, que sejam perceptíveis as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.

II - Atendendo aos artigos 10.º do Regulamento do Plano de Ordenamento da Reserva Natural das Berlengas, e 4.º, n.º 1, alínea a), e 47.º do D.L. n.º 43/2019, de 29 de Março, assiste legitimidade ao ICNF para a emissão do Ofício Circular n.º 22249/2020/DR-LVT/DRCNB/DACCAP, de 5-6-2020, relativo ao arquipélago das Berlengas, que fixou normas específicas a cumprir entre 15 de Junho e 30 de Setembro de 2020 pelos operadores marítimo-turísticos com autorização válida para realizar atividades marítimo-turísticas com acesso à parte terrestre da ilha da Berlenga, entre as quais se conta a limitação do número de pessoas por visita nos trilhos de uma reserva natural.

III - Este ofício circular foi emitido regularmente pelo Diretor Regional de Conservação da Natureza e Florestas de Lisboa e Vale do Tejo, de acordo com as atribuições acometidas, e foi comunicado por escrito à arguida.

IV - Estabelecendo o artigo 25.º da LQCA que o incumprimento de ordens ou mandados legítimos da autoridade administrativa transmitidos por escrito aos seus destinatários (como é o caso do referido ofício circular) constitui contra-ordenação leve e estando definidos os respectivos limites mínimos e máximos da coima no artigo 22.º da mesma lei, inexiste na configuração da contra-ordenação em apreço qualquer violação do princípio da legalidade ou tipicidade, pois este regime permite aos seus destinatários saber de antemão quais são as condutas proibidas e antecipar com segurança a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito.

V - A gravidade da contraordenação tout court depende, também, do bem ou interesse que tutela e do benefício retirado e do resultado ou prejuízo causado pelo agente.

VI - Uma reserva natural constitui um “ecossistema frágil e no qual as actividades humanas descontroladas constituem o principal factor responsável pela sua degradação”, o que impõe a adopção de um regime capaz de garantir a sua efectiva defesa.

VII - Considerando os interesses e valores protegidos, as sanções previstas para as contraordenações ambientais são adequadas e proporcionais à natureza dos bens tutelados, à gravidade da infracção que se destina a sancionar e à importância dos objectivos visados pelo normativo em causa, como seja a protecção e preservação da Reserva Natural das Berlengas, razão pela qual a aplicação do disposto nos artigos 22.º e 25.º da LQCA não enferma de inconstitucionalidade, pois não contende com o princípio da proporcionalidade ou qualquer outro princípio constitucionalmente previsto e protegido.

VIII - O artigo 7.º, n.º 2, do RGCO, que diz que as pessoas colectivas ou equiparadas são responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções, inclui também os trabalhadores, os meros agentes e auxiliares ao serviço da pessoa colectiva e no exercício das suas funções ou por causa delas, excepto quando actuem contra ordens expressas ou em seu interesse exclusivo.

IX - A responsabilidade contraordenacional em apreço, sustentando-se numa imputação directa e autónoma, não exige a identificação nem a individualização da pessoa singular executante da acção típica e ilícita.

X - A possibilidade da reformatio in pejus nos processos de contraordenação instaurados e decididos nos termos da LQCA, estabelecida no seu artigo 75.º, para além de não contender com o pleno acesso à impugnação das decisões da

autoridade administrativa, enquadra-se numa legítima opção do legislador, dentro dos poderes de conformação que lhe são atribuídos, de definir um equilíbrio entre as garantias de defesa do arguido e a protecção dos valores também constitucionalmente garantidos relativos ao ambiente e em concreto aos constantes do artigo 66.º da Constituição da República Portuguesa, de tudo resultando que a norma do artigo 75.º não constitui uma restrição desproporcional, por desadequada ou excessiva, aos direitos de defesa da arguida.

XI - A opção legislativa implica, apenas, uma adequada ponderação da oportunidade da dedução da impugnação, em face dos riscos inerentes a um modelo que permite que, num julgamento da matéria constante da decisão administrativa e em face do conjunto da prova que venha a ser produzida em audiência de julgamento, possa vir a ser proferida uma decisão em seu desfavor.

Considerando as particularidades relativas ao denominado “Direito do Ambiente” e aos valores que lhe estão inerentes, o legislador pode estabelecer regimes diferenciados, que podem passar por distintos limites mínimos e máximos das coimas e pelo estabelecimento de diferentes normas adjectivas ou de procedimento, desde que estes não sejam irrazoáveis.

XII - O principio da igualdade significa que na aplicação do direito não deve haver discriminação em função das pessoas, pois todos os cidadãos beneficiam de forma idêntica dos direitos e deveres estabelecidos na lei.

XIII - Considerando a opção do legislador, de entender que a protecção do particular bem jurídico que se protege na LQCA impõe um especial regime destinado a prevenir e desincentivar o incumprimento dos deveres por ela impostos, garantir a conservação da natureza, a promoção do aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardar a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações e de promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente, os mecanismos e as condições que permitam aos serviços envolvidos dispor dos instrumentos legais que os habilitem, designadamente, a exercer uma acção fiscalizadora, eficaz e preventiva, a possibilidade da reformatio in pejus nos processos de contraordenação instaurados e decididos nos termos da LQCA não viola o principio da igualdade.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

I – Relatório

O Instituto da Conservação da Natureza e Florestas, por decisão de 28.10.2024, aplicou à arguida …, Lda., a coima única de €6.000,00€, pela prática, a título de dolo necessário de duas contraordenações ambientais leves, previstas e puníveis pelas disposições conjugadas dos arts. 22º, nº 2 al. b) 23º A, 23º B e 25º nº1 da Lei Quadro das Contraordenações ambientais (de ora em diante LQCA).

Desta decisão interpôs a arguida recurso de impugnação judicial.

Distribuídos os autos ao Tribunal Judicial da Comarca de Leiria -  Juízo de Competência Genérica de Peniche, foi o recurso admitido e foi realizada a audiência de Julgamento.

Foi então proferida sentença a 05.05.2025 que consta dos autos com a refª Citius 1107368066, que julgou improcedente o recurso interposto pela arguida …, Lda., e, em consequência, decidiu:

“a) Condenar a sociedade arguida …, Lda., pela prática, em 2020/07/23, a título de dolo necessário, de uma contraordenação ambiental leve, prevista e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 2, alínea b), 23.º-A, 23.º-B e 25.º, n.º 1, da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (Lei Quadro das Contraordenações ambientais), na coima parcelar de € 4.000,00 (quatro mil euros);

b) Condenar a sociedade arguida …, Lda., pela prática, em 2020/09/26, a título de dolo necessário, de uma contraordenação ambiental leve, prevista e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 2, alínea b), 23.º-A, 23.º-B e 25.º, n.º 1, da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (Lei Quadro das Contraordenações ambientais), na coima parcelar de € 5.000,00 (cinco mil euros);

a) Efetuar o cúmulo jurídico das coimas parcelares aplicadas nas alíneas a) e b) supra, nos termos do artigo 27.º da LQCOA, condenando a sociedade arguida …, Lda., na coima única de € 6.500,00 (seis mil e quinhentos euros), acrescida das custas processuais administrativas no valor de € 51,00 (cinquenta e um euros).”

É desta decisão que vem interposto recurso, pela arguida/recorrente que formulou as seguintes conclusões [transcrição]:

“Conclusões

1. O presente recurso tem como objecto a matéria de direito elencada na sentença proferida no dia 5 de Maio de 2025, no âmbito dos presentes autos, que manteve a condenação da recorrente e fixou coima única de €6.500,00 [seis mil e quinhentos euros], em cúmulo jurídico, pela prática de duas infracções, a título de dolo necessário, por violação do disposto nos artigos 22º, n.º 2, alínea b), 23º-A, 23º-B e 25º, n.º 1, da Lei n.º 50/2006, de 29 de Agosto;

2. O Tribunal a quo deu, designadamente, como provado, em ambas as infracções (factos 4, 5, 7 e 8 dos factos provados), que se tratou de uma actuação da arguida, por via dos seus responsáveis, sem apresentar a devida fundamentação, acerca das razões pelas quais concluiu que se tratou de uma actuação da sociedade;

3. Nesta parte, a sentença revela-se, manifestamente, carente da devida fundamentação, sendo nula, por força do disposto nos art.ºs 379, n.º 1 a) e 374.º n.º2 do CPP, aplicada por força do art.º 41.º n.º 1 do RGCO;

4. O que deve determinar que tais factos não sejam considerados provados e que, por conseguinte, os actos que tenham sido praticados não são imputáveis à sociedade arguida, com a consequente absolvição da mesma.

5. Com base nos factos provados elencados o Tribunal a quo considerou que se encontravam preenchidos, na sua totalidade, os elementos objectivos e subjectivos do ilícito típico em questão, e, consequentemente, da responsabilidade contraordenacional imputada à recorrente;

6. Mas sem que, em bom rigor, estejam verificados os pressupostos da responsabilidade das pessoas colectivas em sede de ilícito de mera ordenação social;

7. A verdade é que não estão demonstrados e nem a douta sentença se esforça por dizer o contrário, os pressupostos da responsabilidade das pessoas colectivas, nomeadamente, não se apurou que os agentes que praticaram os actos de execução o fizeram actuando com poderes de representação da sociedade, invocando o nome da sociedade e agindo no interesse da sociedade, seguindo as instruções desta;

8. Na verdade, o que a sentença refere é que não se conhece a identidade das pessoas que guiaram os turistas, que são apresentadas ou como funcionários da sociedade, ou como prestadores de serviços desta, sem se saber a que título concreto o foram, mas que se considera que os factos foram praticados pela sociedade;

11. Um funcionário ou um prestador de serviço não se confunde com o conceito de órgão societário;

14. Não se aceitando que os autos sejam reenviados para novo julgamento, para se apurar a identidade dos guias, pois tal solução implicaria uma alteração substancial dos factos, porquanto, até aqui, todo o processo decorreu com base no desconhecimento da identidade dessas pessoas;

15. A sociedade arguida foi condenada pela prática de uma contra ordenação, cuja infracção e a coima se encontram definidas por um Ofício Circular;

16. Não pode um ofício circular definir uma contra ordenação e respectiva coima, por violação do princípio da reserva de lei, que deve presidir à matéria das contra ordenações ambientais;

17. No âmbito das contra ordenações ambientais, considerando o valor das coimas e o grau de gravidade das mesmas, devem ser sujeitas ao regime de reserva de lei formal, o que não aconteceu;

18. Havendo manifestamente uma violação do princípio da reserva de lei, previsto no art.º 29.º da CRP e do princípio da proporcionalidade, consagrado no art.º 18.º n.º 2, sendo tais normas inconstitucionais, não podendo ser aplicadas, e por conseguinte, não podendo a arguida ser condenada pela sua prática;

21. Não obstante o exposto, e caso assim não se entenda, e o Tribunal considere dever manter-se a decisão condenatória, o que admitimos sem conceder, impõe-se, ainda, considerar que foi aplicado a estes autos o artigo 75º da LQCA, permitindo ao Tribunal a quo o agravamento da coima aplicada pela decisão administrativa, em violação da proibição da reformatio in pejus;

22. Tal norma está ferida de inconstitucionalidade, por violação dos artigos 13º, 18º e 32º n.º 10 da CRP;

23. Em primeiro lugar, a diferenciação no âmbito das contraordenações ambientais, face ao regime geral, previsto no artigo 72º-A do RGCO, não se encontra verdadeiramente fundamentada, sendo, por isso, uma violação do princípio da igualdade, previsto no artigo 13º da CRP;

24. O abandono da defesa dos direitos dos arguidos face à defesa dos direitos do ambiente, quando a mesma poderia ser assegurada, de forma eficaz, sem ser necessário prever o agravamento das coimas em sede de impugnação judicial, configura uma violação do princípio da proporcionalidade, previsto no artigo 18º da CRP.

25. Por fim, uma solução como a consagrada no artigo 75º da LQCA, irá conduzir ao receio, justificado, dos arguidos em processos contraordenacionais, de recorrerem à impugnação judicial das decisões administrativas, diminuindo assim o seu pleno direito de defesa, e violando o disposto no artigo 32º n.º 10 da CRP;

26. O artigo 75º da LQCA, na forma como veio interpretado e aplicado pelo Tribunal a quo, configura uma violação do direito de defesa da recorrente, nos termos do artigo 32º n.º 10 da CRP, pelo que, nos termos do artigo 75º n.º 2 do RGCO e 204º da CRP deverá ser alterada a decisão do Tribunal a quo, desaplicando o artigo 75º da LQCA, na medida em que esta agravou o montante da coima a aplicar, por violação dos artigos 13º, 18º e 32º n.º 10 da CRP.

27. Acresce, ainda, que o Tribunal a quo decidiu pelo agravamento da coima sem sequer fundamentar esta decisão, nem com base em factos novos, nem justificando a sua discordância com a decisão administrativa, surpreendendo a recorrente, e violando o seu direito à defesa, nesta parte a sentença afigura-se nula, por falta de fundamentação;

28. Assim sendo, deverá o artigo 75º da LQCA ser desaplicado ao caso concreto, nos termos do artigo 204º da CRP e a manter-se a condenação da sociedade arguida deverá ser no montante da coima aplicado pela entidade administrativa;


*

O recurso foi admitido, com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo.

*

O Mº Público respondeu …

*

Uma vez remetido a este Tribunal, o Exmº Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer …

*

A arguida veio responder reiterando os fundamentos do seu recurso.

*

Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.

*

II – Objeto do recurso

No caso, invoca a recorrente:

- A nulidade da sentença por falta de fundamentação , quanto aos factos 4, 5, 7 e 8 nos termos do disposto nos arts. 379º, nº 1 al. a) e 374º, nº 2 do Código de Processo Penal, aplicados por força do disposto no art. 41º do Regime Geral das contraordenações e Coimas (RGCOC),

- A não verificação dos pressuposto da responsabilização da arguida/recorrente por não ter sido apurada a identidade das pessoas que guiaram os turistas e do concreto vínculo que as ligava à empresa.

- Da violação do principio da reserva de Lei (art. 29º da Constituição da República Portuguesa) e do princípio da proporcionalidade (art. 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa) por as contraordenações e coimas em causa terem sido definidas por um Ofício Circular.

- Da Inconstitucionalidade do art. 75º da LQCA por violação dos arts. 13º, 18º e 32º da Constituição da República Portuguesa.

- Da nulidade da sentença por ausência de fundamentação quanto ao agravamento da coima única.


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III – Fundamentação

Da decisão recorrida consta entre o mais o seguinte [transcrição]:

“B – Matéria de facto provada

Com relevância para a boa decisão da causa, provaram-se os seguintes factos:

1. Em 2020/06/05, o ICNF, I.P., remeteu à sociedade arguida e aos demais operadores marítimo-turísticos autorizados a trabalhar na Reserva Natural das Berlengas, por correio eletrónico, para o endereço “..........@.....”, o Ofício-Circular n.º 22249/2020/DR-LVT/DRCNB/DACCAP, de 05/06/2020, do Diretor Regional de Conservação da Natureza e Florestas de Lisboa e Vale do Tejo, com o seguinte teor, no que ao caso releva:

“(…)

OFÍCIO/CIRCULAR (…)

Considerando que:

- O arquipélago das Berlengas detém condições específicas, razões pelas quais o artigo 10.º do Plano de Ordenamento da Reserva Nacional das Berlengas estabelece que o número de pessoas autorizadas na área terrestre da ilha da Berlenga fique condicionado à respetiva capacidade de carga humana, a definir em portaria do membro do Governo responsável pela área do ambiente, que considerará obrigatoriamente a sensibilidade das espécies e dos habitats naturais presentes, a

dimensão da área terrestre, as condicionantes de segurança e os serviços de apoio em funcionamento na ilha;

- Em 23 de maio de 2019, entrou em vigor a Portaria n.º 355/2019, de 22 de maio, que estabelece a capacidade de carga humana na área terrestre da ilha da Berlenga e que determina que a regulação dos aspetos específicos relativos ao controlo das pessoas presentes na área da reserva natural, as que pernoitam na ilha da Berlenga, as que visitam a sua parte terrestre e as associadas às atividades que se realizam na área marinha do arquipélago serão aprovadas por regulamento do Governo;

- Até à entrada em vigor deste regulamento do Governo, é necessário acautelar as regras indispensáveis ao controlo de acesso à área terrestre da ilha da Berlenga, tendo em especial consideração as limitações que caracterizam o Cais do Carreiro do Mosteiro na gestão dos embarques e desembarques de pessoas em condições de segurança e conforto;

- O ICNF, IP. detém atribuições específicas enquanto autoridade nacional de conservação da natureza e da biodiversidade, na gestão das áreas protegidas de âmbito nacional, nomeadamente na salvaguarda dos valores naturais, na implementação das orientações de gestão com vista à conservação de espécies e habitats, nas matérias de vigilância e fiscalização, na salvaguarda dos recursos e, em concreto, no cumprimento do Plano de Ordenamento da Reserva Natural das Berlengas, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 180/2008, de 24 de novembro;

- Os artigos 23.º e 47.º do regulamento deste Plano de Ordenamento preveem, respetivamente, os aspetos relativos à área de intervenção específica do cais e praia do Carreiro do Mosteiro e que a realização de atividades marítimo-turísticas na área de intervenção daquele plano carece de autorização prévia e deve obedecer a normas específicas determinadas pela autoridade nacional para a conservação da natureza e da biodiversidade;

- Nestes termos, o ICNF, |.P. tem vindo a emitir em anos anteriores normas específicas, por via de ofício-circular, destinadas aos operadores marítimo-turísticos à operar na Reserva Natural das Berlengas.

Assim, pelo presente Ofício-Circular definem-se as seguintes normas específicas, a cumprir entre 15 de junho e 30 de setembro de 2020, pelos operadores marítimo-turísticos com autorização válida para realizar atividades marítimo-turísticas com acesso à parte terrestre da ilha da Berlenga:

1. O acesso à área terrestre da Ilha da Berlenga faz-se exclusivamente através do Cais do Carreiro do Mosteiro.

2. O acesso ao Cais do Carreiro do Mosteiro deve ser mantido permanentemente desimpedido, sendo expressamente proibido mergulhar do cais e nadar na zona de acesso ao mesmo.

3. O embarque e desembarque de pessoas no Cais do Carreiro do Mosteiro só pode efetuar-se entre as 09.00 horas e as 21.00 horas.

4. O embarque e desembarque realiza-se sempre com a permanência de um tripulante a bordo, sendo expressamente proibido o estacionamento no Cais do Carreiro do Mosteiro além do tempo necessário àqueles fins.

5. As embarcações que pretendem embarcar pessoas têm prioridade de acesso ao cais em relação às que pretendem desembarcar.

6. Cada embarcação devidamente autorizada para realizar atividades marítimo-turísticas com acesso à área terrestre da Ilha da Berlenga, pode efetuar até dois desembarques por dia no Cais do Carreiro do Mosteiro.

7. O segundo desembarque de pessoas só pode ocorrer após a retirada do primeiro grupo da ilha pela mesma embarcação.

8. Os operadores marítimo-turísticos deverão tomar as precauções indispensáveis com vista a evitar a ocorrência de acidentes no Cais do Carreiro do Mosteiro, sendo responsáveis perante o ICNF, LP. E perante terceiros, nos termos gerais do direito, por eventuais danos decorrentes da sua utilização indevida.

9. Cada a atividade de grupo organizada nos caminhos e trilhos da ilha da Berlenga pelos operadores de Turismo de Natureza fica limitada ao máximo de 10 pessoas e 1 guia.

10. O ICNF, LP. não é responsável por perdas, danos ou acidentes que sofram as embarcações, as pessoas ou os seus bens, salvo se os mesmos lhe forem imputáveis nos termos da legislação em vigor.

O incumprimento destas normas específicas constitui contraordenação ambiental grave, punível nos termos da Lei n.º 50/2006, de 29 de agasto, na sua atual redação, a que correspondem coimas entre os 2.000€ e os 216.000€, consoante sejam praticadas por pessoas singulares ou coletivas, em negligência ou com dolo, sem prejuízo da aplicação de sanções acessórias e da possibilidade de interdição e inibição do exercício da atividade autorizada na Reserva Natural das Berlengas” (sublinhado nosso);

Auto de notícia n.º 26337/2020

2. Em 2020/07/23, cerca das 17h45m, um Vigilante da Natureza da Reserva Natural das Berlengas verificou que um funcionário/prestador de serviços da …, Lda., saiu da escadaria que leva ao Forte de São João Batista com um grupo com 17 pessoas;

3. O grupo seguiu aquele funcionário/prestador de serviços em direção ao Farol Duque de Bragança, onde parou para ouvir as suas explicações;

4. Ao atuar da forma descrita supra a arguida, por via dos seus responsáveis, trabalhadores ou prestadores de serviços, atuou de forma livre, voluntária e consciente com a intenção concretizada de conduzir um grupo de mais de 10 pessoas, não obstante saber que a norma específica acima referida proíbe aos operadores turísticos da Ilha da Berlenga, nessa área protegida, a constituição de grupos com mais de 10 pessoas;

5. A Arguida representou a sua atuação como ilícita e o preenchimento do ilícito como consequência necessária da mesma;

6. Em 2020/09/26, cerca das 16h20m, os Vigilantes da Natureza da Reserva Natural das Berlengas verificaram que um funcionário/prestador de serviços da arguida …, Lda., conduziu um grupo de 12 pessoas entre o Farol Duque de Bragança e o início das escadas de acesso ao Forte de São João Batista, na Ilha da Berlenga;

7. Ao atuar da forma descrita supra a arguida, por via dos seus responsáveis, trabalhadores ou prestadores de serviços, atuou de forma livre, voluntária e consciente com a intenção concretizada de conduzir um grupo de mais de 10 pessoas, não obstante saber que a norma específica acima referida proíbe aos operadores turísticos da Ilha da Berlenga, nessa área protegida, a constituição de grupos com mais de 10 pessoas;

8. A Arguida representou a sua atuação como ilícita e o preenchimento do ilícito como consequência necessária da mesma.

Da audiência de julgamento:

9. No ano fiscal de 2024, a sociedade arguida obteve um lucro tributável de € 76.085,63.

C – Matéria de facto não provada

Com relevância para a boa decisão da causa, inexistem factos não provados.

D – Motivação da matéria de facto

A prova produzida foi apreciada de acordo com as regras da experiência e a livre convicção do julgador, liberdade que “não é, nem deve implicar nunca o arbítrio ou sequer a decisão irracional, puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjetivismo, à fundamentação e à comunicação”1 [1 Castanheira Neves, citado por Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português 1, 2017, Universidade Católica Editora, p. 99].

Pelo contrário, a livre apreciação da prova exige uma apreciação crítica e racional, fundada nas regras da experiência comum, mas também nas da lógica e da ciência, e tudo para que dela resulte uma convicção do julgador objetivável e motivável.

Assim, o Tribunal formou a sua convicção mediante a análise crítica e ponderada da prova produzida em audiência de julgamento, consubstanciada no cruzamento dos depoimentos das testemunhas inquiridas em audiência de julgamento e dos documentos juntos aos autos, designadamente os autos de notícia levantados pelos Vigilantes da Natureza do ICNF, I.P. (de fls. 23-24 e 42-43, respetivamente, dos autos físicos), cópia do Ofício-Circular n.º 22249/2020/DR-LVT/DRCNB/DACCAP, de 05/06/2020, do Diretor Regional de Conservação da Natureza e Florestas de Lisboa e Vale do Tejo (de fls. 17-18 dos autos físicos), cópia do correio eletrónico datado de 2020/06/05, dirigido à arguida, para o endereço de correio eletrónico ..........@..... (fls. 15-16 dos autos físicos) e a declaração de IRC da arguida/recorrente relativa ao ano fiscal de 2024 (ref.ª eletrónica 11598756), elementos estes analisados à luz das regras da experiência.

Concretizando.

Daí que ao Tribunal não restem dúvidas de que os vigilantes da natureza que levantaram os autos de notícia identificaram os guias dos referidos grupos turísticos pelo respetivo uniforme, tendo ainda detalhando que eram normalmente os mesmos rostos que ali viam no desempenho de tais funções, não obstante não conhecerem a sua identificação e não tendo solicitado a mesma, em face de reações adversas anteriores em face de tais pedidos e segundo indicações superiores.

III – Fundamentação de direito

A – Enquadramento Jurídico

Deste modo, importará apreciar as questões suscitadas pela arguida/recorrente nas suas conclusões, as quais são as seguintes:

a) violação do princípio da legalidade e de reserva de lei;

b) falta de preenchimento dos elementos constitutivos das contraordenações imputadas.


*

A arguida/recorrente foi condenada numa coima única no valor de € 6.000,00, pela prática, a título de dolo necessário, de duas contraordenações ambientais leves, previstas e puníveis pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 2, alínea b), 23.º-A, 23.º-B e 25.º, n.º 1, da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (Lei Quadro das Contraordenações ambientais), nas coimas parcelares de € 4.000,00 e € 5.000,00, respetivamente.

A Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (LQCOA), estabelece o regime aplicável às contraordenações ambientais, a qual, no artigo 1.º, n.º 2, qualifica contraordenação ambiental como “todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de disposições legais e regulamentares relativas ao ambiente que consagrem direitos ou imponham deveres, para o qual se comine uma coima”, clarificando o n.º 3 que a categoria de legislação e regulamentação ambiental inclui “toda a que diga respeito às componentes ambientais naturais e humanas, tal como enumeradas na Lei de Bases do Ambiente”. Neste sentido, Regulamento do Plano de Ordenamento da Reserva Natural das Berlengas, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 180/2008, de 24 de novembro e a Portaria n.º355/2019, de 22 de maio, configuram legislação ambiental, como decorre dos respetivos preâmbulos e normativos.

 O artigo 10.º da Portaria n.º 355/2019, de 22 de maio, dispõe que:

“1 - Considerando a fragilidade dos ecossistemas insulares e atendendo às condições específicas do arquipélago, o número de indivíduos autorizado na área terrestre da reserva natural das Berlengas fica condicionado à respectiva capacidade de carga humana, conforme estabelecido em portaria do membro do Governo responsável pela área do ambiente.

2 - A capacidade de carga referida no número anterior inclui diversas categorias de utilizadores da ilha da Berlenga, designadamente: a) Visitantes que não pernoitam na ilha da Berlenga; b) Visitantes autorizados a pernoitar na ilha da Berlenga; c) Residentes sazonais habituais; d) Prestadores de serviços devidamente acreditados; e) Representantes das entidades oficiais com jurisdição na reserva natural das Berlengas.

 3 - A capacidade de carga humana estabelecida nos termos do n.º 1 considera obrigatoriamente a sensibilidade das espécies e dos habitats naturais presentes no arquipélago, a dimensão da sua área terrestre, as condicionantes de segurança, decorrentes, nomeadamente, da constituição geológica, e os serviços de apoio em funcionamento na ilha da Berlenga, consoante se trate de «época alta» ou de «época baixa».

 4 - O disposto nos números anteriores não se aplica aos agentes da autoridade, no âmbito de intervenções relativas à segurança pública.

5 - O ICNB, I. P., deve estabelecer, no prazo máximo de seis meses, os procedimentos necessários ao cumprimento das disposições legais aplicáveis ao controle da respectiva capacidade de carga humana, implementando mecanismos que permitam verificar o número diário de pessoas presentes na área da reserva natural das Berlengas, designadamente as que pernoitam na ilha da Berlenga, as que visitam a sua parte terrestre, bem como as associadas às actividades que se desenvolvem na área marinha do arquipélago”.

No âmbito deste quadro normativo, o Diretor Regional de Conservação da Natureza e Florestas de Lisboa e Vale do Tejo emitiu o Ofício-Circular n.º 22249/2020/DR-LVT/DRCNB/DACCAP, de 05/06/2020, com o teor constante do ponto 1. da matéria de facto provada e que aqui se dá por integralmente reproduzido, o qual foi devidamente comunicado à sociedade arguida e aos demais operadores marítimo-turísticos autorizados a trabalhar na Reserva Natural das Berlengas, por correio eletrónico, pelo que a infração aos mandados e comandos nele ínsitos integra a categoria de contraordenações ambientais, reguladas pela LQCA e, subsidiariamente, pelo RGCO. Neste sentido, dispõe o artigo 25.º, n.º 1, da LQCOA, que “[c]onstitui contraordenação leve o incumprimento de ordens ou mandados legítimos da autoridade administrativa, transmitidos por escrito aos seus destinatários, quando à mesma conduta não seja aplicável sanção mais grave.” Atento o acima exposto, conjugado com o artigo 22.º, n.º 2, alínea b), da LQCA, as duas infrações em apreço são sancionáveis como contraordenações leves e puníveis, no que respeita às pessoas coletivas, com coimas de € 2.000,00 a € 18.000,00, em caso de negligência, e de € 6.000,00 a € 36.000,00, em caso de dolo.


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 O artigo 8.º, n.º 1, do RGCOC, preceito idêntico ao artigo 13.º, n.º 1, do Código Penal estabelece o princípio nulla poena sine culpa, prescrevendo que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência. Já o artigo 9.º da LQCOA determina que as contraordenações são puníveis a título de dolo ou de negligência, e que, a negligência nas contraordenações ambientais é sempre punível.

Nesta conformidade, o arguido só pode ser responsabilizado pela prática de uma infração ambiental se tiver atuado com dolo ou com negligência, sob pena de ter atuado sem culpa, e, nesse caso, não haver lugar a responsabilidade contraordenacional. Pelo que, a imputação dos factos ilícitos contraordenacionais exige um nexo de imputação subjetiva, nas modalidades de dolo ou negligência. O dolo é definido como conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo e subjetivo, ou seja, de um lado com conhecimento e representação dos elementos que integram o facto ilícito (elemento intelectual) indispensáveis para que a sua consciência ética se colocasse e decidisse perante a ilicitude e, por outro lado, com o propósito direto ou indireto de o realizar (elemento volitivo).


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Efetuando o enquadramento jurídico dos factos que em concreto importará apreciar, cuidemos ora de aferir da responsabilidade contraordenacional da arguida.

Na situação sub judice, do conjunto dos factos provados, resulta que no dia 2020/07/23, cerca das 17h45m, um funcionário/prestador de serviços da sociedade arguida saiu da escadaria que leva ao Forte de São João Batista com um grupo com 17 pessoas que o seguiram em direção ao Farol Duque de Bragança, onde pararam para ouvir as suas explicações. Mais se provou que no dia 2020/09/26, cerca das 16h20m, um funcionário/prestador de serviços da arguida conduziu um grupo de 12 pessoas entre o Farol Duque de Bragança e o início das escadas de acesso ao Forte de São João Batista, na Ilha da Berlenga. Não obstante conhecerem previamente o teor do Ofício-Circular n.º 22249/2020/DR-LVT/DRCNB/DACCAP, de 05/06/2020, do Diretor Regional de Conservação da Natureza e Florestas de Lisboa e Vale do Tejo, que estabelecia entre outras ordens/obrigações, a limitação do número de 10 pessoas e um guia por cada grupo organizado nos caminhos e trilhos da ilha da Berlenga, entre 15 de junho e 30 de setembro de 2020, comunicado à referida sociedade e aos demais operadores turísticos que nela operam.

Mais se deu como provado que ao atuar da forma descrita supra, a sociedade arguida, por via dos seus funcionários/prestadores de serviços ou responsáveis, atuou de forma livre, voluntária e consciente, com a intenção, concretizada, de conduzirem grupos com mais de 10 pessoas, não obstante o conhecimento prévio da mencionada limitação.

Encontram-se, pois, preenchidos os elementos objetivo e subjetivo das contraordenações por que vem a sociedade arguida condenada administrativamente, improcedendo totalmente o recurso.


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Por fim, importa apreciar a invocada violação do princípio da legalidade e de reserva de lei.

Como ensinam Gomes Canotilho/Vital Moreira 4 [4 Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4.ª Ed. revista, Coimbra Editora, 2014, p. 494] o princípio da legalidade consagrado no artigo 29.º da Constituição da República Portuguesa analisa-se em diferentes aspetos específicos, sendo um eles a reserva de lei da Assembleia da República em matéria de crimes, penas, medidas de segurança e respetivos pressupostos, apenas podendo o Governo legislar sobre tais matérias mediante autorização daquela (artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da Constituição da República Portuguesa).

A doutrina e a jurisprudência têm sustentado de forma unânime que essa exigência não se aplica imediatamente ao ilícito de mera ordenação social, antes admitindo a nossa Constituição uma inerente flexibilidade quanto às fontes normativas de tais ilícitos, podendo até ter natureza de fontes regulamentares, nada impedindo que quaisquer entidades administrativas competentes determinem o conteúdo de tais ilícitos e respetivas sanções 5[5 António Beça Pereira, Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas – Anotação ao Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro, 12.ª Ed., 2017, Almedina, pp. 33-34].

Foi precisamente neste quadro que surgiu Ofício-Circular, à semelhança dos que o antecederam em anos anteriores e definiu normas específicas a observar entre 15 de junho e 30 de setembro de 2020, limitando e condicionando o acesso àquela área protegida, com vista à preservação dos seus valores naturais, do qual foi dado prévio conhecimento à sociedade arguida e aos demais operadores turísticos autorizados a operar na Ilha da Berlenga, conhecimento esse que, aliás, resultou provado do depoimento do próprio sócio da arguida.

Pelo que, sem necessidade de mais delongas, resta concluir que inexistiu qualquer violação do princípio da legalidade ou reserva de lei na situação sub judice, claudicando também nesta parte a impugnação da arguida.

B – Da medida das coimas e da atenuação especial

Face à subsunção da conduta da arguida às referidas normas legais, a título de dolo necessário, sendo pessoa coletiva, a coima a aplicar pela prática de cada uma das contraordenações leves deve situar-se entre € 6.000,00 a € 36.000,00, (artigo 22.º, n.º 2, alínea b), da LQCOA).

Recorde-se que a arguida/recorrente foi condenada na coima única especialmente atenuada no valor de € 6.000,00, pela prática, a título de dolo necessário, de duas contraordenações ambientais leves, previstas e puníveis pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 2, alínea b), 23.º-A, 23.º-B e 25.º, n.º 1, da Lei Quadro das Contraordenações Ambientais, nas coimas parcelares de € 4.000,00 e € 5.000,00, respetivamente.

Assim, importa aferir da verificação dos requisitos legais de que depende a atenuação especial das coimas, como decidiu a autoridade administrativa.

Neste conspecto, dispõe o artigo 23.º-A da LQCOA, que:

“1 - Para além dos casos expressamente previstos na lei, a autoridade administrativa atenua especialmente a coima, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores à prática da contraordenação, ou contemporâneas dela, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da coima.

2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:

a) Ter havido atos demonstrativos de arrependimento do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados e o cumprimento da norma, ordem ou mandado infringido;

b) Terem decorrido dois anos sobre a prática da contraordenação, mantendo o agente boa conduta.

3 - Só pode ser atendida uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo”.

Acrescentando o artigo 23.º-B do mesmo diploma que, sempre que houver lugar à atenuação especial da coima, os limites mínimos e máximos da cima são reduzidos a metade.

As circunstâncias de facto atenuantes não se encontram taxativamente fixadas na lei, constituindo as elencadas no n.º 2 do preceito legal transcrito mera exemplificação dos critérios que hão de ser seguidos pelo Tribunal no sentido de encontrar elementos de facto que, pela sua relevância positiva contida na atuação da arguida, hajam de fazer supor ao Tribunal um desagravamento da ilicitude na prática do facto, da culpa desta ou da necessidade da coima.

Debruçando-nos sobre a matéria de facto provada, resulta que a factualidade imputada à arguida ocorreu em 2020/07/23 e 2020/09/26, isto é, há mais de quatro anos, sem que sejam conhecidas condutas anteriores ou posteriores por parte da arguida suscetíveis de constituir contraordenações.

Atento o exposto, entende o Tribunal que estão verificados os pressupostos legais de que depende a atenuação especial das coimas.


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Importa notar que, estando em apreciação a prática de duas contraordenações de natureza ambiental, o Tribunal não se encontra adstrito à proibição da reformatio in pejus, conforme resulta do disposto no artigo 75.º da LQCOA, o qual se distancia do artigo 72.º-A do RGCOC, querendo isto dizer que o Tribunal não se encontra limitado ao montante das coimas aplicadas pela autoridade administrativa na decisão recorrida.

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Atenta a moldura a considerar em face da atenuação especial das coimas (entre € 3.000,00 e € 18.000,00), importa agora determinar as coimas concretas a aplicar.

O artigo 20.º da LQCOA estatui que:

“1 - A determinação da coima e das sanções acessórias faz-se em função da gravidade da contraordenação, da culpa do agente, da sua situação económica e dos benefícios obtidos com a prática do facto.

2 - Na determinação da sanção aplicável são ainda tomadas em conta a conduta anterior e posterior do agente e as exigências de prevenção”.

Importa, assim, atentar à gravidade das contraordenações em apreço (ambas classificadas como leves), à situação económica da arguida que se mostra favorável e ao benefício económico que retirou da prática das infrações, que não se mostra muito relevantes (correspondente ao preço dos bilhetes que cobrou aos turistas, seus clientes, para além do limite de 10 pessoas fixado).

 Face ao exposto, perante a factualidade apurada e as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir neste caso, os direitos e interesses violados a proteger (o bem jurídico ambiente de feição coletiva que abrange outros bens de natureza individual, como sejam a vida e a integridade física), considera o Tribunal como proporcional, justa e adequada a fixação à arguida das seguintes coimas parcelares:

- € 4.000,00 pela prática, a título de dolo necessário, de uma contraordenação ambiental leve, prevista e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 2, alínea b), 23.º-A, 23.º-B e 25.º, n.º 1, da LQCOA, em 2020/07/23;

- € 5.000,00 pela prática, a título de dolo necessário, de uma contraordenação ambiental leve, prevista e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 2, alínea b), 23.º-A, 23.º-B e 25.º, n.º 1, da LQCOA, em 2020/09/26;


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Dispõe o artigo 27.º da LQCOA, sob a epígrafe “concurso de contraordenações” que:

 “1 - Quem tiver praticado várias contraordenações é punido com uma coima cujo limite máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infrações em concurso.

 2 - A coima a aplicar não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contraordenações em concurso.

3 - A coima a aplicar não pode ser inferior à mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contraordenações.” Assim, a moldura abstratamente aplicável ao concurso de contraordenações em apreço terá como limite mínimo € 5.000,00 e máximo € 9.000,00.

 Em face de tudo quanto se expôs supra, entende o Tribunal que, dado o grau de ilicitude das contraordenações praticadas (leve), o dolo (necessário) com que atuou, o benefício económico das mesmas para a arguida, consubstanciado no facto de fazer integrar no grupo de turísticas um número superior ao permitido, cobrando pelos mesmos o valor dos serviços por si oferecido, e a sua situação económica favorável, é de fixar a coima única no valor de € 6.500,00.


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IV - Da nulidade da sentença recorrida

Invoca o recorrente a nulidade da sentença proferida por entender que esta não fundamentou porque razão deu como provados os pontos 4, 5, 7 e 8 dos factos provados, invocando o disposto no art. 379º, nº 1 al. a) e 374º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal, aplicáveis ex vi art. 41º do RGCO.

Invoca ainda a nulidade da sentença por carecer de fundamentação quanto ao agravamento da coima única fixada, desta feita não invocando qualquer normativo legal.

Nos termos do artº 374º, nº2 do Código de Processo Penal a sentença começa por um relatório, ao qual se segue a fundamentação «...que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.».

Por seu turno, o artº 379º do Código de Processo Penal preceitua, no seu nº1, al. a) que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no nº2 e na alínea b) do nº3 do artigo 374º Código de Processo Penal.

A fundamentação, compõe-se, assim, de três partes distintas:

- a enumeração dos factos provados e não provados;

- a exposição dos motivos que fundamentam a decisão;

- a indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

Quanto à exposição dos motivos que fundamentam a decisão, são eles de facto e de direito. Os motivos de facto "…que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum), nem os meios de prova (thema probandum), mas os elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência" [cf. Acórdão do TC nº 680/98, proferido no processo nº 456/95 e publicado no DR II série  de 05.03.99]

O rigor e a suficiência do exame crítico haverão de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo imprescindível, mas do mesmo modo bastante, que sejam percetíveis as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte.

Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respetivo conteúdo.

O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pelo ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção [cfr. acórdão do STJ de 30.01.2002, proc. 3063/01, in www.dgsi.pt. No mesmo sentido os acórdãos do STJ de 3.10.2007, proc. 07P1779; de 19.05.2010, proc. 459/05.0GAFLG.G1.S1, de 17.09.2014, proc. 1015/07.3PULSB.L4.S1; de 14.12.2016, proc. 303/14.7JELSB.E1.S1; de 13.12.2018, proc. 308/10.7JELSB-L3.S1 e de 11.07.2019, proc. 22/13.1PFVIS.C1.S1, todos disponíveis in www.dgsi.pt].

Desde que a motivação explique o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respetivo conteúdo, inexiste falta ou insuficiência de fundamentação para a decisão.

Como se refere no Acórdão do TRL de 08-01-2020 [processo 133/17.4PGSXL.L1-3, disponível in www.dgsi.pt]: “O rigor e a suficiência do exame crítico têm de ser aferidos por critérios de razoabilidade, sendo fundamental, mas bastante, que permita exteriorizar as razões da decisão e o processo lógico, racional e intelectual que lhe serviu de suporte e desde que  torne percetível e sindicável, em instância de recurso, as razões da convicção do Tribunal do julgamento, quanto aos factos, não se verificará a nulidade emergente da falta de exame crítico das provas  (acórdãos do Supremo Tribunal de 17 de Março de 2004, proc. 4026/03 e Ac. do STJ de 3.10.2007, processo 07P1779, Ac. da Relação de Lisboa de 10.07.2018, processo nº 106/15.1PFLRS.L1-5 in http://www.dgsi.pt; Ac. da Relação de Évora de 07.03.2017, Processo 246/10 Jus Net 1781/2017 Marques Ferreira (in "Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal", Livraria Almedina, 1988, pág. 228) Sérgio Poças, Da sentença penal – Fundamentação de facto, Revista “Julgar”, n.º 3, p. 21 e segs.)”.

Ora, a sentença recorrida começou por conhecer da nulidade invocada, enumerou os factos provados, indicou os meios de prova e as provas que considerou para a formação da sua convicção, analisou-as, correlacionou-as e valorou-as e, por fim, indicou o caminho que seguiu na formação da convicção, permitindo-nos acompanhar esse raciocínio e chegar aos factos provados.

Como é sabido, entre nós vigora o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º do Código de Processo Penal, segundo o qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Significa isto, por um lado, que na apreciação e valoração da prova, o juiz não deve obediência a quaisquer cânones legalmente preestabelecidos, dispondo do poder-dever de alcançar a prova dos factos e de valorá-la livremente (vertente negativa daquele princípio). Por outro lado, significa que os factos são ou não dados como provados de acordo com a íntima convicção que o juiz gerar em face do material probatório validamente constante do processo (lado positivo do mesmo princípio).

Todavia, conforme refere Germano Marques da Silva [ Direito Processual Penal, vol. II, pág. 111.], “a livre valoração da prova não deve ser entendida como uma operação puramente subjetiva pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas a valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objetivar a apreciação, requisito necessário para uma efetiva motivação da decisão”.

O sistema da prova livre não se abre, por assim dizer, ao arbítrio, ao subjetivismo ou à emotividade. Antes exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça [Cfr. o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 464/97, publicado no DR, II Série, de 12-01-1998].

Ora, da fundamentação expressa na sentença recorrida decorre que o tribunal a quo  efetuou o cruzamento dos depoimentos prestados em julgamento com os documentos juntos aos autos, identificando-os devidamente e mencionando que efetuou a sua análise à luz das regras da experiência comum.

Na sentença concretizou-se, depois, a fundamentação relativa aos pontos 1, 2 e 3 6 da matéria de facto invocando os pertinentes depoimentos e documentos e explicando porque razão se atribuiu credibilidade aos depoimentos prestados por …, à data vigilantes da natureza, a desempenhar funções na Reserva Natural das Berlengas, ressaltando-se desta fundamentação que estes tiveram conhecimento direto dos factos e que efetuaram o acompanhamento da situação, ali se fazendo menção ao respetivos autos de notícia e fotografias anexas.

Por seu turno, resulta também da fundamentação da matéria de facto o pouco relevo que foi atribuído ao depoimento das testemunhas … (marinheiro e guia turístico nas expedições às Berlengas por conta da sociedade arguida há 6 anos) e de … sócio e funcionário da sociedade arguida, desempenhando funções de marítimo, por estes não possuírem conhecimento direto dos factos.

E no que concerne ao representante legal da empresa …, foi explicado em que medida se entendeu que, em parte, as suas declarações corroboraram os depoimentos das testemunhas Vigilante das Natureza, nomeadamente, por este ter reconhecido a roupa que os funcionários da empresa utilizam, que lhes é fornecida pela empresa aquando da sua contratação (embora tenham disponível para venda essa roupa aos clientes de várias cores).

Concluindo-se ali: “Daí que ao Tribunal não restem dúvidas de que os vigilantes da natureza que levantaram os autos de notícia identificaram os guias dos referidos grupos turísticos pelo respetivo uniforme, tendo ainda detalhando que eram normalmente os mesmos rostos que ali viam no desempenho de tais funções, não obstante não conhecerem a sua identificação e não tendo solicitado a mesma, em face de reações adversas anteriores em face de tais pedidos e segundo indicações superiores.”

E em concreto quanto aos pontos 4, 5, 7 e 8 – que dizem respeito ao elemento subjetivo das infrações em causa – o tribunal a quo exarou o seguinte: “Os pontos 4., 5. e 7. e 8.. da matéria de facto provada advêm dos factos objetivamente dados como provados sob os pontos 1. a 3. e 6. da matéria de facto provada, conjugada com as regras da experiência comum, tendo destes resultando que os responsáveis da arguida/ funcionários/ prestadores de serviços, na posição de indivíduos com uma atualização axiológica mediana perante a comunidade em que se inserem, conheciam necessariamente a ilicitude da sua conduta, e que atuaram de forma livre, voluntária e consciente, querendo praticar tais factos”.

Em suma, o Tribunal a quo ao longo da motivação da matéria de facto, explica, de forma racional e lógica, os motivos pelos quais deu como provados os factos ali vertidos, valorizando alguns depoimentos em detrimento de outros - pelas razões que elencou -, não deixando de tecer considerações acerca dos elementos documentais e dos depoimentos prestados pelas testemunhas de defesa, bem como das declarações do representante legal da sociedade arguida, explicando  ainda, quanto a estes concretos pontos da matéria de facto, que foi a partir  dos factos objetivos apurados,  nomeadamente da dinâmica dos eventos e em face dos padrões de normalidade e das regras da experiência comum, que concluiu pela forma expressa nos mesmos.

Isto é, o tribunal deixou claro o percurso lógico racional que expendeu na análise que fez dos depoimentos e declarações e restante prova produzida e analisada, sendo a fundamentação da matéria de facto clara e percetível. E, a questão da concreta identificação dos guias para efeitos de responsabilização da arguida, trata-se de uma questão de Direito, também invocada pela recorrente, na peça recursiva apresentada.

O que a recorrente não concorda é com a valoração da prova que o tribunal a quo efetuou mas, essa discordância, ainda que legítima não se traduz por si só, e atento o já exposto, em falta de fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, o que, no caso dos autos não aconteceu.

No que concerne à coima única aplicada o tribunal exarou expressamente na respetiva fundamentação de direito entre o mais, o seguinte: “Dispõe o artigo 27.º da LQCOA, sob a epígrafe “concurso de contraordenações” que:

 “1 - Quem tiver praticado várias contraordenações é punido com uma coima cujo limite máximo resulta da soma das coimas concretamente aplicadas às infrações em concurso.

 2 - A coima a aplicar não pode exceder o dobro do limite máximo mais elevado das contraordenações em concurso.

3 - A coima a aplicar não pode ser inferior à mais elevada das coimas concretamente aplicadas às várias contraordenações.” Assim, a moldura abstratamente aplicável ao concurso de contraordenações em apreço terá como limite mínimo € 5.000,00 e máximo € 9.000,00.

 Em face de tudo quanto se expôs supra, entende o Tribunal que, dado o grau de ilicitude das contraordenações praticadas (leve), o dolo (necessário) com que atuou, o benefício económico das mesmas para a arguida, consubstanciado no facto de fazer integrar no grupo de turísticas um número superior ao permitido, cobrando pelos mesmos o valor dos serviços por si oferecido, e a sua situação económica favorável, é de fixar a coima única no valor de € 6.500,00”.

Deste modo, verificamos que o tribunal, fazendo apelo ao respetivo normativo legal e aludindo a fatores relevantes como sejam o grau de ilicitude o dolo, o benefício económico obtido (que concretizou) e à situação económica da arguida, fundamentou a aplicação da coima única de 6.500,00€, verificando-se, mais uma vez, que a discordância da recorrente se prende com a concreta coima única encontrada, o que não consubstancia a invocada nulidade por falta de fundamentação.

Não se verificam, pois, as invocadas nulidades.

Como deixamos já acima expresso, de acordo com o disposto no art. 75º do Regime Geral das Contraordenações - DL 433/82 de 27.10 (de ora em diante RGCO), a 2ª Instância apenas conhece matéria de direito, estando, por isso limitada às questões que nessa matéria sejam suscitadas nos termos do disposto no art. 73º do RGCO, sem prejuízo do conhecimento dos vícios previstos no art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal.

Ora, analisado o texto da decisão recorrida não se constata a existência de qualquer um destes vícios pois, não só a matéria de facto provada é suficiente para fundamentar a decisão de direito a que se chegou (uma das soluções plausíveis de Direito) mas também porque não decorre da sentença recorrida que o tribunal a quo tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão.

Na verdade, o  Tribunal recorrido não omitiu qualquer pronúncia sobre a matéria de facto objeto do processo, nem omitiu o apuramento de factos que podia e devia investigar.

 Nenhuma contradição se verifica entre os factos provados ou entre estes e a fundamentação efetuada na sentença.

Também não se vislumbra uma falha grosseira na análise da prova já que não resulta da simples discordância quanto à valoração da prova produzida levada a efeito pelo tribunal, mas antes tem de resultar de uma falta evidente de lógica entre os factos provados ou não provados, ou da decisão ressaltar uma apreciação evidentemente ilógica ou arbitrária que não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio.


*
V - Da inconstitucionalidade por violação do principio de reserva de Lei e do principio da proporcionalidade

Alega a recorrente que foi condenada por uma contraordenação cuja infração e coima se encontram definidas por um Ofício  Circular o que constitui violação do princípio de reserva de lei estabelecido no art. 29º da Constituição da República Portuguesa sob pena de atentos os montante das coimas em causa se comprometer o princípio da proporcionalidade, dada a gravidade da coima ali fixada.

Dispõe o art. 29º nº 1  da Constituição da República Portuguesa que:

 “1. Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos pressupostos não estejam fixados em lei anterior.

Em sintonia estabelece o art. 165º da Constituição da República Portuguesa:

“ 1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes matérias, salvo autorização ao Governo:

a) Estado e capacidade das pessoas;

b) Direitos, liberdades e garantias;

c) Definição dos crimes, penas, medidas de segurança e respectivos pressupostos, bem como processo criminal;

d) Regime geral de punição das infracções disciplinares, bem como dos actos ilícitos de mera ordenação social e do respectivo processo;” (sublinhado nosso).

O Tribunal constitucional vem-se pronunciando em diversos arestos acerca da dimensão da extensão dos princípios da legalidade e tipicidade ao âmbito contraordenacional.

Neste conspecto, salienta-se no Acórdão nº 201/2014 (disponível in tribunalconstitucional.pt) o seguinte: “É rica a jurisprudência deste Tribunal sobre a extensão dos princípios da legalidade e da tipicidade ao domínio contraordenacional.

No acórdão n.º 574/95 (disponível em www.tribunalconstitucional), escreveu-se que “[…] o princípio da legalidade das sanções, o princípio da culpa e, bem assim, o princípio da proibição de sanções de duração ilimitada ou indefinida valem, na sua ideia essencial, para todo o direito público sancionatório, maxime, para o domínio do direito de mera ordenação social. (Quanto à extensão aos demais domínios sancionatórios de alguns princípios que a Constituição apenas consagra para as leis penais, cf., entre outros, o acórdão nº 227/92, já citado, e a Doutrina aí indicada)”.

Mais recentemente, no acórdão n.º 466/12 (disponível em www.tribunalconstitucional), disse-se que “[n]ão se pode afirmar que as exigências de tipicidade valham no direito de mera ordenação social com o mesmo rigor que no direito criminal. Aliás nem sequer existe no artigo 29.º da Constituição, que se refere às garantias substantivas do direito criminal, um preceito semelhante àquele que existe no artigo 32.º, a respeito das garantias processuais, alargando-as, com as necessárias adaptações, a todos os outros processos sancionatórios (artigo 32.º, n.º 10)”. (negrito e sublinhado nosso)

Esse aresto inspirou-se, por sua vez, no acórdão n.º 41/2004 (disponível em www.tribunalconstitucional), o qual, no que se refere à exigência de determinação relativamente ao conteúdo do ilícito típico nas contraordenações, havia sustentado que “[…]a Constituição não requer para o ilícito de mera ordenação social o mesmo grau de exigência que requer para os crimes”, embora também houvesse considerado que “[e]stá, porém, consolidado no pensamento constitucional que o direito sancionatório público, enquanto restrição relevante de direitos fundamentais, participa do essencial das garantias consagradas explicitamente para o direito penal, isto é, do núcleo de garantias relativas à segurança, certeza, confiança e previsibilidade dos cidadãos (cf. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 158/92, de 23 de abril, 263/94, de 23 de março, publicados no D.R., II Série, de 2 de setembro de 1992 e de 19 de julho de 1994, e nº 269/2003, de 27 de maio, inédito). E se tal não resulta diretamente dos preceitos da chamada Constituição Penal, resultará, certamente, do princípio do Estado de Direito consagrado no artigo 2º da Constituição”. (negrito e sublinhado nosso).

Desenvolvendo essa ideia, o Tribunal, no já referido acórdão n.º 466/12, afirmou que “[a] determinabilidade do conteúdo de proibições cujo desrespeito é sancionado com uma coima é um pressuposto da existência de uma relação equilibrada entre Estado e cidadão. Na verdade, essa exigência é um fator de garantia da proteção da confiança e da segurança jurídica, uma vez que o cidadão só pode conformar autonomamente as suas condutas se souber qual a margem de ação que lhe é permitida e quais as reações do Estado aos seus comportamentos. E se a menor danosidade da sanção das contraordenações (as coimas), que nunca afetam o direito à liberdade, conjuntamente com a necessidade de prosseguir finalidades próprias da ordenação da vida social e económica, as quais são menos estáveis e dependem, muitas vezes, de políticas sectoriais concretas, permitem uma aplicação mais aberta e maleável do princípio da tipicidade, comparativamente ao universo penal, o caráter sancionatório e a especial natureza do ilícito contraordenacional não deixam de exigir um mínimo de determinabilidade do conteúdo dos seus ilícitos. Uma vez que nas contraordenações a proibição legal assume especial importância na valoração como ilícitas de condutas de ténue relevância axiológica, a sua formulação tem que necessariamente constituir uma comunicação segura ex‑ante do conteúdo da proibição aos seus destinatários”.

Importa, por último referir, como exemplo daquilo que é a concretização prática dessa construção jurisprudencial, o acórdão n.º 85/2012 (disponível em www.tribunalconstitucional), em que o Tribunal fez depender a conformidade da norma aí em apreciação com as “exigências mínimas de determinabilidade no ilícito contraordenacional” de “[ser] possível aos destinatários saber quais são as condutas proibidas, como ainda antecipar, com segurança, a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito”, tendo ainda precisado ser “[…] nisto que consiste a necessária determinabilidade dos tipos contraordenacionais. Importa relembrar, com efeito, que da jurisprudência do Tribunal resulta que o estabelecimento de limites alargados das sanções, no domínio contraordenacional, não consubstancia em si uma violação de princípios constitucionais, devendo avaliar-se se a lei estabelece outros mecanismos que concorrem para a segurança jurídica”.

Em síntese, retira-se da jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a extensão dos princípios da legalidade e da tipicidade ao domínio contraordenacional que (i) embora tais princípios não valham “com o mesmo rigor” ou “com o mesmo grau de exigência” para o ilícito de mera ordenação social, eles valem “na sua ideia essencial”; (ii) aquilo em que consiste a sua ideia essencial outra coisa não é do que a garantia de proteção da confiança e da segurança jurídica que se extrai, desde logo, do princípio do Estado de direito; (iii) assim, a Constituição impõe “exigências mínimas de determinabilidade no ilícito contraordenacional” que só se cumprem se do regime legal for possível aos destinatários saber quais são as condutas proibidas como ainda antecipar com segurança a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito”. (negrito e sublinhado nosso).

Na questão que apreciamos, importa ainda ter em atenção os seguintes dispositivos da LQCA:

O art. 1ºdesta lei dispõe que:

“1 - A presente lei estabelece o regime aplicável às contraordenações ambientais e do ordenamento do território.

2 - Constitui contraordenação ambiental todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de disposições legais e regulamentares relativas ao ambiente que consagrem direitos ou imponham deveres, para o qual se comine uma coima.

3 - Para efeitos do número anterior, considera-se como legislação e regulamentação ambiental toda a que diga respeito às componentes ambientais naturais e humanas, tal como enumeradas na Lei de Bases do Ambiente.”

O art. 25º, nº 1 estabelece o seguinte: “Constitui contraordenação leve o incumprimento de ordens ou mandados legítimos da autoridade administrativa, transmitidos por escrito aos seus destinatários, quando à mesma conduta não seja aplicável sanção mais grave.”

Por seu turno o art. 22º da mesma Lei Quadro sob a epígrafe “Montantes das Coimas” dispõe o seguinte:

“1 - A cada escalão classificativo de gravidade das contraordenações corresponde uma coima variável consoante seja aplicada a uma pessoa singular ou coletiva e em função do grau de culpa, salvo o disposto no artigo seguinte.

2 - Às contraordenações leves correspondem as seguintes coimas:

a) Se praticadas por pessoas singulares, de (euro) 200 a (euro) 2 000 em caso de negligência e de (euro) 400 a (euro) 4 000 em caso de dolo;

b) Se praticadas por pessoas coletivas, de (euro) 2 000 a (euro) 18 000 em caso de negligência e de (euro) 6 000 a (euro) 36 000 em caso de dolo.

3 - Às contraordenações graves correspondem as seguintes coimas:

a) Se praticadas por pessoas singulares, de (euro) 2 000 a (euro) 20 000 em caso de negligência e de (euro) 4 000 a (euro) 40 000 em caso de dolo;

b) Se praticadas por pessoas coletivas, de (euro) 12 000 a (euro) 72 000 em caso de negligência e de (euro) 36 000 a (euro) 216 000 em caso de dolo.

4 - Às contraordenações muito graves correspondem as seguintes coimas:

a) Se praticadas por pessoas singulares, de (euro) 10 000 a (euro) 100 000 em caso de negligência e de (euro) 20 000 a (euro) 200 000 em caso de dolo;

b) Se praticadas por pessoas coletivas, de (euro) 24 000 a (euro) 144 000 em caso de negligência e de (euro) 240 000 a (euro) 5 000 000 em caso de dolo.”       

Nesta matéria importa ainda ter em conta o Regulamento do Plano de Ordenamento da Reserva Natural das Berlengas, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros nº 180/2008 de 24 de novembro (Diário da República nº 228/2008 Série I, de 24.11.2008).

O art. 10º do dito Regulamento do Plano de Ordenamento da Reserva Natural das Berlengas, sob a epígrafe “Controle da capacidade de carga humana” dispõe:

“1 - Considerando a fragilidade dos ecossistemas insulares e atendendo às condições específicas do arquipélago, o número de indivíduos autorizado na área terrestre da reserva natural das Berlengas fica condicionado à respectiva capacidade de carga humana, conforme estabelecido em portaria do membro do Governo responsável pela área do ambiente.

2 - A capacidade de carga referida no número anterior inclui diversas categorias de utilizadores da ilha da Berlenga, designadamente:

a) Visitantes que não pernoitam na ilha da Berlenga;

b) Visitantes autorizados a pernoitar na ilha da Berlenga;

c) Residentes sazonais habituais;

d) Prestadores de serviços devidamente acreditados;

e) Representantes das entidades oficiais com jurisdição na reserva natural das Berlengas.

3 - A capacidade de carga humana estabelecida nos termos do n.º 1 considera obrigatoriamente a sensibilidade das espécies e dos habitats naturais presentes no arquipélago, a dimensão da sua área terrestre, as condicionantes de segurança, decorrentes, nomeadamente, da constituição geológica, e os serviços de apoio em funcionamento na ilha da Berlenga, consoante se trate de «época alta» ou de «época baixa».

4 - O disposto nos números anteriores não se aplica aos agentes da autoridade, no âmbito de intervenções relativas à segurança pública.

5 - O ICNB, I. P., deve estabelecer, no prazo máximo de seis meses, os procedimentos necessários ao cumprimento das disposições legais aplicáveis ao controle da respectiva capacidade de carga humana, implementando mecanismos que permitam verificar o número diário de pessoas presentes na área da reserva natural das Berlengas, designadamente as que pernoitam na ilha da Berlenga, as que visitam a sua parte terrestre, bem como as associadas às actividades que se desenvolvem na área marinha do arquipélago.

E nos termos do art. 47º , nº 1 do mesmo Regulamento: 1 - A realização de actividades marítimo-turísticas na área de intervenção do PORNB carece de autorização prévia, nos termos da respectiva legislação de enquadramento, e obedece a normas específicas, determinadas pelas entidades nacionais competentes”.

E, como se refere na decisão recorrida, é neste contexto que surge emitido pelo Diretor Regional de Conservação da Natureza e Florestas de Lisboa e Vale do Tejo o Ofício-Circular n.º 22249/2020/DR-LVT/DRCNB/DACCAP, de 05/06/2020, com o teor constante do ponto 1. da matéria de facto provada e que aqui se dá por integralmente reproduzido, o qual foi devidamente comunicado à sociedade arguida e aos demais operadores marítimo-turísticos autorizados a trabalhar na Reserva Natural das Berlengas, por correio eletrónico.

Ao  INCNF cabe nos termos do art. 4º, nº 1 al. a) do DL nº 43/2019, de 29 de Março, entre o mais: “Desempenhar funções de autoridade nacional para a conservação da natureza e biodiversidade e de autoridade florestal nacional implementando, em particular, a Estratégia Nacional da Conservação da Natureza e da Biodiversidade, a Estratégia Nacional para as Florestas e o Programa de Ação Nacional de Combate à Desertificação e do Plano Nacional de Gestão Integrada de Fogos Rurais, em articulação com entes públicos e privados;”(sublinhado nosso).

Deste modo, considerando estas atribuições e tendo em conta o disposto nos arts. 10º e 47º do mencionado Regulamento do Plano de Ordenamento da Reserva Natural das Berlengas, , verificamos que assiste legitimidade ao INCNF para a emissão do Ofício Circular nos termos em que este foi emitido.

Por outro lado, da Lei nº 50/2006 de 29 de agosto, emitida pela Assembleia da República, e muito concretamente do disposto no seu art. 25º, resulta que o incumprimento de ordens ou mandados legítimos da autoridade administrativa, transmitidos por escrito aos seus destinatários constitui contraordenação leve, e nos termos do disposto no art. 22º da mesma Lei são fixados os limites mínimos e máximos da coima a aplicar.

No caso, o Ofício Circular em causa que estabeleceu o limite de 10 pessoas e um guia para cada atividade de grupo organizada nos caminhos e trilhos da ilha Berlenga pelos operadores turísticos da natureza, foi emitido pelo Diretor Regional de Conservação da Natureza e Florestas de Lisboa e Vale do Tejo, no âmbito das competências do INCNF, de acordo com as atribuições que lhe são acometidas e essa mesma ordem/mandado foi comunicada através de correio eletrónico, isto é por escrito.

Ora, tratando-se de um mandado regularmente emitido, porquanto a coberto do disposto no art. 4º, nº 1 al. a) do DL nº 43/2019, de 29 de Março, e nos arts. 10º e 47º do Plano de Ordenamento da Reserva Natural das Berlengas, e estando a violação desse mandado configurada como contraordenação leve, no art. 25º da LQCA e os respetivos limites mínimo e máximo da coima estabelecidos no art. 22º da mesma Lei, concluímos inexistir qualquer violação do princípio da reserva de Lei, já que a contraordenação foi estabelecida por Lei emitida pela Assembleia da República e nela estão definidos os limites mínimo e máximo da coima a aplicar e que a sua aplicação depende da violação de ordens ou mandados legítimos e comunicados por escrito, assim se cumprindo as pois que estão satisfeitas por esta via as “exigências mínimas de determinabilidade no ilícito contraordenacional”, pois permite aos destinatários saber quais são as condutas proibidas como ainda antecipar com segurança a sanção aplicável ao correspondente comportamento ilícito.

Invoca  ainda a recorrente a violação do princípio da proporcionalidade, previsto no art. 18º, nº 2 da Constituição da República Portuguesa por entender que dada a gravidade das coimas aplicáveis a sua consagração deveria estar sujeita à reserva de lei.

Dispõe o art.º 18º da CRP que:

“1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.

2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.”

Como se salienta no Acórdão n.º 634/93 do Tribunal Constitucional (disponível in www.tribunalconstitucional.pt): "o princípio da proporcionalidade desdobra-se em três subprincípios: princípio da adequação (as medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias devem revelar-se como um meio para a prossecução dos fins visados, com salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos); princípio da exigibilidade (essas medidas restritivas têm de ser exigidas para alcançar os fins em vista, por o legislador não dispor de outros meios menos restritivos para alcançar o mesmo desiderato); princípio da justa medida, ou proporcionalidade em sentido estrito (não poderão adoptar-se medidas excessivas, desproporcionadas para alcançar os fins pretendidos)."»

Como vimos já, o aludido Ofício Circular apenas constitui o mandado legítimo e regularmente comunicado, previsto como condição para a aplicação da contraordenação prevista no art. 25º da LQCA.

O  montante da coima fixada na LQCA, quando a contraordenação leve é praticada por pessoas coletivas, tem um mínimo de (euro) 2 000 a (euro) 18 000 em caso de negligência e de (euro) 6 000 a (euro) 36 000 em caso de dolo.

Está em causa a limitação do numero de pessoa por visita nos trilhos de uma reserva natural.

Ora, nos termos do art. 18º do DL 142/2008 de 24.07: “Entende-se por reserva natural uma área que contenha características ecológicas, geológicas e fisiográficas, ou outro tipo de atributos com valor científico, ecológico ou educativo, e que não se encontre habitada de forma permanente ou significativa.

2 - A classificação de uma reserva natural visa a proteção dos valores naturais existentes, assegurando que as gerações futuras terão oportunidade de desfrutar e compreender o valor das zonas que permaneceram pouco alteradas pela atividade humana durante um prolongado período de tempo, e a adoção de medidas compatíveis com os objetivos da sua classificação, designadamente:

a) A execução das ações necessárias para a manutenção e recuperação das espécies, dos habitats e dos geossítios em estado de conservação favorável;

b) O condicionamento da visitação a um regime que garanta níveis mínimos de perturbação do ambiente natural;

c) A limitação da utilização dos recursos, assegurando a manutenção dos atributos e das qualidades naturais essenciais da área objeto de classificação.”

Por conseguinte, a gravidade da contraordenação tout court depende também do bem, ou interesse, que tutela e do benefício retirado e do resultado ou prejuízo causado pelo agente.

Ora a Reserva Natural das Berlengas criada em 1981 (através do Decreto-Lei n.º 264/81, de 3 de setembro, com as alterações constantes no Decreto-Lei n.º 293/89, de 2 de setembro, e reclassificada pelo Decreto Regulamentar n.º 30/98, de 23 de dezembro) é constituída pelo arquipélago das Berlengas - ilha da Berlenga e recifes circundantes, Ilhéus das Estelas, Farilhões e Forcadas - e uma vasta área marinha adjacente.

E foi considerando as características únicas deste arquipélago que este foi reconhecido internacionalmente como Reserva da Biosfera da UNESCO no ano de 2011.

No reverso, foi também considerando a fragilidade dos seus ecossistemas insulares, que surgiu a necessidade da elaboração do Regulamento do Plano de Ordenamento da Reserva Natural das Berlengas, que determina que o número de pessoas autorizadas na área terrestre da reserva natural, concretamente na ilha da Berlenga, fique condicionado ao estabelecimento da respetiva capacidade de carga humana, que foi definida através da Portaria  nº 355/2019 de 22.05 (Diário da República nº 98/2019, Série II, de 22.05.2019) em 550 pessoas.

Como se salienta no preambulo do DL nº 293/89, de 3 de setembro: “Dado o seu enorme interesse científico, desde há vários anos que as populações vegetais e animais da Reserva Natural da Berlenga têm vindo a ser alvo de intensos estudos cuja relevância é indiscutível, na medida em que as modernas teorias evolutiva e ecológica se baseiam sobretudo em conhecimentos adquiridos no estudo de ecossistemas insulares.

Quanto à reserva marinha da Berlenga, a mesma apresenta também um grande interesse científico pelo facto de as suas particularidades geomorfológicas lhe conferirem características biológicas excepcionais que permitem prever a existência eventual de mecanismos de especiação eficientes, em especial no que respeita a alguns organismos bênticos.

É, pois, fundamental a sua conservação, dado constituir uma zona tampão relativamente à área emersa da reserva, para além de ser também importante para a preservação das colónias de aves marinhas de inestimável valor que povoam o arquipélago das Berlengas, pois que abriga os seus recursos básicos imediatos, que são os povoamentos litorais adjacentes.

Numa área pequena, com o declive de escarpas que caracteriza a ilha da Berlenga, a inexistência de restrições ao distúrbio dos povoamentos intermareais pode levar a uma redução significativa dos efectivos de organismos fixos, cuja recuperação é lenta e difícil, e a consequências nefastas quer para as aves quer para outros organismos que dependem do intermareal.

Está provado que num ecossistema com a fragilidade do que constitui a Reserva Natural da Berlenga são as actividades humanas descontroladas que constituem o principal factor responsável pela sua degradação.”

           

Nessa medida, um dos fundamentos para o estabelecimento de ilícitos contraordenacionais em matéria ambiental é, sem dúvida, a proteção do bem jurídico ambiente e a prevenção de perigos e eventuais danos que possam vir a incidir sobre bens ambientais e em particular aqueles que se enquadram numa Reserva Natural.

Como se salientou no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 574/95 [disponível in www.tribnalconstitucional.pt]: “Quanto ao princípio da proporcionalidade das sanções, tem, antes de mais, que advertir-se que o Tribunal só deve censurar as soluções legislativas que cominem sanções que sejam desnecessárias, inadequadas ou manifesta e claramente excessivas, pois tal o proíbe o artigo 18º, nº 2, da Constituição. Se o Tribunal fosse além disso, estaria a julgar a bondade da própria solução legislativa, invadindo indevidamente a esfera do legislador que, aí, há-de gozar de uma razoável liberdade de conformação (cf., identicamente, os acórdãos nºs 13/95 (Diário da República, II série, de 9 de Fevereiro de 1995) e 83/95 (Diário da República, II série, de 16 de Junho de 1995)), até porque a necessidade que, no tocante às penas criminais é - no dizer de FIGUEIREDO DIAS (Direito Penal II, 1988, policopiado, página 271) - "uma conditio iuris sine qua non de legitimação da pena nos quadros de um Estado de Direito democrático e social", aqui, não faz exigências tão fortes. De facto, no ilícito de mera ordenação social, as sanções não têm a mesma carga de desvalor ético que as penas criminais - para além de que, para a punição, assumem particular relevo razões de pura utilidade e estratégia social”.

No caso em apreço, estão em causa interesses significativos a nível ambiental, de uma Reserva Natural que constitui um “ecossistema frágil e no qual as actividades humanas descontroladas constituem o principal factor responsável pela sua degradação”. Interesses esses que impõem um regime capaz de garantir a sua efetiva defesa.

Deste modo,  considerando os interesses e valores protegidos, temos de concluir que as sanções previstas para as contraordenações em causa, para além de definidas na LQCA são adequadas e proporcionais à natureza dos bens tutelados, à gravidade da infração que se destina a sancionar e à importância dos objetivos visados pelo normativo em causa, ou seja, a proteção e preservação da Reserva Natural das Berlengas, razão pela qual a aplicação, na situação presente dos referidos arts. 22º e 25º da LQCA, não enferma da arguida inconstitucionalidade pois não contende, por qualquer forma, com o princípio da proporcionalidade ou qualquer outro princípio constitucionalmente previsto e protegido.


VI - Da não verificação dos pressuposto da responsabilização da  arguida/recorrente,

Invoca a recorrente que não poderá ser responsabilizada por não ter sido apurada a identidade das pessoas que guiaram os turistas e do concreto vínculo que as ligava à empresa e por não se ter apurado que os agentes que praticaram os atos integrativos das contraordenações imputadas o fizeram atuando com poderes de representação da sociedade e agindo no interesse da sociedade, seguindo as instruções desta, argumentando que um funcionário ou um prestador de serviços não se confunde com o conceito de órgão societário.

A recorrente é uma pessoa coletiva, o que nos remete para o disposto no art. 7º, nº 2 do RGCOC, o qual estabelece que: “As pessoas coletivas ou equiparadas serão responsáveis pelas contra-ordenações praticadas pelos órgãos no exercício das suas funções”.

A questão colocada pela recorrente prende-se com a interpretação do último segmento desta norma, preconizando a recorrente que para haver responsabilização o ato ilícito tem de ter sido cometido por ato de órgão, em representação da pessoa coletiva, e, ainda mais teria tal órgão que ser identificado e bem assim as pessoas físicas que o integram.

Nesta matéria escreve-se com pertinência no Acórdão do TRL de 12.01.2023 [processo nº 741/21.9Y4LSB.L2-9, disponível in www.dgsi.pt]: “É sabido que no regime contraordenacional vários são os modelos de imputação de responsabilidade às pessoas coletivas, a saber: o modelo de imputação orgânica, em que o ato ilícito tem de ser decidido e/ou praticado pelos órgãos da pessoa coletiva; o modelo de imputação representativa, em que o ato ilícito tem de ser decidido e/ou praticado por órgão da pessoa coletiva ou por representantes/mandatários dessa mesma pessoa; e o modelo de imputação funcional, em que o ato ilícito tem de ser  decidido e/ou praticado por órgão da pessoa coletiva ou por representantes/mandatários ou ainda por funcionários, agindo sempre em nome ou por conta da pessoa coletiva, desde que não se demonstre que o agente atuou contra ordens ou instruções da pessoa coletiva ou que atuou no seu próprio interesse.

A letra da lei, concretamente do artigo 7.º, n.º 2, do Regime Geral das Contraordenações, inculca que o legislador terá pretendido consagrar o modelo de imputação orgânica, a que não será alheio o facto de o referido RGCO ter sido criado em 1982. Citando António Beça Pereira (Regime Geral das Contraordenações e Coimas, Almedina, 13ª edição, pág. 49): A redacção um pouco tímida deste nº 2 (do artigo 7º do RGCCO), ao definir a amplitude da responsabilidade das pessoas colectivas, pode explicar-se pelo momento em que o preceito foi escrito (1982), pois nessa altura ainda não era pacífico o entendimento de que estas eram susceptíveis de ser responsabilizadas pela prática de ilícitos consagrados em direito sancionatório público, como é o caso do direito penal ou do direito contra-ordenacional. Aliás, esta norma, à época, foi até inovadora e abriu um caminho por onde hoje o legislador já se movimenta pacificamente.”

As dificuldades práticas deste regime de imputação orgânica e o facto de geraram significativas lacunas de impunibilidade contraordenacional estão na origem de uma corrente jurisprudencial (aliás hoje maioritária) e doutrinal, na esteira do parecer do Conselho Consultivo da PGR n.º 11/2013, que advoga uma interpretação extensiva (apelidada por outros de atualista) do segmento normativo “praticadas pelos seus órgãos no exercício das suas funções”, de modo a incluir, para além dos órgãos, também os representantes - administradores, gerentes, mandatários, outros representantes- e ainda os trabalhadores, desde que atuem em nome da pessoa coletiva, interpretação extensiva que consagra o modelo mais amplo de imputação funcional.

A Jurisprudência tem vindo assim a considerar julgamos que maioritariamente deles sendo exemplo os Acórdão do TRE de 26.01.2021 (processo nº 41/21.4T8ENT.E1) e de 05.03.2024 (processo nº 2597/23.8T8FAR.E1) do TRG de 11.07.2024 (processo nº365/24.8T8BCL.G1) do TRL de 10.11.2020 (processo nº 3868/18.6T8CSC.L1-5) e do TRC de 13.10.2021 (processo nº 3682/2.03T9LRA.C1), de 13.12.2023 (processo nº 705/23.8GRD.C1) e de 20.11.2024 (processo nº 3193/21.0T9LRA.C1) todos disponíveis in www.dgsi.pt.

Também o Tribunal Constitucional designadamente nos acórdãos nº 566/2018, nº 625/2022 e nº 397/2025 (todos disponíveis in www.tribunalconstitucional.pt), mencionando-se neste último: “O caráter estritamente jurídico e imaterial das entidades coletivas necessariamente conduz a que qualquer modelo de imputação de responsabilidade assente na ação (ou omissão) de uma pessoa física. A coroação do princípio da culpa, porém, não respeita a uma especial identidade do autor da ação ou omissão punida, mas à ligação funcional dessa pessoa para com a entidade e à integração da sua ação ou omissão no âmbito da atividade do coletivo, este observado como centro autónomo de interesses e como titular de uma esfera de imputação de direitos e obrigações de fonte jurídica.

Dito de outra forma, o juízo de censura passível de ser aposto a uma pessoa coletiva em consonância com o princípio da culpa não depende da identificação de uma qualquer peculiar individualidade humana para ser conceptualizado, mas antes da associação de uma forma de atividade exterior (positiva ou omissiva), necessariamente protagonizada por uma pessoa física, à estrutura de uma coletividade jurídica (v. g., à sua orgânica estatuária ou à sua particular organização de meios) e, bem assim, à realização do seu interesse coletivo. Será neste plano e de acordo com esta grelha contextual que se denotará uma vontade social autónoma e dissociada do substrato pessoal que compõe a pessoa coletiva ou a sua estrutura de meios. Serve por dizer, nestas condições arvora-se um centro de imputação subjetivo que transaciona com o mundo exterior e que pode incorrer na violação de premissas ético-jurídicas ou de deveres de observância de normas administrativas de forma censurável, caracterizando o comportamento ilícito e culposo que será, a esse título, punível.

Por outro lado, à pessoa coletiva serão asseguradas garantias de defesa adequadas desde que a conduta típica de dada infração lhe seja imputada de acordo com este modelo, oferecendo-se a inerente possibilidade de contraditação e prova de acordo com o quadro geral de processo. Isto significa que, ao menos em princípio, será espúrio identificar a pessoa física que, de entre um leque mais ou menos vasto de indivíduos com poderes de representação da pessoa coletiva e capacitados para movimentar a sua esfera jurídica, atuou exteriorizando a vontade social a quem se dirige o juízo de censura (é dizer, de culpa): se dos factos resulta que uma pessoa agiu pela fórmula que suporta o modelo de imputação de responsabilidade sancionatória à pessoa coletiva, é absolutamente indiferente afirmar que se tratou de um, ou de outro, indivíduo, já que em qualquer caso está já demonstrada uma forma de prática da infração imputável à pessoa coletiva enquanto sujeito jurídico passível de responsabilidade.”

Entendemos, também nós que deverá ser feita a dita interpretação atualista do normativo do art, 7º, nº 2 do RGCOC, no sentido de que a expressão «órgão no exercício das funções» inclui também os trabalhadores, os meros agentes e auxiliares, desde que ao serviço da pessoa coletiva e no exercício das suas funções ou por causa delas, exceto quando atuem contra ordens expressas ou em seu interesse exclusivo.

Ou como assertivamente se escreve no Acórdão deste TRC de 20.11.2024 [processo nº 3193/21.0T9LRA.C1 disponível in www.dgsi.pt]: Para responsabilizar a pessoa coletiva é suficiente que a conduta seja praticada ou determinada em seu nome por órgão juridicamente vinculante da vontade coletiva, sendo irrelevante a circunstância de não se ter identificado o nome do titular do órgão ou representante a quem seja atribuída pessoalmente a conduta da pessoa coletiva.

A imputação da infração à pessoa coletiva resulta de se considerar autor desta o sujeito que tiver violado (por ação ou por omissão) a proibição legal ou o dever jurídico cuja violação a lei comina com contraordenação, solução que é coerente com o facto de no Direito contraordenacional a ilicitude não assentar numa censura ético-jurídica mas sim na violação de um dever legal.

De resto, a LQCOA prevê no artigo 8.º a responsabilidade contraordenacional das pessoas coletivas em termos mais amplos do que aqueles que resultam do RGCO, consagrando que o autor da contraordenação é a pessoa coletiva, tornando, por isso, desnecessária a identificação concreta da pessoa singular que atuou.”

Ora, nos autos apurou-se que à sociedade arguida foi comunicado o teor do ofício circular nº 22249/2020/DR-LVT/DRCNB/DACCAP de 06.06.2020, onde entre o mais foi definido que “ cada atividade de grupo organizada nos caminhos e trilhos da ilha da Berlenga pelos operadores de Turismo de Natureza fica limitada ao máximo de 10 pessoa e um guia”.

Apurou-se ainda que Em 2020/07/23, cerca das 17h45m, um Vigilante da Natureza da Reserva Natural das Berlengas verificou que um funcionário/prestador de serviços da sociedade … Lda., saiu da escadaria que leva o Forte S. João Batista com 17 pessoas e aquele grupo seguiu aquele funcionário/prestador de serviços em direção ao farol Duque de Bragança onde parou para ouvir as suas explicações.

Provado ainda que ao assim atuar a arguida, por via dos seus responsáveis, trabalhadores ou prestadores de serviços, atuou de forma livre, voluntária e consciente com a intenção concretizada de conduzir um grupo de mais de 10 pessoas, não obstante saber que a norma específica acima referida proíbe aos operadores turísticos da Ilha da Berlenga, nessa área protegida, a constituição de grupos com mais de 10 pessoas e que a arguida representou a sua atuação como ilícita e o preenchimento do ilícito como consequência necessária da mesma;

Provado também que em 2020/09/26, cerca das 16h20m, os Vigilantes da Natureza da Reserva Natural das Berlengas verificaram que um funcionário/prestador de serviços da arguida …, Lda., conduziu um grupo de 12 pessoas entre o Farol Duque de Bragança e o início das escadas de acesso ao Forte de São João Batista, na Ilha da Berlenga.  Ao atuar da forma descrita supra a arguida, por via dos seus responsáveis, trabalhadores ou prestadores de serviços, atuou de forma livre, voluntária e consciente com a intenção concretizada de conduzir um grupo de mais de 10 pessoas, não obstante saber que a norma específica acima referida proíbe aos operadores turísticos da Ilha da Berlenga, nessa área protegida, a constituição de grupos com mais de 10 pessoas e que a Arguida representou a sua atuação como ilícita e o preenchimento do ilícito como consequência necessária da mesma.

Deste modo, concluímos que a responsabilidade contraordenacional em apreço, sustentando-se numa imputação direta e autónoma, não exige a identificação nem a individualização da pessoa singular executante da ação típica e ilícita e, consequentemente, nada há a censurar à subsunção jurídica efetuada.


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VII – Da inconstitucionalidade da interpretação e aplicação do art. 75º da LQCA

Entende a recorrente que o Tribunal ao fixar a coima única em 6.500,00, não se fundamentou em factos novos, nem justificou a sua discordância violando o seu direito à defesa. Mais defende que esta agravação da coima única levada a cabo pelo Tribunal violou os arts. 13º e 18º da Constituição da República Portuguesa.

O Tribunal a quo sustentando-se no disposto no art. 75º da LQCA, e  convocando para o efeito      o disposto no art. 27º do RGCO e, em concreto, apelando ao “grau de ilicitude das contraordenações praticadas (leve), o dolo (necessário) com que atuou, o benefício económico das mesmas para a arguida, consubstanciado no facto de fazer integrar no grupo de turísticas um número superior ao permitido, cobrando pelos mesmos o valor dos serviços por si oferecido, e a sua situação económica favorável, decidiu agravar em 500,00€ a coima única aplicada pela autoridade administrativa.

Vejamos então:

O legislador no âmbito dos poderes de livre conformação entendeu que estando em causa uma contraordenação ambiental, no respetivo procedimento não deve o Tribunal estar sujeito ao principio da reformatio in pejus.

E, na verdade tomou essa opção não só relativamente às matérias relativas às contraordenações ambientais no art. 75º da LQCA, como também noutras áreas, tais como, no que respeita à impugnação das decisões previstas no n.º 8, do artigo 416.º, do Código de Valores Mobiliários, nas previstas no artigo 230.º, n.º 3, do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, no artigo 88.º, n.º 1 da Lei n.º 19/2012, de 8 de maio (Lei da Concorrência).

Como se salienta no acórdão do TC nº 373/2015 [disponível in tribunalconstitucional.pt -  que apreciando semelhante questão mas por referência ao art. 416º, nº 8 do Códigos dos Valores imobiliários julgou a conformidade com a constituição da interpretação daquela norma no sentido de que pode ser agravada a coima em sede de impugnação judicial  interposta pelo arguido em sua defesa sem correspondente alteração e /ou agravamento dos factos, elementos e circunstâncias da decisão administrativa condenatória]: “Tendo o legislador optado por dar esta configuração ao regime geral da impugnação da decisão da autoridade administrativa em processo de contraordenação, não está impedido de, dentro da margem de livre conformação de que dispõe, e face às amplas possibilidades de defesa e de exercício do contraditório conferidas ao arguido no âmbito deste processo de impugnação, afastar em alguns regimes especiais a proibição da reformatio in pejus em relação à decisão da entidade administrativa, como sucede com o disposto no artigo 416.º, n.º 8, do Código dos Valores Mobiliários, impedindo assim que a decisão administrativa se imponha, no que respeita à sanção aplicada, ao Tribunal.

Com efeito, repete-se, sendo certo que o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado constitucionalmente, pressupõe a garantia da via judiciária, que implica que sejam outorgados ao interessado os meios ou instrumentos processuais adequados para fazer valer em juízo, de forma efetiva, o seu direito, e que uma das dimensões em que se concretiza a garantia da via judiciária é justamente o direito de acesso, sem constrangimentos substanciais, ao órgão jurisdicional para ver dirimido um litígio, a norma sindicada, não cria, em rigor, um qualquer obstáculo ou impedimento ao direito à impugnação judicial, se entendermos como tal a imposição ao recorrente de um qualquer ónus ou necessidade de cumprimento de um determinado requisito que tenha de ser preenchido para que a impugnação seja admitida. Nesse sentido, não se pode dizer que esta norma contenha qualquer restrição de acesso à via jurisdicional.

Por outro lado, é certo, no entanto, que não existindo proibição de reformatio in pejus o recorrente terá de fazer uma ponderação prévia quanto à decisão de interposição da impugnação judicial, face à possibilidade de a decisão impugnada vir a ser modificada em seu desfavor. No entanto, a existência deste risco, tem de ser ponderada em conjugação com o tipo de impugnação em causa, em que, conforme se referiu, o tribunal conhece dela com plena jurisdição, havendo lugar a um novo julgamento da questão.

 Tendo o legislador conformado um meio de impugnação das decisões sancionatórias das autoridades administrativas com estas características, entendeu também, em alguns regimes especiais acima referidos, não ser de limitar ou vincular os poderes do tribunal ao já decidido pela autoridade administrativa sobre a responsabilidade contraordenacional, atendendo, por um lado, aos interesses e bens jurídicos envolvidos neste específico setor, e por outro lado, às especiais qualidades dos intervenientes. Esta não vinculação da instância jurisdicional à decisão administrativa implica também que o tribunal possa formular um juízo autónomo sobre a medida da sanção relativamente à infração objeto do respetivo julgamento, independentemente de se manterem ou não inalterados os elementos de facto e de direito tidos em conta na decisão administrativa.

Perante este quadro processual não há razões para que se considere que o regime em análise consagre um condicionamento excessivo, sendo certo que o recorrente não deixa de ser alertado, como impõe o regime em questão (artigo 416.º, n.º 8, do Código de Valores Mobiliários), para a possibilidade da sanção ser agravada, o que impede que seja surpreendido quanto a essa eventualidade, podendo exercer também a sua defesa quanto aos critérios de determinação concreta da coima, a ser ponderados pelo tribunal, sendo que essa ponderação, ao contrário do que parece referir a Recorrente, não é uma ponderação subjetiva, mas baseada em critérios legalmente previstos, estando sujeita a uma fundamentação lógica e racional, de modo a ser controlável, inclusive em sede de recurso para um tribunal superior.

Além disso, não pode deixar de se ter em consideração, como tem sido apontado por alguma doutrina, que a proibição da reformatio in pejus tem como consequência o aumento do número de recursos interpostos independentemente da gravidade da sanção, podendo comprometer o caráter de simplificação e celeridade do direito de mera ordenação social, tornando os recursos economicamente compensadores sempre que estejam em causa sanções elevadas, por via do diferimento no tempo do respetivo pagamento ou mesmo fazendo protelar o andamento dos autos no sentido de ocorrer a prescrição.

Pode dizer-se que, na tensão entre os valores da tutela da posição jurídica do arguido e o valor da realização da justiça, o legislador tem liberdade para optar por dar maior preponderância a este último, atendendo à especial natureza dos bens jurídicos que visa tutelar e às especiais qualidades dos intervenientes.

Em suma, com a opção do legislador, tomada dentro dos seus poderes de livre conformação, não deixa de estar assegurado para a impugnação das decisões da autoridade administrativa em causa um pleno acesso à via jurisdicional, sendo que, pelo tipo de impugnação prevista, garante-se desse modo também a não vinculação do tribunal à decisão administrativa, conferindo-lhe plena independência no que respeita ao exercício da função jurisdicional, não constituindo a possibilidade de agravamento da sanção pela decisão da impugnação um ónus ou obstáculo que restrinja ou dificulte, de modo arbitrário ou desproporcionado, o acesso à via judiciária por parte do arguido em processo contraordenacional.”

No sentido de que a proibição da reformatio in pejus não faz sentido quando o tribunal decide a impugnação judicial em audiência de julgamento, pode ver-se  Alexandra Vilela in O Direito de Mera Ordenação Social: entre a Ideia de “Recorrência” e a de “Erosão” do Direito Penal Clássico, pág. 485.

Ora, na nossa perspetiva este normativo do art. 75º da LQCA, não deixando de assegurar um pleno acesso à impugnação da autoridade administrativa, não deixa também de se enquadrar numa legítima opção do legislador, dentro dos poderes de conformação que lhe são atribuídos de definir um equilíbrio entre as garantias de defesa do arguido e a proteção dos valores também constitucionalmente garantidos relativos ao ambiente e em concreto aqueles constantes do art. 66º da Constituição da República Portuguesa.

No caso dos autos, a impugnação judicial não deu lugar a um recurso propriamente dito, mas antes a um novo  processo jurisdicional em que o tribunal não se limitou a apreciar a decisão administrativa, mas antes apreciou todo o processado e, considerou também, após a realização da audiência de julgamento, a prova que nesta foi produzida.

Nesta configuração do processo contraordenacional e tendo em conta os interesses com dignidade constitucional em causa nestes autos ( a proteção do bem jurídico Ambiente e a prevenção de perigos e eventuais danos que possam vir a incidir sobre bens ambientais e em particular aqueles que se enquadram numa Reserva Natural),  não cremos que a aplicação do aludido art. 75º da LQCA tenha consistido numa restrição desproporcional, por desadequada ou excessiva aos direitos de defesa da arguida.

 Esta opção implica antes, e tão só, uma adequada ponderação da oportunidade da dedução da impugnação em face dos riscos inerentes a um modelo que permite que, num julgamento da matéria constante da decisão administrativa e em face do conjunto da prova que venha a ser produzida em audiência de julgamento, possa vir a ser proferida uma decisão em seu desfavor, como ocorreu na situação presente, sendo certo que na notificação que lhe foi enviada foi feita a expressa advertência, como impõe o referido art. 75º da LQCA que “não é aplicável aos processos de contraordenação instaurados e decididos nos termos da Lei nº 50/2006 de 29 de agosto, a proibição da reformatio in pejus – ou seja o tribunal pode aumentar o montante da coima a aplicar” ( cf. fls. 106).

Inexistiu, pois, qualquer violação  das garantias de defesa consagradas no art. 32º, nº 10 da Constituição da República Portuguesa ou do princípio da proporcionalidade previsto no art. 18º da mesma Lei Fundamental

Entende ainda a recorrente que a interpretação efetuada daquele art. 75º da LQCA é violadora do principio da igualdade, previsto no art. 13º da Constituição da República Portuguesa.

O principio da igualdade, significa que na aplicação do direito não deve haver discriminação em função das pessoas, pois todos os cidadãos beneficiam de forma idêntica dos direitos e deveres estabelecidos na Lei.

A propósito deste princípio exarou-se o seguinte no acórdão do Tribunal Constitucional nº. 223/95, in DR, II Série, de 27/6/95:

"O princípio da igualdade (...) apenas proíbe que as situações da vida semelhantes recebam tratamento diferenciado que se não justifique nas diferenças existentes entre elas. Ou seja, proíbe o arbítrio ou o capricho do legislador, pois que este, no exercício da sua liberdade de conformação, há-de orientar-se sempre por critérios racionais – há-de agir racionalmente, editando normas razoáveis, pois que a lei será Direito se for uma racionalidade".

Por outro lado, constitui jurisprudência pacífica do Tribunal Constitucional que o princípio da igualdade abrange a proibição de arbítrio, a proibição de discriminações e a obrigação de diferenciação.

Assim, o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes.

A proibição de discriminações (n.º 2 do citado art. 13º) não significa uma exigência de igualdade absoluta em todas as situações, nem proíbe diferenciações de tratamento.”

Ora, considerando as particularidades relativas ao denominado “Direito do Ambiente” e aos valores que lhe estão inerentes, igualmente com salvaguarda constitucional no já referido art. 66º da Constituição da República Portuguesa,  cremos que nesta matéria, como noutras, o legislador pode estabelecer regimes diferenciados, que podem passar por distintos limites mínimos e máximos das coimas – como ocorre também na LQCA) e pelo estabelecimento de diferentes normas adjetivas ou de procedimento, desde que estes não sejam irrazoáveis.

Como se refere no Acórdão nº 226/2011, do Tribunal Constitucional [disponível in www.tribunalconstitucional.pt]:“O princípio da igualdade não impede (…) que, em matéria de ilícito contraordenacional, o legislador ordinário estabeleça regimes especiais destinados a regular aspetos específicos do interesse público”.

Por conseguinte, cremos que o afastamento do regime do art. 72º-A do RGCO, pelo Tribunal a quo, e a aplicação do art. 75º da LQCA, tendo subjacente a opção do  legislador de que o regime geral das contraordenações e coimas não é adequado à proteção do particular bem jurídico que se protege na LQCA, e que, por isso, se impõe um especial regime que servirá para prevenir e desincentivar o incumprimento dos deveres por ela impostos, assim garantindo “a conservação da natureza e promovendo o aproveitamento racional dos recursos naturais, salvaguardando a sua capacidade de renovação e a estabilidade ecológica, com respeito pelo princípio da solidariedade entre gerações” e de “promover a educação ambiental e o respeito pelos valores do ambiente” (que a Constituição da República Portuguesa define no citado art. 66º), e bem assim, os mecanismos e as condições que permitam aos serviços envolvidos dispor dos instrumentos legais que os habilitem, designadamente, a exercer uma ação fiscalizadora, simultaneamente eficaz e preventiva, não constitui uma qualquer interpretação daquele art. 75º violadora do referido principio da igualdade.

A ausência da proibição da reformatio in pejus encontra não só justificação nas especificidades do regime legal estabelecido pela LQCA, que se mostra congruente com a estrutura sancionatória específica do ordenamento contraordenacional ambiental (com limites mínimos e máximos das coimas diferentes do regime geral), como na especial natureza do bem jurídico que se tutela nesta lei, cabendo, portanto, no âmbito da liberdade de criação e conformação de regimes especiais pelo legislador, sem que daí resulte qualquer arbitrariedade ou discriminação (no sentido de propiciar uma diferenciação de tratamentos entre os cidadãos com base em categorias meramente subjetivas).

Deste modo, tendo o tribunal a quo agido no âmbito de um processo contraordenacional, cujas contraordenações se enquadram, na Lei Quadro das Contraordenações Ambientais, e tendo aplicado o art. 75º desta mesma lei após a realização da audiência de julgamento e fundamentando-se na análise de toda a factualidade apurada e analisando-a dentro dos parâmetros estabelecidos no art. 27º do RGCO, não se vislumbra igualmente a violação do princípio da igualdade, previsto no art. 13º da Constituição da República Portuguesa.

Deve pois, manter-se a coima de 6.500,00€ fixada pelo Tribunal a quo.


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VIII - Decisório

Pelo exposto, acordam as Juízas da 5ª secção Criminal do Tribunal da  Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto, confirmando a sentença recorrida nos seus precisos termos.

                                                           *

Custas pela recorrente, fixando-se em 4 UC a taxa de justiça.


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(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)

Coimbra, 8 de outubro de 2025

Sandra Ferreira - Juíza Desembargadora Relatora

Sara Reis Marques - Juíza Desembargadora Adjunta

Cristina Pêgo Branco - Juíza Desembargador Adjunta