Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7/24.2TXCBR-C.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ MATOS
Descritores: MODIFICAÇÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO
BENEFICIÁRIOS DA MODIFICAÇÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
INSTRUÇÃO DO REQUERIMENTO DE MODIFICAÇÃO
RELATÓRIOS MÉDICOS SOBRE O RECLUSO
FALTA DE NOTIFICAÇÃO DOS RELATÓRIOS E DO PARECER DO MINISTÉRIO PÚBLICO
RECURSO DA DECISÃO
DIREITO DE ACESSO AO PROCESSO
Data do Acordão: 10/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUÍZO DE EXECUÇÃO DAS PENAS DE COIMBRA - JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 1.º, 20.º E 31.º DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGO 157.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGOS 3.º, 7.º, 118.º, 146.º, N.º 2, 149.º, 154.º, 217º E 218.º DO CÓDIGO DA EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE
ARTIGO 6.º DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
ARTIGO 47.º DA CARTA EUROPEIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Sumário: I - O instituto da modificação da execução da pena de prisão tem caracter excepcional, pois restringe-se aos reclusos portadores de doença grave, evolutiva e irreversível, de deficiência grave e permanente ou de idade avançada, aos quais, por consequência da degradação do seu estado sanitário, a manutenção da execução da pena de prisão lhes acarrete grave dano à saúde, à integridade física ou à vida, porquanto a sua dignidade enquanto pessoas continua a ser-lhes reconhecida, não obstante a situação de reclusão.

II - O disposto no artigo 157.º do C.P.P. não se aplica em sede de modificação da da execução da pena de prisão.

III - Com a omissão da notificação dos relatórios periciais decorrentes das perícias realizadas ao recluso, no âmbito da instrução do pedido de modificação da execução da pena de prisão, e do parecer emitido pelo Ministério Público não configura nulidade, o tribunal não omitiu a prática de qualquer acto a que estava obrigado, nem omitiu a prática de qualquer acto que afectou a decisão de indeferimento do pedido.

IV - O direito à consulta do processo, garantido pelos artigos 7.º, n.º 1, alínea l), e 146.º, n.º 6, do CEPMPL, onde foram sendo depositados os aludidos relatórios periciais, garante ao recluso o conhecimento dos respectivos conteúdos, uma vez que ele teve conhecimento da realização das perícias médicas, já que teve que estar presente.

V - Além disso, o direito a recorrer da decisão, permitindo sempre a sindicância de todos os elementos probatórios constantes dos autos e prevenindo a desconsideração quer do conteúdo, quer do valor probatório dos relatórios e salvaguardada que está a reapreciação pelo tribunal superior, ínsito no direito à tutela jurisdicional efectiva, garante o cumprimento do direito ao contraditório e a satisfação das exigências do processo equitativo.

Decisão Texto Integral:

Acordam os Juízes, em Conferência, na 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

RELATÓRIO

Nos autos de Modificação da Execução da Pena de Prisão que seguem termos sob o nº 7/24.2TXCBR no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra/Tribunal de Execução de Penas de Coimbra/Juiz 3 foi decidido indeferir a modificação da execução da pena de prisão, na modalidade de regime de permanência na habitação … e em consequência, determinar a manutenção da execução da pena de prisão de 14 anos de prisão, à ordem do Processo nº 120/14.... do Juízo Central Criminal de Coimbra - Juiz 4.

            Após a prolação dessa decisão, o arguido … arguiu a irregularidade daquela decisão, à luz do disposto no artigo 123º, nº 2 do Código do Processo Penal, considerando que a ausência de notificação dos exames médicos periciais pedidos e juntos aos autos, antes de ser proferida aquela decisão, não lhe permitiram a possibilidade de os conhecer e de se pronunciar sobre os mesmos bem como acerca do parecer do Ministério Publico, decisão que entende violadora da estrutura acusatória do processo penal estatuída no artigo 32º, nº 5 da Constituição da Republica Portuguesa e do disposto no artigo 157º da lei adjectiva penal.

            Tal arguição foi desatendida.

  

Inconformado com o teor de tal decisão, o arguido … interpôs o presente recurso, que se apresenta motivado e alinha as seguintes conclusões:

1.ª - O recorrente requereu que fosse ordenada perícia psiquiátrica e neurológica, que contenha a caracterização, história e prognose clínica da irreversibilidade da doença, da fase em que se encontra e da não resposta às terapêuticas disponíveis, a indicação do acompanhamento médico e psicológico prestado ao condenado e a modalidade adequada de modificação da execução da pena e as demais diligências legais, artigo 217.º do CEPMPL e a modificação da execução da pena de prisão para que a pena possa ser cumprida na modalidade adequada que se afigura ser com a obrigação de permanência na habitação ou prisão domiciliária só podendo ausentar-se para fins médicos e de saúde.

2.ª - Foi ordenado o cumprimento do disposto no artigo 217.º n.º 2 a), 3 a) b) e c) do CEP e a realização do relatório pericial sobre o estado de saúde do recorrente.

3.ª - O arguido não foi notificado do resultado dos mesmos exames, prova pericial, que foram ordenados pela Mma. Juiz e quando foi surpreendido com a decisão do processo, constatou que os relatórios dos exames médicos periciais pedidos já estavam nos autos, sem que lhe tivessem sido notificados antes de ser proferida, como foi, a decisão.

4.ª - Ao ser notificado da decisão arguiu a irregularidade, que foi indeferida por se ter entendido que foi opção do legislador não prever nem a notificação do relatório pericial nem qualquer pronúncia do condenado após a promoção do MP, ou sequer a notificação deste àquele.

5.ª - O MP foi notificado do resultado dos exames médicos periciais e emitiu parecer de seguida, ao passo que ao arguido não foi dada sequer a possibilidade de conhecer o resultado dos exames periciais, para se poder pronunciar sobre os mesmos e bem assim do parecer do MP.

6.ª - A estrutura acusatória mantém-se e estende-se ao processo penal no seu todo, sem exclusões, artigo 32.º n.º 5 CRP, artigo esse que foi violado nas decisões. A estrutura acusatória do processo penal português significa que cabe aos sujeitos processuais a definição das questões que devem ser submetidas a juízo, assim como fornecer os critérios de resolução dessas questões. É com o devido e estrito respeito ao comando constitucional, que “no processo acusatório, liga-se a “investigação da verdade material aos pressupostos do Estado-de-direito”, limitando-a, assim, “pela observância escrupulosa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”, podendo os sujeitos processuais sempre de acordo com a lei e a CRP intervir de acordo com as regras, para a definição do direito a aplicar ao seu caso.

7.ª - O princípio do contraditório, artigo 32.º n.º 5 da CRP, violado nas decisões recorridas, é definido de modo amplo ou lato, tratando-se, essencialmente, “de um contraditório quanto a todas as questões que possam ter relevância para a decisão final”12. Consiste, para além do direito à defesa13, no direito de contradizer ou de se pronunciar sobre “as alegações, as iniciativas, os  atos ou quaisquer atitudes processuais da autoria”14 do(s) outro(s) sujeito(s) processual(ais)15. Para que o juiz possa decidir, por força do princípio do contraditório, essa decisão só pode ser proferida após “ouvir todo aquele participante processual – o arguido, mas também o defensor … – relativamente ao qual deva tomar qualquer decisão que pessoalmente o afete”16.

8.ª - A CRP não distingue nem limita o princípio do contraditório. No entanto, “o âmbito material das questões abrangidas pelo contraditório retira-se, assim, da função do princípio e da sua natureza. Visando o princípio do contraditório permitir que o Tribunal ouça as razões dos diversos sujeitos processuais sobre questões que os possam afetar, esta função deve ser o critério de referência para delimitar o objeto do contraditório. As questões suscitadas que possam afetar a posição de um sujeito processual conferem-lhe legitimidade para intervir ao longo do princípio citado”17.

9.ª - Esta decisão tomada sem mandar notificar o arguido do resultado do relatório pericial é violadora da estrutura acusatória e do princípio do contraditório do processo penal estatuída no artigo 32.º n.º 5 da CRP e viola o disposto 157.º n.º 1 do Cód. Proc. Penal, o que não sendo cominado como sendo nulidade e entendendo o recorrente que se trata de uma irregularidade que afeta o valor do ato praticado, como de seguida se demonstrará, pode ser, nos termos do disposto no artigo 123.º n.º 2 do Cód. Proc. Penal e pode por isso ser conhecido oficiosamente, tendo arguido a irregularidade que foi indeferida, vem recorrer para que essa irregularidade seja declarada com os devidos efeitos legais. Foram violados os artigos supra citados.

10.ª - Nos termos do disposto no artigo 157.º n.º 1 do Cód. Proc. Penal, violado na decisão recorrida, o relatório pericial terá de ser notificado aos sujeitos processuais, até porque todos podem pedir esclarecimentos aos peritos18.

11.ª - A possibilidade do arguido colocar questões ao relatório pericial impõe que o mesmo seja notificado do mesmo. Essa possibilidade de colocar questões enquadra-se também na estrutura acusatória do processo penal que existe ao longo de todo o processo, estatuída no artigo 32.º n.º 5 da CRP, que permite que os sujeitos processuais possam contribuir para a decisão do direito a aplicar ao caso concreto. O recorrente quer exercer o seu direito de pedir esclarecimentos e de eventualmente requerer nova perícia, entendendo que os Relatórios Periciais necessitam de ser esclarecidos e que impõem uma decisão diferente da que foi tomada. Mas só se for notificado deles é que se pode pronunciar. Impõe-se declarar a irregularidade que foi arguida e anular o processado, mandando notificar o arguido para se poder pronunciar.

12.ª - Com os relatórios periciais e o parecer do MP foi tomada uma decisão que afeta o arguido recorrente sem que lhe tenha sido dada a oportunidade de se pronunciar, de exercer o contraditório e de contribuir para a decisão a aplicar ao seu caso. Se não for dada essa oportunidade, ou se assim for entendido, o processo será violador do processo equitativo e justo, violando o disposto no artigo 20.º n.º 4 da CRP.

13.ª - A justiça que é administrada pelos Tribunais deve e tem de ser justa. De resto, a CRP estabelece não um, mas vários comandos que se impõem a todos os processos: o processo tem de ser equitativo, art.º 20.º n.º 4. Ser equitativo significa também que a justiça tem de ser justa.

         Notificado o Ministério Público, nos termos do disposto no artigo 411º do Código do Processo, veio o mesmo pronunciar-se, …

         O Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal da Relação de Coimbra deu Parecer …

        

         Procedeu-se a exame preliminar.

         Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir do recurso apresentado.

                           

         A decisão recorrida é do seguinte teor:

            Requerimento que antecede do arguido … arguindo irregularidade:

            Ao abrigo do disposto no artigo 218.º, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade: “Finda a instrução, o processo é continuado com vista ao Ministério Público, se não for este o requerente, para, no prazo máximo de dois dias, emitir parecer ou requerer o que tiver por conveniente. (n.º 1). 2 - Havendo o processo de prosseguir, o juiz pode ordenar a realização de perícias e demais diligências necessárias, após o que decide no prazo máximo de dois dias.

            …

            O que sucedeu.

            O incidente da modificação da execução da pena reveste a natureza urgentíssima, atenta a previsão do prazo de 2 dias quer para a pronúncia do Ministério Público quer para prolação de decisão pelo juiz, ao contrário do prazo supletivo de 10 dias, o que se compreende tendo em conta o que subjaz à aplicação desta forma de execução da pena [vulgo razões de saúde graves que tornem incompatível a normal manutenção em meio prisional].

            Ora, as normas do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, onde naturalmente se insere o artigo 218.º, tratam-se de normas especiais, que aplicam subsidiariamente as regras do Código de Processo Penal, sempre que o contrário não resulte do referido código, conforme artigo 154.º, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade. E não prevendo o Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade qualquer norma que imponha a notificação quer dos relatórios periciais quer do parecer do Ministério Público, não foi preterido qualquer direito ao recluso.

Mais se diga que, o princípio do contraditório poderia eventualmente fazer sentido, caso não tivesse sido o recluso a dar início ao presente incidente, o que não foi o caso, pelo que, nunca a decisão do Tribunal seria uma decisão-surpresa.

            Por fim, o parecer do Ministério Público mais não é que a exposição do seu entendimento sobre a concreta questão suscitada pelo recluso ao Tribunal, como seja, a modificação da execução da pena por aquele requerida e a lei não atribui a esse parecer carácter vinculativo. A função exercida pelo Ministério Público ao nível da execução das penas e medidas privativas da liberdade, como resulta do artigo 134.º, do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade é a de acompanhar e verificar a legalidade da execução das penas e medidas privativas da liberdade, nos termos do respectivo Estatuto e do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade.

            Claramente, foi opção do legislador não prever nem a notificação do relatório pericial nem qualquer pronúncia do condenado após a promoção do Ministério Público, ou sequer a notificação desta àquele, pelo que, nenhuma irregularidade ou vício se tem por verificados.

            Em face do exposto, indefere-se o solicitado.

            Notifique e Comunique.

                                                           *


DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO

[1] [2]

Descendo ao caso dos autos, analisadas que sejam as conclusões apresentadas pelo recorrente …, a questão que se apresenta a decidir é, pois, a seguinte:

. Impugnação do despacho recorrido, atenta a irregularidade decorrente da falta de notificação do resultado do exame pericial e do parecer do Ministério Publico em momento prévio à decisão, em violação do disposto no artigo 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa e do artigo 157º, nº 1 do Código do Processo Penal.

                                                                       *

           

DECISÃO

Considerando o que é disposto no artigo 428º do Código de Processo Penal aos Tribunais da Relação estão conferidos poderes de cognição de facto e de direito.

Apreciando a lide recursiva apresentada pelo arguido … é de concluir que o mesmo pretende ver revogado o despacho recorrido, que indeferiu as nulidades suscitadas relativamente à decisão proferida relativamente à modificação da execução da pena de prisão por si requerida, e que seja ordenada a sua notificação para que se pronuncie sobre o relatório pericial e o parecer firmado pelo Ministério Publico, conquanto apenas assim entende estar cumprida a exigência a que dá corpo o artigo 32º, nº 5 da Constituição da Republica Portuguesa.

Conheçamos

         Estipula o artigo 217º do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, sob a epigrafe “Apresentação e instrução do requerimento” que:

         1 - O requerimento é dirigido ao juiz do tribunal de execução das penas, que, fora dos casos de consentimento presumido, providencia pela imediata notificação do condenado, quando não seja o requerente, para que preste o seu consentimento, aplicando-se correspondentemente o disposto quanto ao consentimento para a liberdade condicional.

         2 - Obtido o consentimento expresso ou havendo ainda que comprovar-se o consentimento presumido, o tribunal de execução das penas promove a instrução do processo com os seguintes elementos, consoante se trate de recluso com doença grave e irreversível, com deficiência ou doença grave e permanente ou de idade avançada:

         a) Parecer clínico dos serviços competentes do estabelecimento prisional contendo a caracterização, história e prognose clínica da irreversibilidade da doença, da fase em que se encontra e da não resposta às terapêuticas disponíveis, a indicação do acompanhamento médico e psicológico prestado ao condenado e a modalidade adequada de modificação da execução da pena;

         b) Parecer clínico dos serviços competentes do estabelecimento prisional contendo a caracterização do grau de deficiência ou da doença, sua irreversibilidade, grau de autonomia e de mobilidade, a indicação do acompanhamento médico e psicológico prestado ao condenado e a modalidade adequada de modificação de execução da pena; ou

         c) Certidão de nascimento e parecer clínico dos serviços competentes do estabelecimento prisional contendo a caracterização do grau de autonomia e de mobilidade, a indicação do acompanhamento médico e psicológico prestado ao condenado e a modalidade adequada de modificação de execução da pena.

         3 - Em todos os casos o requerimento é ainda instruído com:

         a) Relatório do director do estabelecimento relativo ao cumprimento da pena e à situação prisional do condenado;

         b) Relatório dos serviços de reinserção social que contenha avaliação do enquadramento familiar e social do condenado e, tendo por base o parecer previsto no número anterior, das concretas possibilidades de internamento ou de permanência em habitação e da compatibilidade da modificação da execução da pena com as exigências de defesa da ordem e da paz social;

         c) Parecer de médico do estabelecimento prisional quanto à impossibilidade de o condenado conhecer os pressupostos de modificação da execução da pena ou de se pronunciar sobre eles, sempre que haja de comprovar-se o seu consentimento presumido.

        

         Não deixando o legislador de curar, no artigo subsequente, sob a epígrafe “Tramitação subsequente”, que

          1 - Finda a instrução, o processo é continuado com vista ao Ministério Público, se não for este o requerente, para, no prazo máximo de dois dias, emitir parecer ou requerer o que tiver por conveniente.

         2 - Havendo o processo de prosseguir, o juiz pode ordenar a realização de perícias e demais diligências necessárias, após o que decide no prazo máximo de dois dias.

         Tal procedimento trata de dar corpo à disciplina normativa do artigo 118º do mesmo diploma do qual ressuma, sob a epigrafe “Beneficiários”, que

         Pode beneficiar de modificação da execução da pena, quando a tal se não oponham fortes exigências de prevenção ou de ordem e paz social, o recluso condenado que:

         a) Se encontre gravemente doente com patologia evolutiva e irreversível e já não responda às terapêuticas disponíveis;

         b) Seja portador de grave deficiência ou doença irreversível que, de modo permanente, obrigue à dependência de terceira pessoa e se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional; ou

         c) Tenha idade igual ou superior a 70 anos e o seu estado de saúde, física ou psíquica, ou de autonomia se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional ou afecte a sua capacidade para entender o sentido da execução da pena.

         Ressalta da leitura do firmado instituto, desde logo, o seu caracter excepcional, na medida em que a possibilidade de modificação da pena fica restringida a reclusos condenados que se encontrem gravemente doentes, com patologia evolutiva e irreversível e já não respondam às terapêuticas disponíveis (al. a), assim como àqueles que sendo portadores de grave deficiência ou doença irreversível que, de modo permanente, obrigue à dependência de terceira pessoa e se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional (al. b); e, bem assim, aqueles com idade igual ou superior a 70 anos e o seu estado de saúde, física ou psíquica, ou de autonomia se mostre incompatível com a normal manutenção em meio prisional ou afecte a sua capacidade para entender o sentido da execução da pena (al. c).

         Vale tudo por dizer, assim, que a sua aplicabilidade fica restringida aos reclusos condenados que, por consequência da degradação do seu estado sanitário, a manutenção da execução da pena de prisão lhes acarreta grave dano à saúde, à integridade física ou mesmo à vida, sendo certo que nunca será de olvidar a sua dignidade enquanto pessoas, estatuto que lhe, obviamente, continua a ser-lhes reconhecidos, não obstante a sua situação de reclusão.[3]

         Joaquim Boavida[4], a propósito desta matéria, afirma mesmo que “nenhum outro instituto enfatiza melhor a questão essencial do fundamento, necessidade e razoabilidade da execução da pena de prisão”, lançando mesmo mão do estatuído no artigo 10º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, onde se acha prevenido que “Todos os indivíduos privados da sua liberdade devem ser tratados com humanidade e com respeito da dignidade inerente à pessoa humana”.

         Princípio este que é uma das traves-mestras da proclamação de Portugal enquanto República soberana, visto que no artigo 1º da Constituição da República Portuguesa achamos consagrado que “Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa humana e na vontade popular e empenhada na construção de uma sociedade livre, justa e solidária.”

         Aliás é enfatizado no artigo 3º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade que “A execução das penas e medidas privativas da liberdade assegura o respeito pela dignidade da pessoa humana e pelos demais princípios fundamentais consagrados na Constituição da República Portuguesa, nos instrumentos de direito internacional e nas leis (nº 1), assim como que “A execução respeita a personalidade do recluso e os seus direitos e interesses jurídicos não afectados pela sentença condenatória ou decisão de aplicação de medida privativa da liberdade (nº 2), prespassando, assim, o respeito pela imparcialidade, individualização e especialização da execução da pena garantido a dignidade da pessoa humana e a obediência aos princípios fundamentais consagrados na Constituição da Republica Portuguesa e nos instrumentos de direito internacional e nas leis.

         São valorosas as palavras de Jorge Figueiredo Dias[5], proferidas aquando da vigência do D.L. nº 265/79 de 01/08, no sentido de que o recluso “é agora a de uma pessoa sujeita a um mero “estatuto especial”, jurídico-constitucionalmente credenciado e que deixa permanecer naquela a titularidade de todos os direitos fundamentais, à excepção daqueles que seja indispensável sacrificar ou limitar (e só na medida em que o seja) para realização das finalidades em nome das quais a ordem jurídico-constitucional credenciou o estatuto especial respectivo.”

         Tais princípios são, igualmente, reflectidos nos direitos conferidos ao recluso, nos termos consagrados no artigo 7º daquele diploma.

         A título de exemplo referimos o direito à protecção de vida, saúde e liberdade de consciência, o exercício de direitos civis, a liberdade de religião, o tratamento pelo nome e reserva de reclusão, o direito ao contacto com exterior, a participação de actividades laborais, educacionais, formação e programas específicos, o acesso ao Sistema Nacional de Saúde, ou ainda, o aconselhamento jurídico por parte de advogado.

        

Relativamente ao instituto da modificação da execução da pena de prisão entendemos ser de atentar no aresto do Tribunal da Relação de Évora[6] onde se salienta que “do texto do dispositivo legal agora transcrito infere-se sem dificuldade que a providência nele prevista tem pressupostos e prossegue finalidades muitos diferentes daqueles que presidem às medidas de flexibilização do cumprimento da pena detentiva, das quais a liberdade condicional constitui a variante mais avançada, que se orientam, primordialmente, para a reinserção social do arguido.

Ao contrário, a medida prescrita pelo art.º 118º do CEP visa acudir a situações extremas em que, devido a uma acentuada degradação do estado sanitário do condenado, o prolongamento da execução da pena privativa de liberdade em meio prisional seja suscetível de causar grave dano à saúde, à integridade física ou mesmo à vida do condenado, em termos de colocar em cheque a sua dignidade como pessoa.

Como tal, a instituição da medida a que nos referimos tem por finalidade a tutela de bens jurídicos pessoais do condenado, sendo alheia a propósitos de reinserção social.”

Volvendo ao caso dos autos importa concluir que, na sequência do requerimento apresentando pelo arguido, ora recorrente, foi dado cumprimento às exigências firmadas no artigo 217º, nº 2, alínea a) e nº 3, alíneas a), b) e c) do Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, em virtude do qual vieram a ser juntos aos autos:

. Relatório Social elaborado pela DGRSP para a modificação da pena de prisão;

. Relatório elaborado pelo Técnico Gestor do Estabelecimento Prisional de Coimbra com a ficha biográfica do recluso;

. Relatório clínico do medico do Estabelecimento Prisional de Coimbra;

. Parecer do Director do Estabelecimento Prisional de Coimbra.

Ulteriormente à prolacção de acórdão nesta instância foi, ainda, ordenada a realização de perícia médica neurológica e psiquiátrica junto do Instituto de Medicina Legal e Ciências Forenses, pedido este levado a preceito no dia 03/02/2025 e de que foi notificado o arguido, na pessoa do seu Ilustre Defensor.

Ademais, na sequência da respectiva marcação, para o dia 16/04/2025, pelas 14h30, a realizar-se no Instituto de Medicina Legal de Coimbra, foi, igualmente, dado conhecimento da respectiva realização ao Ilustre Mandatário do arguido.

Já no dia 21 de Maio de 2025 foram juntos aos autos os Relatórios Periciais.

Na mesma data o processo foi continuado com vista, tendo sido dado parecer pelo Magistrado do Ministério Publico e, seguidamente, proferida decisão.

         É lídimo, portanto, que foi respeitado o formalismo processual a que alude o artigo 217º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, tendo sido juntos todos os elementos necessários e imprescindíveis para a prolacção da decisão relativa ao pedido de modificação da execução da pena de prisão de que é requerente o próprio arguido, o ora recorrente.

         Ademais finda que foi aquela instrução – concluída com a junção dos relatórios periciais – no processo foi aberta vista ao Ministério Publico, por não ter sido o requerente, de molde a emitir parecer ou requerer o que tiver por conveniente, nos termos prevenidos no artigo 218º, nº 1 do mencionado diploma legal.

         A final, e dentro do prazo consignado no nº 2 do dito diploma, foi proferida decisão final acerca do requerimento apresentado pelo arguido, ora arguido.

         Vale tudo por dizer, pois, que o Tribunal recorrido não omitiu a prática de nenhum acto a que estava obrigado, já que a lei não determina a realização da notificação requerida pelo arguido, ora recorrente.

         Ademais a falta de notificação de relatórios não se encontra cominada com nulidade que, como sabemos, está neste âmbito sujeita ao princípio da tipicidade, nos termos prevenidos nos artigos 118º, nº 1 do Código do Processo Penal ex vi artigos 149º e 154º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade.

Repassa do que fica assente no artigo 118º do Código do Processo Penal, sob a epigrafe de “Principio da legalidade”, que:

1 - A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.

2 - Nos casos em que a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular.

3 - As disposições do presente título não prejudicam as normas deste Código relativas a proibições de prova.

Razão por que, vista a plêiade de invalidades a que dá corpo a nossa lei adjectiva penal, alinhamos a nossa posição por Manuel Maia Gonçalves[7] que peremptoriamente afirma que “em matéria de nulidades o Código apresentou inovações de relevo relativamente ao direito anterior, estabelecendo, antes de mais, através do principio da legalidade que neste artigo encabeça o titulo das nulidades, que só há nulidade dos actos quando for expressamente cominado por lei”, ou de outro modo dizendo “entre um sistema de numerus apertus, que privilegia a justiça processual em detrimento da justiça material (ainda que isso possa pôr em causa o resultado final, o processo tem que ser imaculado) e um sistema de numerus clausus que, inversamente, privilegia a estabilidade e a bondade do veredicto final (dentro de certos limites, é claro, ele aceita alguns desvios na metodologia que a ele conduziu), o legislador optou pelo segundo (principio da legalidade ou da tipicidade das nulidades)” vindo, pois, a concluir-se que “se as nulidades estão sujeitas a um rigoroso regime de numerus clausus, já para as irregularidades vale o regime oposto (numerus apertus)”[8]

Mas afastamos, igualmente, a existência de qualquer irregularidade processual.

Previne o artigo 123º do Código do Processo Penal, sob a epigrafe de “Irregularidades”, que

1 - Qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.

2 - Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.

Com efeito o Tribunal recorrido não omitiu a prática de qualquer acto a que estava obrigado, como já se disse, mas, igualmente, não omitiu ou praticou qualquer acto que tenha a virtualidade de afectar a decisão que veio a prolatar.

É que, conforme ficou definido pelo legislador no Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, neste procedimento relativo à modificação de execução da pena de prisão toda a sua articulação é tendente, como explicitaremos, a garantir a participação do arguido e a estabelecer a garantia dos seus direitos nos termos ali expressamente consignados.

Talqualmente ocorre com outros institutos, como seja a concessão de liberdade condicional.

         Efectivamente não competia ao Tribunal recorrido notificar o arguido, nomeadamente através do seu Ilustre Mandatário do conteúdo dos notados relatórios periciais, nem sequer do parecer firmado pelo Ministério Público.

         Tal não decorre do formalismo próprio deste instituto, como é bom de ver pela disciplina própria que é imposto pelo legislador.

         E não podemos olvidar o gizado no artigo 154º do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade quando explicitamente determina que, sob a epigrafe “Direito subsidiário”, “Sempre que o contrário não resulte da presente lei, são correspondentemente aplicáveis as disposições do Código de Processo Penal.”

         Razão por que está afastada a aplicabilidade do artigo 157º do Código do Processo Penal, seja por interpretação extensiva ou analogia, nos termos pretendidos pelo ora recorrente.

         Mas não se diga que tal arquitectura afecta os direitos e garantias do arguido, nos termos prevenidos nos artigos 20º e 32º da nossa Constituição ou mesmo faz eclodir o direito ao processo equitativo.

        

         Em primeiro lugar, na medida em que, face ao que disposto nos artigos 7º, nº 1, alínea i) e 146º, nº 2, ambos do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas de Liberdade, o arguido, atenta a sua qualidade de recluso, tem direito a aceder ao seu processo individual onde pode conhecer e inteirar-se do teor e conteúdo dos elementos de prova recolhidos e, mais, requerer ou sugerir outros elementos de prova.[9] 

         Ademais está garantido o direito ao recurso relativamente à decisão proferida relativamente ao pedido de modificação da execução da pena de prisão.

         Ao estabelecer esse direito de recurso permite sempre a sindicância de todos os elementos probatórios, prevenindo que seja discreteado o respectivo conteúdo, quer a sua valia para a decisão prolatada; além de ver garantida a reapreciação pelo Tribunal superior, no que se traduz o direito à tutela jurisdicional efectiva, nos termos alocados no artigo 20º da nossa Lei Fundamental.

         Outrossim, através destes elencados mecanismos – a consulta do processo e o direito de recurso – fica devidamente garantido o cumprimento do direito ao contraditório e a satisfação das exigências do processo equitativo, nos termos gizados no artigo 6º da Declaração Universal dos Direitos no artigo 47º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais.

            Há que ter sempre presente que todo o procedimento foi desencadeado por um requerimento apresentado pelo arguido …, que teve a oportunidade de juntar os elementos que reputou necessários e convenientes, procedimento este onde foi junta toda a documentação e pareceres que a lei determina e aqueles que este Tribunal entendeu serem necessários para uma boa e profícua decisão, decisão esta prolatada após o pontual cumprimento do formalismo legal estipulado.

            Ademais sempre o arguido (que teve de ser feito presente) teve conhecimento da data, hora e local da realização das perícias medicas ordenadas, tal como o seu Ilustre Mandatário, sendo certo que, face aos direitos que lhe assistem, sempre podia aceder ao seu processo individual onde foram sendo depositados os aludidos relatórios periciais e, assim, querendo requerer ou solicitar as diligências que, a seu ver, se apresentassem idóneas para a decisão a proferir.

            Arredada está, pois, qualquer violação da contrariedade procedimental ou mesmo qualquer efeito surpresa.

            Outrossim, como adiantando, a tutela jurisdicional efectiva que lhe fica garantida com o direito ao recurso tutela, sem mais, o prevenido no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa. 

            Pelos fundamentos elencados será, pois, de desatender à pretensão recursal.

                                                           *

DISPOSITIVO

Por todo o exposto, e pelos fundamentos indicados, acordam os Juízes 4ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em:

- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido … e, em consequência, mantêm integralmente o despacho recorrido.

Custas a cargo do recorrente, pelo mínimo legal.

O presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela sua relatora, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal.


Coimbra, 22 de Outubro de 2025

Maria José dos Santos de Matos

Maria de Fátima Calvo

Helena Lamas


         


[1] Vejam-se, a propósito, o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ de 19/10/1995, publicado no D.R. I-A Série de 28/12/1995 e o do mesmo Tribunal de 03/02/1999, publicado no BMJ, 484, 271.
[2] Recursos em Processo Penal, Simas Santos e Leal-Henriques, Rei dos Livros, 7ª edição, 71 a 82.
[3] Neste sentido se pronunciou o Tribunal de Execução das Penas do Porto no Processo nº 462/17.7TXPRT-A, cujo teor não sabemos se foi publicado.
[4] A Flexibilização da prisão: Da reclusão à liberdade. Coimbra, Almedina, 2018.
[5] Direito Penal Português, Parte Geral, II, As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, páginas 111 e seguintes.
[6] Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 16/10/2012 no Processo nº 1673/10.1TXEVR-E.E1, disponível em www.dgsi.pt

[7] Código de Processo Penal Anotado, 16ª edição, Almedina, 301
[8] Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, Almedina, 1210, 1211.
[9] Neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 25/10/2024 prolatado no Processo nº 514/21.9TXCBR-C.C1, disponível em www.dgsi.pt