Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
18/22.2 T9ALD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SANDRA FERREIRA
Descritores: CRIME DE BURLA TRIBUTÁRIA
ELEMENTOS DO TIPO
CRIME CONTINUADO - PUNIÇÃO
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
CONDIÇÃO DE IMPOSIÇÃO OBRIGATÓRIA
PROIBIÇÃO DA REFORMATIO IN PEJUS
Data do Acordão: 05/14/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DE ALMEIDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS 14º E 87º DO RGIT; ARTS. 50.º, N.º 2, 51.º, N.º 1 E 79º TODOS DO CÓDIGO PENAL; ART. 409º, Nº 1 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I – O crime de burla tributária, previsto e punível pelo art. 87º do RGIT é um crime de execução vinculada, uma vez que na descrição do tipo o seu cometimento tem de se verificar «por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, mas exige também o duplo nexo de imputação objetiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pela vítima, dos atos de diminuição do seu património e entre estes e o prejuízo patrimonial ocorrido.

II – Mostrando-se reunidos os pressupostos do crime continuado, importará atentar no disposto no art. 79º do Código Penal, que estabelece que o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.

III – O crime de burla tributária agravado previsto pelo artigo 87.º, n.ºs 1 e 2 do RGIT é punível, em abstrato, só com pena de prisão pelo que está fora do âmbito de aplicação da jurisprudência fixada pelo AUJ nº 8/2012, que só é aplicável quando o crime tributário é punível com pena de prisão ou outra pena não privativa da liberdade.

IV – O regime estabelecido no art. 14º do RGIT constitui um regime especial relativamente ao disposto nos artigos 50.º, n.º 2, e 51.º, n.º 1, do Código Penal, estabelecendo uma condição de imposição obrigatória no caso de o tribunal optar pela suspensão da execução da pena (“é sempre condicionada”) e o seu montante está legalmente fixado no caso correspondendo ao “montante dos benefícios indevidamente obtidos”.

V – Apesar de tal entendimento, por via da imposição processual da proibição da reformatio in pejus prevista no art. 409º, nº 1, do Código de Processo Penal, não pode esta instância de recurso alterar os termos do dever fixado pelo Tribunal a quo como condição da decidida suspensão penal num sentido desfavorável aos arguidos, únicos recorrentes.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:


I-RELATÓRIO

I.1 No âmbito do processo Comum singular nº 18/22.2T9ALD que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Almeida, do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, a 08.11.2024, foi proferida sentença, no que agora interessa, com o seguinte dispositivo [transcrição]:

“VI. DECISÃO:

Nestes termos e com os fundamentos que antecedem, julgo a acusação provada e procedente e, em consequência:

A) Condeno a Associação dos Amigos de ... - Centro de Formação, Desenvolvimento e Apoio Social pela prática, em autoria material e na forma consumada e continuada, de um crime de burla tributária agravado, previsto e punido conjugadamente, pelos artigos 87.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) e do artigo 202.º, alínea d) do Código Penal ex vi artigo 11º, alínea d), do RGIT, na pena de 600 (seiscentos) dias de multa, à taxa diária de €15 (quinze euros), o que perfaz o quantitativo global de €9000,00 (nove mil euros).

B) Condeno os arguidos AA, BB e CC em autoria material e na forma consumada e continuada, de um crime de burla tributária agravado, previsto e punido conjugadamente, pelos artigos 87.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) e do artigo 202.º, alínea d) do Código Penal ex vi artigo 11º, alínea d), do RGIT, na pena, cada um, de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão.

C) Decido suspender as penas de prisão referida sem B), pelo período de 3 (três anos), sob a condição de cumprimento, por cada um dos arguidos AA, BB e CC do pagamento, pelo arguido AA do valor de 4.500,00€ (quatro mil e quinhentos euros), pela Arguida BB do valor de 3600,00€ (três mil e seiscentos euros) e pela Arguida CC, do valor de 3000,00€ (três mil euros), sendo que no final de cada ano, contado no trânsito em julgado da presente sentença, terão que comprovar nos autos o pagamento correspondente a um terço desse valor, referentes às contribuições auferidas pela Associação Arguida.

D) Absolvo os arguidos AA, BB e CC, do pedido de declaração de perda de vantagens contra si deduzido.

E) Condeno a Associação dos Amigos de ... - Centro de Formação, Desenvolvimento e Apoio Social pagar ao Estado o valor de €52.348,21 (cinquenta e dois mil trezentos e quarenta e oito euros e vinte e um cêntimo).

F) Custas criminais a cargo dos arguidos, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC para cada um.

(…)


*


I.2 Recurso da decisão

Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso os arguidos Associação dos Amigos de ... – Centro de Formação Desenvolvimento e Apoio Social, AA, BB e CC para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraíram as seguintes conclusões [transcrição]:

“CONCLUSÕES E NORMAS VIOLADAS

A)

Quer sob o ponto de vista objetivo, quer subjetivo, os arguidos não adotaram condutas integradoras do crime de burla Tributária, prevista e punível no artigo 87º do RGIT, na medida em que, nem os agentes fizeram declarações falsas, nem viciaram documentos, nem daí resultou qualquer enriquecimento ilegítimo de qualquer dos arguidos e toda a atuação dos arguidos teve fins

B) superiores e “nobres”, no dizer da sentença recorrida, sempre na promoção do bem estar de pessoas humanas em estado de necessidade.

C) A sentença recorrida, nos pontos 9, 10, 28, 29, 34, 36 e 38 dos fatos considerados provados considera que todos os arguidos tiveram uma atuação voluntária, livre e consciente para a prática dos fatos que lhes foram imputados e pelos quais acabaram por ser sentenciados. Porém, salvo o devido respeito, impunha-se que a sentença, de forma direta e precisa, se pronunciasse sobre a atuação e sobre a participação concreta de cada um dos arguidos na tomada de decisões e na resolução assumida que possa integrar condutas criminalmente relevantes.

D) Dos elementos constantes dos autos e de toda a prova produzida, nada existe que possa fazer a imputação à arguida CC de qualquer decisão / resolução no sentido de incluir nas listagens dos utentes quaisquer serviços ou para declarar os utentes que frequentassem as ERPI nas listagens de SAD.

E) Pelo contrário, basta ouvirmos as declarações prestadas pela atual Presidente da Direção, ao tempo dos fatos, Tesoureira e também Diretora Técnica, quando nas suas declarações refere expressamente “era eu que fazia os recibos dos utentes e preenchia as listagens para enviar para a segurança social” e , explicou que a Diretora Técnica não preenchia as listagens e a sua intervenção cingia-se, tão só, à introdução dos códigos / passwords para que as listagens fossem introduzidas na respetiva plataforma e enviadas para a Segurança Social.

F) Atento o exposto, salvo melhor entendimento, a arguida aqui recorrente, deveria, pura e simplesmente, ser absolvida, por não ter tido qualquer participação da decisão / resolução para o envio das listagens dos utentes.

G) Em relação a todos os arguidos, importa referir que só perante uma total ausência de conhecimento da realidade social da prestação de serviços é que é possível fazer juízos de censura criminal para tal atuação, pois, como as senhoras inspetoras explicaram a este tribunal, apenas analisaram documentos, folhas de Excel, mas não tiveram o mínimo cuidado de se inteirarem da realidade social e humana da prestação dos serviços:

G.1) Não viram o estado de necessidade em que se encontravam os utentes, como foi o exemplo de DD que passou a viver sozinho, após a morte dos progenitores com quem residia. Apenas verificaram que não tinha o requisito da idade.

G.2) Não verificaram que os serviços tinham de ser adaptados à realidade dos utentes em SAD: Alimentação, Higiene pessoal, higiene habitacional, acompanhamento, apoio psicossocial: chamadas, telechamadas, assistência e preocupação permanente, enfermagem, limpeza, cortes de cabelo… compra de bens., enfim, proximidade e apoio a todos os níveis!

H) Se a decisão recorrida, relativamente aos utentes a que se reportam os Fatos 18, 19, 20 e 21 dos Fatos Provados, fosse tomada através de um programa de inteligência artificial, a mesma estaria correta. Frequentando os utentes a ERPI e continuando a constar nas listagens de serviço de Apoio Domiciliário, o dito programa ditaria a desconformidade. Porém, a justiça material, repete-se, ao serviço e na promoção da dignidade da pessoa humana, não pode validar tal entendimento. Com feito, a realidade demográfica e social em que vivem os utentes, o fato de, praticamente de todos os utentes de SAD viverem sozinhos, sem qualquer retaguarda familiar (com os familiares a residir no estrangeiro), as circunstância e as situações dos utentes de SAD acolhidos em ERPI resultarem de situações provisórias e de estados concretos de necessidade, apesar de, em muitas situações, acabarem por se tornarem definitivos, dadas as debilidades e por não se verificar a reversão que permita o retorno ao domicílio, foram os motivos do acolhimento de utentes com acordos para SAD serem assistidos em ERPI.

I) Sendo indubitável que a Associação arguida prestou serviços em ERPI aos utentes que deles necessitaram, apesar de estarem protocolados em SAD, é inequívoco que o Estado beneficiou com tais serviços, ou seja, as condutas dos arguidos jamais prejudicaram o Estado e a Segurança Social (que, para institucionalizar tais pessoas em verdadeiro estado de necessidade, teria de pagar muito mais).

J) O acolhimento de utentes em estado de necessidade é tarefa do Estado. Refere o artigo 63º da Constituição da República Portuguesa que “o sistema de segurança social protege os cidadãos na doença, velhice, invalidez, viuvez e orfandade, bem como no desemprego e em todas as outras situações de falta ou diminuição de meios de subsistência ou de capacidade para o trabalho.”

K) Os arguidos nada mais fizeram, ao integrar os utentes em ERPI, apesar de protocolados nos acordos do SAD, do que responder a necessidades emergentes dos próprios utentes, que fruto de contingências pessoais, não podiam ficar sem apoio permanente no seu domicílio.

L) Consequentemente, as suas condutas não se mostram aptas a preencher o tipo legal de crime de burla tributária, p. e p. no artigo 87º do RGIT e a aplicação desta norma, tal com a sentença o faz, em relação aos factos descritos, mostra-se violadora das normas constitucionais, previstas nos artigos 1º, 18º e 63º da Constituição da República Portuguesa.

M) Sob o ponto de vista subjetivo, a associação arguida, os seus representantes e técnicos atuaram com a plena convicção de não enganarem o Estado (Segurança Social) e conscientes de promoverem o melhor serviço aos utentes, de acordo com as concretas circunstâncias das suas vidas e de acordo com o interesse público. É Esta a clara convicção que se extrai das suas declarações e das motivações explicadas para tais atuações e jamais gizaram qualquer plano ou tiveram a consciência de que, perante os serviços prestados, as comparticipações não fossem devidas, de forma justa e verdadeira.

N) Na qualificação e no cálculo da medida da pena, como vem referido na sentença, dispõe o artigo 79º do Código Penal, “O crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.”. Do quadro resumo das diferentes resoluções a que se reporta o ponto 18 dos factos Provados, a resolução mais grave e que comporta valor superior ascende a €7.617,78 e, sendo esta a resolução a ter em conta para a qualificação da conduta criminal e para o cálculo da medida da pena, verificam-se os pressupostos para a aplicação do disposto no artigo 87º nº 1 do RGIT e não o seu nº 3, como fez a sentença recorrida. Consequentemente, caso se verificassem os pressupostos da punição, o que apenas por hipótese cautelar se concede, a pena a aplicar não poderia ir além da pena de multa.

O)

A sentença recorrida não se conforma com o disposto nos artigos 87 do RGIT e, na sua interpretação e aplicação não respeita os ditames Constitucionais constantes dos artigos, 1º, 2º 18º e 63º da CRP e, por outro lado a decisão recorrida não levou e linha de conta o quadro normativo emergente da Lei Quadro da Segurança Social constante da Lei nº 4/2007 de 16/01 e do Decreto Lei nº 64/2007 de 06/11, mostrando-se ainda violadas as normas dos artigos 10º, 13º, 14º, 30º 40º, 70º , 71º e 79º do Código penal.

Nestes termos e mais de direito, revogando a Sentença, e substituindo-o por outro nos termos supra expostos, Vossas Excelências, como sempre, farão, JUSTIÇA”.


*

Foi admitido o recurso, nos termos do despacho proferido a 10.12.2024.

*
I.3 Resposta ao recurso

Efetuada a legal notificação o Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido, concluindo dever o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente e, consequentemente, manter-se a sentença recorrida.


*
I.4 Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no seguinte sentido [transcrição]:

“Salvo melhor opinião, o recurso interposto pelos arguidos foi correctamente admitido e subiu nos termos e com os efeitos legalmente previstos, nada obstando a que deva ser apreciado.


*

Visto o alegado em tal recurso, considera-se não dever o mesmo merecer provimento.

Com efeito, afigura-se ter sido totalmente acertada a decisão proferida pelo Tribunal recorrido, ao concluir que os factos que considerou provados integram a prática, por todos os arguidos, do crime de burla tributária agravada pelo qual foram condenados – bastando, a tal respeito, remeter para a fundamentação da sentença impugnada, bem como para a Resposta apresentada pelo Ministério Público em 1ª instância, das quais decorrem com clareza as razões pelas quais não deverá considerar-se, para além do mais, terem os arguidos agido sem o dolo exigível para a prática de tal crime, ou ao abrigo de qualquer eventual causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.

Apenas se poderá ainda assinalar, em matéria de subsunção penal de tal conduta e de escolha e medida das penas aplicadas aos arguidos pessoas singulares, que mesmo a considerar-se deverem tais arguidos ser condenados, por crime continuado, nos moldes por si propostos no recurso interposto, a pena aplicável, ao abrigo do disposto no nº 1 do art. 79º do C. Penal, seria a prevista no nº 2 do art. 87º do RGIT, por força do elevado valor do prejuízo que é referido nesse mesmo recurso.

Logo, atendendo à gravidade global da conduta dos arguidos, as penas concretamente aplicadas pelo Tribunal recorrido sempre seriam de manter, não podendo justificar-se a aplicação de meras penas de multa.

Face ao exposto, parece-nos dever a decisão impugnada ser mantida.”


*
I.5. Resposta

Pese embora tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.


*

I.6. Prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.

Cumpre, agora, apreciar e decidir.


*

II- FUNDAMENTAÇÃO


II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Conforme decorre do disposto no n.º 1 do art.º 412.º do Código de Processo Penal, bem como da jurisprudência pacífica e constante, designadamente, do STJ[Indicam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do STJ, de 15/04/2010 e 19/05/2010, in http://www.dgsi.pt.], são as conclusões apresentadas pelo recorrente que definem e delimitam o âmbito do recurso e, consequentemente, os poderes de cognição do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso designadamente as que alude o artigo 410º do Código de Processo Penal [Conhecimento oficioso que resulta da jurisprudência fixada no Acórdão do STJ n.º 7/95, de 28 de dezembro, do STJ, in DR, I Série-A, de 28/12/95] e das nulidades previstas no art. 379º do mesmo diploma legal.

Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:
® Do erro de julgamento quanto aos pontos 9, 10, 28, 29, 34, 36 e 38.
® Da integração da factualidade apurada no crime de burla tributária previsto e punível pelo art. 87º do RGIT.
® Do enquadramento da conduta no disposto no art. 87º, nº 1 do RGIT, por força das regras da punição do crime continuado.
® Da suficiência de uma pena de multa.


*

II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:

“II. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:

A. Factos provados:

Com relevo para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos:

1. A Arguida Associação dos Amigos de ... (...) - Centro de Formação, Desenvolvimento e Apoio Social (doravante, Associação), com NIPC ...04, foi constituída em 17/05/1989 e encontra-se sedeada na Rua ..., ..., ... ..., ....

2. A Arguida Associação é uma associação sem fins lucrativos, reconhecida enquanto instituição particular de solidariedade social, promovendo respostas sociais no âmbito da população idosa, designadamente, Estrutura Residencial para Idosos (ERPI) e de Serviço de Apoio Domiciliário (SAD), ao abrigo de acordos de cooperação celebrados com o Centro Distrital da Segurança Social da ... em 14/05/2018 e 29/12/1994 (revisto em 01/07/2004).

3. Os Arguidos AA e BB eram diretores da referida Arguida Associação dos Amigos de ... nas datas dos factos, a seguir indicadas.

4. Pelo menos entre 2013 e 2019 o Arguido AA foi presidente da Direção da Arguida.

5. A Arguida BB é presidente da Direção da Arguida Associação, era tesoureira na anterior Direção e foi Diretora Técnica da resposta social Estrutura Residencial para Pessoas Idosas até 31/12/2020.

6. A Arguida CC é Diretora Técnica da Resposta Social de Estrutura Residencial para Pessoas Idosas e de Serviço de Apoio Domiciliário.

7. A Arguida Associação é parte nos referidos acordos de cooperação celebrados com o Centro Distrital de Segurança Social da ..., respeitantes às respostas sociais referidas, que define, além do mais, as respetivas capacidades e o número de utentes abrangidos, existindo, quanto a estes, uma comparticipação financeira mensal.

8. A Arguida Associação está obrigada a declarar mensalmente, ao Centro Distrital da ..., as listagens de utentes que efetivamente frequentam aquelas respostas sociais para, em conformidade com tais listas, ser processada e paga a respetiva comparticipação, por cada um dos utentes reais.

9. Os Arguidos tinham conhecimento que as comparticipações da Segurança Social eram pagas em função das respostas sociais efetivamente prestadas.

10. Cientes disso, entre janeiro de 2013 e dezembro de 2019, todos os Arguidos, em comunhão de esforços e intentos, organizaram dados que foram apostos, mensalmente, nas listagens dos utentes inscritos e frequentadores das respostas sociais de ERPI, Centro de Dia (CD) e de Apoio Domiciliário (SAD), que foram enviados para o Instituto da Segurança Social, para este efetuar o pagamento do correspetivo apoio social.

11. Nos dias 13 e 15 de janeiro de 2020, o Núcleo de Fiscalização a Equipamentos Sociais da Unidade de Fiscalização detetou irregularidades provenientes do processamento indevido de valores relativos à comparticipação financeira, pela frequência nas respostas sociais de Centro de Dia e de Serviço de Apoio Domiciliário.

12. Na verdade, as declarações prestadas pelos Arguidos e pela Arguida Associação, por intermédio daqueles, respeitante aos mapas mensais de frequência de utentes de Centro de Dia e Serviço de Apoio Domiciliário, no período de janeiro de 2013 a dezembro de 2019, são falsas, não correspondem à realidade.

13. Os Arguidos e a Arguida Associação, por intermédio daqueles, incluíram o número de identificação da segurança social (NISS) de pessoas singulares com uma prestação de serviços da qual os utentes não beneficiaram, apurando-se um número de serviços inferior ao declarado.

14. Nos mapas mensais enviados pela Associação respeitantes ao período compreendido entre janeiro de 2013 e dezembro de 2019, foi declarado o seguinte utente, que não reunia as condições essenciais para beneficiar da resposta social de Serviço de Apoio Domiciliário e a quem não foi prestado o número mínimo de serviços requeridos:

15. Os Arguidos e Arguida Associação, por intermédio daqueles, incluíram nas relações/listas mensais os utentes aos quais não foi prestado o número de serviços mínimos requeridos para o pagamento de comparticipações da Segurança Social pela Arguida Associação, na totalidade ou em parte do período em causa, conforme consta da seguinte tabela:

16. Com a supradescrita conduta, a Arguida Associação recebeu, indevidamente, os valores correspondentes à diferença entre a frequência declarada e a frequência efetiva, em cada mês.

17. Assim, pela inserção de dados que não correspondiam à realidade, os Arguidos conseguiram que a Arguida Associação recebesse comparticipações, a que não tinha direito, da Segurança Social no valor total de € 324.291,66 (trezentos e vinte e quatro mil duzentos e noventa e um euros e sessenta e seis cêntimos).

18. Para além da conduta supradescrita os Arguidos e a Arguida Associação, por seu intermédio, incluíram ainda nas listagens de Serviço de Apoio Domiciliário, utentes que se encontravam integrados em Estrutura Residencial para Pessoas Idosas e que nesta resposta não receberiam qualquer comparticipação da Segurança Social, por excederem o número de utentes incluídos no acordo de cooperação, conforme informação que consta da seguinte tabela :


249, 66


254,90


260,51


269,63

Nome
NISS
DTA


ADMISSÃO


ERPI

DECLARAÇÕES DE


FREQUÊNCIA SAD

RS
2016
2017
2018
2019
TOTAL (Euros)
EE


FF

...56
Julho


2016

Julho 2016/julho


2018

SAD100


%

1497,96
3058,80
1823,57
-------


-

6380,33
GG
...17
Novembro


2016

Novembro


2016/junho 2018

SAD


100%

499,32
3058,80
1563,06
-------


-

5121,18
HH
...27
Janeiro


2015

Janeiro


2016/junho 2018

SAD


100%

2995,92
3058,80
1563,06
7617,78
II


JJ

...12
Janeiro


2016

Janeiro


2016/junho 2018

SAD


100%

2995,92
3058,80
1563,06
7617,78
KK
...60
Abril


2017

Abril


2017/janeiro 2019

SAD


100%

----


---

2294,10
3126,12
269,63
5689,85
LL
...46
Maio
Maio 2017/junho
----
2039,20
1563,06
-------
3602,26
MM
2017
2018
----
Jo


...

...78
Março


2017

Março


2017/novembro

SAD


100%

----


---

2549,00
2865,61
-------


-

5414,61
EE

NN

...60
Novembro


2017

Novembro


2017/setembro


2018

SAD


100%

----


----

509,80
2605,10
-------


--

3114,90
OO


...

...49
Outubro


2017

Outubro


2017/setembro


2018

SAD


100%

----


----

764,70
2605,10
3369,80
PP


QQ

...11
Novembro


2018

Novembro e


dezembro 2018

SAD


100%

----


----

-------
521,02
521,02
AA

RR

...44
Abril


2018

Abril


2018/dezembro


2019

SAD


100%

----
-------
2344,59
269,63
2614,22
TOTAL
19. Assim, a Arguida Associação, por intermédio dos Arguidos, também conseguiu receber da Segurança Social comparticipações, a que não tinha direito, no montante total de € 51.063,73 (cinquenta e um mil e sessenta e três euros e setenta e três cêntimos).

20. E os Arguidos e a Arguida Associação dos Amigos de ..., por intermédio daqueles, no período de janeiro a dezembro de 2015, incluíram nas listagens de Centro de dia - resposta social, encerrada em data não concretamente apurada, a utente HH (NISS ...27), que frequentava a resposta social de Estrutura Residencial para Pessoas Idosas.

21. Com a referida inclusão que fizeram os Arguidos e a Arguida Associação por intermédio daqueles, a Arguida Associação conseguiu receber da Segurança Social comparticipações a que não tinha direito, na quantia de € 1.284,48 (mil duzentos e oitenta e quatro euros e quarenta e oito cêntimos), conforme consta da seguinte tabela:


APURAMENTO DE COMPARTICIPAÇÕES FINANCEIRAS CD
107.04€
NOME
NISS
DTA ADMISSÃO ERPI
DECLARAÇÕES DE FREQUENCIA CD
2015
TOTAL
FM
…27
jan/15
Janeiro2015 a dez2015
1.284,48
1.284,48

22. Com a supradescrita conduta de todos os Arguidos, a Arguida Associação dos Amigos de ... conseguiu obter o processamento de valores indevidos, recebendo comparticipações a que não tinha direito, no período compreendido entre janeiro de 2013 e junho de 2019, no montante total de € 376.639,87 (trezentos e setenta e seis mil seiscentos e trinta e nove euros e oitenta e sete cêntimos).

23. No âmbito da cooperação existente entre o Estado e as IPSS, ou instituições equiparadas, e porque as mesmas substituem o Estado concretizando objetivos de solidariedade social, através do desenvolvimento de respostas sociais de reconhecido interesse geral, o Estado, através dos Centros Distritais territorialmente competentes, para além do apoio técnico, apoia-as financeiramente.

24. Tal apoio financeiro efetiva-se através de transferências mensais, que têm por base o registo feito pelas associações/instituições numa aplicação informática, disponível através da Segurança Social Direta (SSD).

25. Nessa aplicação as associações/instituições inserem, obrigatoriamente, até ao dia 10 (dez) de cada mês, a identificação nominal dos utentes, através do respetivo Número de Identificação da Segurança Social (NISS).

26. E, assim, a Segurança Social obtém a listagem dos utentes para efeitos de comparticipações no âmbito das respostas sociais.

27. Relativamente às quantias referentes aos factos provados em 10. a 14. e 16. a 22. dos Factos Provados, os Arguidos e a Arguida Associação, por intermédio daqueles, resolveram obter à custa do erário público, concretamente, à custa da Segurança Social, comparticipações no âmbito de respostas sociais a que sabiam não ter direito.

28. Para lograr tal propósito, os Arguidos e a Arguida Associação, por intermédio daqueles, colocaram nas mencionadas listagens nomes de utentes que não podiam integrar tais listagens, o que lograram fazer durante os mencionados anos.

29. Todos os Arguidos conheciam todos os utentes da Arguida Associação, bem sabendo quem tinham (ou não) que inserir nas listagens.

30. Os Arguidos e a Arguida Associação, por intermédio daqueles, criaram a aparência de uma situação que não correspondia à realidade, concretamente, colocando o número e nome de utentes, que, na verdade, não poderiam integrar as supramencionadas listagens, prestando à Segurança Social declarações que não correspondiam à realidade e colocando informação que não correspondia à realidade nos formulários próprios para prestar as supramencionadas declarações à Segurança Social.

31. Com a supradescrita atuação todos os Arguidos determinaram que a Segurança Social procedesse ao processamento de atribuições patrimoniais indevidas.

32. E, assim, determinaram que a Segurança Social atribuísse as mencionadas quantias à arguida Associação dos Amigos de ..., a título de comparticipação prestada nos termos dos acordos de cooperação celebrados para as referidas respostas sociais, o que não teria sucedido se os Arguidos não agido nos termos suprarreferidos.

33. Todos os arguidos determinaram que a Segurança Social atribuísse à Arguida Associação as suprarreferidas avultadas quantias, resultando enriquecimento ilegítimo/indevido para todos os Arguidos.

34. Todos os Arguidos atuaram em conjugação de esforços para obter as supramencionadas quantias em benefício da Arguida Associação e em seu próprio benefício, na qualidade de dirigentes e responsáveis pelo conteúdo das referidas declarações, quantias essas que sabiam que os próprios e a Arguida Associação não tinham direito, ainda assim, atuaram, querendo e conseguindo obter as mencionadas contribuições, de valores avultados.

35. Notificados os Arguidos para procederem à reposição das quantias ilegitimamente/indevidamente recebidas, os mesmos não procederam à respetiva reposição.

36. Os Arguidos AA, BB e CC tinham perfeito conhecimento da forma de obtenção das referidas comparticipações/contribuições, exerciam as funções descritas na Associação dos Amigos de ..., tinham capacidade para compreender as consequências da sua conduta.

37. Os Arguidos, por si e em representação da Associação Arguida agiram da forma descrita de forma reiterada, em situações que se foram repetindo e de forma homogénea, aproveitando a oportunidade favorável à prática dos factos ilícitos, dado que após a prática dos primeiros factos, não foram alvo de penalização e verificaram persistir as possibilidades de repetir a sua conduta.

38. Todos os Arguidos agiram livre, voluntária, deliberada e conscientemente, tendo o propósito conseguido de obter comparticipações/benefícios patrimoniais a que sabiam não ter direito e, simultaneamente, de causar um prejuízo para o Estado, nomeadamente, à Segurança Social, conforme causaram.

39. Os Arguidos bem sabiam que as supradescritas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal.

40. Em momentos não concretamente apurados, os utentes do SAD solicitavam que não fossem prestados os serviços de higiene da casa, por razões de privacidade pessoal.

41. No período temporal compreendido entre 2013 e 2019 foi prestado, à generalidade dos utentes da Associação Arguida, serviço de alimentação diária.

42. Todos os dias, desde data não concretamente apurada, os utentes eram contactados por funcionários da Associação, entre uma a duas vezes por dia.

43. Pelo menos entre 2013 e 2014 com uma frequência semanal e, após essa data, com frequência quinzenal, eram prestados serviços de enfermagem aos utentes.

44. Esporadicamente, com frequência não concretamente apurada, mas inferior a uma vez por semana e em utentes não concretamente apurados:

a) Eram realizados cortes de cabelo;

b) Eram feitas compras no interesse destes;

c) Eram acompanhados a eventos lúdicos;

d) Eram auxiliados na recolha de lenha e de ovos nos seus galinheiros.

45. Aquando da inspeção realizada pela Segurança Social, a visita decorreu sem constrangimento e os intervenientes colaboraram no desenvolvimento da ação de fiscalização.

46. Entre 2013 e 2019 a Associação Arguida sempre enviou à Segurança Social os relatórios devidos.

47. A Segurança Social, através dos seus técnicos, realizava visitas de acompanhamento à Associação, com uma periodicidade de cerca de 2 em 2 anos.

48. Na sequência das visitas mencionadas em 47., a Segurança Social propunha medidas corretivas.

49. Da cláusula 2.º, alínea b) do Acordo de Cooperação celebrado entre o Centro Regional de Segurança Social da ... e a Associação Arguida resulta que a instituição se obriga a “c) Ter em consideração as instruções emanadas pelos serviços competentes do Ministério da Tutela, em matéria de recursos humanos e ainda no que respeita à comparticipação dos utentes e famílias pela utilização de bens e serviços.

50. Os Arguidos não têm antecedentes criminais.

51. A Associação Arguida tem cerca de 72 pessoas em ERPI, em apoio domiciliário 17 pessoas, tem uma condição económico-financeira boa, é proprietária do edifício do lar, tem o museu rural, tem uma garagem, cerca de 4 prédios rústicos e tem um edifício com 3 apartamentos e loja comercial sito em ..., ..., tendo sucessivamente resultados positivos, não tendo quaisquer empréstimos.

52. O arguido AA aufere mensalmente cerca 1300,00€, da profissão de assistente técnico na CCDR ..., é socio gerente de uma empresa, que detém 2 apartamentos, estando um arrendar. Vive em casa própria, com a sua esposa, está reformada por invalidez com cerca de 700,00€, não tendo mais encargos mensais relevantes. Tem um lote de terreno na ..., cerca de 75.000,00 e um veículo mercedes de 2016, pelo qual nada paga.

53. A arguida BB tem como rendimentos mensais cerca de 1100,00€ do seu trabalho que presta na associação, vive sozinha em casa própria, não pagando qualquer empréstimo pela mesma, nem tendo outras despesas mensais relevantes. Tem ainda um veículo, Nissan juke do ano de 2024.

54. A arguida CC auferindo cerca de 1000€ do seu trabalho, vive com marido e duas fulhas de 17 e 14 anos. O marido é técnico superior e não sabe o seu salário, fazem divisão de despesas. Vive em casa com empréstimo bancário, de cerca de 500,00€. Renault Captur de 2020, pagando um empréstimo de 190€ mensais.


*

B. Factos não provados:

Com relevo para a decisão a proferir, ficaram por provar os seguintes factos:

a) Relativamente às quantias recebidas, elencadas no ponto 15. dos Factos Provados, os Arguidos agiram por si e a Arguida Associação, por intermédio daqueles, e resolveram obter à custa do erário público, concretamente, à custa da Segurança Social, comparticipações no âmbito de respostas sociais a que sabiam não ter direito.


*

C. Motivação:

O tribunal apreciou livremente a prova produzida, através da análise crítica e conjugada dos elementos probatórios carreados para os autos, à luz das regras da experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (artigo 127.º, do Código de Processo Penal).

Quanto à prova testemunhal:

1) SS, inspetora do Núcleo de Fiscalização de Equipamentos Sociais (NFES) da Unidade de Fiscalização do Centro;

2) TT, inspetora do Núcleo de Fiscalização de Equipamentos Sociais (NFES) da Unidade de Fiscalização do Centro;

3) UU, Assistente Social do Centro Distrital da Segurança Social da ...;

4) VV;

5) WW, ajudante de acção directa na Associação Arguida, que foi funcionária do Lar da Associação Arguida;

6) XX, auxiliar ao serviço da Associação Arguida;

7) YY, que disse ser amigo dos Arguidos, sendo que tem um estabelecimento comercial que efectua algumas vendas

8) ZZ, que foi funcionário do Lar pertencente à Associação Arguida;

9) AAA, que foi funcionária do lar da Associação Arguida

Em concreto, quanto aos documentos, sopesou o Tribunal os seguintes:

a. Relatório de fls.6 e seguintes;

b. Notificações para reposições de verbas de fls.358 a 368;

c. Pareceres de fls. 92 e seguintes e de 122 e seguintes, 186 e seguintes e 209 e seguintes, 222 e seguintes e 422 e seguintes;

d. Assentos de óbito de fls. 447 a 451;

e. Acordo de cooperação junto a fls. 151 a 152 verso

f. Mapa de fls. 155 a 156;

g. Contratos de prestação de serviços e declarações de fls. 149 a 150 e 158 a 159, 161 a 163, 165 a 169, 170 a 175;

h. Acordo de cooperação ode fls.176 e seguintes;

i. Relatórios, documento e e-mails juntos em sede de diligências instrutórias pelos Arguidos (e-mail de 07-12-2023, referência CITIUS n.º 2311724)

j. Documento intitulado de Guião – Estrutura Residencial para Pessoas Idosas e respectivos anexos de fls. 240 a 253.

k. Estatutos da Associação Arguida de fls. 399v e seguintes;

l. Documento junto com a contestação: Relatório de serviço domiciliário de fls.614 e seguintes.

m. E-mail de 21/10/2024 remetido pela Segurança Social com a listagem de declarações remetidas através da Segurança Social Directa referentes aos serviços prestados pela Associação Arguido em Serviço de Apoio Domiciliário.

n. CD de fls. 706, do qual consta a documentação remetida pela Segurança Social por ofício de 18/10/2024:

a. Faturação de 2015 a 2019, faturação utentes ERPI Declarados em SAD, processos individuais de utentes SAD

b. 01 _ Listagem utentes ERPI janeiro 20.pdf

c. 02 _ Processo Individual Utente ERPI declarado SAD BBB.pdf

d. 03 _ listagem utentes SAD efetuada pela DT-1 Serv Alim.pdf

e. 04 _ registos Sad1.pdf

f. 05 _ Registos SAD.pdf

g. 06 _ registos parâmetros saúde SAD.pdf

h. 07 _ Auto Declarações Presidente.pdf

i. 08 _ Relatório inicial com despacho_ 20004407296.pdf

j. 09 _ PRONUNCIA Associação Amigos ....pdf

k. 10 _ RF _ com parecer _ 20004407296 - ASSOCIAÇÃO DOS AMIGOS.pdf

Anexos I a XXX, correspondentes a trinta dossiers dos quais constam os registos individuais de utentes, facturação e registos de prestação de serviços no âmbito do Serviço de Apoio Domiciliário relativos aos utentes cujos serviços prestados pela Associação Arguida estão em causa nos presentes autos.

Tiveram-se ainda em conta as declarações prestadas pelos Arguidos, que acabaram por admitir grande parte dos factos que estavam em causa nos autos, apenas considerando que as suas condutas não representam qualquer infracção criminal, quanto muito, podendo ter originado a obtenção de pagamentos indevidos que representam uma mera irregularidade administrativa, e, ainda assim, não de forma total uma vez que afirmam ter prestado serviços a todos os utentes em causa nos presentes autos, gerando uma mais-valia para o Estado.

Concretizando.

As testemunhas SS e CCC, inspectoras da Segurança Social, prestaram esclarecimentos completos e precisos, com plena referência ao relatório elaborado, de forma que permitiram formar a convicção do Tribunal, porque também confrontados com os documentos que os instruíram, juntos aos autos já em sede de julgamento, conferindo uma total credibilidade, também pela forma como foram prestados. Tais depoimentos, que são os mais relevantes nos autos, em face do cariz dos factos aqui em julgamento, foram, juntamente com os referidos documentos, e que infra se explicitará, a prova mais relevante para formação da convicção do Tribunal, aliada ainda às declarações dos próprios Arguidos, que acabaram, como já se disse, por confirmar grande parte dos factos, e das testemunhas que prestaram funções na Associação Arguida, fundamentais também para aferir de quem dirigia efectivamente a associação.

A extensão documentação junta aos autos, e bem assim a sua análise, sendo de difícil explanação na presente motivação, foi também a pedra de toque para que se pudesse, além da dúvida, considerar provadas os factos suportados e expostos no relatório e pareceres da Segurança Social que fundamentaram a acusação e pronúncia. Procedeu o Tribunal ao seu confronto, permitindo-se aferir que as conclusões do relatório final, e os factos aí explicitados quanto aos utentes, datas de frequência, facturação e respectivos valores, que se verificaram indevidamente pagos, estão em plena concordância com o vertido nos relatórios, o que permitiu que o Tribunal pudesse julgar, para além da dúvida, como provados os factos pelos quais vinham os Arguidos pronunciados, em especial os pontos 12 a 22. dos Factos Provados.

Os pontos 1. a 9., 11. e 23. a 26. não são alvo de qualquer controvérsia, resultando provados pelos documentos referidos supra, nomeadamente, os estatutos da sociedade, os pareceres da Segurança Social e acordos de cooperação, conjugados com as declarações prestadas pelos próprios Arguidos, que admitiram a sua concreta qualidade que os liga à Associação Arguida, ao conhecimento da existência dos acordos de cooperação e bem assim todo o funcionamento atinente ao mesmo. Consideraram-se ainda os depoimentos das testemunhas UU, funcionária da Segurança Social que acompanhou a actividade da Associação Arguida de perto, identificando com quem lidava e contactava, e bem assim toda a forma como funcionavam os acordos de cooperação e o que estes acarretavam para a Associação, de SS que participou directamente na fiscalização ocorrida em Janeiro de 2020, tendo tomado conhecimento directo de toda a documentação de suporte ao relatório que elaborou e bem assim de todos os passos levados a cabo em tal fiscalização, e de TT, que igualmente participou na fiscalização e bem assim das funcionárias da Associação Arguida VV, WW, XX e DDD, que identificaram os arguidos como sendo quem dirigiam e davam ordens em nome da Associação Arguida, nas funções indicadas.

Deste modo, não restaram dúvidas sobre a qualidade e forma de intervenção de cada um dos Arguidos, seu total conhecimento do funcionamento dos acordos de cooperação e modo de obtenção das comparticipações, e tudo quanto tal acarretava, pelo que se consideraram como provados os factos referidos.

Relativamente aos factos descritos em 10 e 12 a 22, em face da extensa prova documental junta aos autos, em conjugação com as declarações prestadas pelo Arguidos e pelas testemunhas SS, TT, UU e as também referidas testemunhas que prestam ou prestaram funções ao serviço da Associação Arguida no período em causa nos autos, de janeiro de 2013 a dezembro de 2019, e, bem assim, as regras da experiência comum e da normalidade da vida.

Desde logo, da concatenação das declarações prestadas pelos Arguidos tem-se como indiciado que eram, efetivamente, os Arguidos pessoas singulares quem elaborava as listas para a Segurança Social, sendo posteriormente remetidas pela Diretora Técnica, a Arguida CC.

Embora o arguido AA tivesse procurado fazer crer que a elaboração das listas não passava por si, apenas competindo às Arguidas BB e CC, dúvidas inexistem do efectivo e real conhecimento de todos os procedimentos e decisões relativas à elaboração de tais listas, e à forma, no fundo, como obtinha a Associação Arguida uma das mais importantes, se não a principal, fonte de rendimentos. Independentemente de quem elaborava os documentos preparatórios ou efectivamente acedia ao programa através da password, a verdade é que todos os arguidos AA, BB e CC participavam de modo efectivo nesses procedimentos (ponto 10).

Concretamente quanto aos pontos 12 e 16 a 22, os Arguidos, nas declarações prestadas, acabaram por confessar os mesmos, apenas conferindo um diferente “enquadramento”, atribuindo convicções e motivações, considerando no seu íntimo que, desse modo, não cometeriam nenhum crime. Ora, como é óbvio de concluir, tais motivações ou convicções não são aptas a afastar que o Tribunal considere como provada a factualidade aqui em questão, que foi plenamente admitida pelos Arguidos, chegando mesmo a ser afirmado, como pelo Arguido AA, que o fizeram de plena consciência e não por qualquer lapso ou falta de zelo, inclusivamente discutindo tais decisões em reunião.

Especificamente no tocante ao facto enunciado em 18., afirmaram os Arguidos de forma coincidente que, pese embora tenham feita constar na listagem de utentes em benefício de serviços de apoio domiciliário que se encontravam em ERPI, que tal situação seria meramente transitória, com vista a que recuperassem de agravamento de situações de saúde e voltassem a residir em suas casas, revelaram de forma inequívoca que praticaram os factos descritos, tendo ainda declarado que o faziam porque tais utentes perderiam o direito ao apoio ou, como melhor se deverá dizer, que a Associação Arguida perderia a comparticipação da Segurança Social.

Ainda, da documentação de facturação junta aos autos pela Segurança Social a determinação do Tribunal, e bem assim dos registos individuais de utentes, quando confrontados com as listagens remetidas pelos Arguidos (juntas aos autos também, quanto ao SAD e listagem de utentes em ERPI, com o CD de fls.706), com plena coincidência com o teor dos pareceres elaborados pelas Inspectoras da Segurança Social, permite afirmar e dar como provados todos os valores constantes dos pontos aqui em análise.

Tais declarações e documentos são ainda corroborados pelos depoimentos prestados pelas testemunhas VV, WW e DDD, trabalhadoras que prestaram funções para a Associação Arguida relataram que, no exercício das suas funções, trabalham diretamente com utentes ERPI e SAD, tendo asseverado que os utentes ali elencados se encontram integrados em tal apoio social pelo menos desde a data em que começaram a trabalhar na Associação Arguida, e com os documentos de fls. 240 a 245 verso, e bem assim pelo parecer da Segurança Social e todos os documentos que os suportam, já enunciados, permitiram ao Tribunal firmar a sua convicção quanto ao facto indiciado em 19.

Já no que respeita à inserção de uma utente na listagem de Centro de Dia quando a mesma se encontrava integrada em ERPI, (ponto 21), tal resulta indiciado em face do relatório da Segurança Social e os documentos já referidos, em conjugação com o depoimento das testemunhas VV e WW que atestaram que a utente ali identificada sempre esteve integrada naquele apoio social até falecer.

Ainda, quanto aos pontos 15, e 41 a 44 resultou da análise conjugada das declarações prestadas pelos Arguidos, o depoimento de todas as testemunhas e o acervo documental junto, mormente o relatório de fls.6 e seguintes, o mapa de fls. 155 a 156, os contratos de prestação de serviços e declarações de fls. 149 a 150 e 158 a 159, 161 a 163, 165 a 169,, 170 a 175 e, bem assim, os relatórios, documento e e-mails juntos em sede de diligências instrutórias pelos Arguidos (e-mail de 07-12-2023, referência CITIUS n.º 2311724) e em sede de contestação, e bem assim dos mapas e listagens juntas pela Segurança Social, já referida, e o constante dos Anexos respeitantes aos registos individuais de utentes, facturação e registo de serviços prestados em serviço de apoio domiciliário, tendo o Tribunal formado plena convicção da sua prova.

Quanto ao utente DD, foi pelos Arguidos peremptoriamente afirmado que bem sabiam não poder este, em razão da idade ser incluído nas listagens, e também que o mesmo apenas usufruía dos serviços de alimentação e os referidos em 41. a 44., não obstante, assim o mantiveram incluído na resposta social de Serviço de Apoio Domiciliário quando o mesmo não reunia para tanto condições (ponto 14), convicção que sai ainda reforçada pela declaração de fls.170.

Quanto ao ponto 35., resulta provado pelas notificações dirigidas aos Arguidos, e bem assim as sus próprias declarações, onde assumiram não terem procedido ao pagamento de qualquer quantia, pois que, apesar de ter havido uma tentativa de se elaborar um plano de pagamento, chegando-se a um valor “justo”, tendo em conta que foram efectivamente prestados serviços a todos os utentes, apenas surgindo irregularidades nos montantes comparticipados e que, perante a “passagem” do processo para o âmbito criminal, não mais foi possível fazer qualquer acordo com a Segurança Social.

O facto 47. resultou, da conjugação das declarações prestadas pelas Arguidas BB e CC, e, lateralmente, do depoimentos de UU, Técnica Superior do Centro Distrital de Segurança Social da ... que acompanhou a Associação entre 2014 e 2019, não obstante tenha esta última acabado por afirmar que a Segurança Social actua “na base da confiança”, inexistindo uma forma de se verificar quais os efectivos serviços prestados, sendo o acompanhamento não com um tom de reprimir, mas sim ajudar a que as valências e serviços sejam prestadas da melhor forma possível, assegurando o bem-estar dos utentes.

Os factos enunciados em 40. a 46. e 48. resultaram das declarações dos Arguidos, do depoimento da testemunha EEE e dos relatórios juntos identificados com a referência CITIUS n.º 2311724), concatenados entre si, e quanto ao ponto 40. também confirmado pela testemunha XX, que trabalha desde 2009 no serviço de apoio domiciliário, prestando um depoimento credível quanto à forma como ocorriam os serviços prestados.

O ponto 49. resultou da análise do acordo de cooperação junto a fls. 151 a 152 verso, que não foi por qualquer modo infirmado.

No que toca aos pontos 27. a 34. e 36. a 39. resultaram provados pela conjugação da prova documental já enunciada, declarações dos próprios Arguidos, conjugadas com as regras da experiência comum e do normal acontecer dos eventos. Os factos descritos, tendo em conta toda a restante factualidade, permitem concluir que os Arguidos, comunicaram factos à Segurança Social, que sabiam permitir-lhes obter as comparticipações constantes dos acordos de cooperação, bem sabendo que não correspondiam à realidade, para obter tais pagamentos.

Com tal atitude, resulta provado que os Arguidos pretendiam obter comparticipação que sabiam não ser a devida para a Associação Arguida, o que conseguiram, atuando em comunhão de esforços de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei, conforme resulta das regras da lógica e experiência comuns e atuando de forma essencialmente homogénea,

No que respeita aos elementos subjetivo do crime os mesmos inferem-se da conjugação dos factos que compõem os elementos objectivos, com as regras da experiência comum. Pertencendo os mesmos à vida interior de cada um, decorrem da conjugação da factualidade objectiva apurada com as regras da normalidade e da experiência comum do julgador. Com efeito, é inequívoco que qualquer cidadão, agindo como agiram os Arguidos AA, BB e CC, apenas o poderão fazer com a intenção de praticar os factos, como efetivamente o fizeram, de forma livre, deliberada (pretendendo, assim, a realização do facto) e consciente (representando todas as circunstâncias do facto), com pleno conhecimento de que tal conduta é prevista e punida por lei. E quem actua como o arguido actuou, sem qualquer interferência de elemento perturbador da capacidade intelectual e volitiva, não pode deixar de querer actuar como descrito, de ter consciência da proibição da conduta e de conformar-se com as consequências legais da mesma.

Para a prova dos elementos volitivos, basta-se somente que dos factos praticados resulte, objectivamente, que quem agiu do modo evidenciado não poderia, de acordo com padrões de normalidade e à compreensão da maioria das pessoas, pretender outra coisa que não a descrita, mesmo tendo verbalizado que consideravam os Arguidos nada de mal fazer, agindo com justificações que consideram “nobres” e em auxílio dos mais necessitados, estes nunca poderiam ignorar que o que faziam era ilícito. Assim, para prova dos elementos subjectivos considerou-se o encadeamento sequencial e lógico dos restantes factos provados conjugados com as regras da experiência, sendo certo que os Arguidos AA, BB e CC tinham de saber que ao prestar declarações falsas nos termos aduzidos, obteriam comparticipações que sabiam não ser devidas, praticando actos proibidos por lei.

Resulta, assim, do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas, de acordo com as regras da razoabilidade e da experiência comum, já que o dolo e o conhecimento são realidades não directamente apreensíveis, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum, que os Arguidos praticaram os factos, nos termos em que resultaram provados, agindo também em representação da Associação Arguida.

O ponto 50 resultou provado pelos certificados de registo criminal dos Arguidos, dos quais nada consta.

Quanto aos pontos 51 a 54, resultaram provados pelas declarações prestadas pelos Arguidos, que se reputaram como credíveis, nada existindo que seja apto a infirmá-las.

*

Quanto ao ponto não provado a), e diferentemente quanto ao agora acabado de expor, quanto às quantias elencadas no ponto 15., não se pode afirmar que os Arguidos tivessem resolvido obter à custa do erário público, concretamente, à custa da Segurança Social, comparticipações no âmbito de respostas sociais a que sabiam não ter direito.

Ora, do compulso dos autos, nomeadamente dos registos individuais de utente e registo de serviços prestados pela Associação Arguida, relativamente a cada utente, juntos com os Anexos referidos supra, da documentação junta pela Segurança Social, nomeadamente as listagens comunicadas pelos Arguidos relativas aos serviços prestados no âmbito do Apoio Domiciliário, não permitem concluir que os arguidos tenham agido com propósito de lesar o erário público, fazendo comunicações falsas, e bem sabendo que obtinham uma comparticipação indevida. Ora, da prova produzida, e como resultou provado, todos os referidos utentes na listagem do ponto 15. receberam serviços prestados, serviços de alimentação, contactos telefónicos, serviços de enfermagem, cortes de cabelo, acompanhamentos a compras, e outros auxílios característicos das zonas rurais (cfr. factos provados 40. a 44.). Das listagens remetidas pelos Arguidos à Segurança Social, foram comunicados os serviços que eram prestados, como se comprova do confronto entre os registos da Associação e das listagens remetidas, sendo que a insuficiência dos referidos dois serviços mínimos no protocolo, deveria ser aferida pela Segurança Social. Assim, ao enviarem os Arguidos as listagens, que os obrigava a especificar serviços prestados, apenas poderia resultar nestes a convicção de que, preenchendo as listas e sendo sucessivamente pagas as comparticipações, nada haveria de erroneamente preenchido.

De tal realidade apenas se poderá colocar em causa que os Arguidos ao declarar que prestavam serviço de teleassistência, tinham de ter conhecimento que tal não correspondia à verdade, uma vez que, como é manifesto, o serviço telefónico prestado não correspondia ás exigências da teleassistência, conforme definida nas orientações prestadas pela Segurança Social.

No Protocolo atinente ao biénio 2013-2014, no seu artigo 7.º n.ºs 1 e 2, que:

“1. O Serviço de Apoio Domiciliário (SAD) inclui os serviços que constam do elenco do n.º 2, para a satisfação das necessidades físicas e psicossociais das pessoas e ou a realização de atividades instrumentais da vida diária, com um mínimo de dois serviços considerados indispensáveis.

2. O SAD deve reunir condições, preferencialmente, para prestar quatro dos seguintes serviços:

a) Higiene pessoal;

b) Higiene habitacional;

c) Alimentação;

d) Tratamento de roupas;

e) Serviço de Teleassistência;

f) Serviço de animação/socialização que abrange, no mínimo quatro atividades semanais que podem variar entre animação, lazer, cultura, aquisição de bens e de géneros alimentícios, pagamento de serviços, deslocação a entidades da comunidade.”

Com vista ao auxílio da prossecução de acordos SAD, foram emanadas orientações pela Tutela, no documento intitulado “FAQ’s - Operacionalização da revisão dos acordos de cooperação SAD”, a cuja consideração na sua atuação a Associação Arguida, por intermédio das pessoas singulares que em seu nome e interesse agissem, se encontra vinculada por força do acordo de cooperação celebrado em 1994.

Consta do referido documento que «f) O serviço de teleassistência deverá assegurar, pelo menos o seguinte: - Um serviço através de uma linha telefónica e com um equipamento de comunicações e informático específico, ligado a um centro de atendimento permanente, que permita a pessoas idosas ou em situação de dependência, carregar num botão e sem qualquer dificuldade entrar em contacto verbal “mãos livres”, 24 horas por dia, 365 dias por ano, com um centro, atendido por pessoal especializado, para dar resposta à crise/situação apresentada, bem como por si mesmo mobilizar outros recursos, humanos e materiais, adequados ao utilizador e existentes na comunidade.» Apesar do exposto, ficou o Tribunal na dúvida em considerar tal comunicação de teleassistência como uma intenção de engano para obter uma vantagem indevida, tendo, nesta parte, as justificações apresentadas pelos Arguidos total nexo (o que, de todo não acontece nas demais declarações prestadas quanto aos utentes que não frequentavam as valências que eram declaradas), pela própria forma como se apresentava e funcionava o acordo de cooperação. Assim, não obstante o exposto, não é possível retirar-se da actuação dos Arguidos a sua real consciência de que estariam a obter uma comparticipação indevida, pois que, se estavam incumbidos da obrigação de comunicar os serviços prestados, havendo posteriormente um pagamento, é certo concluir que estes actuassem com convicção de que tudo decorria na normalidade, sendo as suas declarações validadas e pagas as comparticipações, pois que aquilo que declaravam, correspondia à realidade dos serviços prestados, como se comprova pelos documentos referidos supra.

Assim, e não obstante se considerar que os valores obtidos não eram devidos, por falta de cumprimento dos requisitos mínimos fixados no acordo de cooperação, conforme resultou provado, pela forma como funcionava o presente acordo e pelo já exposto, subsiste a dúvida a este Tribunal quanto à actuação dos Arguidos com intenção de obter vantagem indevida, apenas poderá julgar-se como não provada a factualidade referida.


*


II.3- Apreciação do recurso

Como vem sendo unanimemente defendido na jurisprudência a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: através do âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal ou mediante a impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do referido diploma legal.

No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios formais, também designados de vícios decisórios, que se encontram previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, que, conforme decorre do referido preceito legal, devem resultar do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, não se estendendo, pois, a outros elementos, nomeadamente que resultem do processo, mas que não façam parte daquela decisão, sendo, portanto, inadmissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento [Cf. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed. Pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e ss.]. Tratam-se, portanto, de vícios intrínsecos da sentença que visam o erro na construção do silogismo judiciário.

No segundo caso estamos perante um erro do julgamento [designadamente na apreciação da prova] cuja apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, sempre tendo presente os limites fornecidos pelo recorrente em obediência ao ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal.

Não se poderá esquecer, portanto, que o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio jurídico com vista a colmatar erros do julgamento na forma como apreciou a prova, na perspetiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente, sendo, portanto, manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova.

Assim refere Damião Cunha [O caso Julgado Parcial, pág. 37], ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica e não como «novos julgamentos».

“O recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros [Cf.  neste sentido, Acórdão do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, acessíveis em www.dgsi.pt].


*
 II.3.1 Da impugnação da matéria de facto – art. 412º do Código de Processo Penal

Alega o recorrente que o Tribunal a quo julgou erradamente os pontos 9, 10, 28, 29, 34, 36 e 38  dos factos provados.

Invoca para o efeito que apesar de toda a prova produzida nada existe que possa fazer a imputação à arguida CC de qualquer decisão/resolução de incluir nas listagens de utentes quaisquer serviços ou de declarar os utentes que frequentassem as ERPI nas listagens de SAD. Mais entende que da prova produzida resulta, sem margem para dúvidas, que a decisão  pertenceu aos diretores da Instituição e não à diretora técnica.

Invoca para fundamentar esse erro de julgamento as declarações prestadas pela arguida BB e muito concretamente entre as 11h18m e as 11h22m e ao minuto 1.14.00.

Conforme decorre do artigo 412.º do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “motivação do recurso e conclusões”:

“1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

2 - Versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda:

a) As normas jurídicas violadas;

b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido interpretou cada norma ou com que a aplicou e o sentido em que ela devia ter sido interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e

c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.

3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas. [sublinhado nosso].

No nº4 do mesmo artigo prevê-se que: “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação(sublinhado nosso).

E no nº6 “No caso previsto no nº 4 o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa” .

Impõe-se, pois, ao recorrente, versando o recurso matéria de facto, especificar os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa.

Tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada facto as provas concretas que impõem decisão diversa e bem assim tem de ser referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.

A impugnação da decisão da matéria de facto, pela via mais ampla prevista no artigo 412º, do C.P.P., tendo havido documentação da prova produzida em audiência, com a respetiva gravação, impõe ao recorrente, como sobredito, o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos dos seus nºs 3, 4 e 6.

Exige-se ao recorrente, quando impugna a matéria de facto, a especificação dos concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, o que só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que considera indevidamente julgado.

Para além disso, a especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, o que se traduz na anotação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que acarreta decisão diversa da recorrida, a que acresce a necessidade de explicitação da razão pela qual essa prova implica essa diferente decisão, devendo, por isso, reportar o conteúdo específico do meio de prova por si invocado ao facto individualizado que considere mal julgado.

O recorrente terá, pois, de indicar os elementos de prova que não foram tomados em conta pelo tribunal quando o deveriam ter sido ou que foram considerados quando não o podiam ser, nomeadamente por haver alguma proibição a esse respeito, ou então, de pôr em causa a avaliação da prova feita pelo tribunal, assinalando as deficiências de raciocínio que levaram a determinadas conclusões ou a insuficiência (atenta, sobretudo, a respetiva qualidade) dos elementos probatórios em que se estribaram tais conclusões.

E, quanto às concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, resulta do nº 4 do dispositivo legal em análise que havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar as passagens (das gravações) ou os concretos segmentos de tais depoimentos em que se funda a impugnação e que no seu entender invertem a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).

Relativamente ao ónus de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida (al. b) do nº 3 do artigo 412º do Código de Processo Penal), O Supremo Tribunal de Justiça através do acórdão  nº 3/2012, publicado no DR I série, de 18.04.2012, fixou a seguinte jurisprudência:

- Se a ata contiver a referência ao início e termo das declarações, basta a indicação das passagens em que se funda a impugnação por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364 (nº 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal); – Ou, alternativamente, se a ata não contiver essa referência, a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens” dos meios de prova oral (declarações, depoimentos e esclarecimentos gravados).

Na situação presente, invocou a recorrente o segmento das declarações prestadas pela coarguida BB, na sessão da audiência de  julgamento do dia 10.09.2024, dos minutos 11h18m a 11h22m e ao minuto 1.14.00 e ss,  entendendo que estes impõem decisão diversa dos referidos pontos da matéria de facto, tendo especificado (ponto 14 da motivação) o sentido que entende deveria ter sido produzida a decisão.

Porém, analisados os referidos segmentos não cremos que estes imponham decisão diversa.

O Tribunal a quo especificou relativamente a cada um destes factos (na motivação que acima transcrevemos) as razões pelas quais entendeu que tais os mesmos estão provados.

Quanto ao ponto 9: “Os Arguidos tinham conhecimento que as comparticipações da Segurança Social eram pagas em função das respostas sociais efetivamente prestadas”.

Vemos que os segmentos invocados, em nada afetam tal raciocínio, resultando claramente da fundamentação da sentença recorrida que para além das declarações dos arguidos se tiveram em conta (entre o mais) “os estatutos da sociedade, os pareceres da Segurança Social e acordos de cooperação, conjugados com as declarações prestadas pelos próprios Arguidos, que admitiram a sua concreta qualidade que os liga à Associação Arguida, ao conhecimento da existência dos acordos de cooperação e bem assim todo o funcionamento atinente ao mesmo. Consideraram-se ainda os depoimentos das testemunhas UU, funcionária da Segurança Social que acompanhou a actividade da Associação Arguida de perto, identificando com quem lidava e contactava, e bem assim toda a forma como funcionavam os acordos de cooperação e o que estes acarretavam para a Associação, de SS que participou directamente na fiscalização ocorrida em Janeiro de 2020, tendo tomado conhecimento directo de toda a documentação de suporte ao relatório que elaborou e bem assim de todos os passos levados a cabo em tal fiscalização, e de TT, que igualmente participou na fiscalização e bem assim das funcionárias da Associação Arguida VV, WW, XX e DDD, que identificaram os arguidos como sendo quem dirigiam e davam ordens em nome da Associação Arguida, nas funções indicadas.

Deste modo, não restaram dúvidas sobre a qualidade e forma de intervenção de cada um dos Arguidos, seu total conhecimento do funcionamento dos acordos de cooperação e modo de obtenção das comparticipações, e tudo quanto tal acarretava, pelo que se consideraram como provados os factos referidos”.

Ora, não é por a testemunha referir que “era eu que fazia os recibos dos utentes e preenchia as listagens para enviar para a segurança social” e que a coarguida procedia à introdução das listagens informaticamente que afasta o conhecimento – que resulta evidenciado na sentença- dos acordos de cooperação existentes e respetivas comparticipações.

E quanto aos pontos 10, 28, 29, 34, 36 e 38,  invocando os aludidos segmentos onde a arguida BB refere que as listagens eram por si elaboradas e a colega as enviava à Segurança social, pretende dali retirar a conclusão de que a arguida CC não “organizou os dados que mensalmente foram apostos nas listagens”.

Ora, uma coisa é elaborar a listagem, seja manualmente seja com recurso aos meios informáticos, e outra é agir, como se refere no ponto 10 dos factos provados, em comunhão de esforços e intentos organizando os dados que foram apostos mensalmente nas listagens dos utentes inscritos e frequentadores das respostas sociais de ERPI, Centro de Dia ( CD) e apoio domiciliário (SAD) que foram enviados para a Segurança Social, para esta efetuar o pagamento do respetivo apoio social.

Ou como se refere nos pontos 28 e 29 dos factos provados que: “para lograr tal propósito (obter à custa do erário público comparticipações no âmbito das respostas sociais que sabiam não ter direito) os arguidos e a arguida Associação, por intermédio destes colocaram nas mencionadas listagens nomes de utentes que não podiam integrar tais listas, o que lograram fazer durante os mencionados anos” e que “ todos os arguidos conheciam todos os utentes da Arguida Associação bem sabendo quem tinham ou não que inserir nas listagens”.

Dos aludidos segmentos – mencionados no recurso -  não se retira que a arguida CC não tivesse conhecimento da organização que era feita destes dados, que não conhecesse todos os utentes e que não soubesse quais os que deveriam ou não estar integrados nas aludidas listas e bem assim que nestas estavam a ser colocados nomes de utentes que não podiam integrar as mencionadas listas, resultando até do segmento invocado das declarações da coarguida BB que era a arguida CC que enviava as listagens à segurança Social.

Aliás, não refere o recorrente porque razão haveria de dar-se maior credibilidade ao declarado pela coarguida BB, quando resulta da sentença recorrida que o coarguido AA referiu que a elaboração das listas competia às arguidas BB e CC.

Neste âmbito escreveu-se na sentença recorrida: Relativamente aos factos descritos em 10 e 12 a 22, em face da extensa prova documental junta aos autos, em conjugação com as declarações prestadas pelo Arguidos e pelas testemunhas SS, TT, UU e as também referidas testemunhas que prestam ou prestaram funções ao serviço da Associação Arguida no período em causa nos autos, de janeiro de 2013 a dezembro de 2019, e, bem assim, as regras da experiência comum e da normalidade da vida.

Desde logo, da concatenação das declarações prestadas pelos Arguidos tem-se como indiciado que eram, efetivamente, os Arguidos pessoas singulares quem elaborava as listas para a Segurança Social, sendo posteriormente remetidas pela Diretora Técnica, a Arguida CC.

Embora o arguido AA tivesse procurado fazer crer que a elaboração das listas não passava por si, apenas competindo às Arguidas BB e CC, dúvidas inexistem do efectivo e real conhecimento de todos os procedimentos e decisões relativas à elaboração de tais listas, e à forma, no fundo, como obtinha a Associação Arguida uma das mais importantes, se não a principal, fonte de rendimentos. Independentemente de quem elaborava os documentos preparatórios ou efectivamente acedia ao programa através da password, a verdade é que todos os arguidos AA, BB e CC participavam de modo efectivo nesses procedimentos (ponto 10).”

Esta fundamentação é clara e lógica, pelo que, tratando-se de uma atuação conjugada de todos os arguidos (como se refere no ponto 10) e tendo a arguida CC uma função específica que era a de enviar as listagens à Segurança Social, nenhuma censura se impõe ao raciocínio efetuado pelo Tribunal a quo, sendo que a resposta dada não implica a necessidade da elaboração por parte de todos os arguidos – isto é pela sua própria mão - das mencionadas listagens.

E também quanto aos pontos 28 e 29, 34, 36 e 38 se escreveu: “No que toca aos pontos 27. a 34. e 36. a 39. resultaram provados pela conjugação da prova documental já enunciada, declarações dos próprios Arguidos, conjugadas com as regras da experiência comum e do normal acontecer dos eventos. Os factos descritos, tendo em conta toda a restante factualidade, permitem concluir que os Arguidos, comunicaram factos à Segurança Social, que sabiam permitir-lhes obter as comparticipações constantes dos acordos de cooperação, bem sabendo que não correspondiam à realidade, para obter tais pagamentos.

Com tal atitude, resulta provado que os Arguidos pretendiam obter comparticipação que sabiam não ser a devida para a Associação Arguida, o que conseguiram, atuando em comunhão de esforços de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei, conforme resulta das regras da lógica e experiência comuns e atuando de forma essencialmente homogénea,

No que respeita aos elementos subjetivo do crime os mesmos inferem-se da conjugação dos factos que compõem os elementos objectivos, com as regras da experiência comum. Pertencendo os mesmos à vida interior de cada um, decorrem da conjugação da factualidade objectiva apurada com as regras da normalidade e da experiência comum do julgador. Com efeito, é inequívoco que qualquer cidadão, agindo como agiram os Arguidos AA, BB e CC, apenas o poderão fazer com a intenção de praticar os factos, como efetivamente o fizeram, de forma livre, deliberada (pretendendo, assim, a realização do facto) e consciente (representando todas as circunstâncias do facto), com pleno conhecimento de que tal conduta é prevista e punida por lei. E quem actua como o arguido actuou, sem qualquer interferência de elemento perturbador da capacidade intelectual e volitiva, não pode deixar de querer actuar como descrito, de ter consciência da proibição da conduta e de conformar-se com as consequências legais da mesma.

Para a prova dos elementos volitivos, basta-se somente que dos factos praticados resulte, objectivamente, que quem agiu do modo evidenciado não poderia, de acordo com padrões de normalidade e à compreensão da maioria das pessoas, pretender outra coisa que não a descrita, mesmo tendo verbalizado que consideravam os Arguidos nada de mal fazer, agindo com justificações que consideram “nobres” e em auxílio dos mais necessitados, estes nunca poderiam ignorar que o que faziam era ilícito. Assim, para prova dos elementos subjectivos considerou-se o encadeamento sequencial e lógico dos restantes factos provados conjugados com as regras da experiência, sendo certo que os Arguidos AA, BB e CC tinham de saber que ao prestar declarações falsas nos termos aduzidos, obteriam comparticipações que sabiam não ser devidas, praticando actos proibidos por lei.

Resulta, assim, do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas, de acordo com as regras da razoabilidade e da experiência comum, já que o dolo e o conhecimento são realidades não directamente apreensíveis, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum, que os Arguidos praticaram os factos, nos termos em que resultaram provados, agindo também em representação da Associação Arguida.”

Assim, e também relativamente aos restantes arguidos se mostra devidamente explicado o percurso efetuado pelo Tribunal a quo para relativamente a eles verter as conclusões exaradas nos referidos pontos da matéria de facto.

Na verdade, vista a prova e explanação aduzidas pelo recorrente constata-se que o mesmo se limita a colocar em crise a convicção do tribunal recorrido, e acaba por pretender simplesmente impor a sua própria e subjetiva leitura crítica da prova, em detrimento daquela que alicerçou a convicção adquirida pelo tribunal recorrido e que a sentença explicita de forma clara e cabal.

Importa salientar que o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que as partes especifiquem e indiquem como não corretamente julgados ou se as provas sindicadas impunham decisão diversa. E, por outro lado, a alteração da matéria de facto não decorre, por via do recurso, da mera possibilidade de a prova produzida permitir uma decisão de sentido distinto da tomada pelo julgador.

Antes se exige que essa decisão diversa se imponha por ser evidente ou flagrante o erro do tribunal a quo, em função das provas produzidas, no julgamento da matéria de facto.

Ora, analisando a sentença recorrida cremos que ela é suficiente para fundamentar a decisão de direito [encontrando-se provados os elementos do tipo de crime imputado aos arguidos recorrentes e forma de comparticipação], mas também porque não decorre da sentença recorrida que o tribunal a quo tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão, com relação aos apontados factos.

Do texto recorrido não resulta que o tribunal a quo tenha violado as regras da experiência ou que tenha efetuado uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, e, muito menos, que tenha violado qualquer regra sobre prova vinculada.

O Tribunal a quo baseou a sua convicção na conjugação de toda a prova produzida, que corretamente identificou e analisou e teve em conta as declarações dos arguidos a prova documental que concretamente explicitou – tal como a documentação de faturação, os registos individuais de utentes (em confronto com as listagens enviadas) relativas ao SAD e ao ERPI, o relatório elaborado pela Segurança social, os mapas juntos aos autos e devidamente descriminados -, os depoimentos das testemunhas UU  funcionária da Segurança Social, SS que participou na fiscalização ocorrida, TT, VV WW e DDD, trabalhadoras da Associação arguida que depuseram sobre factos de que tinham conhecimento direto, explicitando as razões pelas quais lhes atribuiu credibilidade, tudo permitindo num percurso lógico e suportado pelas regras da experiência comum perceber e concluir pela imputação feita ao ora recorrente.

Da motivação de recurso fica-nos apenas um discurso de discordância do recorrente quanto à análise crítica da prova efetuada pelo tribunal recorrido, mas sem um concreto suporte probatório que o sustente, o que torna inviável a pretensão de sindicar a livre apreciação da prova, tal como vem consagrada no artigo 127º, do Código de Processo Penal.

Como se refere no acórdão do STJ de 27-05-2010 [Processo n.º 11/04.7GCABT.C1.S1, in www.dgsi.pt], “sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova”

In casu, o caminho trilhado pelo tribunal a quo, como referido, apresenta-se lógico e inteligível, de acordo com os critérios legais de admissibilidade e de apreciação da prova, devendo manter-se.


III - Da integração da conduta dos arguidos no crime de burla tributária
O crime de burla tributária é definido pelo artigo 87.º do RGIT, nos seguintes termos:

1 - Quem, por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos, determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efectuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro é punido com prisão até três anos ou multa até 360 dias.

2 - Se a atribuição patrimonial for de valor elevado, a pena é a de prisão de 1 a 5 anos para as pessoas singulares e a de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.

3 - Se a atribuição patrimonial for de valor consideravelmente elevado, a pena é a de prisão de dois a oito anos para as pessoas singulares e a de multa de 480 a 1920 dias para as pessoas colectivas.

4 - As falsas declarações, a falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou a utilização de outros meios fraudulentos com o fim previsto no n.º 1 não são puníveis autonomamente, salvo se pena mais grave lhes couber.

5 - A tentativa é punível».
O tipo de crime descrito na disposição legal acabada de transcrever apresenta um elevado grau de semelhança com o crime de burla previsto no artigo 217º, nº 1, do Código Penal.
No cerne de ambos os tipos criminais em referência, encontra-se uma falsa representação sobre factos induzida no burlado, no caso do crime «comum», ou na Administração Tributária ou da Segurança Social, tratando-se do crime tributário, provocada pelo agente «astuciosamente», no primeiro caso, ou por «meios fraudulentos», no segundo.
Ambos os crimes em causa comportam na sua tipicidade a produção de um certo resultado, que consiste, no crime previsto no Código Penal, na inflição de um prejuízo patrimonial ao burlado ou a um terceiro e, na infração tipificada no RGIT, na obtenção de um enriquecimento pelo agente ou por um terceiro.
São elementos constitutivos deste crime de burla tributária os seguintes:
- Uso de erro ou engano sobre os factos, provocado por meios fraudulentos, como falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante;
- Que sejam aptos ou idóneos a determinar a administração tributária ou a administração da segurança social a efetuar atribuições patrimoniais das quais resulte enriquecimento do agente ou de terceiro.
Como escrevem Jorge Lopes de Sousa e M. Simas Santos, in Regime Geral das Infrações Tributárias Anotado, 2.ª Edição, pág. 547, aproxima-se este tipo legal do crime de burla previsto no art. 217 do Código Penal, no entanto, não refere expressamente o erro ou engano provocado, elementos que, não obstante, estão presentes na referência aos meios fraudulentos, os suscetíveis de provocar astuciosamente o tal erro ou engano.
De acordo com a configuração do tipo, exige-se o uso de um meio fraudulento ou seja uma conduta astuciosa que diretamente induziu o erro ou engano. Neste sentido pode ver-se o Acórdão deste TRC de 10.07.2024 [processo nº 885/20.4T9LRA.C1, disponível in www.dgsi.pt]

            O bem jurídico tutelado por este tipo legal de crime é o património público – cfr. Germano Marques da Silva, in Direito Penal Tributário, 2ª edição revista e ampliada 2018, p. 184. E de facto a norma em apreço inclui entre os elementos típicos o «enriquecimento do agente ou de terceiro», que é consequência do prejuízo patrimonial do Estado (embora este não seja elevado a elemento do tipo).

É um crime de execução vinculada, uma vez que na descrição do tipo o seu cometimento tem de se verificar «por meio de falsas declarações, falsificação ou viciação de documento fiscalmente relevante ou outros meios fraudulentos». Neste sentido, Carlos Adérito da Silva Teixeira e Sofia Margarida Correia Gaspar, in Comentário das Leis Penais Extravagantes, vol. II, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2011, p. 413.

E como salientam, os referidos autores [ob. Cit., p. 413]: “Também na burla tributária é exigido um duplo nexo de imputação objetiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pela vítima, dos atos de diminuição do seu património e entre estes e o prejuízo patrimonial ocorrido”.

O elemento subjetivo basta-se com o dolo genérico, isto é, o agente do crime de burla tributária tem de saber e querer induzir a Administração Tributária ou da Segurança Social em erro, de modo a determiná-la a efetuar atribuições patrimoniais, e ainda o seu enriquecimento ou o de terceiro.

Constituem circunstâncias qualificadoras o valor elevado, nos termos do nº 2 do art. 87º do RGIT  (5.100€ - art. 202º, al. a) do Código Penal, ex vi art. 3º do RGIT) e o valor consideravelmente elevado,  nos termos do nº 3 do art. 87º do RGIT (20.400€ - art. 202º, al. b) do Código Penal ex vi art. 3º do RGIT).

Atenta a descrição factual importa ainda chamar à colação o art. 26º do Código Penal.

Para a verificação da comparticipação criminosa sob a forma de coautoria são essenciais a verificação de uma decisão conjunta visando a obtenção de determinado resultado (elemento subjetivo) e uma execução igualmente conjunta. Porém, para a verificação dos elementos objetivos do crime (aqueles que se prendem com a sua execução propriamente dita) não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os atos a praticar para obtenção do resultado pretendido, bastando que a atuação de cada um, embora parcial, seja elemento componente do todo e indispensável à produção do resultado, podendo esta ser concretizada por tarefas anteriormente combinadas ou tacitamente aceites, mas convergentes quanto a um mesmo ilícito.

A imputação basta-se com a mera consciência de colaboração na atividade dos demais, por parte de cada coagente, desde que tenha havido um acordo prévio para a execução integral do crime, ainda que um mero acordo tácito fundado na adesão da vontade de cada um à execução do crime.

Como se escreve no Acórdão do STJ de 05.06.2012 [processo nº 148/10.3SCLSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt] “…o coautor tem o domínio do facto quando acordou em repartir funções; o autor não é titular do domínio exclusivo do facto, mas também não domina apenas a parte do facto que pessoalmente lhe cabe realizar; cada coautor é sim, cotitular de todo o domínio funcional do facto, solução que se acha também acolhida nos estudos de Welzel, de 1939, de Jescheck e Stratenwert, citados por Maria da Conceição Valdágua, in Início da Tentativa do Coautor, págs. 26 e 73.

Na coautoria há, pois, um querer do resultado global pelo comparticipante, como próprio, com base numa decisão comum de forças conjugadas, bastando um acordo tácito assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas à luz da experiencia comum.

Todo o colaborador e aqui, como parceiro dos mesmos direitos, cotitular da resolução comum para o efeito de realização comunitária do tipo, por forma que as contribuições individuais dos seus comparsas completam-se em um todo unitário e o resultado total deve ser imputado a todos os participantes, teoriza Wessels, Ob cit.121.

O coautor torna-se senhor do facto que domina globalmente tanto pela positiva, assumindo um poder de direção, preponderante na execução conjunta do facto, como pela negativa, podendo impedi-lo, sem que se torne necessária, para a comparticipação estabelecida, a prática de todos os factos que integram o “iter Criminis” (Cf. Dra. Maria da Conceição Valdágua, in O Início da Tentativa do Coautor, 1985, Ed Danúbio, 155/156 BMJ 341, 202 e segs)”.

Nos autos tendo em conta a factualidade provada concluímos que efetivamente os arguidos pessoas singulares atuaram em conjugação de esforços e intentos, cabendo a cada um deles um papel na execução do plano a que todos aderiram, sendo certo que qualquer um deles, poderia ter posto fim ao mesmo, e não o fez, tendo, assim, todos eles, domínio do facto.

Como se refere na sentença recorrida dos factos provados resulta que os arguidos pessoas singulares em conjugação de esforços preencheram e enviaram as listagens mensais de frequência

dos utentes à Segurança Social, com conhecimento que as informações aí vertidas não correspondiam à realidade, de modo a obter uma comparticipação, por parte da Segurança Social, o que efetivamente ocorreu.

Na verdade, das referidas listagens constava um utente que não podia beneficiar das respostas sociais, constavam utentes que se encontravam integrados em Estrutura Residencial para Pessoas Idosas mas foram incluídos nas listagens de Serviço de Apoio Domiciliário e ainda uma utente que se encontrava inserida em Estrutura Residencial para Pessoas Idosas e foi incluída nas listagens de Centro de Dia.

A falsidade de tais declarações era do conhecimento dos arguidos, que as elaboraram nos descritos moldes e enviaram à Segurança Social, de comum acordo e em conjugação de esforços, para efeitos de comparticipação, nos termos descritos nos factos provados

E através dessas falsas declarações constantes das listas enviadas mensalmente à Segurança Social, os Arguidos AA, BB e CC, por si e em representação da Associação Arguida, induziram a Segurança Social em erro, com as condutas referidas supra o que determinou o pagamento de uma comparticipação indevida à Associação Arguida da quantia de 70.159,93€, sendo descriminadas as respetivas comparticipações por referência a cada um dos utentes incluídos nessa lista (cf. pontos 14, 18 e 21 dos factos provados).

É certo que na fundamentação jurídica apenas se refere a quantia de € 52.348,21€ que diz respeito aos pontos 18 e 21 dos factos provados, deixando de fora o montante de 17.811,72€, (facto 14) que também constituiu benefício ilegítimo para a Associação, e que deste modo contabiliza o total de 70.159,93€ [veja-se que a al. a) dos factos não provados apenas se refere aos montantes do ponto 15 dos factos provados].

E também está preenchido o duplo nexo de imputação objetiva: entre a conduta enganosa dos arguidos e a prática, dos atos de diminuição do seu património e entre estes e o prejuízo patrimonial ocorrido.

Na verdade foram as condutas acima descritas dos arguidos em conjugação de esforços que determinou o pagamento de uma comparticipação indevida à Associação Arguida da quantia de €70.159,93€, tendo os Arguidos agido com dolo direto, a sua forma mais grave, pois que se provou que estes de forma deliberada e em comunhão de esforços decidiram emitir declarações que sabiam não corresponder à realidade, com vista a obter, como conseguiram, uma vantagem patrimonial para a Associação Arguida.

A este propósito escreveu-se na sentença recorrida “Invocaram os Arguidos ter agido sem consciência da sua ilicitude, pois que actuavam por causa nobre, apesar de terem feito declarações que não correspondiam à realidade e obtido valores, que, na sua convicção, não eram indevidos, pois prestavam serviços a todos os utentes, inclusivamente muitos não tidos em conta pela Segurança social.

Ora, tal invocação não pode ter qualquer tipo de acolhimento. Efectivamente não se poderá afirmar, como aventaram os Arguidos, que o Estado não foi lesado, pois que foram prestados efectivos serviços (como resultou provado) a todos os utentes, sendo que se alguma coisa saiu o Estado, foi beneficiado, por não ter tido que suportar custos adicionais com tais cidadãos (obviamente apenas de forma hipotética).

Não se pode concordar com tal argumentação. Confundem os Arguidos a prestação de um serviço a um utente com o seu pagamento, e muito menos com a eventual comparticipação a conferir pela Segurança Social ao abrigo de um acordo de cooperação. Não obstante as IPSS e demais entidades que actuam no âmbito deste tipo de serviços prestados a idosos e pessoas carenciadas revista uma actividade de grande relevo para a sociedade, que se depara cada dia com mais pessoas em situação de abandono e com muitas carências, isso não lhes confere um direito automático e indissociável a ajuda do Estado perante todo e qualquer serviço prestado.

As contribuições são conferidas no âmbito de acordos de cooperação, com regras definidas, como sucedeu no caso dos autos, tendo as IPSS um número definido de utentes comparticipados e bem assim um conjunto de condições a cumprir. Assim, não obstante prestar um serviço que pode ter essa ajuda estatal, esta não é devida como condição da sua existência, confundindo os Arguidos estas realidades ao afirmar que actuaram sem lesar o Estado, o que notoriamente aconteceu. Se um utente se encontra a residir no Lar/ERPI, não poderá ao mesmo tempo beneficiar de serviços de apoio domiciliário, que são incompatíveis, como se percebe das suas intrínsecas realidades, inexistindo qualquer justificação possível para que se mantenha numa listagem quem não beneficia desse serviço, mesmo que esteja a residir no Lar/ERPI da mesma entidade.

Não se pode confundir, como se reitera, o serviço prestado, o seu mérito ou valor social, com o pagamento respectivo, que apenas será suportado pelo Estado, se cumpridos os requisitos firmados.

É inequívoco que os Arguidos, com as suas condutas, obtiveram uma vantagem patrimonial para a Associação Arguida, através de uma prestação de informação falsa, que bem o sabiam ser. Se o utente não tinha direito à comparticipação, ou melhor dizendo, se a Associação não tinha direito à comparticipação pelo serviço prestado ao utente, isso apenas significa que a Associação teria que cobrar (ou não, caso entendesse actuar pro bono) directamente ao utente os seus serviços, que, como já se reiterou, não trazem acoplado qualquer direito indissociável à comparticipação pelo Estado. É nesse ponto que falece por completo a argumentação dos Arguidos, não sendo minimamente aceitável que um cidadão médio, colocado na situação dos Arguidos, pudesse considerar que não seria ilícito actuar como actuaram os Arguidos. Declarar que um utente que está a residir no Lar/Erpi, continua a gozar de serviços de apoio domiciliário, o que é rotundamente falso, para que continue a Associação (e não o utente) a beneficiar da comparticipação da Segurança Social, que apenas seria devida se aquele estivesse de facto a receber os serviços de apoio domiciliário, não é justificável por se continuar a prestar um serviço a esse utente. Não se olvida, para mais, que o número de utentes comparticipados tinha um limite, e o que fizeram os Arguidos foi precisamente arranjar uma forma, ilícita, de continuar a receber uma comparticipação, pois que se declarassem que o utente estaria incluído em ERPI, deixariam, obviamente de receber comparticipação, não tendo acesso a mais vagas para receberem a comparticipação que poderia, eventualmente, ser devida.”

Concordamos com esta argumentação, pois que efetivamente os arguidos sabiam que, por lei,  o número de utentes comparticipados tinha um limite, e o que fizeram foi precisamente arranjar uma forma ilícita, de continuar a receber uma comparticipação, pois que se declarassem que o utente estaria incluído em ERPI, deixariam de receber a comparticipação, por não ter acesso a mais vagas comparticipadas.

Ora, não resultaram provados quaisquer factos que permitam sustentar a existência de uma qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, designadamente que as pessoas a quem foram prestados os aludidos serviços estivessem numa situação enquadrável num estado de necessidade.

Porém e mais relevante é que - como bem salientou o Tribunal a quo - há que distinguir os serviços que a Associação poderia prestar das comparticipações a que teria direito. E como ali se refere “se a Associação não tinha direito à comparticipação pelo serviço prestado ao utente, isso apenas significa que a Associação teria que cobrar (ou não, caso entendesse actuar pro bono) directamente ao utente os seus serviços, que, como já se reiterou, não trazem acoplado qualquer direito indissociável à comparticipação pelo Estado”.

Os factos apurados nos autos não permitem concluir, pois, pela verificação de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, pelo que se impõe-se, pois, impõe-se a condenação dos arguidos, sem que esta acarrete qualquer violação dos princípios ínsitos nos arts. 1º, 2º e 63º nº 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa ou do quadro normativo da Lei Quadro da Segurança Social e do DL 64/2007 de 06.01. [De salientar que a jurisprudência do tribunal constitucional invocada relaciona-se com a  impenhorabilidade das prestações pagas pela Segurança Social/Caixa Geral de Aposentações e  Rendimento Social de Inserção, tendo portanto um âmbito de incidência diferente da situação sub judice].

Assim, os arguidos são criminalmente responsáveis, em coautoria, pelo ilícito praticado nos termos do art. 6º e 7º nº 3 do RGIT e a da Associação arguida nos termos do art. 7º, nº 1 do mesmo diploma legal.

Por seu turno, a responsabilidade penal das pessoas coletivas resulta de lhes serem imputadas as infrações cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse coletivo.

No nº 3 do art. 7º do RGIT vem consagrado o princípio da concorrência de responsabilidades das sociedades e dos seus representantes, ou seja, para que o crime possa ser imputado à Associação é necessário que o seja também aos seus representantes.

Já acima se concluiu pela responsabilidade criminal dos arguidos AA, BB e CC, tendo em conta as funções que  exerciam na Associação (pontos 1 a 6 dos factos provados) e no interesse desta.

No despacho de pronúncia foi efetuada uma alteração da qualificação jurídica tendo-se entendido que a factualidade descrita integrava um crime de burla tributária na forma continuada.
Em conformidade com o disposto no art. 30º, n.º2 do Código Penal, são pressupostos do crime continuado: a realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico); a homogeneidade da forma de execução do crime (unidade do injusto objetivo da ação); unidade do dolo (unidade do injusto pessoal da ação); a lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto do resultado); a persistência de uma situação exterior que facilite a execução e diminua consideravelmente a culpa do agente.
Sendo estes os pressupostos de que se haverá de partir, cumpre, no caso em análise, desde logo, realçar a conexão temporal entre os consecutivos atos de não entrega, o que, por seu turno, revela que a atuação dos arguidos se desenrolou de forma reiterada e homogénea, dentro de uma linha psicológica continuada, com sucessiva violação do mesmo bem jurídico.
Pode, neste contexto, afirmar-se que a determinação criminosa dos arguidos se foi renovando no tempo, favorecida, quer pela predisposição para, em face do sucesso das condutas anteriores, ceder ao impulso seguinte, quer sobretudo pela manutenção das condições económicas adversas que o determinaram à primeira conduta. Uma vez que à prática do primeiro ato não se seguiu imediatamente qualquer punição e as condições de prestação de cuidados aos utentes económicas adversas se mantiveram, pode dizer-se que as restantes omissões se inscrevem nas premissas da primeira, o que conduz a que se conclua que, pese embora a renovação do propósito delituoso, os atos parcelares acabam por representar a realização sucessiva de um todo, unitariamente querido, assim se perfilando uma menor censurabilidade da atividade que se aprecia. Na verdade cremos que o esforço para dotar a Associação de meios financeiros, e em última instância a sua sobrevivência, tenha arrastado os agentes para a conduta desviante, em termos de tornar sucessivamente mais difícil e menos exigível contrariar o recurso a esse expediente, diminuindo consideravelmente a sua culpa.
Mostrando-se reunidos os pressupostos do crime continuado, importará atentar no disposto no art.79º do Código Penal: o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação.
Ora, analisando os autos vemos que a conduta dos arguidos se refere às quantias mencionadas nos ponto 14, 18 e 21 dos factos provados. Ora, na sentença recorrida apesar de se mencionarem estes três pontos da matéria de facto vem depois a mencionar-se a quantia de 52.348,21€ que apenas diz respeito aos pontos 18 e 21 dos factos provados, deixando de fora o montante de 17.811,72€, que também constituiu benefício ilegítimo para a Associação, e que deste modo contabiliza o total de 70.159,93€ ( como acima já referimos).
Porém, tratando-se de crime continuado não poderá atender-se à totalidade do benefício ilegítimo, mas sim à conduta mais grave que integra a continuação. E esta é aquela que diz respeito ao utente DD e que contabiliza os referidos 17.811,72€ ( ponto 14 dos factos provados).
Porém cumpre salientar que  mesmo que não se contabilizasse esta conduta a conclusão seria a mesma pois que o montante indicado pelo recorrente de 7.617,78€ também integra o referido valor elevado ( 50 UC 50x102€= 5.100,00€) pelo que nunca se estaria – ao contrário do referido pelos recorrentes na conclusão P) - perante uma conduta integrada no nº 1 do art. 87º do RGIT.
Porém, do cotejo das condutas singulares conclui-se que, não tendo sido em algum caso ultrapassado o limite de €20.400€, todas elas serão punida nos termos do disposto no art. 87º, nº 2 do RGIT, dado que a conduta mais grave que se enquadra no valor elevado (art. 202º, al. a) do CP, ex vi do art. 11º al. d) do RGIT), e será no interior da moldura correspondentemente cominada que deverá ser determinada a medida da responsabilidade que acabamos de reconhecer e não nos termos do nº 3 como o havia feito o tribunal a quo.
Deste modo, a moldura penal em causa é a de 1 (um) a 5 (cinco) anos de prisão para as pessoas singulares de a de multa de 240 (duzentos e quarenta) a 1200 (mil e duzentos) dias para a pessoa coletiva.
Vindo os arguidos pronunciados pela prática de um crime continuado de burla tributária, previsto e punível pelo art. 87º, nº 1, 3 e 4 do RGIT e do art. 202º al. b) do Código Penal, ex vi art. 11º al. d) do RGIT e tendo nós concluído que a conduta apurada integra o art. 87º, nº 1 e 2 do RGIT, por referência ao art. 202ºal. a) do Código Penal, ex vi do art. 11º al. d) do RGIT, impõe-se ponderar a eventual necessidade de comunicação de uma alteração da qualificação jurídica.
Como se salienta no Acórdão do STJ de 18.05.2023 [processo nº 23/20.3GSBNV.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt]: «A jurisprudência, claramente dominante, segue orientação diversa, defendendo que quando o crime pelo que o arguido é condenado constitui um “minus” relativamente ao crime que constava da acusação ou da pronúncia, a alteração da qualificação jurídica não carece de ser comunicada ao arguido, nos termos do art.358º Código de Processo Penal, precisamente por se imputar um crime menos grave.
A alteração da qualificação jurídica dos factos apenas deve ser comunicada ao arguido quando esta alteração é tomada contra ele, implicando um encurtamento inadmissível das possibilidades da sua defesa.

Neste sentido o acórdão do STJ de 12 de Setembro de 2007, proferido no proc. n.º 07P2596, refere queÉ pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que a comunicação ao arguido a que alude o art.358.º, n.º3, do CPP não é necessária quando a alteração da qualificação jurídica redunda na imputação ao arguido de um infração que representa um minus relativamente à da acusação ou da pronúncia, pois o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar ( v.g., convolação de furto ou de qualquer outro crime qualificado para o tipo simples.”[7].

Também esta orientação é defendida na doutrina.

       Assim:

Maia Gonçalves, entende que “…não é necessária a comunicação ao arguido quando a alteração da qualificação jurídica é para uma infração que represente um “minus” relativamente à da acusação ou da pronúncia, pois o arguido teve conhecimento de todos os seus elementos constitutivos e possibilidade de os contraditar. Aqui podem apontar-se os casos de convolação de furto ou de qualquer outro crime qualificado para o crime simples; (…).[8]

Também Oliveira Mendes, defende que, atenta a ratio do instituto, “… a alteração resultante da imputação de um crime simples ou “menos agravado”, quando da acusação ou da pronúncia resultava a atribuição do mesmo crime, mas em forma qualificada ou mais grave, por afastamento do elemento qualificador inicialmente imputado, não deve ser comunicada, visto que o arguido ao defender-se do crime qualificado ou mais grave se defendeu, necessariamente, do crime simples ou “menos agravado”, ou seja, defendeu-se em relação a todos os elementos de facto normativos pelos quais vai ser julgado – a jurisprudência do Supremo Tribunal tem-se orientado, de forma pacífica, neste preciso sentido, como se vê, entre outros, dos acórdãos de 02.07.17, 03.11.12, 04.03.10, 06.04.06, 06.05.10, 06.06.14 e 07.10.13, proferidos nos Processos n.ºs 3158/02, 1216/03, 4024/03, 658/06, 1290/06, 1415/06 e 3271/07.”[9] »
Deste modo, considerando a própria alegação do recorrente de que haveria de ser considerado um  montante que integrava já a qualificativa de valor elevado, e porque – como acima expresso - a burla tributária prevista no nº 2 do art. 87º é um minus relativamente à prevista no nº 3 do mesmo normativo, consistindo a diferença apenas no montante do benefício ser considerado de “valor elevado” ou de “valor consideravelmente elevado”, entende-se não ser de efetuar qualquer comunicação da alteração da qualificação jurídica, na medida em que os arguidos ao defenderem-se do que constava do despacho de pronúncia já se defenderam do menos que ora se considerou.

*
IV – Da escolha e determinação da medida das penas

            Pugnavam os recorrentes (pessoas singulares) pela aplicação de uma pena de multa. A título principal tal não será possível, na medida em que o tipo legal em causa não prevê a pena de multa para as condutas perpetrada por pessoas singulares.

            Todavia, partindo de uma moldura penal distinta -  1 a 5 anos de prisão para as pessoas singulares e de multa de 240 a 1200 dias para a pessoa coletiva - importa proceder a nova operação de determinação das penas concretas a aplicar.
Tendo em conta o princípio geral fornecido pelos arts. 40º e 71º e a enumeração exemplificativamente contida no art. 71º do Código Penal deverá a pena ser concretamente determinada dentro da moldura legal fornecida, funcionando a culpa como limite inultrapassável e as exigências da prevenção geral e especial como vetores determinantes da medida a aplicar.
O modelo mais adequado de determinação da pena é, pois, aquele que comete à culpa a função única de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral de integração a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo coincide com a medida ótima de tutela dos bens jurídicos – dentro do que é consentido pela culpa – e cujo limite mínimo corresponde às exigências de defesa do ordenamento jurídico; e, por último, à prevenção especial de integração a função de encontrar, dentro da moldura de prevenção, o quantum exato de pena que melhor sirva as exigências de socialização do delinquente [Cf. Figueiredo Dias Consequências Jurídicas do Crime, p. 114 e ss.].
Na determinação da medida concreta da pena deverão ser consideradas todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal convocado, sejam expressivas das exigências concretas de culpa e de prevenção.
Na sentença sob recurso escreveu-se:

           “Para determinação da pena concreta a aplicar aos Arguidos e, na determinação desta, recorremo-nos ao critério global previsto no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, ex vi do artigo 47.º, n.º1, do mesmo Código, que dispõe que a determinação da medida da pena se fará em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes.

No presente caso, impõe-se, ainda, considerar o que consagra o artigo 13.º do RGIT: «na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime».

A culpa e a prevenção constituem, assim, o binómio com auxílio do qual há de ser construído o modelo da medida da pena.

Desta feita, o limite máximo fixar-se-á em função da medida da culpa, medida esta que delimitará a pena por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que no caso se façam sentir, tal como dispõe o artigo 40.º, n.º2 do Código Penal, e o limite mínimo é dado pelo quantum da pena que, em concreto, realiza eficazmente a proteção dos bens jurídicos.

Aqui, a função da culpa «é, por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático» (vide DIAS, Figueiredo, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, pág. 109 e ss.).

Dentro desses dois limites, encontrar-se-á o espaço possível de resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Para tal, o Tribunal deverá atender ao explanado no artigo 13.º do RGIT e no artigo 71.º, n.º2 do Código Penal, no sentido de que, na determinação da medida concreta da pena, o Tribunal atenderá a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor dos agentes ou contra eles e, sempre que possível, o Tribunal atenderá igualmente ao prejuízo causado pelo crime.

Dispõe ainda o artigo 79.º do Código Penal que «o crime continuado é punível com a pena aplicável à conduta mais grave que integra a continuação».

Neste sentido, e devido à imposição legal do artigo 71.º, n.º 3, do Código Penal, cumpre referir expressamente os fundamentos que sustentam a determinação da medida concreta da pena.

Ao actuarem como actuaram, a Associação Arguido e os Arguidos AA, BB e CC representaram os factos que preenchem o tipo de crime de burla tributária e agiram com a intenção de o realizarem. Actuaram, pois, com dolo directo, sendo particularmente intensa a sua vontade criminosa.

Quanto ao grau de ilicitude do facto típico, há a considerar, fundamentalmente, o período de tempo ao longo do qual os arguidos actuaram (cerca de sete anos) e o prejuízo decorrente da sua actuação, agora a considerar no interior da moldura legal agravada - €52.348,21.

Ainda deste ponto de vista, importa atender ao tipo de interesse ofendido, tendo sido postos em causa valores de solidariedade social, onde os recursos são escassos, ainda para mais num sem grandes recursos como o nosso, se se comparticipava indevidamente uma IPSS, outras haverá que não beneficiava das comparticipações de que necessitava, sendo hoje notoriamente sabido que as vagas e serviços deste género são cada vez mais prementes, dado o elevado número de idosos e pessoas carenciadas que se encontram desamparados.

O grau de culpa dos arguidos é bastante elevado, e ocorre de forma igual, independentemente dos cargos ocupados, o grau de participação dos arguidos pessoas singulares era idêntico, decidindo e reunindo em conjunto.

Apesar de tudo, não se provou que tivessem beneficiado por qualquer modo em proveito próprio das atribuições patrimoniais efectuadas pela Segurança Social.

De qualquer modo, importa fazer sentir aos Arguidos e à sociedade em geral que os seus comportamentos são crimes e não meras irregularidades e que a ilicitude tributária não é uma ilicitude de grau menor.

Não está em causa saber se o dinheiro foi ou não bem empregue, dos méritos da prosseguidos pela Associação e dos bons serviços que preste, até porque é extraordinariamente difícil provar o que quer que seja quanto ao destino final das comparticipações indevidas da Segurança Social.

Conforme salienta Germano Marques da Silva, Direito Penal Tributário, Universidade Católica Portuguesa, pág. 63, “A ilicitude tributária não é uma ilicitude de grau menor nem os valores que o sistema tributário prossegue, nomeadamente a repartição dos rendimentos e da riqueza, são ilegítimos, antes são valores constitucionalmente consagrados e conforme aos ditames essenciais da democracia.”

Relativamente à conduta anterior ao facto, importa frisar que nenhum dos Arguidos têm quaisquer antecedentes criminais.

Tal facto permite a formulação de um juízo de prognose favorável quanto à sensibilidade dos arguidos às penas e susceptibilidade de por elas serem influenciados na sua prestação futura, com inevitáveis consequências mitigadoras em sede de prevenção especial.

Ainda, nada é conhecido nos autos que denote que os Arguidos não estejam socialmente inseridos, até pelas posições que ocupam ou ocupavam na Associação.

Quanto à Associação Arguida, é conhecida pela relevância dos serviços que presta à sociedade.

No que concerne ao comportamento posterior ao facto, importa sublinhar que não foi reparado o dano causado, nem sequer parcialmente, ainda que tal não se possa imputar por completo aos Arguidos.

Apesar de apresentarem justificações e motivações que não permitiram considerar uma confissão dos factos, a verdade é que os Arguidos prestaram declarações, contribuindo para a descoberta da verdade, e assumindo, ainda com o diferente “entendimento” grande parte dos factos em julgamento.

Há, ainda, que ter em conta as fortes exigências de prevenção geral que se fazem sentir neste domínio no nosso país e o sentimento de impunidade que se vem gerando. Na verdade, as burlas à Segurança Social ou qualquer crime que lese o erário público conheceram um incremento preocupante e que é visto cada vez mais de forma muito negativa pela sociedade, impondo-se que se combata este tipo de criminalidade. As comparticipações financeiras efectuadas pela Segurança Social são um instrumento de justiça social e de diminuição das desigualdades, que representam uma larga fatia das suas despesas, suportadas por todos os contribuintes.

Ademais, de relevar que a actuação ilícita dos Arguidos só cessou na sequência de uma inspecção da Segurança Social.

Vemos que com exceção do montante global do prejuízo que deve considerar-se atentos os factos provados em 70.159,93€ ( pontos 14, 18 e 21 dos mencionados factos) o tribunal a quo atentou nos pressupostos legais e factuais pertinentes e fê-lo de forma acertada.

Os arguidos agiram em coautoria, não havendo nenhuma razão para distinguir, neste âmbito as penas a aplicar a cada um deles.

Deste modo, partindo da moldura penal estabelecida no art. 87º, nº 2  do RGIT, e ponderando os factores atendíveis e designadamente os acima mencionados entende-se ser de fixar:

- À arguida Associação dos Amigos de ... – centro de Formação Desenvolvimento e Apoio Social a pena de 400 (quatrocentos) dias de multa.

- Aos arguidos AA, BB e CC a pena de 1 (um) ano 6 (seis) meses de prisão.

No que concerne ao quantitativo diário da multa este não foi questionado e as considerações tecidas pelo Tribunal a quo estão corretas, pelo que deve manter-se o montante de 15,00€ fixado.


*

V - Das penas de substituição:

Na decisão recorrida escreveu-se com pertinência: “No caso da pena de prisão, o Código Penal prevê como penas de substituição as penas de multa (artigo 45.º do Código Penal e artigos 489.º a 491.º-A, do Código de Processo Penal), de proibição do exercício de profissão, função ou actividade (artigo 46.º do Código Penal), de suspensão da execução da pena de prisão (artigos 50.º a 57.º do Código Penal e artigos 492.º a 495.º do Código de Processo Penal) e de prestação e trabalho a favor da comunidade (artigos 58.º e 59.º do Código Penal), e ainda o regime de permanência na habitação (artigo 43.º do Código Penal), que é um misto de pena substitutiva e modo de execução da pena de prisão, sendo aplicável quer neste momento de aplicação da pena, quer posteriormente durante a própria execução da pena de prisão.

Dos artigos 45.º, n.º 1, 46.º, n.º 1, 50.º, n.º 1, e 58.º, n.º 1, do Código Penal, resulta um poder-dever do tribunal de ponderação da substituição da pena de prisão aplicada, segundo o qual o tribunal dá preferência a alguma das penas de substituição em detrimento daquela pena privativa de liberdade, «sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição», ou seja, as finalidades preventivas referidas no artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal (não sendo aqui relevante a culpa).

Por outro lado, não existindo qualquer critério legal de escolha entre as várias penas de substituição que possam ser abstracta e simultaneamente aplicáveis, tal escolha realizar-se-á tendo em conta as finalidades da punição, sob orientação das regras da adequação (ajuste da pena às concretas exigências de prevenção) e da proporcionalidade, na vertente de proibição do arbítrio ou do excesso (neste sentido, FIGUEIREDO DIAS, in “Direito Penal Português, Parte geral II, As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág. 365 e ODETE MARIA OLIVEIRA, in “Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal”, Edição do CEJ, pág.73)”.

No caso presente, ante a aplicação de uma pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão são aplicáveis a suspensão da execução da pena, a prestação e trabalho a favor da comunidade e a pena de prisão em regime de permanência na habitação.

Atenta a pena concreta aplicada mostra-se legalmente vedada a possibilidade de substituição por pena de multa.

Estes arguidos agiram em nome da Associação e obtiveram para esta os benefícios já acima mencionados, (pontos 14, 18 e 21 dos factos provados). Este concreto comportamento é fortemente sentido pela sociedade impondo-se fortes exigências de prevenção geral positiva, e diríamos até negativas, isto é, na sua vertente de intimidação e dissuasão, reclamando, pois, uma atitude firme e exigente por parte do Estado, para com os agentes, que integrados numa Associação como a que figura nestes autos como arguida, os praticam.
Assim, e apesar da pena fixada em 1 (um) ano e 6 (seis) meses, entendemos que a sua substituição por trabalho a favor da comunidade não satisfaria de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, em face das necessidades de prevenção geral que se fazem sentir, conforme acima já expusemos, sendo certo que nenhum dos arguidos prestou o seu consentimento expresso com vista à aplicação dessa pena de substituição (cfr. artº 58º, nº 5, do Código Penal).

O Tribunal a quo (não se colocando face à pena que havia encontrado a sua substituição por trabalho a favor da comunidade) optou pela suspensão da execução da pena.
Nos termos do art. 50º do Código Penal, “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo á personalidade do agente, às condições da sua vida, á sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça de prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.

Como refere Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, § 518, pressuposto material de aplicação do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena – acompanhadas ou não da imposição de deveres e (ou) regras de conduta – “bastarão para afastar o delinquente da criminalidade”. E acrescenta: para a formulação de um tal juízo - ao qual não pode bastar nunca a consideração ou só da personalidade ou só das circunstâncias do facto -, o tribunal atenderá especialmente às condições de vida do agente e à sua conduta anterior e posterior ao facto.

Por outro lado, há que ter em conta que na formulação do prognóstico, o tribunal reporta-se ao momento da decisão, não ao momento da prática do facto.

Adverte ainda - § 520 - que apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem «as necessidades de reprovação e prevenção do crime».

Reafirma que “estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto em causa” [Acórdão do STJ de 16-01-2008, Processo nº 07P3485, in www.dgsi.pt].

Esse prognóstico a efetuar consiste na esperança de que o agente ficará devidamente avisado com a sentença e não cometerá nenhum outro delito, e reporta-se ao momento da decisão e não ao momento da prática do facto, razão pela qual devem ser tidos em consideração, influenciando-o negativa ou positivamente, designadamente, crimes cometidos posteriormente ao crime (s) objeto do processo e circunstâncias posteriores ao facto, ainda mesmo quando elas tenham já tomadas em consideração em sede de medida da pena.

Na sentença recorrida escreveu-se: “Pese embora a particular ressonância provocada pelo cometimento do crime em presença, como já explicitado, crê-se que a aplicação da pena substitutiva corresponderá a solução socialmente suportável quanto aos três Arguidos pessoas singulares, para além de ser a indicada pelas exigências de prevenção especial, atento o já exposto supra aquando da fixação da pena

Importa ter em conta que dispõe o art. 14.º, n.º 1, do RGIT que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada é sempre condicionada ao pagamento, em prazo a fixar até ao limite de cinco anos subsequentes à condenação, da prestação tributária e acréscimos legais, do montante dos benefícios indevidamente obtidos e, caso o juiz o entenda, ao pagamento de quantia até ao limite máximo estabelecido para a pena de multa.

Decorre da citada disposição normativa, e tal como, de resto, constitui entendimento praticamente pacífico da doutrina e da jurisprudência, que, no caso de condenação por crimes tipificados no RGIT e de aplicação de pena de prisão suspensa, a suspensão não poderá deixar de ser condicionada ao pagamento da prestação tributária em dívida e legais acréscimos.

É, naturalmente, discutível a opção legal, em atenção à disposição geral contida no artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal, que impõe ao tribunal o dever de ponderar a real capacidade de cumprimento da obrigação a impor ao condenado.

Claro está que, se a obrigatoriedade de imposição de pagamento do tributo em falta e respectivos acréscimos, independentemente da verificação da razoabilidade da exigência de pagamento total, puder ser entendida no sentido de que, o não cumprimento, no prazo estabelecido, da condição imposta, implicaria, necessariamente, a revogação da suspensão, sempre se poderia equacionar da eventual ofensa ao princípio da culpa, com implicações relativamente à inconstitucionalidade da norma.

Importa, ainda, considerar que o Tribunal Constitucional se tem pronunciado de forma unânime pela constitucionalidade do art. 14º, n.º 1, do RGIT, equacionando, nos seus vários arestos, os princípios da culpa, da adequação, da igualdade, da razoabilidade e da proporcionalidade, no que tange à aplicação desse normativo pelos tribunais ordinários.

Afirmou-se no Acórdão nº 256/2003 do Tribunal Constitucional, de 21/05/2003 [Proferido no Processo nº 647/02, 1ª Secção, DR-II Série de 02/07/2003] «Cabe, (…), questionar se não existirá desproporção quando no momento da imposição da obrigação, o julgador se apercebe de que o condenado muito provavelmente não irá pagar o montante em dívida, por impossibilidade de o fazer. // Esta impossibilidade (…) não altera, todavia, a conclusão a que se chegou. // Em primeiro lugar, porque perante tal impossibilidade, a lei não exclui a possibilidade da suspensão da execução da pena. (…) Em segundo lugar, porque mesmo parecendo impossível o cumprimento no momento da imposição da obrigação que condiciona a suspensão da execução da pena, pode suceder que, mais tarde, se altere a fortuna do condenado e, como tal, seja possível ao Estado arrecadar a totalidade da quantia em dívida. (…) // Em terceiro lugar, e decisivamente, o não cumprimento não culposo da obrigação não determina a revogação da suspensão da execução da pena. Como claramente decorre do regime do Código Penal para o qual remetia o artigo 11º, nº 7 do RJIFNA, bem como do nº 2 do artigo 14º do RGIT, a revogação é sempre uma possibilidade; além disso, a revogação não dispensa a culpa do condenado. // Não colidem, assim, com os princípios constitucionais da culpa, adequação e proporcionalidade, as normas contidas no artigo 11º, nº 7 do RJIFNA e no artigo 14º do RGIT.» [Em idêntico sentido se posicionou o acórdão nº 29/2007, de 17/01/2007, do mesmo Tribunal, publicado “in” DR, II-Série, de 26/02/2007].

Importa, por último, considerar que, como se decidiu no acórdão do STJ nº 8/2012 [[ Publicado no D.R., nº 206, Série I, de 24 de Outubro de 2012], «no processo de determinação da pena por crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no artigo 105º nº 1 do RGIT, a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos do artigo 50º nº 1 do Código Penal, obrigatoriamente condicionada, de acordo com o artigo 14º nº 1 do RGIT, ao pagamento ao Estado da prestação tributária e legais acréscimos, reclama um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura (…)». Defendeu-se, nesse enquadramento, que “Nada impede que concluindo o julgador pela impossibilidade de cumprimento, se repondere a hipótese de optar por pena de multa, pois o processo de confecção da pena a aplicar não é um caminho sem retorno, há que avaliar todas as hipóteses e dar um passo atrás, se necessário, encarando todas as soluções jurídicas pertinentes, conforme estabelece o artigo 339º nº 4 do CPP». Assim, resulta de tal acórdão que se faça, em sede de decisão, um juízo de prognose de razoabilidade acerca da satisfação dessa condição legal por parte do condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica.

No caso em apreço, a formulação do juízo de prognose acerca das possibilidades dos Arguidos pessoas singulares procederem ao pagamento da condição passam pela consideração do montante da dívida em causa, num total de 52 348,21€ e pela ponderação dos seus rendimentos mensais, conforme resultam dos factos provados.

Nesse quadro, tendo em conta o período de suspensão e os rendimentos e despesas que resultaram provados, entendo que a obrigação do pagamento do valor total pelos Arguidos pessoas singulares, mesmo a dividir pelos três, implicaria um esforço económico para si e o seu agregado familiar superior ao que se impõe para o presente caso, importando assim fixar-se valor inferior, embora em diferente medida para cada um.

Pelo que, atendendo aos rendimentos de cada um dos Arguidos, entendo que se mostra adequada a redução do valor a pagar nesta sede pelo arguido AA do valor de 4.500,00€ (quatro mil e quinhentos euros), pela Arguida BB do valor de 3600,00€ (três mil e seiscentos euros) e pela Arguida CC, do valor de 3000,00€ (três mil euros), sujeitando a suspensão da execução da pena de prisão a tal pagamento. Valores estes referentes às contribuições indevidamente auferidas pela Associação Arguida, em termos que, acarretando algum esforço económico para si e para o seu agregado, seja sinal da antijuridicidade do anterior comportamento e principio de ressocialização.

Assim sendo, no caso iudice impõe-se, por efeito do que se prescreve no art. 14º, nº 2, do RGIT, condicionar a suspensão da execução da pena aplicada aos Arguidos AA, BB e CC à obrigação de estes procederem, no prazo da suspensão, à entrega à Segurança Social, respectivamente, das quantias referidas.

No caso vertente, não pode dizer-se, desde já, que os Arguidos não consiga proceder, em atenção à sua situação económica presente, que não se antevê venha a alterar-se, ao pagamento de pelo menos uma parte da dívida, no prazo de 3 anos, que, para o efeito, lhe vai concedido, a realizar, diluidamente, devendo comprovar no final de cada ano, contado desde o trânsito em julgado da presente decisão, o pagamento de um terço do valor.

Assim, por todo o exposto e ao abrigo das citadas disposições legais, decido suspender a execução da pena de prisão aplicada aos arguidos AA, BB e CC pelo período de 3 (três) anos, subordinando tal suspensão, nos termos do disposto no art. 14.º, n.º 1, do RGIT, ao pagamento:

• pelo arguido AA do valor de 4.500,00€ (quatro mil e quinhentos euros),

• pela Arguida BB do valor de 3600,00€ (três mil e seiscentos euros) e

• pela Arguida CC, do valor de 3000,00€ (três mil euros), sendo que no final de cada ano, contado no trânsito em julgado da presente sentença, terão que entregar o correspondente a um terço desse valor.”

Na situação, como a que apreciamos, em que o crime é punível em abstrato tão só com pena de prisão, surge uma divergência na Jurisprudência relativa à aplicabilidade  das considerações que sustentam a jurisprudência decorrente do Acórdão de Fixação de Jurisprudência nº 8/2012, de 12.09.2012.

A divergência passa por saber se deve ser objeto de ponderação, mesmo no momento da fixação dos termos da condição a aplicar em caso de suspensão, a situação económica do condenado, ou se essa ponderação apenas releva no momento em que se decide da aplicação da suspensão ou não, sendo que decidida esta, a condição deve ser sempre fixada e com a configuração resultante daquela disposição legal especial, isto é do art. 14º do RGIT.

Ao que julgamos a maioria da jurisprudência entende não haver lugar a qualquer ponderação nos termos do citado AUJ nº 8/2012, devendo, em caso de opção pela suspensão da pena de prisão, fixar–se necessariamente a condição nos termos do art. 14º RGIT. Isto é, considerando que a pena de prisão deverá ser suspensa na sua execução sob condição de pagamento das quantias indevidamente obtidas através da acuação criminosa, a imposição desta condição de suspensão subtraída ao critério do julgador, antes traduzindo uma opção de política legislativa que terá ponderado objetivos de interesse público imanentes ao pagamento dos impostos.

Neste sentido o Acórdão deste TRC de e 19.05.2021 [processo nº 30/19.9IDVIS-C1, disponível in www.dgsi.pt], ou o acórdão do TRE de 24.05.2022 [proferido no processo nº 59/19.7T9SSB.E1[ disponível in www.dgsi.pt] onde se escreve: “- Os crimes tributários previstos apenas com pena de prisão – como o dos presentes autos – encontram-se fora do âmbito de aplicação da jurisprudência fixada pelo AUJ 8/2012, sendo que o princípio da legalidade determinará que se dê aplicação à norma especial prevista no artigo 14.º do RGIT, respeitando-se a imperatividade da imposição da condição que o mesmo consagra em caso de opção pela pena substitutiva de suspensão da execução da pena de prisão, sob pena de desaplicação de lei expressa”. E, ainda os Acórdãos do TRP de 08.10.2014 - proc. 63/10.0IDPRT.P1; de 29/04/2015 – processo  290/07.8IDPRT.P1; de 30/04/2018 – processo nº 7815/15.3T9PRT.P2], todos disponíveis in www.dgsi.pt.

Noutro sentido defende alguma jurisprudência que as razões exaradas naquele AUJ nº 8/2012 assumem relevância para a ponderação dos pressupostos em que deve assentar o funcionamento do regime da suspensão da pena, impondo–se que se faça um juízo de prognose de razoabilidade acerca dos próprios termos da delimitação concreta da condição legal a cumprir pelo condenado, tendo em conta a sua concreta situação económica, presente e futura. Defende–se, assim, que o art 14º nº 1 do RGIT deve ser desde logo interpretado conjugadamente com o art. 51º, nº 2 do Código Penal, não se considerando que o primeiro exclua a aplicação do segundo, antes se complementando, e propugnando, pois, que também nos crimes tributários, tal como acontece com os restantes crimes, só pode ser imposto um dever de pagamento como condição de suspensão da pena de prisão nos termos que resultem adequados em função de tal juízo de prognose, e quando do mesmo resultar que existem condições para que essa obrigação possa ser cumprida.

Neste sentido os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 10/10/2016 processo  614/09.3IDBRG.G1; e do TRL de 26/02/2014 – processo 1467/11.7IDLSB.L1-3 e do TRP de 16.10.2024 – processo nº 2623/10.0TAMAI.P2, este com um voto de vencido – todos disponíveis in www.dgsi.pt.

É nosso entendimento que em situações como a presente, em que o crime é punido apenas com uma pena de prisão, haverá que respeitar a imperatividade da imposição da condição a que o RGIT subordina a suspensão da execução da pena de prisão – no caso o pagamento dos benefícios indevidamente obtidos -, sob pena de desaplicação de lei.

O  regime estabelecido no art. 14º do RGIT constitui um regime especial relativamente ao disposto nos artigos 50.º, n.º 2, e 51.º, n.º 1, do Código Penal, pois que tal condição é de imposição obrigatória no caso de o tribunal optar pela suspensão da execução da pena (“é sempre condicionada”) e o seu montante está legalmente fixado no caso correspondendo ao “ montante dos benefícios indevidamente obtidos”.

Porém, independentemente de ser este o entendimento sufragado a verdade é que, por via da imposição processual da proibição da reformatio in pejus prevista no art. 409º, nº 1 do Código de Processo Penal – onde se estatui que «Interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes» –, não pode esta instância de recurso alterar os termos do dever fixado como condição da decidida suspensão penal num sentido desfavorável aos arguidos, únicos recorrentes.

Vide neste sentido o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 394/2022 [disponível in https://www.tribunalconstitucional.pt ], onde se escreveu: ”Ao determinar que, no julgamento do recurso interposto pelo arguido (ou pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele), o tribunal ad quem não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, o n.º 1 do artigo 409.º do CPP concretiza, no plano infraconstitucional, a proibição de reformatio in pejus, circunscrevendo-a às consequências jurídicas do crime estabelecidas em primeira instâncias.

Daí se segue que, ao conhecerem de direito, as relações não estão impedidas de proceder à qualificação jurídico-penal dos factos no sentido que reputem mais correto, alterando oficiosamente, mesmo para crime mais grave, a qualificação levada a cabo pelo tribunal de primeira instância; o que não podem é, em resultado dessa diferente qualificação, vir a impor ao arguido, único recorrente, uma sanção mais grave, em espécie ou medida, do que a fixada na decisão recorrida. Pelo menos desde o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 4/95, que fixou jurisprudência obrigatória no sentido de que «o tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efetuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus» (Diário da República n.º 154/1995, Série I-A de 06.07.1995), trata-se de um entendimento pacífico do direito infraconstitucional. Relativamente à conjugação da possibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos efetuada em primeira instância com a proibição de reformatio in pejus prevista no n.º 1 artigo 409.º do CPP, constitui dado assente tanto na doutrina como na jurisprudência dos tribunais comuns que «[o] tribunal superior não está impedido de ter opinião diversa quanto à qualificação dos factos provados, já que o conhecimento do direito é officio do tribunal. Porém, [...] a nova qualificação tida por correta, não poderá nunca prejudicar a pena já aplicada ou ter outros efeitos que eventualmente assistam ao arguido. Quer dizer: em tal circunstância, a nova qualificação garante apenas a preocupação do rigor jurídico da decisão, mas é inconsequente quanto ao mais» (Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, org. António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires Henriques da Graça, Coimbra 2014, Almedina, p. 1346)”.

E, assim, mantêm-se as condições fixadas nos exatos termos fixados.

O mesmo ocorrendo quanto à condenação da arguida Associação dos Amigos de ... – Centro de Desenvolvimento e Apoio Social a pagar ao Estado o valor de 52.348,21€, na impossibilidade de declarar perdidas as quantias a favor do Estado, pois que embora se tenha apurado valor de 70.159,93€, apenas tendo recorrido os arguidos vigora a proibição da reformatio in pejus, nos termos já acima mencionados.


***


III- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam as juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelos arguidos Associação dos Amigos de ... – Centro de Formação Desenvolvimento e Apoio Social, AA BB e CC e, consequentemente:

1. Revogar a sentença recorrida na parte em que condenou os arguidos pela prática em autoria material e na forma consumada e continuada, de um crime de burla tributária agravado, previsto e punido conjugadamente, pelos artigos 87.º, n.ºs 1, 3 e 4, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) e do artigo 202.º, alínea d) do Código Penal ex vi artigo 11º, alínea d), do RGIT.

2. Condenar a Associação dos Amigos de ... - Centro de Formação, Desenvolvimento e Apoio Social pela prática, em autoria material e na forma consumada e continuada, de um crime de burla tributária agravado, previsto e punido conjugadamente, pelos artigos 87.º, n.ºs 1 e 2, do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) e do artigo 202.º, alínea a) do Código Penal ex vi artigo 11º, alínea d), do RGIT, na pena de 400 (quatrocentos) dias de multa, à taxa diária de €15 (quinze euros), o que perfaz o quantitativo global de €6000,00 (seis mil euros).

3. Condenar os arguidos AA, BB e CC em coautoria material e na forma consumada e continuada, de um crime de burla tributária agravado, previsto e punido conjugadamente, pelos artigos 87.º, n.ºs 1 e 2  do Regime Geral das Infrações Tributárias (RGIT) e do artigo 202.º, alínea a) do Código Penal ex vi artigo 11º, alínea d), do RGIT, cada um, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.

4. Manter a suspensão da execução das penas referidas em 3., pelo período de 3 (três anos), sob a condição de cumprimento, por cada um dos arguidos AA, BB e CC do pagamento, pelo arguido AA do valor de 4.500,00€ (quatro mil e quinhentos euros), pela Arguida BB do valor de 3600,00€ (três mil e seiscentos euros) e pela Arguida CC, do valor de 3000,00€ (três mil euros), sendo que no final de cada ano, contado no trânsito em julgado da presente sentença, terão que comprovar nos autos o pagamento correspondente a um terço desse valor, referentes às contribuições auferidas pela Associação Arguida.

5. No mais, manter a sentença recorrida.

Sem custas.

Notifique.



Texto processado pela primeira subscritora (art. 94º, nº 2 do CPP)

Coimbra, 14 de maio de 2025

As Juízas desembargadoras

Sandra Ferreira

Alcina da Costa Ribeiro

Maria da Conceição Miranda