Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
759/23.7JALRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO REGISTO
Descritores: PEDIDO DE ESCUSA
MOTIVO SÉRIO E GRAVE
DESCONFIANÇA SOBRE A IMPARCIALIDADE DO JUIZ
MOTIVO DE NATUREZA SUBJECTIVA E DE NATUREZA OBJECTIVA
MANDATÁRIO JUDICIAL DA ASSISTENTE E DEMANDANTE
Data do Acordão: 10/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ 4
Texto Integral: N
Meio Processual: ESCUSA PENAL
Decisão: DEFERIDO O PEDIDO DE ESCUSA
Legislação Nacional: ARTIGO 43.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - Ao contrário das situações de impedimento, que se encontram previstas, de modo taxativo, nos arts. 39.º e 40.º do CPP, nos casos de recusa e de escusa (art. 43.º do CPP), o legislador faz apelo a um conceito indeterminado (“motivo sério e grave”) e endossa para o interprete a sua averiguação, de acordo com as circunstâncias concretas do caso.

II - Sem enumerar as situações que obstam a que o juiz decida a causa, na recusa e na escusa o legislador utiliza o conceito indeterminado do “motivo sério e grave, que na sua plasticidade abarca todos os motivos ponderosos que sejam susceptíveis de gerar suspeitas sobre imparcialidade do juiz.

III - Esses motivos tanto podem assumir natureza subjectiva, como objectiva, consoante digam respeito à ligação do juiz com os sujeitos processuais ou com a matéria de facto que constitui o objecto do processo, desde que sejam geradores de desconfiança sobre imparcialidade do juiz.

IV - O art. 43.º do CPP afasta do seu âmbito de aplicação motivos irrelevantes ou insignificantes, ao mesmo tempo em que faz apelo a um critério de adequação, que obriga o intérprete, de acordo com o padrão do homem médio e segundo as regras da experiência comum, a averiguar se as circunstâncias concretas são susceptíveis de gerar na comunidade suspeitas sobre a independência do tribunal.

V - Mostra-se fundado o pedido de escusa quando o irmão de um dos juízes adjuntos que integra o tribunal colectivo irá representar em juízo, enquanto mandatário judicial, a assistente e demandante cível.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

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Acordam os juízes da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

, juíza de direito, a exercer funções no Juízo Central Criminal de Leiria – Juiz 2, veio apresentar pedido de escusa com vista a não intervir na audiência de julgamento, enquanto juíza adjunta, a realizar no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 759/23.7JALRA, com base nos seguintes fundamentos:

--a requerente é irmã do ilustre mandatário da ofendida e demandante cível, …, com procuração forense emitida a seu favor e junta aos autos em fase de inquérito;

--o grau de parentesco existente entre a requerente e o ilustre mandatário da ofendida e demandante cível constitui, em abstracto, motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade da juíza adjunta e, consequentemente, do tribunal colectivo por si integrado;

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Colhidos os vistos, cumpre decidir.

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De acordo com o disposto no art. 43.º, n.º 1, do CPP, sob a epígrafe de “recusas e escusas”, “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.”

Por seu turno, o n.º 4 deste artigo acrescenta que o juiz pode pedir ao tribunal competente (ou seja, ao tribunal imediatamente superior) que o escuse de intervir quando se verificarem as condições previstas nos n.ºs 1 e 2.

Enquanto que a escusa configura um pedido, da iniciativa do próprio juiz do processo, dirigido ao tribunal imediatamente superior, a recusa surge por impulso de um sujeito processual (Ministério Público, arguido, assistente ou partes civis, como decorre expressamente do n.º 3 do art. 43.º do CPP), quando se suscitem dúvidas sobre a sua imparcialidade. 

Todavia, quer a recusa, quer a escusa, assentam no mesmo fundamento: a existência de “motivo sério e grave”, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade do juiz a quem o processo judicial foi distribuído.

Ao contrário das situações de impedimento, que se encontram previstas, de modo taxativo, nos arts. 39.º e 40.º do CPP, nos casos de recusa e de escusa (art. 43.º do CPP), o legislador faz apelo a um conceito indeterminado (“motivo sério e grave”) e endossa para o interprete a sua averiguação, de acordo com as circunstâncias concretas do caso.

Competirá ao tribunal imediatamente superior, de acordo com as circunstâncias do caso, averiguar se o juiz deve ser afastado ou mantido no julgamento do processo que lhe foi distribuído, consoante existam (ou não) fundamentos para considerar a sua intervenção como suspeita.

Conforme se deixou assinalado no acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 10-01-2018, proferido no âmbito do Proc. n.º 66/16.1T9ACB-A.C1 (acessível em www.dgsi.pt), “(…) o motivo sério e grave referido no n.º 1, do art. 43.º, do CPP, tem que resultar de uma concreta situação de facto, onde os elementos processuais ou pessoais se revelem adequados a fazer nascer e suportar as dúvidas sobre a imparcialidade do tribunal (…)”

Sem enumerar as situações que obstam a que o juiz decida a causa, na recusa e na escusa o legislador utiliza o conceito indeterminado do “motivo sério e grave”, que na sua plasticidade abarca todos os motivos ponderosos que sejam susceptíveis de gerar suspeitas sobre imparcialidade do juiz.

Dada a abrangência deste conceito indeterminado, esses motivos tanto podem assumir natureza subjectiva, como objectiva, consoante digam respeito à ligação do juiz com os sujeitos processuais ou com a matéria de facto que constitui o objecto do processo, desde que sejam geradores de desconfiança na comunidade sobre imparcialidade do juiz do processo.

O art. 43.º do CPP afasta do seu âmbito de aplicação motivos irrelevantes ou insignificantes, ao mesmo tempo em que faz apelo a um critério de adequação, que obriga o intérprete, de acordo com o padrão do homem médio e segundo as regras da experiência comum, a averiguar se as circunstâncias concretas do caso são susceptíveis de gerar na comunidade suspeitas sobre a independência do tribunal.

É sempre essa a preocupação subjacente à recusa ou ao pedido de escusa.

Diga-se que a “formulação da norma, usando noções indeterminadas com expressão de forte carga semântica - «suspeita», «sérias e graves» - transmite indicações sobre a natureza dos fundamentos e sobre o grau de exigência e consistência que são necessários para o julgamento quanto ao risco para afectar a imparcialidade do juiz. O valor da imparcialidade como condição e qualidade estrutural da função de julgar e a quebra simbólica na confiança que decorre da dúvida sobre a consistência do valor, exigem um apertado juízo prudencial na verificação dos pressupostos de que depende a recusa” – vide, neste sentido, António Henriques Gaspar, in “Código de Processo Penal Comentado”, 2014, págs. 146 e 147. 

            O afastamento do juiz tem de assentar em motivos ponderosos, deve ser ordenado para manter a confiança da comunidade na administração da justiça, não pode fundar-se em meros caprichos ou em razões insignificantes ou supérfluas.  

No caso vertente, afigurar-se-ia intolerável a participação da Meritíssima Juíza na audiência de julgamento, enquanto juíza adjunta, no âmbito do Processo Comum Colectivo n.º 759/23.7JALRA, quando surge inquestionável que o seu irmão, ilustre advogado, irá representar em juízo um dos sujeitos processuais (a saber: a assistente e a demandante cível).

A imparcialidade da Meritíssima Juíza poderia, em abstracto, ser posta em causa, dada a relação de parentesco que mantém com o ilustre advogado que representa a assistente e a demandante cível no âmbito do mencionado processo e que, por isso, mantém interesse no desfecho da causa. 

A sua participação no julgamento poderia levantar dúvidas na comunidade sobre a sua imparcialidade e impõe-se que se afaste a suspeita de que tenderia a beneficiar a assistente devido à relação de parentesco que tem com o ilustre advogado que representa esta última em juízo.

 Deste modo, o pedido de escusa mostra-se inteiramente fundado, por forma a afastar eventuais suspeitas sobre a imparcialidade da Meritíssima Juíza.

A escusa foi apresentada dentro do prazo estabelecido pelo art. 44.º do CPP, ou seja, logo após a prolacção do despacho que recebeu a acusação e antes ainda de se ter iniciado a realização da audiência de julgamento.

Por último, importa referir que a pretensão em causa foi dirigida ao tribunal imediatamente superior, ou seja, a este Tribunal da Relação de Coimbra, pelo que se mostra observada a atribuição resultante da al. a) do n.º 1 do art. 45.º do CPP. 

III – DECISÃO:

Em face do exposto, acordam os juízes que integram a 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em deferir o pedido de escusa apresentado pela Meritíssima Juíza e, em consequência, dispensá-la de intervir no julgamento, enquanto juíza adjunta, do Processo Comum Colectivo n.º 759/23.7JALRA, distribuído ao Juízo Central Criminal de Leiria.   

Sem custas.

 

                                     Coimbra, 22 de Outubro de 2025


Paulo Registo

Ana Carolina Cardoso

António Miguel Veiga