Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
402/20.6PCLRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: SANDRA FERREIRA
Descritores: CRIME DE OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA QUALIFICADA
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
ACTUAÇÃO CRUEL PARA AUMENTAR O SOFRIMENTO DA VÍTIMA
MEIO INSIDIOSO
SINDICÂNCIA DA PENA CONCRETA APLICADA
DIREITO AO SILÊNCIO
Data do Acordão: 10/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ 3
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 132.º, N.º 2, ALÍNEAS D) E I), 145.º, N.ºS 1 E 2, E 243.º, N.º 3, DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I - Na construção da proteção jurídico-penal do bem integridade física, o legislador optou por recorrer a uma técnica de fragmentação em duplo grau, começando pela definição de um tipo fundamental e elaborando, a partir dele, as derivações correspondentes ao privilegiamento e à agravação.

II - O crime de ofensa à integridade física, em qualquer uma das suas possíveis configurações, é, do ponto de vista da actuação do agente sobre o bem jurídico protegido, um delito de resultado, resultado que, podendo embora ser atingido através do emprego de qualquer expediente ou mecanismo, tem sempre de se traduzir numa lesão efectiva do bem jurídico tutelado.

III - No crime de ofensa à integridade física grave, do artigo 144.º do Código Penal, não assume relevância o meio pelo qual o resultado qualificado foi atingido.

IV - A prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, do artigo 145.º do Código Penal, supõe a presença de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, que pode decorrer de uma das circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º.

V - A especial censurabilidade prende-se com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas, ou seja, refere-se às componentes da culpa relativamente ao facto, e a especial perversidade refere-se às condutas que reflectem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente, ou seja, reporta-se aos componentes da culpa relativas ao agente.

VI - Neste caso, ainda que a qualificação da conduta seja sempre determinada por um mais acentuado desvalor da atitude do agente, no elenco dos exemplos-padrão, uns fundam-se numa atitude mais desvaliosa do agente e outros radicam num mais acentuado desvalor da acção ou da conduta, se bem que, mesmo nestes casos o determinante da agravação é a especial censurabilidade ou perversidade do agente.

VII - Comete o crime de ofensa à integridade física qualificada, dos artigos 143.º e 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alíneas d) e i), por tratamento cruel, degradante e desumano, traduzido num sofrimento físico agudo da vítima, e actuação de forma insidiosa, o arguido que, acompanhado de outro indivíduo, aborda o ofendido de forma inesperada às 3h30, no hall de entrada do prédio onde este residia no momento em que chegava a casa, agarrando-o ambos e tendo-lhe o arguido desferido vários murros na cabeça e mordeduras nas orelhas, arrancando parte de ambas, causando um quantum doloris de 6 numa escala cujo máximo é 7.

VIII - A censura que o tribunal de recurso pode fazer sobre a determinação da sanção incide sobre todos os elementos fornecidos pelo tribunal que, não tendo sido considerados para a questão da culpabilidade, são relevantes para a determinação da sanção, bem como sobre todos os elementos que considerou adquiridos, e porque considerou adquiridos uns e outros não, e ainda sobre a forma, fundamentada, porque valorou esses factores na decisão final.

IX - Não constitui valoração negativa do silêncio do arguido sobre os factos ou violação do princípio nemo tenetur se ipsum accusare a circunstância de o tribunal fazer constar a ausência de arrependimento, quer traduzido por palavras ou por gestos, o que impediu a convocação da atenuante que resultaria da sua verificação.

Decisão Texto Integral: *

Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:

I-RELATÓRIO

I.1 No âmbito do processo comum coletivo nº 402/20.6PCLRA, que corre termos pelo Juízo Central Criminal de Leiria, Juiz 3, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, em 26.02.2025, foi proferido Acórdão com o seguinte dispositivo [transcrição]:

 “III- DISPOSITIVO:

1- O Tribunal julga parcialmente procedente a acusação deduzida contra o arguido e, em consequência:

a)- Condena o arguido, pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1 e 144.º, alínea a) e c), qualificada nos termos do artigo 145.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2, por referência às alíneas d), e i), do art. 132.º, n.º 2, todos do Código Penal, na pena de 6 (seis) anos de prisão;

b)- Absolve o arguido, da prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1 e 144.º, alínea a) e c), qualificada nos termos do artigo 145.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2, por referência à alínea e), do art. 132.º, n.º 2, todos do Código Penal.

c)- Condena o arguido em custas, no montante de 4 UC.

2- O Tribunal julga parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por … contra o arguido … e, em consequência:

a) Condena o arguido e demandado no pagamento da quantia de 35.000,00 € (trinta e cinco mil euros) relativa aos danos não patrimoniais, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal de 4 % ao ano, desde a data da citação, até integral pagamento;

b) Absolve o demandado do restante pedido;

c) Condena o demandado e o demandante nas custas do pedido de indemnização civil, na proporção do decaimento, sendo de 2/5 para o primeiro e 3/5 para o segundo, sem prejuízo do apoio judiciário concedido- art. 446.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, ex vi do art. 523.º do Código de Processo Penal.”


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I.2 Recurso da decisão

Inconformado com tal decisão, dela interpôs o arguido recurso para este Tribunal da Relação, com os fundamentos expressos na respetiva motivação, da qual extraiu as seguintes conclusões [transcrição]:

“CONCLUSÕES:

2- A factualidade dada como provada no acórdão recorrido e acima elencada, não permite concluir pela verificação das alíneas d), e) e i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, e, por conseguinte, não permite concluir pela qualificação do crime de ofensas à integridade física grave pelo qual o arguido foi condenado no acórdão recorrido.

3- Da factualidade dada como provada no acórdão recorrido quanto à descrição das agressões praticadas pelo arguido contra o assistente, não resulta matéria de fato suficiente para que da mesma se possa proceder à qualificação do crime de ofensas à integridade física grave.

6- A factualidade dada como provada no acórdão recorrido quanto à concreta atuação do arguido, não é suficiente para aferir de circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, e, por conseguinte, para que se possam considerar verificadas as circunstâncias previstas no nº 2, do artigo 132º do Código Penal.

7- Não estão verificados os pressupostos para que o crime de ofensas à integridade física grave seja qualificado nos termos do artigo 145º, nº 1, al. c) e nº 2, por referência às alíneas d) e i) do artigo 132º, nº 2, todos do Código Penal.

8- O arguido deve ser condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1 e 144.º, alínea a) e c), mas não qualificado.

11- A medida concreta da pena deve ser ajustada à gravidade do crime, à culpa do agente e às exigências de prevenção.

14- O facto do arguido desde setembro de 2022 se encontrar a cumprir uma pena de três anos e nove meses de prisão, …, permite atenuar as exigências de prevenção geral e especial na situação em apreço, as quais, pelo menos em parte, já se encontram satisfeitas ou garantidas pelo facto do arguido se encontrar recluso a cumprir essa pena de prisão.

15- Do facto do arguido ter optado por se remeter ao silencio, conforme o direito que lhe assiste, não se pode assacar quaisquer considerações acerca das necessidades de prevenção geral ou especial daquele, nem tal lhe pode ser de alguma forma prejudicial.

16- O direito ao silêncio decorre do princípio da presunção de inocência e do nemo tenetur se ipsum accusare (princípio de que ninguém é obrigado a produzir prova contra si próprio), de forma que qualquer interpretação que retire consequências negativas do silêncio do arguido violaria essas garantias fundamentais.

17- Estando o arguido recluso a cumprir pena de prisão por outro crime, à partida não lhe seria possível adotar quaisquer condutas tendentes a reparar as consequências do crime em causa, ou, pelo menos, estaria bastante condicionado e limitado para tal.

18- O Tribunal a quo ignorou a circunstância do arguido se encontrar já detido a cumprir pena de prisão por outro crime, o que, a nosso ver, pelo menos, atenuará as necessidades de prevenção geral e especial no caso concreto.

19- O facto de o arguido estar já a cumprir pena de prisão ainda que por outro crime, permite atenuar, pelo menos em parte, as exigências de punição e salvaguarda da confiança da sociedade no sistema penal, e permite também cumprir, pelo menos em parte, as exigências e finalidades de ressocialização do arguido, no caso em apreço.

20- A pena de prisão de 6 (seis) anos aplicada ao arguido é manifestamente exagerada, não tendo sido respeitados os princípios da adequação, da proporcionalidade e da ressocialização que norteiam a nossa política criminal.

21- A pena aplicada ao aqui recorrente, é, salvo o devido respeito, desproporcional e desajustada às concretas necessidades de prevenção geral e especial.

24- No caso concreto estão reunidas as condições para aplicação de uma pena de substituição correspondente à suspensão da execução da pena.

27- A circunstância do arguido se encontrar recluso a cumprir pena de prisão por outro crime, permite, pelo menos, atenuar as finalidades/exigências relacionadas com a punição da condenação, bem como, para atenuar as exigências de prevenção geral.

28- Os factos provados atinentes às condições pessoais e sociais do arguido permitem concluir que o recorrente cresceu e desenvolveu-se ao longo de toda uma vida marcada pela dificuldade e instabilidade, o que, não o desculpando, aconselha a que lhe seja dada uma última e derradeira oportunidade de ressocialização e integração na sociedade.


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O recurso foi admitido, nos termos do despacho proferido a 07.04.2025, a subir

imediatamente nos próprios autos e com efeito suspensivo.


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I.3 Resposta ao recurso

Efetuadas as legais notificações:

- Veio o assistente responder ao recurso interposto pelo arguido, …

- Veio o Ministério Público responder ao recurso interposto pelo arguido, …


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I.4 Parecer do Ministério Público

Remetidos os autos a este Tribunal da Relação, nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu o seguinte parecer …


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I.5. Resposta

Dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não foi apresentada resposta ao sobredito parecer.


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I.6. Concluído o exame preliminar, prosseguiram os autos, após os vistos, para julgamento do recurso em conferência, nos termos do artigo 419.º do Código de Processo Penal.

Cumpre, agora, apreciar e decidir:


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II- FUNDAMENTAÇÃO

II.1- Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objeto do recurso:

Assim, face às conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do respetivo recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:

- Da errada subsunção dos factos no crime de ofensa à integridade física qualificada.

- Do excesso, desadequação e desproporcionalidade  da pena concreta fixada pelo tribunal a quo.

                - Da suficiência de uma pena de prisão suspensa na sua execução.


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II.2- Da decisão recorrida [transcrição dos segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso]:

“II- Fundamentação:

Da prova produzida e da discussão da causa resultou o seguinte:

A- Factos Provados:

Da acusação:

1- No dia 20 de Setembro de 2020, o arguido residia na Rua …

2- … residia na mesma rua, no n.º ...5, ..., sendo que a namorada de … é irmã da namorada do arguido.

3- Naquela data, pelas 03h30 quando … regressava a casa e se encontrava no hall de entrada do prédio onde reside, foi surpreendido pelo arguido e outro indivíduo.

4- Ambos agarraram …, desferindo-lhe o arguido vários murros na cabeça de …, bem como mordeduras em ambas as orelhas.

5- Na sequência das agressões, … foi assistido no local, tendo sido transportado para o serviço de urgência do Centro Hospitalar de Leiria e posteriormente para o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra.

6- Em consequência directa das agressões perpetradas pelo arguido, … sofreu dor e mau estar físico, bem como:

- na orelha direita: perda de substancia com ausência completa do lóbulo, antitragus e anti hélix;

- na orelha esquerda: perda de substância com ausência parcial da hélice, apresentando complexo cicatricial e deformidade da metade inferior do pavilhão auricular direito e perda de metade do pavilhão auricular esquerdo,

7- As quais foram causa directa e necessária, até ao momento, de 820 dias de doença, 90 dos quais com incapacidade de trabalho geral,

8- Correspondendo ao grau seis (numa escala de sete) o quantum doloris que sofreu, sendo fixado no mesmo nível o dano estético ( numa escala de sete),

9- Ficando …, na sequência dos factos relatados, com um défice funcional permanente de integridade físico-psíquica de 10 pontos.

10- O arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, querendo causar lesões físicas, como causou, a …, privando-o da metade inferior do pavilhão auricular esquerdo, e do lóbulo, antitragus e anti hélix na orelha direita, sequelas estéticas graves e permanentes, agindo sem possibilidade de defesa ou fuga de … e sem motivo.

11- O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.

Factos pessoais do arguido:

12- À data dos factos de que vinha acusado, … constituía agregado familiar com a companheira, …, e pelo filho do casal de 10 anos de idade.

13- O casal vivia maritalmente há cerca de 11 anos, mas a relação terminou aquando da actual prisão preventiva do arguido, mantendo-se a companheira a viver na casa onde ambos viviam, um apartamento arrendado, de tipologia 2, que reúne adequadas condições de habitabilidade, …

14- O arguido tem ainda outro filho, de 18 anos de idade, residente em França com a progenitora, fruto de uma relação que decorreu durante 3 anos.

27- Iniciou o consumo de drogas (erva, haxixe e metanfetaminas) aos 10-11 anos de idade e o consumo abusivo de álcool por volta dos 12 anos.

28- Nunca aceitou submeter-se a tratamento porque entendia não ter tido problemas de dependência de drogas, mas, por volta dos 42 anos, aquando do falecimento de um tio de quem se sentia próximo afectivamente, frequentou as consultas no Núcleo de Alcoologia de ....

29- Nos seus tempos livres aprecia a pesca à cana, que desenvolvia nalguns fins-de-semana, e a prática de boxe.

30- O arguido cumpre, desde setembro de 2022, a pena de três anos e nove meses de prisão, …

31- A situação jurídico-penal, especialmente a privação de liberdade, é geradora de sentimentos de ansiedade, acentuados pela ausência de apoio ou suporte familiar e neste momento não recebe visitas.

32- No Estabelecimento Prisional frequenta um curso de informática.

33- Ao longo da medida institucional, foi castigado com 12 dias de cela disciplinar por conflito com outro recluso.

34- Actualmente, apresenta comportamento ajustado às regras e normas internas, respeitando as figuras de autoridade e capacidade de comunicação.

35- Beneficia de acompanhamento psiquiátrico e psicológico estando medicado, facto que contribui para uma maior estabilidade e controlo da ansiedade.

36- O arguido já foi condenado:

Do pedido de indemnização civil:

37- … foi submetido a três intervenções cirúrgicas para reconstrução da orelha direita, a primeira intervenção cerca de 5 horas na sala de operações, cerca de 4 horas na segunda intervenção, e cerca de 3 horas na terceira intervenção.

38- Operações dolorosas das quais ainda hoje sente incómodos e fortes dores.

39- Estando a aguardar por agendamento de nova intervenção cirúrgica para reconstrução da orelha esquerda.

40- O Dano Estético causado ao assistente pelo arguido é passível de novas intervenções cirúrgicas de reconstrução facial, na zona das orelhas.

41- Em resultado da actuação do arguido, o assistente tem-se sentido perturbado, receoso, evitando locais públicos e deixou de frequentar festas e discotecas e reuniões com amigos.

42- Em consequência da acção do arguido, o assistente esteve durante três meses a dormir de costas não podendo dormir de lado para não descansar sobre as orelhas recortadas com dentadas, porquanto foi difícil e morosa a cicatrização.

43- O assistente é imigrante, optando por viver e trabalhar em Portugal.

B- Factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa, designadamente que:

 (…)

D) Fundamentação de direito:

1.- Enquadramento Jurídico-penal:

a) Do crime de ofensa à integridade física qualificada:

Nos termos do disposto no art. 143.º, n.º 1 do Código Penal, comete este crime:

Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa.

Por sua vez, de acordo com o art. 145.º do mesmo Código.

Ofensa à integridade física qualificada

1- Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido:

a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º;

b) Com pena de prisão de 1 a 5 anos no caso do n.º 2 do artigo 144.º-A;

c) Com pena de prisão de 3 a 12 anos no caso do artigo 144.º e do n.º 1 do artigo 144.º-A.

2- São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º

Finalmente, de acordo com o disposto no art. 144.º, do mesmo Código:

Ofensa à integridade física grave

Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a:

a) Privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente;

b) Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais, de procriação ou de fruição sexual, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem;

c) Provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou

d) Provocar-lhe perigo para a vida;

é punido com pena de prisão de dois a dez anos.

Ora, ficou provado que o arguido, nas circunstâncias de tempo e lugar supra descritas, desferiu vários murros na cabeça de …, bem como mordeduras em ambas as orelhas, em consequência do que foi assistido no local, tendo sido transportado para o serviço de urgência do Centro Hospitalar de Leiria e posteriormente para o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra. Em consequência directa das agressões perpetradas pelo arguido, … sofreu dor e mau estar físico, bem como na orelha direita: perda de substancia com ausência completa do lóbulo, antitragus e anti hélix, na orelha esquerda: perda de substância com ausência parcial da hélice, apresentando complexo cicatricial e deformidade da metade inferior do pavilhão auricular direito e perda de metade do pavilhão auricular esquerdo, as quais foram causa directa e necessária, até ao momento, de 820 dias de doença, 90 dos quais com incapacidade de trabalho geral,

Verifica-se assim o preenchimento do tipo objectivo, sendo certo que, atentas as lesões sofridas pelo assistente, estamos perante a situação a que alude o art. 144.º, al. a): a actuação do arguido afectou, de maneira grave, a capacidade de trabalho e a possibilidade de utilizar o corpo, pela ablação parcial das orelhas; e também perante a situação referida na al. c): a actuação do arguido causou ao assistente doença particularmente dolorosa, atenta a sua duração e intensidade.

No que toca ao elemento subjectivo deste crime, ele apenas consiste no dolo, não exigindo este tipo penal nenhum dolo específico, pois “O dolo de ofensas à integridade física refere-se às ofensas no corpo ou na saúde do assistente.” No caso vertente, o arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, querendo causar lesões físicas, como causou, a …, privando-o da metade inferior do pavilhão auricular esquerdo, e do lóbulo, antitragus e anti hélix na orelha direita, sequelas estéticas graves e permanentes, agindo sem possibilidade de defesa ou fuga de … e sem motivo, sabendo ainda que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Está assim preenchido o elemento subjectivo do tipo, tendo aqui o arguido agido com dolo directo.

Vinha ainda o arguido acusado da prática deste crime, sob a forma qualificada. O art. 145.º remete para a ocorrência de circunstâncias que revelem uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, constantes do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal e relativas ao homicídio qualificado.

“A aplicação deste art. 146.º [Numeração dos artigos anterior à actual redacção do C. Penal, mantendo-se porém actuais as considerações expendidas] e o funcionamento da qualificação que aqui se prevê supõem a verificação de uma lesão da integridade física simples (art. 143.º), grave (art. 144.º), ou a ocorrência de um dos resultados que nos termos do art. 145.º são susceptíveis de conduzir a uma agravação da responsabilidade do agente” [PAULA RIBEIRO DE FARIA, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 249].

Verificado este primeiro pressuposto, é necessário ainda “...que a conduta do agente revele uma censurabilidade acrescida, uma especial censurabilidade ou perversidade, para utilizar a expressão do legislador no n.º 1 deste artigo, e que se mostra susceptível de decorrer de uma das circunstâncias previstas pelo n.º 2 do art. 132.º, entre outras” [Idem, pág. 250].

A qualificação do homicídio do artigo 132º do Código Penal supõe, pois, a imputação de um especial e qualificado tipo de culpa, reflectido, no plano da atitude do agente, por uma conduta em que se revelam «formas de realização do facto especialmente desvaliosas (especial censurabilidade), ou aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta directamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas» (cfr. FIGUEIREDO DIAS, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, vol. I, págs. 27-28).

O modelo de construção do tipo qualificado pelo especial tipo de culpa - através da enunciação do critério geral, moldado pela densificação através dos exemplos-padrão, não permitirá, por seu lado, salvo afectação do princípio da legalidade, «fazer um apelo directo à cláusula de especial censurabilidade ou perversidade, sem primeiramente a fazer passar pelo crivo dos exemplos-padrão e de, por isso, comprovar a existência de um caso expressamente previsto [...] ou de uma situação valorativamente análoga» (cfr. idem, pág. 28).

A decisão sobre a integração do crime qualificado exige que se proceda à definição da imagem global do facto, de modo a logo aí detectar a particular forma de culpa que justifica a qualificação do homicídio, sem esquecer, na dimensão da integração diferencial, a circunstância de que o tipo geral de homicídio constitui já, por si mesmo, um crime de acentuada gravidade que protege o bem vida como valor essencial inerente à pessoa humana.

A integração da actuação do arguido na definição jurídico-penal que lhe caiba há-de ser determinada pelos factos provados, os quais (…) constituem a inultrapassável base de decisão.

O crime de homicídio apenas pode ser qualificado e integrar o crime do artigo 132º do Código Penal se, como se referiu, a atitude do agente manifestada no facto, e medida e mediada pela valoração inscrita nas circunstâncias enunciadas na lei através dos exemplos-padrão, se apresentar especialmente censurável ou a revelar e a expor externamente especial perversidade.” [Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 15/10/2003, Proc. 03P2024, www.dgsi.pt].

Estando em causa aqui as al. d), e) e i) do n.º 2 do art. 132.º, importa verificar o seu preenchimento.

“A situação padronizada contida na al. d) do n.º 2 do art. 132.º do CP traduz-se no agente empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima. A utilização dos meios descritos, com a sua qualidade intrínseca, que são típicos para a provocação da dor nos actos cruéis e de tortura, é particularmente gravosa para os bens pessoais aqui defendidos. Inclui-se no catálogo dos actos que são considerados tortura, tratamento cruel, degradante ou desumano, o emprego de meios naturais ou artificiais (cf. art. 244.º, n.º 1, al. b), do CP).” [Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 21/03/2013, Proc. 321/11.7PBSCR.L1.S1, www.dgsi.pt]. In casu, o uso, pelo arguido, dos próprios dentes para arrancar quase cerce, as orelhas do assistente, inserem-se neste conceito.

«O exemplo-padrão constante da alínea e) é, diferentemente do que sucede com os anteriores, estruturado com apelo a elementos estritamente subjectivos, relacionados com a especial motivação do agente (assim correctamente a nossa jurisprudência dominante, pela qual pode ver-se o Ac. do STJ de 23-7-86, BMJ 359º 395), em termos essencialmente análogos aos que o CP alemão prevê no § 211-2: cf. por último S/S/ ESER § 211 15 ss. e M/ S / MAIWALD I § 2 30 ss. (…); por “qualquer motivo torpe ou fútil” significa que o motivo da actuação,' avaliado segundo as concepções éticas e natais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (equívoca a repetida afirmação da nossa jurisprudência de que motivo fútil “é o que não é ou nem sequer chega a ser motivo”: cf. por outros o Ac. do STJ de 6-6-90, BMJ 398º 269), de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana.»

No que toca à al. i), é “meio insidioso aquele “cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas às do veneno- do ponto de vista do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto. (…)

O meio insidioso, justamente por sê-lo, não pode deixar de ser também especialmente perigoso, justamente por causa da dissimulação e, portanto, da sua acrescida capacidade de eficiência por via da natural não oposição de qualquer resistência por parte da vítima que, em regra, perante a insídia, nem sequer suspeitará de que está a atingida. (…)

A insídia não poderá ver-se desligada da resolução e subsequente actuação criminosa do agente, na medida em que, tratando-se de um procedimento oculto, justamente porque destinado a obter o resultado sem o conhecimento da vítima (…) e sem que ela de nada se aperceba.

E só o meio usado com vista ao resultado querido pelo arguido deve ser valorado ou não como oculto, não já, " intenção do agente que, em regra, o será sempre, na insídia ou fora dela” [Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 30/10/2004, Proc. 2605/03, CJ- STJ, III, pág. 218].

“O meio insidioso compreende não apenas os meios especialmente perigosos, mas também a eleição das condições em que o facto pode ser cometido de forma mais eficaz, dada a situação de vulnerabilidade, de desprotecção da vítima em relação ao agressor” [TERESA SERRA, ob. cit., pág. 13].

No caso dos autos, foi precisamente o que aconteceu: o arguido, aproveitando-se da imobilização da vítima (agarrado por aquele e por outro indivíduo), mordeu-lhe as orelhas da forma supra descrita. Assim, verifica-se o preenchimento desta alínea.

Verificado o efeito de indício relativamente a estas duas alíneas do tipo, pode-se sem qualquer dificuldade concluir que estamos perante uma especial perversidade e especial censurabilidade, bem demonstrada na actuação do arguido.


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2.- Escolha e Medida da Pena:

Ora, no crime de ofensa à integridade física grave e qualificada, a moldura penal abstracta vai de três a doze anos de prisão- art. 145.º, n.º 1, al. c) do mesmo Código.

Por outro lado, atento o disposto no art. 71.º do Código Penal, a medida da pena é determinada em função da medida da culpa, tendo em conta as exigências de prevenção. “A prevenção geral positiva fornece uma moldura de prevenção, em que o limite máximo expressa a medida óptima de tutela dos bens jurídicos, ainda consentida pela culpa, e o limiar mínimo, aquele abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação de uma pena, sem se pôr em causa a defesa dos bens jurídicos. Dentro desta moldura de prevenção geral actuam as exigências de prevenção especial sentidas no caso, tendo como função primordial a socialização do agente e a sua reintegração social e como função subordinada a intimidação individual.” [Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21/06/2011, Proc. 575/09.9TACTB.C1, www.dgsi.pt].

Dispõe ainda o art. 40.º do Código Penal que os fins das penas são a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Vejamos então, em concreto, quais as necessidades de prevenção geral e especial e qual a medida da culpa do arguido.

O crime de ofensa á integridade física qualificada merece uma elevada censura social, pois constitui uma violação de um direito que está quase no topo do nosso ordenamento jurídico: a integridade física.

Por outro lado, não se pode considerar que a culpa do arguido se apresentasse diminuída, para os crimes ora em apreço. Nem se provou qualquer circunstância passível de excluir a ilicitude ou a culpa, ou de atenuar especialmente a pena- cf. art. 31.º, n.os 1 e 2, al. a), 32.º e 33.º, n.º 1, todos do Código Penal.

Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele- cfr. artigo 71.º, n.º 2 do Código Penal. Ou seja:

- Em audiência de julgamento, o arguido optou por não prestar declarações. Ora, para além de não dar a sua versão dos factos ou confessá-los, não se permitiu também demonstrar arrependimento. “A ausência de arrependimento é, apenas, isso mesmo, ou seja, a ausência de uma circunstância atenuante. (…) A prova do arrependimento não se faz apenas por declarações de arguido, e o direito ao silêncio, uma vez exercido, não impõe que o tribunal silencie também a temática do arrependimento na sentença.” [Ac. do Trib. da Rel. de Évora, de 25/02/2014, Proc. 259/12.0PAABT.E1, www.dgsi.pt] Ora, a confissão e o arrependimento são importantes para o tribunal poder fazer um juízo de prognose futura favorável sobre se o arguido não tornará a delinquir, o que tem grande importância, nomeadamente ao nível da prevenção especial.

- Acresce que, dos autos não resulta que o arguido tenha adoptado alguma conduta séria e consistente destinada a reparar as consequências do crime que praticou, pelo que, nem por aí o mesmo demonstrou sincero arrependimento nem interiorização da gravidade da sua conduta.

Em suma, as considerações de prevenção geral são elevadas, uma vez que os crimes de ofensa à integridade física causam sempre grande repulsa e censura sociais.

Quanto à prevenção especial, as penas a aplicar têm de fazer sentir convenientemente ao arguido a reprovabilidade das suas condutas, condição essencial para o arguido não tornar a delinquir.

A culpa situa-se em níveis altos, sendo que era exigível ao arguido que não praticasse os actos que praticou. O crime em causa apenas prevê a pena de prisão.

Nestes termos, tudo ponderado, incluindo o circunstancialismo provado, assim como a forma como foi praticado o crime, afigura-se adequada a pena de:

- 6 (seis) anos de prisão, pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.”


***

II.3 - Apreciação do recurso
II.3.1 - Da qualificação Jurídica

Insurge-se o arguido quanto à qualificação jurídica dos factos provados por entender que perante os factos provados pelo Tribunal a quo não permitem concluir pela verificação das alíneas d), e) e i) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, alegando que da atuação descrita nos pontos 3 e 4 dos factos provados quanto à descrição das agressões, não é possível aferir, uma especial censurabilidade ou perversidade da atuação do ora recorrente.

O arguido foi condenado pelo Tribunal a quo pela prática em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física grave, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 143.º, n.º 1 e 144.º, alínea a) e c), qualificada nos termos do artigo 145.º, n.º 1, alínea c) e n.º 2, por referência às alíneas d), e i), do art. 132.º, n.º 2, todos do Código Penal.

De acordo com o disposto no artigo 143º do Código Penal, será punido com pena de prisão até 3 anos com pena de multa “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa”.,

            Através desta incriminação o legislador tutelou a integridade física de cada pessoa em si mesma.

            Na construção da proteção jurídico-penal do bem integridade física, o legislador optou por recorrer a uma técnica de fragmentação em duplo grau, começando pela definição de um tipo fundamental – as ofensas à integridade física simples do art. 143º – e elaborando, a partir dele, as derivações correspondentes ao privilegiamento e à agravação.

            Este crime em qualquer uma das suas possíveis configurações é, do ponto de vista da atuação do agente sobre o bem jurídico protegido, um delito de resultado. Tal resultado, podendo embora ser atingido através do emprego de qualquer expediente ou mecanismo, terá sempre de se traduzir materialmente numa lesão efetiva do bem jurídico tutelado: a perturbação concreta e efetiva do equilíbrio orgânico.

            Por último, no que toca ao elemento subjetivo do tipo, o crime de ofensa à integridade física simples pressupõe o dolo do agente (conhecimento da factualidade típica e da vontade de realização do tipo legal de crime) em qualquer das suas modalidades – direto, necessário ou eventual – art. 14º do Código Penal.

Por seu turno, dispõe o art.144º do Código Penal, sob a epígrafe “ Ofensa à integridade física grave, que: “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa de forma a:

a) Privá-lo de importante órgão ou membro, ou a desfigurá-lo grave e permanentemente;

b) Tirar-lhe ou afectar-lhe, de maneira grave, a capacidade de trabalho, as capacidades intelectuais ou de procriação, ou a possibilidade de utilizar o corpo, os sentidos ou a linguagem;

c) Provocar-lhe doença particularmente dolorosa ou permanente, ou anomalia psíquica grave ou incurável; ou

d) Provocar-lhe perigo para a vida, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos”.

            Não assume relevância, no contexto do art. 144º do Código Penal, o meio pelo qual o resultado qualificado foi atingido (a maior perversidade ou censurabilidade do agente é expressamente contemplada pelo art. 145º ofensa à integridade física qualificada).

            A aplicação do disposto no art. 145º do Código Penal, supõe a presença de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente, que pode decorrer de uma das circunstâncias previstas no nº 2 do art. 132º do Código Penal, sendo deles exemplos a al. d) -empregar tortura ou ato de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima – e a al. i) – utilizar veneno ou outro meio insidioso.

No caso concreto deste segmento da al. d) do nº 2 do art. 132º do Código Penal “Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima”, entende Paulo Pinto de Albuquerque [Comentário do Código Penal, à Luz da Constituição da República e da Convenção dos Direitos Humanos] em anotação ao art. 132º do Código Penal que “consiste na utilização de meios de provocação de dor para além da necessária para acusar a morte.”

Já Miguez Garcia e Castela Rio [Código Penal Parte Geral e Especial, 2ª edição, pág. 529] escrevem o seguinte: “A tortura (nº 1, d) (“Grausamkeit”) é o mesmo que tratamento cruel, degradante desumano; o facto de se infligir sofrimento físico ou psicológico agudo, cansaço físico ou psicológico grave”. Mais acrescentando Emprega-se para aumentar o sofrimento da vítima, o que é determinante da especial perversidade quanto à atitude do agente”.

Quanto à alínea i) do mesmo nº 2 do art. 132º do Código Penal: Figueiredo Dias [Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, § 27, págs. 38-39] afirma que, meio insidioso será “todo o meio cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas à do veneno - do ponto de vista pois do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto”.

Como se salienta no acórdão do STJ de 30.11.2011 [processo nº 238/10.2JACBR.S1, disponível in www.dgsi.pt] “I  -   As circunstâncias contempladas no n.º 2 do art. 132.º do CP não são taxativas, nem implicam só por si a qualificação do crime; tais circunstâncias não são elementos do tipo e antes elementos da culpa, não sendo o seu funcionamento automático.

II -  A noção de meio insidioso não é unívoca, girando sempre à volta de uma ideia que envolve elementos materiais e circunstanciais, estes ligados a uma certa imprevisibilidade da acção. Por outras palavras, poderá dizer-se que a subsunção não pode ficar-se por uma interpretação que se quede pela consideração apenas do meio utilizado, da forma como é executado o facto, atendendo à natureza do instrumento, mas antes tendo em consideração uma visão mais abrangente, completa, em que entra a imagem global do facto, o que é dizer no caso, apreciar os factos na sua globalidade, analisar a conduta no seu conjunto, avaliar a atitude do agente, o que será avaliado em função das específicas nuances do evento e do pleno das circunstâncias enformadoras do concreto sucesso submetido a juízo.

III - Na análise a efectuar há que ter presente, por um lado, a “natureza do meio/instrumento/arma, que é utilizado”, e por outro, averiguar as “circunstâncias acompanhantes”, isto é, o real, o naturalístico modo de execução do facto, e o conjunto concreto de circunstâncias em que aquela concreta arma/meio/instrumento de agressão, no caso de bens eminentemente pessoais, foi utilizada: a distância a que o agressor se encontrava da vítima (a curta distância, com disparo à queima roupa, ou não), a situação em que esta se encontrava (prevenida ou desprevenida, desprotegida, descuidada, indefesa, com possibilidade de resistência ao agressor ou não), a zona do corpo atingida, o momento e o local escolhido para a agressão, com actuação em espaço fechado, ou aberto, com ou sem espera, com ou sem emboscada, com ou sem estratagema, com ou sem traição, com ou sem perfídia, disfarce, surpresa, dissimulação, engano, abuso de confiança, ou distracção da vítima, ou não, de forma subreptícia, ou não, de forma imprevista ou não, com ataque súbito, inesperado, sorrateiro, ou não, com ou sem possibilidade de a vítima oferecer resistência, enfim, todo o conjunto de factores envolventes e circunstâncias acompanhantes/determinantes do evento letal, ou quase letal, no traço de um desenho panorâmico, de uma imagem multifacetada, de supervisão, de síntese, a final, de um retrato vivencial, de uma fotografia, guardadora de eventos ocorridos, condensada, definida, a juzante, com todos os contornos e pormenores, independentemente dos retoques, e que mais do que a natureza da arma ou instrumento utilizado, indiciam o meio utilizado naquele analisado concreto agir, como particularmente perigoso ou insidioso.”

A especial censurabilidade prende-se com a atitude do agente relativamente a formas de cometimento do facto especialmente desvaliosas. A especial perversidade refere-se às condutas que refletem no facto concreto as qualidades especialmente desvaliosas da personalidade do agente [cf. Prof. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 29].

Enquanto a especial censurabilidade se refere às componentes da culpa relativamente ao facto, a especial perversidade reporta-se aos componentes da culpa relativas ao agente [Cfr. Teresa Serra, Homicídio Qualificado, 64].

Assim, ainda que a qualificação da conduta seja sempre determinada por um mais acentuado desvalor da atitude do agente, no elenco dos exemplos-padrão, enquanto uns se fundam numa atitude mais desvaliosa do agente, outros há que radicam num mais acentuado desvalor da ação ou da conduta, se bem que mesmo nestes casos não é esse maior desvalor da conduta o determinante da agravação “antes ele é mediado sempre por um mais acentuado desvalor da atitude: e especial censurabilidade ou perversidade do agente” (…) [Cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, T. I, p. 27] .

Como se salienta no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10.07.2008 [processo nº 08PJ1785, disponível in www.dgsi.pt] “(…) o pensamento da lei é o de imputar à «especial censurabilidade» aquelas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas, e à «especial perversidade» aquelas em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas. Ou, como entende Teresa Serra, citando Sousa Brito, a especial censurabilidade refere-se às componentes da culpa relativas ao facto e a especial perversidade à atitude do agente (cf. Homicídio Qualificado Tipo de Culpa e Medida da Pena, pág. 64). (…)

V - Tudo dependerá, como refere Figueiredo Dias, de uma imagem global do facto agravada que corresponda ao especial tipo de culpa que aqui se deve ter em conta.”

O recorrente não questiona a integração da conduta apurada nos autos na ofensa à integridade física grave, subsumida pelo Tribunal a quo nos arts. 143º, 144º, al.s. a) e c) do Código Penal e nada há, quanto a nós, a censurar em tal subsunção jurídica.

Porém entende que a factualidade provada não permite a integração nos exemplos padrão previstos na citadas al.s. d) e i) do nº 2 do art. 132ºdo Código Penal, aplicáveis ex vi do nº 2 do art. 145º do mesmo diploma legal.

A este propósito escreveu-se entre o mais no acórdão recorrido o seguinte: “A situação padronizada contida na al. d) do n.º 2 do art. 132.º do CP traduz-se no agente empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima. A utilização dos meios descritos, com a sua qualidade intrínseca, que são típicos para a provocação da dor nos actos cruéis e de tortura, é particularmente gravosa para os bens pessoais aqui defendidos. Inclui-se no catálogo dos actos que são considerados tortura, tratamento cruel, degradante ou desumano, o emprego de meios naturais ou artificiais (cf. art. 244.º, n.º 1, al. b), do CP)” [Ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 21/03/2013, Proc. 321/11.7PBSCR.L1.S1, www.dgsi.pt;]. In casu, o uso, pelo arguido, dos próprios dentes para arrancar quase cerce, as orelhas do assistente, inserem-se neste conceito.”

(…)

 “No que toca à al. i), é “meio insidioso aquele “cuja forma de actuação sobre a vítima assuma características análogas às do veneno- do ponto de vista do seu carácter enganador, subreptício, dissimulado ou oculto. (…)

O meio insidioso, justamente por sê-lo, não pode deixar de ser também especialmente perigoso, justamente por causa da dissimulação e, portanto, da sua acrescida capacidade de eficiência por via da natural não oposição de qualquer resistência por parte da vítima que, em regra, perante a insídia, nem sequer suspeitará de que está a atingida. (…)

A insídia não poderá ver-se desligada da resolução e subsequente actuação criminosa do agente, na medida em que, tratando-se de um procedimento oculto, justamente porque destinado a obter o resultado sem o conhecimento da vítima (…) e sem que ela de nada se aperceba.

E só o meio usado com vista ao resultado querido pelo arguido deve ser valorado ou não como oculto, não já, " intenção do agente que, em regra, o será sempre, na insídia ou fora dela.”[ Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 30/10/2004, Proc. 2605/03, CJ- STJ, III, pág. 218].

“O meio insidioso compreende não apenas os meios especialmente perigosos, mas também a eleição das condições em que o facto pode ser cometido de forma mais eficaz, dada a situação de vulnerabilidade, de desprotecção da vítima em relação ao agressor” [TERESA SERRA, ob. cit., pág. 13].

No caso dos autos, foi precisamente o que aconteceu: o arguido, aproveitando-se da imobilização da vítima (agarrado por aquele e por outro indivíduo), mordeu-lhe as orelhas da forma supra descrita. Assim, verifica-se o preenchimento desta alínea.

Verificado o efeito de indício relativamente a estas duas alíneas do tipo, pode-se sem qualquer dificuldade concluir que estamos perante uma especial perversidade e especial censurabilidade, bem demonstrada na actuação do arguido.

Ora, analisando a factualidade provada verificamos que desta resulta que o assistente foi abordado pelas 03h30, isto é pela madrugada, num momento em que este chegava a casa e se encontrava no Hall de entrada, sendo ali surpreendido pelo arguido e outro individuo, tendo-o ambos agarrado e tendo-lhe o arguido desferido vários murros na cabeça e mordeduras nas orelhas, logrando arrancar-lhe parte de ambas, causando-lhe um quantum doloris, que numa escala cujo máximo é sete,  atingiu o nível 6.

Temos, pois, que o arguido agiu de uma forma verdadeira imprevista e imprevisível para o assistente AA, que foi surpreendido por este e por outro individuo que logo o agarraram,  desferindo-lhe, então, o arguido os vários murros na cabeça e as referidas mordeduras, ficando numa situação de vulnerabilidade e sem capacidade e/ou possibilidade de oferecer qualquer resistência.

Ora toda esta atuação foi súbita, não tendo permitido ao assistente - pela forma imprevista e  inesperada do ataque, o facto de o ter agarrado com a ajuda de outra pessoa e as zonas do corpo em que o atingiu e como o  fez, designadamente usando os seus dentes - qualquer defesa.

Deste modo cremos que, tal como decidiu o tribunal a quo, apesar do arguido ter usado as suas mãos e dentes, as concretas circunstâncias da sua atuação levam-nos a concluir por um agir através de um meio particularmente insidioso e igualmente por uma especial perversidade e censurabilidade, traduzida numa atitude profundamente rejeitável pela sociedade.

Por outro lado, o arguido não se limitou a atingir o assistente com os murros na cabeça, mas ainda veio a morder, não uma, mas ambas as orelhas deste, arrancando-lhe partes das mesmas melhor descritas nos factos provados. Ora, esta atuação do arguido, pelos atos que a integraram consubstancia um tratamento cruel, degradante e desumano, traduzido num sofrimento físico agudo (art. 243º, nº 3 do Código Penal) para o assistente, e nos remetem para uma atuação especialmente perversa e censurável.

Esta atuação do arguido é demonstradora de um especial desprezo pela integridade física do assistente, traduzindo a forma de cometimento dos factos uma atitude especialmente desvaliosa do arguido e refletindo também qualidades especialmente desvaliosas da sua personalidade, que  traduzem uma imagem global do factos agravada e que imprime à sua ação um maior desvalor, levando-nos a concluir pelo preenchimento das circunstâncias modificativas agravantes prevista nas al.s d) e i) do nº 2 do art. 132º do Código Penal, reveladoras, portanto, de uma especial censurabilidade e perversidade, e, consequentemente, pelo preenchimento do crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punível pelos arts. 143º e 145º, nº 1, al. a) e nº 2, do Código Penal, como decidido pelo tribunal a quo.

Não merece, pois, censura a decisão recorrida quanto à qualificação jurídica operada, improcedendo, neste segmento o recurso interposto.


*


III -Da medida da pena

            …

 

No que respeita à apreciação das penas fixadas pela 1.ª instância, cumpre, antes do mais, atentar, no referido no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 05.04.2017 [processo nº 47/15.2IDLRA.C1disponível in www.dgsi.pt], onde se escreve: “Fixada a pena é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação. Relativamente à determinação do quantum exacto de pena será objecto de alteração se tiver ocorrido violação das regras da experiência ou se se verificar desproporção da quantificação efectuada”.

A censura que o tribunal de recurso pode fazer  sobre a decisão respeitante à determinação da sanção, incide sobre todos os elementos fornecidos pelo tribunal que, não tendo sido considerados para a questão da culpabilidade, são relevantes para a determinação da sanção, bem como sobre todos os elementos que considerou “adquiridos” (e porque considerou adquiridos uns e outros não) e ainda sobre a forma, fundamentada, porque valorou esses fatores na decisão final.

É função do recurso - antes de tudo, analisar criticamente, os “parâmetros” da determinação de sanções.

Os poderes deste Tribunal abrangem nesta matéria, entre outras, a avaliação dos fatores que devam considerar-se relevantes para a determinação da pena: a questão do limite ou de moldura da culpa, a atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, e também o quantum da pena, quando se encontrarem violadas regras de experiência ou quando a quantificação operada se revelar de todo desproporcionada.

Assim, é forçoso concluir que o Tribunal de 2ª Instância apenas deverá intervir alterando o quantum da pena concreta quanto ocorrer manifesta desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.

Deste modo, o Tribunal de recurso deverá intervir modificando a pena concreta quanto ocorrer desproporcionalidade na sua fixação ou os critérios de determinação da pena concreta imponham a sua correção, atentos os parâmetros da culpa e as circunstâncias do caso.

Na análise desta matéria, importa ter em conta o disposto no artigo 40.º, nº 1 do Código Penal do qual decorre que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, decorrendo, por sua vez, do seu n.º 2 que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Decorre do artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal que a determinação da pena concreta, dentro da moldura penal cominada nos respetivos preceitos legais, far-se-á “em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” geral e especial, determinando o n.º2 do mesmo preceito legal que, para o efeito, se atenda a todas as circunstâncias que deponham contra ou a favor do agente, desde que não façam parte do tipo legal de crime (para que não se viole o princípio “ne bis in idem”, uma vez que tais circunstâncias já foram tomadas em consideração pela própria lei para a determinação da moldura penal abstrata), “considerando, nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência;

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”.

Nos autos está em causa a prática pelo arguido de um crime de ofensas à integridade física grave e qualificada, punível com uma pena de 3(três) a 12(doze) anos de prisão (art. 145º, nº1, al. c) do Código Penal).

São elevadas as exigências de prevenção geral, não só pela natureza do bem jurídico violado, fortemente sentido pela comunidade, como pela frequência que nos últimos tempos vem ocorrendo a prática de crimes violentos contra a integridade física, gerando um enorme sentimento de insegurança e de medo na comunidade, impondo-se, pois, algum rigor na aplicação da pena.

As exigências de prevenção especial são também elevadas porquanto, se revela premente a necessidade de socialização do arguido, no sentido da dissuasão de comportamentos violadores de bens jurídicos e em concreto da integridade física, atentas as circunstâncias concretas da infração cometida e, bem assim, em face das anteriores condenações sofridas - a maioria por crimes de condução sem habilitação legal, mas também por um crime de ofensa à integridade física e um crime de importunação sexual, tendo ainda sido condenado por factos praticados em agosto de 2020, 2022 e 2023 por um crime de abuso de cartão de garantia, um crime de roubo e um crime de violência doméstica.

Sendo certo que o arguido está desde setembro de 2022 em reclusão, esta resulta do cumprimento de pena por via da condenação que sofreu à ordem do processo nº 460/22...., por factos praticados em momento posterior àqueles que foram apreciados nestes autos. E, por outro lado, resulta provado nos autos que após a reclusão, foi castigado com 12 dias de cela disciplinar por conflito com outro recluso, embora atualmente apresente comportamento ajustado às regras e normas internas, respeitando as figuras de autoridade e capacidade de comunicação, frequentando um curso de informática, factos que, portanto, não nos levam a deixar de considerar que as exigências de prevenção se mostram elevadas.

O Tribunal a quo, analisando a ilicitude dos factos, modo de execução e consequências da conduta e o grau de violação dos deveres impostos ao agente considerou que a agressão, além do mais, se consumou à dentada, dela resultando a perda de uma parte considerável das orelhas do ofendido.

A intensidade do dolo, que foi direto, e ainda as condições pessoais e a sua situação económica, ali se mencionado a sua infância algo instável, a ausência de relacionamento com os seus irmãos, a sua situação de vida antes da reclusão e ainda os problemas que experienciou com o consumo de álcool de estupefacientes.

Ali se mencionaram, ainda, os seus antecedentes criminais como as condenações que sofreu por factos posteriores aos que ora se apreciam e as penas que lhe foram aplicadas.

Afirma o recorrente que não pode ser valorado contra si o facto de se ter remetido ao silêncio e que o tribunal a quo retirou consequências negativas, afirmando  que “está efetivamente a ser prejudicado por se ter remetido ao silêncio”.

Não olvidamos o princípio nemo tenetur se ipsum accusare que significa fundamentalmente que ninguém pode ser obrigado a testemunhar contra si próprio, a produzir prova contra si mesmo ou a fornecer coativamente qualquer tipo de declaração ou informação que o possa incriminar.

Como se refere no Acórdão do Tribunal Constitucional nº 298/2019 de 15 de maio de 2019 [disponível in tribunal constitucional .pt] “O princípio em causa implica o reconhecimento do direito ao silêncio e do direito do arguido à não autoincriminação enquanto elementos de um processo penal de estrutura acusatória.

O primeiro daqueles direitos traduz-se na faculdade reconhecida ao arguido de não se pronunciar sobre os factos que lhe são imputados, diferentemente do que sucedia nos processos regidos pelo princípio do inquisitório em que as declarações obrigatórias do arguido, maxime a confissão forçada, tendem a convertê-lo em instrumento da sua própria condenação. O direito ao silêncio tem vindo a ser reconhecido pela legislação processual penal da maioria dos ordenamentos jurídicos dos Estados de direito modernos, encontrando também consagração expressa em instrumentos jurídicos internacionais (cf. o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e artigo 14.º do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos).”

Porém, não cremos que o Tribunal a quo tenha valorado desfavoravelmente o direito que o arguido usou de se remeter ao silêncio.

Na verdade, como se escreve no Acórdão do STJ de 03.11.2022 [processo nº 19/20.5JBLSB.L1.S1, disponível in www.dgsi.pt] “O direito ao silêncio não tem só consagração legislativa ordinário sendo uma emanação do princípio do Estado de Direito.

A confissão e o arrependimento são circunstâncias, quando se verificam, são favoráveis ao arguido; não confessando o arguido, nem demostrando arrependimento, deixa de poder contar com essas circunstâncias favoráveis, mas isso não equivale a que se contabilize como agravantes a não confissão e não ter demonstrado arrependimento pela prática dos factos.”

Em idêntico sentido ainda o Acórdão do STJ de 15.02.2023 [processo nº 55/21.4PEBRG.S1, disponível in www.dgsi.pt] onde se escreve: “E se é certo que a ausência de confissão e arrependimento não constitui de per si circunstância agravante, a sua inexistência em concreto repercute-se numa diminuição do leque de circunstâncias atenuantes.”

Ora, no acórdão recorrido, a este propósito exarou-se o seguinte:

- “Em audiência de julgamento, o arguido optou por não prestar declarações. Ora, para além de não dar a sua versão dos factos ou confessá-los, não se permitiu também demonstrar arrependimento. “A ausência de arrependimento é, apenas, isso mesmo, ou seja, a ausência de uma circunstância atenuante. (…) A prova do arrependimento não se faz apenas por declarações de arguido, e o direito ao silêncio, uma vez exercido, não impõe que o tribunal silencie também a temática do arrependimento na sentença.” [Ac. do Trib. da Rel. de Évora, de 25/02/2014, Proc. 259/12.0PAABT.E1, www.dgsi.pt]. Ora, a confissão e o arrependimento são importantes para o tribunal poder fazer um juízo de prognose futura favorável sobre se o arguido não tornará a delinquir, o que tem grande importância, nomeadamente ao nível da prevenção especial. [negrito nosso].

- Acresce que, dos autos não resulta que o arguido tenha adoptado alguma conduta séria e consistente destinada a reparar as consequências do crime que praticou, pelo que, nem por aí o mesmo demonstrou sincero arrependimento nem interiorização da gravidade da sua conduta.[negrito nosso].

Em suma, as considerações de prevenção geral são elevadas, uma vez que os crimes de ofensa à integridade física causam sempre grande repulsa e censura sociais.

Quanto à prevenção especial, as penas a aplicar têm de fazer sentir convenientemente ao arguido a reprovabilidade das suas condutas, condição essencial para o arguido não tornar a delinquir.

A culpa situa-se em níveis altos, sendo que era exigível ao arguido que não praticasse os actos que praticou.”

Ora, como ali se fez expressa referência o tribunal a quo não valorou negativamente o silêncio do arguido, mas tão só fez constar que a ausência desse arrependimento - fosse através de palavras fosse por uma conduta séria e consistente destinada a reparar as consequências do crime que praticou - impediu que se considerasse essa atenuante em benefício do arguido.

Como se salienta no Acórdão do STJ de 10.03.2004 [processo nº258/04-3, citado no acórdão do STJ de 10.01.2008- proc. nº07P3227, disponível in www.dgsi.pt]: “– Resultando da factualidade provada e respectiva motivação que o arguido, usando do direito ao silêncio, não prestou quaisquer declarações em julgamento, e não podendo, obviamente, ser prejudicado por isso, certo é que impediu, desse modo, que o tribunal tivesse um melhor acesso à sua personalidade, condições de vida sócio-familiares, e perspectivas de reinserção social.”

Ora, o que o Tribunal expressou foi apenas a ausência da atenuante que resultaria da manifestação de arrependimento – que transmitindo uma interiorização do desvalor da conduta perpetrada, faria baixar as necessidades de ressocialização, e consequentemente as necessidades de prevenção especial - quer este se tivesse traduzido em palavras ou gestos que, de forma concludente, apontassem para a sua existência, e que o arguido, mesmo em reclusão, poderia levar a cabo.

Inexistiu pois qualquer violação do direito ao silêncio ou do princípio nemo tenetur se ipsum accusare.

             Em suma, o Tribunal  a quo ponderou os fatores atendíveis, e fê-lo de forma séria e fundamentada.

A condenação do arguido … não corresponde a um episódio ocasional e isolado numa vida fiel ao direito, pelo que tendo em conta as fortes necessidades de prevenção geral a que se associam necessidades de prevenção especial já de algum relevo cremos que a pena de 6 (seis) anos de prisão se mostra adequada justa e proporcional, sendo suportada pela culpa do arguido.

Repare-se que a pena concreta situa-se apenas 1/3 acima do limite mínimo da moldura penal.

Uma pena fixada abaixo do limiar definido na decisão recorrida, não só não traduziria de forma eficaz a censura que deve merecer o comportamento do arguido, como também não se mostra adequada a garantir à comunidade a validade das normas violadas. A pena aplicada contém-se dentro dos limites da culpa revelada pelo arguido no cometimento dos factos, não se justificando, pois, qualquer correção da operação de determinação da medida da pena por parte deste Tribunal de recurso.

Tratando-se de uma pena de 6 (seis) anos de prisão mostra-se afastada a possibilidade da suspensão da sua execução (art. 50º do Código Penal).

Improcede, pois, também neste segmento o recurso interposto.


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IV- DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam as Juízas da 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido, mantendo-se o acórdão proferido pelo Tribunal a quo nos seus precisos termos.

            Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em 4 UC [artigos 513º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8º, nº 9, do RCP, com referência à Tabela III].


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Coimbra, 8 de outubro de 2024


[Texto elaborado e revisto pela relatora - artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal]


As Juízas Desembargadoras

Sandra Ferreira

Ana Carolina Cardoso

Cristina Branco