Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
574/21.2T8GRD.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: MÁRIO RODRIGUES DA SILVA
Descritores: INCIDENTE DE LIQUIDAÇÃO
CRÉDITOS LABORAIS
SENTENÇA
ATO JURÍDICO FORMAL
INTERPRETAÇÃO
Data do Acordão: 09/26/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DO TRABALHO DA GUARDA DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 236.º, N.º 1, 238.º, N.º 1, E 295.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I – A sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro ato jurídico, a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos (art.º 295º do C. Civil).

II – Sendo a sentença um ato jurídico formal, regulamentado pela lei de processo e implicando uma objetivação da composição dos interesses nela contida, a sua interpretação deve ser feita de acordo com os critérios estabelecidos nos arts. 236º, nº 1 e 238º, nº 1, ambos do C. Civil, ou seja, tem de ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, não podendo valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: ***

                   Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


   ***

                   RELATÓRIO

                  AA, veio deduzir o presente incidente de liquidação contra ASSOCIAÇÃO PROMOTORA DO ENSINO PROFISSIONAL DA ..., requerendo, que “deverá ser julgado procedente o presente incidente, sendo a dívida resultante da douta decisão liquidada no montante de €221.302,45, sendo €163.704,79 e €57.827,66 juros”.

                  Alegou, em síntese, que por acórdão de 14/12/2022, proferido nos presentes autos e transitado em julgado em 10/01/2023, foi decidido o seguinte: “a) Declarar que o autor tem direito a auferir a retribuição calculada proporcionalmente à progressão salarial (aumento) de que beneficiou a sua colega BB desde a data da sua admissão ao serviço da ré; b) Condenar a ré a pagar as diferenças salariais entre a retribuição apurada nos termos da alínea anterior e a retribuição que auferiu, acrescidas de juros, desde o momento em que as diferenças ocorreram e até integral e efectivo pagamento; sendo que o processo não contém toda a matéria de facto necessária para o apuramento dessas diferenças salariais, pelo que não é possível atingir o seu valor por mero cálculo aritmético.”.

                  Mais alegou que, não ficou provada a retribuição do autor em todos os momentos da execução do contrato, assim como não ficou provada a retribuição que auferiu a sua colega BB no mesmo período, como tal, impõe-se o presente incidente de liquidação.

                                                                                              *

                  A ré apresentou contestação, referindo, a final e expressis verbis, que “Nestes termos deverão dar-se como provados os factos anteriormente alegados e determinar-se que:

                  -o Autor a partir de 1 de Julho de 2018 tinha direito ao salário bruto de 1.251,45€;

                  -o Autor a partir de 1 de Julho de 2019 tinha direito ao salário bruto de 1.764,54€;

                  -o Autor a partir de 1 de Junho de 2021 tinha direito ao salário bruto de 1.817,48€;

                   -o salário de 1.817,48€ se mantém até ao presente;

                  -o valor do trabalho suplementar terá de ser corrigido por referência ao salário que venha a ser reconhecido ao Autor:

                   -o valor pago a título de “responsável pelas instalações” terá de ser corrigido por referência ao salário que venha a ser reconhecido ao Autor;

                   -o valor pago a título” responsável pelas oficinas” terá de ser corrigido por referência ao salário que venha a ser reconhecido ao Autor até Agosto de 2013, não o devendo ser a partir de 1 de Setembro de 2013;

                   -nos valores a pagar deverão ser levadas em conta as faltas que constam dos recibos de remuneração juntos aos autos;          

                  -os juros serão calculados de acordo como que está legalmente determinado”.

                  Alegou, em síntese que a liquidação feita pelo autor não corresponde ao que foi determinado na decisão proferida pelo TRC, sendo que resulta da mesma o reconhecimento de que não existe qualquer violação do princípio trabalho igual salário igual quando na base da diferenciação salarial estão fatores como as habilitações e a antiguidade.

                                                                                              *

                  Foi proferido despacho saneador, onde se fixou o valor da causa, dispensou a fixação do objeto do litígio e enunciação dos temas da prova e admitiu os documentos juntos.

                  Foi, ainda, determinada a notificação das partes para informarem se pretendem o agendamento de data para prolação de alegações orais, ou se pretendem apresentar as suas alegações orais por escrito, tendo as partes apresentado as suas alegações escritas, através dos requerimentos entrados em juízo em 21.06.2024 e 24.06.2024.

                                                                                              *

                   Foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:

                   “Pelos fundamentos expostos, julgo totalmente procedente o presente incidente de liquidação e, em consequência, liquido a obrigação pecuniária a cargo da ré “ASSOCIAÇÃO PROMOTORA DO ENSINO PROFISSIONAL DA ...”, constante da sentença proferida nestes autos e relativa às diferenças salariais (na retribuição base, no trabalho suplementar, na retribuição como responsável das instalações, e na retribuição como responsável pelas oficinas), juros compensatórios e compulsórios (calculados pelo autor até 30.06.2024), do trabalho prestado pelo autor ao serviço da ré, na quantia total de €236.097,98 (duzentos e trinta e seis mil e noventa e sete euros e noventa e oito cêntimos), a pagar pela ré “ASSOCIAÇÃO PROMOTORA DO ENSINO PROFISSIONAL DA ...” ao autor AA, acrescida de juros compulsórios e compensatórios, desde a data do vencimento dessas obrigações e até efetivo e integral pagamento.

                                                                                              *

                   Custas deste incidente a cargo da ré (artigos 527.º, nºs 1 e 2 e 539.º, n.º 1 do Novo     Código de Processo Civil, atento o critério da sucumbência fixado nesta disposição  legal).

                                                                                              *

                   Registe e notifique.”

                  Inconformada com o decidido, a ré interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

                   (…).

                  O autor apresentou contra-alegações, formulando as seguintes conclusões:

                   (…).

                   O Exmº Sr. Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal emitiu parecer no sentido de que o recurso deverá improceder, e, consequentemente, manter-se a decisão recorrida.

                   Só a ré/recorrente respondeu, sustentando que o Parecer do M.P. não põe em causa os argumentos apresentados pela recorrente e não acrescenta argumentos aos que já constam da sentença de liquidação, com os quais não concordamos.

                   Colhidos os vistos, cumpre decidir.

                                                                                               ***

                   OBJETO DO RECURSO

                  Como é sabido, o objeto do recurso é delimitado nos termos dos artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável “ex vi” do art.º 87.º, n.º 1, do Código de Processo do Trabalho, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado.

                   Em função destas premissas, a questão a decidir consiste em saber se o tribunal a quo efetuou uma correta liquidação dos créditos laborais em cujo pagamento a ré foi condenada, por acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-12-2022, transitado.

                                                                                               ***

                   FUNDAMENTOS DE FACTO

                   A 1ª instância fixou a matéria de facto da seguinte forma:

                   “II.1 – Factos Provados

                  Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos, ordenados e concatenados lógico-cronologicamente (expurgando-se também, dos factos dados como provados, a matéria de direito, conclusiva, irrelevante ou repetitiva):

                   1º Por acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, datado de 13.12.2022, já transitado em julgado (dando-se o mesmo por integramente reproduzido), foi decidido revogar-se a sentença proferida nestes autos e “a) Declarar que o autor tem direito a auferir a retribuição calculada proporcionalmente à progressão salarial (aumento) de que beneficiou a sua colega BB desde a data da sua admissão ao serviço da ré; e b) Condenar a ré a pagar as diferenças salariais entre a retribuição apurada nos termos da alínea anterior e a retribuição que auferiu, acrescidas de juros, desde o momento em que as diferenças ocorreram e até integral e efectivo pagamento.”.

                  2.º Na sentença referida proferida nos presentes autos, datada de 17.03.2022, deu-se como provado que:

                   “1) O autor trabalha para a ré, sob a direcção, fiscalização e autoridade dos seus legais representantes, inserido na sua organização, desde Fevereiro de 2003 ao abrigo de um contrato de prestação de serviços e desde Setembro de 2003 ao abrigo de um contrato de trabalho.

                  2) A ré é uma associação que se dedica ao ensino profissional e explora a escola denominada Escola Profissional ..., sita na Avenida ..., em ....

                  3) O autor é professor dessa escola e tem as seguintes habilitações literárias e profissionais bacharelato em Engenharia Mecânica pela Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico da ... em 12 de Julho de 2002; licenciatura em Engenharia Mecânica, no ramo de Energia e Ambiente, em 12 de Outubro de 2004; mestrado em Engenharia Electromecânica, em 22 de Julho de 2011.

                   4) O autor encontra-se profissionalizado como docente pela Escola Superior de Educação de ... no grupo de docência 530 (mecanotecnia), desde 2009.

                  5) Ao serviço da ré, desempenha o autor as funções de professor no curso de Mecatrónica Automóvel (mecânica), onde ministra as disciplinas de práticas oficinais, tecnologia e processo, para além da formação em contexto de trabalho.

                  6) As funções do autor consistem em: Ministrar ensinamentos na área tecnológica, artística ou profissional em estabelecimentos de ensino secundário e instituições de educação para adultos; Desenvolver e planear conteúdos para cursos, currículos e métodos de instrução; Determinar necessidades de instrução para estudantes ou trabalhadores e estabelecer ligação com os indivíduos, indústria e outros sectores para assegurar programas educativos ajustados; Apresentar trabalhos e coordenar debates para aumentar os conhecimentos e competências dos estudantes; Instruir e monitorizar estudantes na utilização de ferramentas, equipamentos e materiais e na prevenção de danos; Avaliar trabalho de estudantes para  determinar progressos e fazer sugestões de melhoria; Administrar testes orais, escritos e de desempenho para medir progressos e avaliar a eficácia da instrução; Conduzir sessões de treino sobre trabalho, para ensinar e demonstrar princípios, técnicas e métodos.

                  7) Este curso tem ainda professores de inglês, português, informática, área de integração, física e química, educação física, electricidade automóvel, práticas oficinais e tecnologia e processo, mais formação em contexto de trabalho.

                   8) A ré tem seis turmas de mecânica.

                   9) O horário do autor é de 22 horas lectivas e 35 horas de permanência na escola; para além deste horário cumpre também trabalho individual em casa, consistente em preparação de aulas e correcção de testes e trabalhos dos alunos.

                   10) O autor entra na Escola às 8:35 ou 8:40; vai almoçar ou às 12:05 ou às 13:10 e recomeça à 1:10 ou às 14:10; sai às 17:30. À quarta-feira sai às 13:10 e não trabalha à tarde.

                  11) Pelas funções desempenhadas o autor aufere a retribuição ilíquida mensal de base (reportada a Outubro de 2020) de €1.119,00, acrescida do suplemento de €150,78 a título de “Responsável pela Manutenção das Oficinas”

                  12) Quando o autor iniciou funções ao serviço da ré, em 2003, tinha uma remuneração de base de €1.012,50.

                   13) Em 17 anos apenas foi aumentado em €106,50.

                  14) O autor é director de uma turma e meia do curso de mecânica na escola da ré, pelo que é responsável pelo funcionamento do curso: é responsável pela organização pedagógica do curso (organização do dossier pedagógico - recebe e organiza documentação entregue pelos professores) e coloca os alunos em estágio.

                  15) O curso de mecânica em que o autor dá aulas é financiado pelo POPH (Programa Operacional de Potencial Humano) e contribui mais para o orçamento anual da escola da ré do que qualquer outro curso, por ter mais alunos e mais despesas com equipamento.

                  16) O autor é o único professor do quadro permanente da ré na área das mecânicas.

                  17) Auferem retribuição mais elevada do que o autor pelo menos os seguintes professores da ré: BB, que aufere pelo menos €1.868,68; CC, que aufere pelo menos €1.805,98; DD, que aufere pelo menos €1.805,98; EE, que recebe €1.868,68; FF, que recebe pelo menos €1.868,68.

                  18) O autor cumpre horário a tempo inteiro, como os colegas atrás mencionados.

                  19) O autor nunca teve qualquer reparo em relação à qualidade do seu trabalho, sendo certo que não existem aulas assistidas nem avaliação de desempenho na ré e há vários anos.

                  20) O autor, na dissertação para obtenção do Grau de Mestre em Engenharia Electromecânica (Junho de 2011), dirigiu o seguinte agradecimento à ré: “À direcção da Escola Profissional ..., por me terem proporcionado todo o apoio e pela flexibilidade horária que me foi facultada, deixo também aqui um agradecimento”.

                   21)  Dado que a escola da ré se situa em ..., a generalidade dos seus colaboradores é de ... ou das povoações vizinhas.

                   22) O autor tem origem no concelho ....

                   23) BB é natural da ...; CC é natural de ... /...; DD é natural da ...; EE é natural de ... /...; FF é natural de ....

                   24) O pai de CC é agricultor.

                  25) BB licenciou-se na ... (França), com realização de cadeiras em Portugal para obter a equivalência; CC tirou o Bacharelato no ISACE - Instituto Superior de Administração, Comunicação e Empresa, na ...; DD licenciou-se na Universidade de ...; EE licenciou-se na Universidade Nova de ...; e FF licenciou-se na Universidade Aberta.

                  26) As origens dos professores acima identificados são semelhantes às do autor.

                   27) BB iniciou as suas funções na ré em 1 de Setembro de 1990; CC iniciou funções na ré em 1 de Setembro de 1991; EE iniciou funções na ré em 1 de Setembro de 1990; e FF iniciou funções na ré em 1 de Setembro de 1990.

                  28) O professor DD colabora com a ré desde 1993 como prestador de serviços, e como trabalhador por conta de outrem desde 1996, inicialmente com contrato a termo, e, a partir de 1 de Setembro de 1998, com contrato sem termo.

                  29) A professora BB e o professor DD já tinham prestado serviço noutras escolas quando começaram a trabalhar para a ré.

                  30) A ré é a detentora da gestão da Escola Profissional ... desde Setembro de 1999, mas a dita escola existe desde 1989.

                  31) Na data de início da actividade da escola, esta era gerida pela entidade denominada Escola Profissional ..., à qual a ré sucedeu.

                  32) A actividade da Escola da ré, e na generalidade das Escolas Profissionais, é financiada por fundos públicos de apoio ao ensino profissional.

                   33) A política de apoio destas Escolas não foi sempre igual, tendo os apoios sido ora mais robustos, ora mais limitados o que determinou que também os salários tivessem sido actualizados de forma mais rápida, congelados ou aumentados de forma mais comedida.

                  34) Durante muitos anos, a generalidade das Escolas Profissionais seguiu as regras dos CCT’s para o Ensino Particular e Cooperativo, o mesmo tendo feito a ré enquanto o financiamento recebido permitiu que assim acontecesse.

                   35) Segundo a lógica do referido CCT, havia vários factores que influenciavam o valor da retribuição, nomeadamente a licenciatura, a profissionalização e o tempo de serviço.

                  36) Os seguintes professores profissionalizaram-se nas seguintes datas: -BB – em 2005 /2006; CC – 28/05/2001; DD – 22/6/1999; EE – 22/6/1999; FF – 24/3/1999.

                   37) Em 2001 (outubro) as remunerações que estavam a ser auferidas pelos professores identificados pelo Autor, eram as seguintes: BB – 224.136$00 (€1.117,99); CC – 287.100$00 (€1.432,05); DD – 319.700$00 (€1.594,66); EE – 319.700$00 (€1.594,66); FF – 287.100$00 (€1.432,05).

                   38) Em 2003 as retribuições base (excluindo os acréscimos por desempenho de outras funções) eram as seguintes: BB – €1.118,04; CC – €1.521,52; DD – €1.521,52; EE – €1.521,5; FF – €1.653,52.

                   39) O autor começou a trabalhar para a ré em 2003, ainda como bacharel, e viria a concluir a licenciatura em 2004.

                   40) A profissionalização do autor ocorreu em 2008 / 2009.

                   41) A ré foi a primeira entidade empregadora do autor, que também não tinha tempo de serviço noutras entidades ligadas ao ensino.

                  42) A ré, como consequência da alteração dos critérios de financiamento, viu-se obrigada a deixar de seguir os critérios do CCT do Ensino Particular, nomeadamente no que se refere à determinação do valor das remunerações que paga aos seus colaboradores.

                  43) Por tal facto os salários deixaram de ser aumentados, como anteriormente, porque o professor tinha passado a ser licenciado ou porque tinha concluído a profissionalização.

                  44) A ré, a partir de 2005 / 2006, passou por grandes dificuldades financeiras, o que levou a que os salários, também por tal facto, deixassem de ser actualizados de forma regular.

                   45) Em Setembro de 2006, a ré decidiu actualizar apenas os salários dos trabalhadores não docentes.

                  46) No que se refere aos docentes, a ré decidiu fazer apenas o reposicionamento nos escalões com base no tempo de serviço e / ou profissionalização.

                  47) Em Janeiro de 2009, a ré decidiu actualizar os salários de docentes e não docentes em 3%.

                  48) A partir de 2010, os salários mantiveram-se sem aumentos, até Janeiro de 2020, altura em que voltaram todos a ser actualizados em 1,2%.

                  49) Em Janeiro de 2021 a ré decidiu actualizar os salários em €20,00.

                  50) Em resultado de tais actualizações salariais referidas, o autor passou a receber, em Janeiro de 2021, o salário base de €1.139,00.

                   51) Um dos factores que, no passado, foram tidos em conta pela ré na determinação dos salários foi o tempo de serviço.”.

                  3.º No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra referido 1.º escreveu-se que: “Contudo, resulta da factualidade provada que se é verdade que, quando o autor foi admitido em 2003, os colegas com quem se compara tinham já entre sete e 12 anos de antiguidade, também é verdade que quando o autor atingiu a antiguidade que os seus colegas tinham quando ele foi admitido, a ré não praticou ou implementou uma coerência retributiva.

                   Vejamos:

                   Em 2003 data de admissão do autor:

                  - A trabalhadora BB auferia 1 118,04 auferindo em 2020 €1868,68 tendo tido um aumento salarial €750,64€.

                  - O trabalhador CC auferia 1 521,52 € e em 2020 auferia 1805,98 €, tendo um aumento 284,46€;

                  -O trabalhador DD auferia 1 521,52 € e em 2020 auferia €1805,98, tendo tido um aumento de € 284,46€

                  - A trabalhadora EE auferia 1 521,50 € em 2020 auferia €1868,68, tendo tido um aumento de €347,18€

                   -A trabalhadora FF auferia 1 653,53€ e em 2020 auferia 1 868,68, tendo tido um aumento €215,15 €

                  - O Autor auferia 1012,50€ e em 2020 auferia € 1119,00, tendo tido um aumento de €106,50€

                   Ou seja, em dezanove anos, a colega do autor BB, que em 2003 ganhava pouco mais de €100,00 acima da retribuição do autor, aufere agora mais €750,00, enquanto o autor apenas mais 106,40€.

                   Da matéria de facto provada extrai-se ser o autor professor, como os colegas com quem se compara (pontos 3, 6 e 16 matéria de facto provada), ter horário a tempo completo, como eles (ponto 18), nunca teve qualquer reparo em relação à qualidade do seu trabalho, não havendo avaliação de desempenho na escola nem aulas assistidas (ponto 19).

                  O autor é director de uma turma e meia do curso de mecânica na escola da ré, pelo que é responsável pelo funcionamento do curso: é responsável pela organização pedagógica do curso (organização do dossier pedagógico - recebe e organiza documentação entregue pelos professores) e coloca os alunos em estágio (ponto 15).

                  O autor encontra-se profissionalizado à semelhança do que acontece com os outros seus colegas (pontos 36 e 40).

                  As habilitações literárias e profissionais do autor para o posto de trabalho que ocupa são as seguintes: “bacharelato em Engenharia Mecânica pela Escola Superior de Tecnologia e Gestão do Instituto Politécnico da ... em 12 de Julho de 2002; licenciatura em Engenharia Mecânica, no ramo de Energia e Ambiente, em 12 de Outubro de 2004; mestrado em Engenharia Electromecânica, em 22 de Julho de 2011 (ponto 3).

                  Em face desta factualidade entendemos que se encontra provado desempenhar o autor funções iguais ou, nas suas palavras, objectivamente semelhantes em natureza, qualidade e quantidade, relativamente aos trabalhadores em relação a quem se sente discriminado.

                   Ora, pelo que atrás ficou dito, verifica-se que os colegas em relação aos quais o autor se sente discriminado progrediram significativamente em termos salariais, sendo que, conforme refere o autor, quem mais progrediu foi quem, em 2003, tinha uma retribuição mais próxima da sua retribuição - BB.

                  Ao invés, o autor, que agora tem mais de 19 anos de antiguidade, por isso muito superior à que os seus colegas tinham em 2003 (entre 7 e 12 anos), recebe muito menos do que a maioria deles recebia nessa data.

                  É certo que a antiguidade é um critério relevante para a diferenciação salarial entre trabalhadores, mas esse critério tem de ser aplicado de forma coerente, compreensível e equitativa.

                  Na verdade, a diferenciação, para ser aceitável, não pode ser arbitrária e a justificação da diferenciação tem de ser razoável e compreensível.

                   O princípio da igualdade retributiva não compreende apenas um conteúdo negativo (a proibição de discriminações), mas comporta também uma vertente positiva, reclamando a igualdade substantiva de tratamento dos trabalhadores que prestam o mesmo tipo de trabalho aferido este pelos critérios da quantidade, natureza e qualidade. (…) Ou seja, entende esta Relação que, salvo melhor opinião, o autor logrou provar que o trabalho por si prestado por conta da ré é igual em natureza, qualidade e quantidade, ao prestado pelos trabalhadores seus colegas em relação aos quais se compara, não tendo sido observado pela ré na progressão salarial o princípio de “para trabalho igual salário igual”, pois não se revela aceitável a diferenciação salarial resultante daquela progressão dado que, objectivamente, tal diferenciação não resulta de razões materialmente fundadas.

                  Poder-se-á afirmar que o autor ficou “parado no tempo” enquanto outros dos seus colegas progrediram em termos salariais de forma mais ou menos significativa, inexistindo, em face da factualidade provada, fundamento razoável, compreensível e equitativo que justifique essa prática remuneratória.

                  Assim sendo, para garantir coerência na progressão remuneratória do autor com observância do referido princípio, a sua progressão salarial haverá de comparar-se com a progressão tida pela trabalhadora BB, colega que à data da admissão do autor auferia o salário, quantitativamente mais próximo do auferido pelo autor.

                  E essa progressão deverá ser feita proporcionalmente à progressão tida pela BB considerando que os montantes do salário de ambos, à data da admissão do autor eram quantitativamente diferentes.”.

                  4.º A trabalhadora da ré e colega do autor, BB, auferiu os seguintes salários de base: €1.118,04 em 2003, 2004 e 2005, €1.285,50 em 2006, €1.812,58 em 2007, €1.812,55 em 2008, €1.868,68 entre 2009 e 2019, €1892,00 em 2020 e €1912,00 em 2021.

                  5.º A trabalhadora da ré e colega do autor, BB, teve a seguinte progressão salarial (com indicação da percentagem de cada um dos aumentos de que beneficiou, comparando-se a progressão do autor nos mesmos períodos e também sobre o salário de base).

                                                                                               *

                   II.2 – Factos Não Provados

                  Não se provaram quaisquer outros factos com interesse para decisão final desta acção, sendo que quanto aos restantes artigos dos articulados das partes, não se responde aos mesmos por não corresponderem a matéria de facto controvertida, mas antes a matéria de direito, conclusiva, irrelevante ou repetitiva, pelo que o Tribunal não pode (nem deve) pronunciar-se nesta sede sobre os mesmos.”

                                                                                               ***

                   FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Se o tribunal a quo efetuou uma correta liquidação dos créditos laborais em cujo pagamento a ré foi condenada, por acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-12-2022, transitado.

                   Na sentença recorrida considerou-se: “Analisada a tabela constante da factualidade vertida em 5), nos termos da qual foram comparadas as retribuições do autor e da colega BB ao longo dos anos, constata-se que o autor procedeu ao cálculo das diferenças salariais e dos juros a que o autor tem direito, nos conforme decidido pelo acórdão do TRC (a) Declarar que o autor tem direito a auferir a retribuição calculada proporcionalmente à progressão salarial (aumento) de que beneficiou a sua colega BB desde a data da sua admissão ao serviço da ré; b) Condenar a ré a pagar as diferenças salariais entre a retribuição apurada nos termos da alínea anterior e a retribuição que auferiu, acrescidas de juros, desde o momento em que as diferenças ocorreram e pagamento), para um total de €235.146,37, com juros até 6 de Junho de 2024 e até integral e efectivo incluídos os juros compulsórios devidos ao Estado no valor de €5.636,02, conforme expendido pelo autor, no seu requerimento entrado em juízo em 23.06.2023, cujo teor aqui se dá por reproduzido, nos termos do qual procedeu à correcção dos valores inicialmente apresentados, atendendo às faltas por baixa médica do autor, referidas em 4) de tal requerimento.

                  Aqui chegados, e sem prejuízo do que infra se dirá, afiguram-se-nos correctamente demonstrados os cálculos vertidos pelo autor em 7) a 19) do seu requerimento entrado em juízo em 23.06.2023 (cfr. fls. 298 a 316), cujo teor aqui se dá por reproduzido, por uma questão de economia processual, concordando-se com o raciocínio argumentativo do autor para chegar aos cálculos apresentados.

                  Ou seja, partindo do vertido em 5) da factualidade provada neste incidente de liquidação, tem o autor direito às diferenças salariais entre o salário base que auferiu e aquele que deveria ter auferido, sendo-lhe aplicadas as mesmas percentagens de aumento de que beneficiou a sua colega BB, mas também em relação a outras retribuições que auferiu no mesmo período e que se encontravam indexadas à sua retribuição (tais como o trabalho suplementar, inscrito nos recibos de retribuição como “acerto de horas lectivas” ou “horas lectivas acima 22h”, ou ainda “horas letivas acima 836H”, que foram calculadas pela ré com base no salário que lhe pagava e não com base no salário devido, e como os complementos salariais denominados pela ré de “responsável das instalações” e “responsável pela manutenção das oficinas”, correspondentes às funções do autor enquanto responsável pela manutenção das instalações e do equipamento, pagos com base no valor da hora lectiva, assim calculado pela ré: salário de base/22 horas lectivas).

                  Tais prestações, porque correspondentes a funções exercidas pelo autor no âmbito do contrato de trabalho têm natureza retributiva, pelo que estão abrangidas pela decisão a liquidar.

                  Acresce que, às diferenças salariais são de aplicar os juros compensatórios e compulsórios legais, atendendo ao trânsito em julgado da decisão, pelo que, atendendo a que a obrigação de pagamento da retribuição é uma obrigação com prazo certo, o início da mora será o primeiro dia do mês seguinte ao de cada um dos meses em que houve diferenças salariais, concordando-se, assim, com o autor.

                   Entendemos, também, que deverá considerar-se apenas o período de Janeiro de 2006 em diante, já que foi em tal mês que a colega do autor, GG, foi aumentada sem aumento equivalente para o autor, assim se verificando a discriminação em apreço.

                  Aqui chegados, importa referir que o entendimento da ré, de que deverão ser aplicadas ao autor as percentagens de aumento de que beneficiou a colega BB, mas apenas quando atingisse a antiguidade que esta tinha na data em que recebeu tais aumentos, não tem, a nosso ver, respaldo no acórdão proferido, já que resulta do mesmo, s.m.o, que deverão ser aplicadas ao autor, desde a sua admissão ao serviço da ré, as mesmas percentagens de aumento de que beneficiou a sua colega BB.

                  Por último, e quanto à questão da antiguidade como critério de diferenciação salarial, temos que resulta do acórdão proferido que “resulta da factualidade provada que se é verdade que, quando autor foi admitido em 2003, os colegas com que se compara tinham já entre sete e 12 anos de antiguidade, também é verdade que quando o autor atingiu a antiguidade que os seus colegas tinham quando foi admitido, a ré não praticou ou implementou uma coerência retributiva.”, sendo certo que tal critério nunca foi aplicado pela ré, conforme se alcança da análise do acórdão em apreço.

                  Daí que, na falta de tal critério não discriminatório, afigura-se-nos que restam os demais critérios legais, tais como, a aplicação do princípio a trabalho igual, salário igual, a trabalho de igual natureza, quantidade e qualidade, pelo que, nesse caso, entendeu o douto acórdão que, estando verificados, deverão ser aplicadas ao autor, sem outras considerações, as mesmas percentagens de aumento da retribuição de que beneficiou a sua colega BB, já que a mesma tinha o salário mais próximo do salário auferido pelo autor.

                   Desta forma, entende-se, atentas as posições das partes e o decidido no douto acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, ser de liquidar a quantia em dívida no montante global requerido pelo autor, de €236.097,98 (com juros contabilizados até 30.06.2024), a que acrescem juros compulsórios e compensatórios, desde a data do vencimento dessas obrigações e até efetivo e integral pagamento.”- fim de transcrição.

                   Alega a recorrente que a liquidação feita pelo autor não está conforme com o que foi determinado no acórdão que lhe está na base, pois na sua ótica, a liquidação terá de ser efetuada levando em conta os fatores que são referidos no mesmo, nomeadamente a antiguidade e as habilitações.

                   O autor/recorrido respondeu, dizendo em síntese que “Não resulta dos aumentos de que beneficiou a colega do autor BB qualquer coerência retributiva baseada na antiguidade, porque desde a admissão do autor e até 2021 ela foi aumentada quatro vezes e com intervalos de 1, 2, 11 e 1 anos; Refere ainda que “o único critério a aplicar é o legal: a trabalho igual em natureza, qualidade e quantidade, salário igual; e que “A expressão “desde a data da sua admissão” não se pode referir à colega do autor BB, mesmo sendo ela a referente mais próxima, uma vez que não resulta do douto acórdão pretender-se a aplicação ao autor da carreira profissional desta e de todos os aumentos de que ela beneficiou.

                   Vejamos.

                  Refere o Ac. do STJ, de 19-09-2024[1] “Dada a patente diferença de natureza entre a declaração negocial e a decisão judicial, tal aplicação tem de ser devidamente entendida, circunscrevendo-se aos critérios previstos no n.º 1 do art.º 236.º («A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele») e no n.º 1 do 238.º («Nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso»), ambos do Código Civil. Consideremos, a este respeito, a explanação constante da fundamentação do acórdão deste Supremo Tribunal de 01.07.2021 (proc. n.º 726/15.4T8PTM.E1.S1), disponível em www.dgsi.pt:

                   «[T]al como se afirma no Acórdão do STJ, de 05.11.2009 (processo nº 4800/05.TBAMD-A.S1) que «a sentença proferida em processo judicial constitui um verdadeiro acto jurídico, a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos (art.º 295º do C. Civil) (…)».

                  Vale isto por dizer que, sendo a sentença um ato jurídico formal, regulamentado pela lei de processo e implicando uma objetivação da composição dos interesses nela contida, a sua interpretação deve ser feita de acordo com os critérios estabelecidos nos arts. 236º, nº 1 e 238º, nº 1, ambos do C. Civil, ou seja, tem de ser interpretada com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, não podendo valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso.

                   E isto sem esquecer, como destacou o Acórdão do STJ, de 03.02.2011 (processo nº 190-A/1999.E1.S1), que a decisão judicial não traduz uma declaração pessoal de vontade do julgador, correspondendo, antes, ao resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito objetivo a essa situação, pelo que, importa ter em consideração, não só que o declarante se encontra investido na função de aplicador da lei e, por isso, obrigado a interpretar, em conformidade com as regras estabelecidas no art.º 9º C. Civil, como também a correlação lógica e teleológica entre a pretensão em apreciação, os fundamentos de facto e de direito em que assenta o dispositivo decisório e este, tudo à luz da sua estrita conexão, desenvolvimento e interdependência.». [negritos nossos]

                   Acolhendo a explicação que acaba de se transcrever, deve, consequentemente, reconhecer-se que assiste razão à recorrente ao invocar a inviabilidade de transpor para a interpretação da decisão judicial o critério interpretativo previsto no art.º 237.º do Código Civil («Em caso de dúvida sobre o sentido da declaração, prevalece, nos negócios gratuitos, o menos gravoso para o disponente e, nos onerosos, o que conduzir ao maior equilíbrio das prestações.»). Este critério faz sentido na interpretação de uma declaração em função da relação entre declarante e declaratário, mas já não na interpretação de uma decisão judicial.

                  Desenvolvendo a problemática dos critérios interpretativos da decisão judicial, prossegue o acórdão de 01.07.2021 cuja fundamentação vimos seguindo de perto:

                  «Mas, para além de tudo isto, importa salientar que, para alcançarmos o verdadeiro sentido de uma sentença, a sua interpretação não pode assentar exclusivamente no teor literal da respetiva parte decisória, impondo-se também considerar e analisar todos os antecedentes lógicos, que a suportam e a pressupõem, dada a sua íntima interdependência[2] bem como outras circunstâncias, mesmo posteriores à respetiva elaboração, que, na medida em que permitem retirar uma conclusão sobre o sentido que se lhe quis emprestar, funcionam como importantes meios auxiliares de interpretação.

                  E segundo Castro Mendes, nesta tarefa interpretativa deve ainda atentar-se na regra importantíssima segundo a qual «o acto jurídico se presume regular: e como factor da regularidade (em certa medida até da validade) da sentença é a adequação da sentença ao pedido e à causa de pedir, e a adequação da sentença aos seus próprios fundamentos, daqui resulta que pedido, causa de pedir e fundamentos são importantes elementos de interpretação da sentença. Se se pode levantar dúvidas sobre se a sentença reconhece ao autor a propriedade ou só o usufruto de certa coisa, e se o pedido se referia à propriedade, deve evidentemente presumir-se que a sentença igualmente se lhe refere, pois doutro modo seria nula (…)».».

                  Encontramos em Remédio Marques («Em torno da interpretação das decisões judiciais. O limite temporal final para a definição dos direitos conferidos ao trabalhador no quadro das remunerações intercalares por despedimento ilícito», in Lusíada, n.ºs 7 e 8, Porto, 2013, págs. 87-88) — passagem citada, aliás, no acórdão deste Supremo de 01.07.2021 a que nos vimos reportando —, uma elucidativa síntese das referidas directrizes do processo interpretativo da decisão judicial:

                  «Em primeiro lugar, perante o texto da decisão judicial o intérprete deve começar por perceber, segundo as regras linguísticas comuns e da lógica, o seu sentido objectivo. A interpretação das decisões judiciais, como qualquer interpretação começa assim pelo exame do texto a interpretar. Esse é o seu ponto de partida (…). Em segundo lugar — e talvez esta seja a constatação mais importante no que às directrizes interpretativas das decisões judiciais diz respeito —, a mens objectivada deste tipo de decisões judiciais e do juízo decisório que lhes é inerente não pode ser logrado senão através do iter genético dessas mesmas decisões E esta tarefa interpretativa terá que ser realizada retrospectivamente, post factum finitum, em particular se a concreta decisão interpretanda já transitou em julgado. Se o texto da decisão é o ponto de partida da interpretação, o ponto de chegada é o iter genético dessa mesma decisão. Este iter não corresponde, já se vê, ao itinerário psicológico e interior do magistrado: a identificação do objecto do juízo não pode ser reconstruído a esta luz, mas sim, e pelo contrário, à luz do iter objectivo (…) Em terceiro — e de um modo decisivo para esta tarefa interpretativa dirigida à reconstrução da génese do juízo objectivado na decisão judicial — alça-se o elemento mais importante para a identificação do objecto desse juízo. E este elemento é determinado pelo princípio do pedido (espécie do princípio do dispositivo), no sentido em que deve existir uma necessária correspondência entre o pedido do autor (ou do réu reconvinte) e a pronúncia ínsita na decisão judicial. O tribunal não pode decidir sobre objecto diferente do pedido ou omitir a resolução de questões que lhe foram pedidas pelo autor.».

                  Tendo presente as considerações enunciadas, procuremos aplicá-las ao caso concreto.

                  A) Na ação declarativa intentada em 26-04-2021, foi formulado o seguinte pedido:

                   1. Declarar-se que o autor tem direito a auferir pelo menos a mesma retribuição que os trabalhadores da ré identificados nos artigos 21.º e 22.º desta petição inicial, em valor absoluto da retribuição ou em valor hora e, pelo menos, no montante de €1.868,68;

                  2. Condenar-se a ré em fixar ao autor, com efeitos à data mais antiga em que qualquer deles começou a auferir tal retribuição ou retribuição superior;

                   3. Condenando-se a ré a pagar as diferenças salariais entre essa retribuição e a retribuição que auferiu, acrescidas de juros, desde o momento em que as diferenças ocorreram e até integral e efetivo pagamento.

                   B) Nessa ação declarativa foi proferida sentença com a data de 17-03-2022 que julgou a presente ação totalmente improcedente, por não provada, absolvo a ré Associação Promotora do Ensino Profissional da ... - Escola Profissional ... do pedido formulado pelo autor AA.

                   C) A autora interpôs recurso.

                  D) Em 13-12-2022 foi proferido acórdão com o seguinte dispositivo:

                  “IV- Termos em que se delibera julgar a apelação procedente em função do que se revoga a sentença impugnada e se decide:

                  a) Declarar que o autor tem direito a auferir a retribuição calculada proporcionalmente à progressão salarial (aumento) de que beneficiou a sua colega BB desde a data da sua admissão ao serviço da ré;

                  b) Condenar a ré a pagar as diferenças salariais entre a retribuição apurada nos termos da alínea anterior e a retribuição que auferiu, acrescidas de juros, desde o momento em que as diferenças ocorreram e até integral e efectivo pagamento.”

                  E) Em 19-03-2023 o autor apresentou requerimento inicial (incidente de liquidação) no qual peticiona a procedência do presente incidente, sendo a dívida resultante da douta decisão liquidada no montante de €221.302,45, sendo €163.704,79 e €57.827,66 juros.

                  F) Em 2-05-2023 a requerida apresentou oposição, requerendo a final que deverão dar-se como provados os factos anteriormente alegados e determinar-se que:

                  -o Autor a partir de 1 de Julho de 2018 tinha direito ao salário bruto de 1.251,45€;

                  - o Autor a partir de 1 de Julho de 2019 tinha direito ao salário bruto de 1.764,54€;

                 - o Autor a partir de 1 de Junho de 2021 tinha direito ao salário bruto de 1.817,48€;

                   - o salário de 1.817,48€ se mantém até ao presente;

                  - o valor do trabalho suplementar terá de ser corrigido por referência ao salário que venha a ser reconhecido ao Autor:

                  - o valor pago a título de “responsável pelas instalações” terá de ser corrigido por referência ao salário que venha a ser reconhecido ao Autor;

                  - o valor pago a título” responsável pelas oficinas” terá de ser corrigido por referência ao salário que venha a ser reconhecido ao Autor até Agosto de 2013, não o devendo ser a partir de 1 de Setembro de 2013;

                   - nos valores a pagar deverão ser levadas em conta as faltas que constam dos recibos de remuneração juntos aos autos;

                  - os juros serão calculados de acordo como que está legalmente determinado.”

                  G) Em 7-11-2024 foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

                   “Pelos fundamentos expostos, julgo totalmente procedente o presente incidente de liquidação e, em consequência, liquido a obrigação pecuniária a cargo da ré “ASSOCIAÇÃO PROMOTORA DO ENSINO PROFISSIONAL DA ...”, constante da sentença proferida nestes autos e relativa às diferenças salariais (na retribuição base, no trabalho suplementar, na retribuição como responsável das instalações, e na retribuição como responsável pelas oficinas), juros compensatórios e compulsórios (calculados pelo autor até 30.06.2024), do trabalho prestado pelo autor ao serviço da ré, na quantia total de €236.097,98 (duzentos e trinta e seis mil e noventa e sete euros e noventa e oito cêntimos), a pagar pela ré “ASSOCIAÇÃO PROMOTORA DO ENSINO PROFISSIONAL DA ...” ao autor AA, acrescida de juros compulsórios e compensatórios, desde a data do vencimento dessas obrigações e até efetivo e integral pagamento.”

                  Em face dos ensinamentos jurídicos expostos e da factualidade que antecede, entendemos que é correta a interpretação que foi efetuada do acórdão na sentença recorrida.

                  Com efeito, a recorrente labora num equívoco, quando afirma que do ponto de vista da gramática a expressão “desde a sua admissão ao serviço da ré” se aproxima o possessivo “sua” do elemento “colega”, e não “autor”. Basta atentar nas seguintes afirmações constantes da fundamentação do acórdão “Ou seja, entende esta Relação que, salvo melhor opinião, o autor logrou provar que o trabalho por si prestado por conta da ré é igual em natureza, qualidade e quantidade, ao prestado pelos trabalhadores seus colegas em relação aos quais se compara, não tendo sido observado pela ré na progressão salarial o princípio de “para trabalho igual salário igual”, pois não se revela aceitável a diferenciação salarial resultante daquela progressão dado que, objectivamente, tal diferenciação não resulta de razões materialmente fundadas.

                  Poder-se-á afirmar que o autor ficou “parado no tempo” enquanto outros dos seus colegas progrediram em termos salariais de forma mais ou menos significativa, inexistindo, em face da factualidade provada, fundamento razoável, compreensível e equitativo que justifique essa prática remuneratória.

                  Assim sendo, para garantir coerência na progressão remuneratória do autor com observância do referido princípio, a sua progressão salarial haverá de comparar-se com a progressão tida pela trabalhadora BB, colega que à data da admissão do autor auferia o salário, quantitativamente mais próximo do auferido pelo autor.

                   E essa progressão deverá ser feita proporcionalmente à progressão tida pela BB considerando que os montantes do salário de ambos, à data da admissão do autor eram quantitativamente diferentes.”- fim de transcrição.

                  Concorda-se, pois, com a decisão recorrida quando afirma que “tem o autor direito às diferenças salariais entre o salário base que auferiu e aquele que deveria ter auferido, sendo-lhe aplicadas as mesmas percentagens de aumento de que colega BB, mas também em relação a outras retribuições que auferiu no mesmo período e que se encontravam indexadas à sua retribuição”.

                  Em suma: a decisão de direito não poderia ser diferente da proferida, sendo que a apelante também nada mais invoca de direito que justifique maior análise jurídica.

                   Improcede, a pretensão da recorrente.

                                                                                               ***

                   DECISÃO

                  Com fundamento no atrás exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação confirmando-se, em consequência, a sentença recorrida.

                   Custas pela apelante, atendendo ao seu vencimento- artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do CPC ex vi do artigo 87º, nº 1, do CPT.

                                                                                                              Coimbra, 26 de setembro de 2025

                   Mário Rodrigues da Silva- relator

                   Felizardo Paiva- adjunto

                   Paula Maria Roberto- adjunta

                                                                                               ***

                   Sumário (artigo 663º, nº 7, do CPC):

                   (…).

                  Texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original


([1]) 258/09, Maria da Graça Trigo, www.dgsi.pt. Também neste sentido, Ac. do STJ, de 24-11-2020, 22741/12, Ricardo Costa, www.dgsi.pt.


[2]