Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | HUGO MEIRELES | ||
Descritores: | DIVISÃO DE COISA COMUM PROPRIEDADE HORIZONTAL CONSTITUIÇÃO POR USUCAPIÃO REQUISITOS LEGAIS DE ÂMBITO ADMINISTRATIVO ÓNUS DE ALEGAÇÃO E PROVA AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO | ||
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Data do Acordão: | 05/27/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO LOCAL CÍVEL DE VISEU DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU | ||
Texto Integral: | N | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | ANULADA EM PARTE | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 209.º, 1414.º, 1415.º, 1417.º DO CÓDIGO CIVIL, 662.º, N.º 3, AL.ª C), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL E 62.º A 66.º DO REGIME JURÍDICO DA URBANIZAÇÃO E DA EDIFICAÇÃO, APROVADO PELO DLEI N.º 555/99, DE 16/12 | ||
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Sumário: | I – A declaração, por sentença, da propriedade horizontal constituída por usucapião, ou a constituição dessa mesma propriedade horizontal por sentença judicial proferida em ação de divisão de coisa comum, pressupõe a alegação e prova de que, além dos requisitos referidos no artigo 1415.º do Código Civil, o prédio respeita todos os requisitos administrativos necessários, sendo, por isso, indispensável que a ação seja instruída, pelo menos, com o certificado municipal de que o edifício satisfaz os requisitos para a constituição da propriedade horizontal.
II – Justifica-se a anulação da sentença, ao abrigo do artigo 662.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Civil, quando decorre da análise dos autos que é necessário ampliar a decisão de facto em relação a factos absolutamente essenciais para a boa decisão da causa sobre os quais a 1.ª instância omitiu despacho de aperfeiçoamento dos articulados, quando o mesmo se mostrava necessário para colmatar as deficiências e imprecisões de que estes enfermam. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
Requerentes: AA e BB; Requeridos: CC e DD; AA e mulher BB intentaram ação especial de divisão de coisa comum contra CC e mulher DD, alegando que o autor e o réu marido são comproprietários de um prédio urbano constituída por edifício de rés-do-chão e andar, com logradouro, na proporção de metade para cada, o qual é indivisível. * Os réus contestaram e deduziram reconvenção. Alegam, em suma, que, na realidade, o dito imóvel já está dividido, pois existem duas frações autónomas, em propriedade horizontal, constituídas por usucapião. O rés-do-chão da casa pertence-lhes, por usucapião. Com efeito, era vontade do pai do autor e do réu, anterior proprietário do imóvel, que o rés-do-chão da casa ficasse para os réus, pelo que, há mais de 20 anos, vêm fazendo obras nessa parte do edifício, habitando-a quando estão em Portugal, nos termos e moldes conducentes à aquisição dessa fração r/c por usucapião. Em reconvenção, pedem que se declare reconhecida, por usucapião, a propriedade horizontal sobre o prédio em causa ou então que se constitua a mesma por sentença, nos termos referidos na contestação. Subsidiariamente, reclamam uma indemnização no valor de 30.000€ pelas benfeitorias que realizaram naquele rés-do-chão. * Por despacho de 6/01/2020 foi determinado que os autos prosseguissem a forma de processo comum, nos termos do nº 3 do art.º 926º do Código de Processo Comum. * Foram os autores convidados a apresentar réplica, o que fizeram, alegando, basicamente, não ser possível a constituição de propriedade horizontal (por falta de certificação camarária) e que, mesmo que possível, as fracções sempre ficariam em compropriedade, quer no do r/c, quer a do 1º andar. Quanto às obras, sustentam que as mesmas foram feitas pelo pai de ambos, devendo assim improceder o pedido reconvencional para pagamento do crédito por benfeitorias. Impugnam a demais factualidade e terminam pedindo que se julgue verificada a indivisibilidade do imóvel. * Após julgamento, m 5 de agosto de 2024, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo: Pelo exposto, decide este Tribunal: (…) * Não se conformando com esta decisão, dela vieram interpor recurso os réus CC e DD, concluindo as suas alegações da forma que, a seguir, se transcreve: (…). * Também os autores interpuseram recurso da sentença, concluindo as suas alegações da seguinte forma: (…). * Os réus apresentaram contra-alegações ao recurso dos requerentes, concluindo as mesmas da seguinte forma: (…). * Colhidos os vistos, cumpre decidir. * II. Questões a decidir O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do Código de Processo Civil. No seguimento desta orientação, são as seguintes as questões que importa apreciar nos presentes recursos, pela ordem que reputamos mais conveniente: * III. Fundamentação de facto A sentença recorrida considerou provados os seguintes factos: * A mesma sentença considerou como não provados os seguintes factos: a) Que todas as obras / benfeitorias existentes no r/c (que se demostram) tenham sido executadas e pagas exclusivamente pelos RR, no r/c.; b) Que obras em concreto fez o pai de A. e R. * a) Da reapreciação da matéria de facto O art.º 640º do Código de Processo Civil estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, nos seguintes termos: “1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3. […]” O mencionado regime veio concretizar a forma como se processa a impugnação da decisão de facto, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, o qual terá que apresentar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova. * Tal como dispõe o nº 1 do art.º 662.º do Código de Processo Civil, a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto “(…) se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”, o que significa que os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem um meio a utilizar apenas nos casos em que os elementos constantes dos autos imponham uma decisão diversa da que foi dada pela 1ª instância. No presente processo, como referido, a audiência final processou-se com gravação da prova produzida. Segundo Abrantes Geraldes[4], a respeito da gravação da prova e sua reapreciação, haverá que ter em consideração que funcionando o Tribunal da Relação como órgão jurisdicional com competência própria em matéria de facto, nessa reapreciação tem autonomia decisória, devendo consequentemente fazer uma apreciação crítica das provas, formulando, nesse julgamento, com inteira autonomia, uma nova convicção, com renovação do princípio da livre apreciação da prova. Assim, compete ao Tribunal da Relação reapreciar as provas em que assentou a parte impugnada da decisão, face ao teor das alegações do recorrente e do recorrido, sem prejuízo de oficiosamente atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados. Cabe, ainda, referir que neste âmbito da reapreciação da prova vigora o princípio da livre apreciação, conforme decorre do disposto no art.º 396.º do Código Civil. E é por isso que o art.º 607.º, nº 4 do Código de Processo Civil impõe ao julgador o dever de fundamentação da factualidade provada e não provada, especificando os fundamentos que levaram à convicção quanto a toda a matéria de facto, fundamentação essencial para o Tribunal de Recurso, nos casos em que há recurso sobre a decisão da matéria de facto, com vista a verificar se ocorreu, ou não, erro de apreciação da prova. * Posto isto, uma vez analisada a documentação que consta dos autos e ouvida a prova gravada, cabe analisar se assiste razão aos autores/recorrentes, na parte da impugnação da matéria de facto. São então dois os factos validamente impugnados pelos recorrentes: O primeiro, correspondente ao ponto n.º 15 dos factos provados, tem a seguinte redação: O prédio teria de ser objeto de um projeto de obras de reconstrução e alteração do existente e consequentemente de licenciamento urbano a deferir pela Câmara Municipal .... É neste facto que a sentença recorrida se baseia para indeferir os pedidos reconvencionais de reconhecimento da constituição da propriedade horizontal por usucapião e de constituição da propriedade horizontal por sentença, mais concretamente por considerar não poder ser reconhecida, ou constituída por sentença, uma propriedade horizontal sem prévia aprovação das entidades administrativas competentes. Defendem os recorrentes que este facto, considerado como provado, aparentemente apenas com base nas conclusões da perícia realizada, não está conforme a prova produzida nos autos, na medida em que as informações camarárias juntas ao processo atestam a inviabilidade do licenciamento e posterior constituição da propriedade horizontal no imóvel em causa, por via de constrangimentos do Plano Diretor Municipal vigente. Os seja, para os recorrentes, de acordo com tais informações camarárias, a a propriedade horizontal no imóvel em questão não é sequer passível de ser licenciada e, portanto, ao contrário do que decorre do facto n.º 15, não está em causa a necessidade de um projeto de obras de reabilitação e alteração do imóvel como condição prévia ao licenciamento da propriedade horizontal. Assim, na ótica dos autores recorrentes, pode, e deve ter-se, desde já, por assente a inviabilidade do licenciamento da propriedade horizontal, em razão de limitações decorrentes do PDM vigente. Ora, os ofícios da Câmara Municipal ... juntos ao processo, em momento posterior ao relatório pericial - mais concretamente a cópia da informação relativa a pedido de informação prévia junta com o requerimento dos autores de 18 de abril de 2023 (com parecer desfavorável da divisão de Gestão Urbana da CM de ...), bem como a informação prestada aos autos por ofício da mesma Câmara Municipal (junta a 15 de maio de 2023) – os quais não foram questionados por qualquer das partes, são reveladores de que a razão está do lado dos recorrentes. De facto, tais documentos permitem demonstrar o facto, absolutamente relevante para a apreciação das pretensões em juízo, que os recorrentes pretendem passe figurar do ponto 15) dos factos provados, em substituição da sua atual redação. Assim, entendendo-se ser procedente, nesta parte, a impugnação da matéria de facto, passará o ponto n.º 15) dos factos provados a ter a seguinte redação: A Câmara Municipal ... emitiu parecer desfavorável sobre o pedido de viabilidade da constituição da propriedade horizontal porque, de acordo com o Plano Diretor Municipal, o edifício insere-se em Área de Edificação Dispersa onde se prevê apenas uma habitação, ou seja, um fogo”. * O segundo facto validamente impugnado (correspondente ao ponto 37 dos factos provados) tem a seguinte redação: Desde 1981, os réus têm habitado o r/ch, quando em Portugal,; à vista de toda a gente, sem oposição de ninguém e consentimento dos autores, com a consciência de não lesarem direitos de outras pessoas, com a convicção de exercerem um direito próprio sobre o rés-do-chão do prédio identificado no art.º 1 da petição inicial; Defendem os recorrentes que a expressão constante da parte final do mencionado ponto 37) - «com a convicção de exercerem um direito próprio sobre o rés-do-chão do prédio identificado no art.º 1 da petição inicial», deve ser substituída pela seguinte expressão: “os réus agiram sempre na convicção de que são donos de metade indivisa do prédio”. Fundamentam, tal pretensão no facto de o réu marido ter procedido, no dia 19 de agosto de 2011, ao registo a seu favor da metade indivisa do imóvel (conforme documento 3 junto com a petição inicial) e, no ano de 2009, após a morte da sua mãe, ter intervindo na partilha por óbito desta, através da qual lhe foi adjudicada ao autor marido a outra metade indivisa do mesmo prédio (conforme factos provados n.ºs 5), pelo que – concluem os recorrentes - agiu sempre na convicção de que era dono de metade indivisa do mesmo imóvel e não de uma parte concreta e determinada do mesmo. A factualidade em causa é a caraterizadora do elemento subjetivo da posse que os réus invocam para fundamentar a aquisição, por usucapião, da parte concreta do imóvel em causa (correspondente ao rés-do-chão do mesmo), sendo que, na sentença, a Mmª Juiz a quo fundamentou a sua convicção quanto ao facto impugnado, com base quer nas declarações de parte, quer nos depoimentos testemunhais. Não vislumbramos, por outro lado, qualquer contradição insanável entre tal factualidade – ou seja, que réu utilizava, desde 1981, o rés-do-chão do edifício convicto de que exercida um direito próprio e exclusivo sobre aquela parte concreta e específica do dito imóvel – e aqueloutra que resulta dos supra mencionado pontos n.º 2 e 5 da matéria de facto provada, nem tampouco com o facto de o réu ter procedido, no de 2011, ao registo a seu favor da metade indivisa do imóvel que lhe foi transmitida por partilha da herança de seu pai. Com efeito, à data do óbito do pai do autor e do réu o imóvel em causa não estava constituído em propriedade horizontal, pelo que, na partilha da herança daquele não lhe podia ter sido adjudicada uma qualquer fração autónoma daquele imóvel. Destarte, porque na referida partilha lhe foi atribuída uma quota indivisa do dito imóvel, nunca poderia ter o réu marido requerido o registo a seu favor de uma parte concreta e determinada do mesmo, mas somente o registo daquela metade indivisa do mesmo, como fez. * Os autores recorrentes defendem ainda que deveriam ter sido considerado, na matéria de facto provada, com fundamento nos esclarecimentos orais prestados pelo perito que interveio na perícia colegial determinada nos autos (indicando, para tanto, o início e o termo da passagem da gravação em que funda o seu recurso), que “as obras executadas no rés-do-chão não aumentam o valor do prédio e são uma menos valia por serem ilegais que terão de ser demolidas”.Lendo os articulados das partes conclui-se que tal facto não foi alegado por qualquer delas. É certo, que o julgamento da matéria de facto está limitado aos factos articulados pelas partes, nos termos do art. 5º, nº 2 do Código de Processo Civil (sem prejuízo das circunstâncias particulares contempladas nas alíneas a) a c) deste mesmo nº 2, que, diga-se, nunca foram suscitadas nos autos. Com efeito, o juiz, além dos factos articulados pelas partes (dos notórios e dos adquiridos por virtude do exercício de funções), “considera” ainda os instrumentais resultantes da instrução da causa e os complementares ou concretizadores daqueles também emergentes desta (artigo 5.º, nº 2 do Código de Processo Civil), verificadas que estejam determinados pressupostos legalmente consagrados, desde logo, e antes de tudo o mais, se forem úteis para a decisão da causa. Essa tarefa implica um juízo que tem de ser sindicável por via do recurso, pelo que não se discute que, em sede impugnação da matéria de facto, o apelante pode peticionar a inserção de factos instrumentais e/ou de factos complementares ou concretizadores na matéria de facto, desde que (i) alegue/demonstre a categoria processual em que os integra, que os (ii) invoque nas circunstâncias processualmente exigidas (quanto aos primeiros, deverão resultar da discussão da causa, e, quanto aos segundos, para além disso, as partes devem ter tido a possibilidade de sobre eles se pronunciar) e que (iii) tais circunstâncias sejam explicitamente suscitadas no recurso. Contudo, impõe-se previamente aferir da relevância jurídica do “facto” que o recorrente pretende ver aditado ao elenco do provados para a sorte do litígio e, especialmente, para a improcedência da pretensão formulada pelos réus relacionado com o seu pedido reconvencional (subsidiário) de reconhecimento de um crédito por benfeitorias realizadas no imóvel em causa. Não nos parece ser esse o caso dos autos. O facto de “as obras executadas no rés-do-chão pelos réus não acrescentarem valor ao prédio e serem uma menos valia por se tratarem de obras ilegais, que têm de ser demolidas” configura uma mera conclusão, que não tem de constar dos factos provados, além de assentar numa premissa que não é correta porque do facto de as obras realizadas no rés-do-chão não estarem legalizadas (cf. facto provado sob o n.º 11) não decorre necessária e forçosamente a necessidade da sua demolição. Improcede, também nesta parte, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto. * Finalmente, pretendem os autores recorrentes que seja aditado ao elenco dos factos assentes o seguinte: “quando os réus começaram a habitar no rés-do-chão este dispunha de sala, de um quarto e cozinha e estava completo para ser habitado”, sustentando que o mesmo resulta de confissão da ré DD, reduzida a assentada, no decurso do seu depoimento de parte. É certo que, no momento de elencar os factos fundamentadores da sentença, o tribunal não deve ficar-se apenas pela enumeração/declaração de quais os que, entre os controvertidos e sujeitos a prova livre, ele julga provados ou não provados. Deve ainda tomar “em consideração” os admitidos por acordo, os plenamente provados por documentos e os regularmente confessados, todos estes naturalmente subtraídos à sua livre apreciação, mas legalmente consideráveis se e na medida que sejam relevantes para a boa solução jurídica da causa segundo as plausíveis, isto é, de acordo com o âmbito das previsões normativas dos preceitos legais perspetivados como suscetíveis de serem aplicados no caso (nºs 4 e 5, do art.º 607.º do Código de Processo Civil). No entanto, é sabido que. nos termos do art.º 353º nº 2 do Código Civil, “a confissão feita pelo litisconsorte é eficaz, se o litisconsórcio for voluntário, embora o seu efeito se restrinja ao interesse do confitente; mas não o é, se o litisconsórcio for necessário”. Isto é, em caso de litisconsórcio necessário a confissão feita pelo litisconsorte não é eficaz. É inequívoco que, na situação dos autos, se verifica uma situação de litisconsórcio necessário do lado passivo e do lado ativo da instância reconvencional, pelo que as aludidas declarações confessórias da ré, não tendo sido confirmadas pelo réu marido/reconvinte não têm eficácia confessória, sendo antes livremente valoradas pelo tribunal. Tanto basta para julgar improcedente, também nesta parte, a impugnação da decisão da matéria de facto. * Estamos perante uma ação de divisão de coisa comum, que, no Código de Processo Civil, constitui o processo especial que, na falta de acordo, permite a qualquer um dos comproprietários exercer o direito potestativo reconhecido pelo art.º 1412º, nº 1, do mesmo diploma legal, segundo o qual nenhum deles é obrigado a permanecer na indivisão, salvo quando se houver convencionado que a coisa se conserve indivisa. A ação de divisão de coisa comum pressupõe, como a própria designação aponta, a existência de uma situação de compropriedade em relação à coisa a cuja indivisão se pretende por termo através da referida via processual É requisito fundamental da procedência desta ação que a coisa seja divisível, nos termos que o art.º 209º do Código Civil estabelece. Este preceito diz que “são divisíveis as coisas que podem ser fraccionadas sem alteração da sua substância, diminuição de valor, ou prejuízo para o uso a que se destinam”. O entendimento comum da doutrina e da jurisprudência é o de que, face a esta norma, a divisibilidade ou indivisibilidade da coisa afere-se em termos jurídicos, e não físicos; por isso, quando se verifique qualquer uma das situações nela previstas a coisa será juridicamente indivisível, mesmo que fisicamente o não seja. Nos autos, discute-se, como questão prévia a indivisibilidade do imóvel identificado no processo. Segundo os autores, o mesmo é indivisível em substância. Os réus, por seu turno, defendem que a compropriedade invocada já nem sequer subsiste, na medida em que existem duas frações autónomas, em propriedade horizontal constituída por usucapião, tendo eles adquirido, por tal meio, a propriedade da fração correspondente ao rés-do-chão do edifício em causa. Assim, em reconvenção pedem que lhes seja reconhecido o direito de propriedade sobre tal fração autónoma por a haverem adquirido por usucapião, ou, se assim não se entender, que seja constituída, por sentença, a propriedade horizontal sobre o imóvel, nos termos referidos na contestação. Na sentença sob recurso, a Mmª Juiz a quo entendeu não poder declarar constituída a invocada propriedade horizontal por usucapião (como em primeira linha pretendiam os reconvintes), nem constituir por sentença essa mesma propriedade horizontal uma vez que não está demonstrada a verificação dos requisitos administrativos decorrentes das normas de urbanismo e edificação, mormente a certificação da Câmara Municipal de que o edifício satisfaz tidos os requisitos legais para a sua constituição em propriedade horizontal, de acordo com o RGEU. Com tal fundamento, conclui e declarou a indivisibilidade do imóvel. Os réus apelantes insurgem-se contra esta decisão invocando erro de julgamento que, na sua ótica, resulta de os factos considerados demonstrados permitiram concluir pela constituição da propriedade horizontal por usucapião – e consequentemente pela divisibilidade (jurídica) do prédio – não constituindo qualquer óbice a falta do mencionado requisito administrativo, uma vez que os efeitos da usucapião se retrotraem à data do início da posse (art.º 1288º do Código Civil) e o PDM que na altura vigorava permitia a divisão do prédio em discussão em frações autónomas. Vejamos se lhe assiste razão. De acordo com o Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 22-03-2018[11], “A declaração, por sentença, da propriedade horizontal constituída por usucapião, pressupõe a alegação e prova de que, além dos requisitos referidos no artigo 1415.º do Código Civil, o prédio respeita todos os requisitos administrativos necessários, os quais apenas podem ser avaliados e certificados pela Câmara Municipal, nos termos dos artigos 4º e 62º a 66º do RJUEU, aprovado pelo DL 555/99 de 16/12, alterado pelo DL 177/2001 de 4 de Junho, sendo, por isso, indispensável que na ação venha alegada essa certificação. Na situação vertente, nunca o tribunal a quo poderia ter declarado, por sentença, a propriedade horizontal constituída por usucapião, nem constituí-la por sentença no processo de divisão de coisa comum precisamente porque resultou demonstrado que “a Câmara Municipal ... emitiu parecer desfavorável sobre o pedido de viabilidade da constituição da propriedade horizontal porque, de acordo com o Plano Diretor Municipal, o edifício insere-se em Área de Edificação Dispersa onde se prevê apenas uma habitação, ou seja, um fogo”. * d) A inexistência do crédito por benfeitorias reclamado pelos réus/reconvintes;Cumpre agora apreciar o recurso interposto pelos autores da parte da sentença que, apreciando o pedido reconvencional (subsidiário), os condenou a pagar aos reconvintes a quantia de €27.000,00, a título de indemnização por benfeitorias. É hoje entendimento pacífico que, em ação especial de divisão de coisa comum, deve ser admitida a reconvenção em que o réu invoque a existência de crédito contra o autor que tenham a ver com o prédio a dividir e que possam influenciar o valor daquilo que o autor tenha direito a receber no fim dessa ação, designadamente quando invoque o direito a benfeitorias cujo valor suportou para além da respetiva quota.[16]. Não tendo questionado a admissibilidade, em abstrato, de um pedido reconvencional com tal fundamento, os autores/recorrentes insurgem-se contra a referida decisão condenatória sustentando, em breve síntese, que a mesma não encontra suporte nos factos alegados e provados, além de que, mesmo na hipótese de o valor determinado para tais benfeitorias ser o correto, nunca poderiam ter sido condenados no pagamento da totalidade do mesmo (mas somente da proporção daquele valor que equivale à sua quota-parte indivisa no imóvel). Vejamos. Segundo o art.º 216º n.º 1 do Código Civil, benfeitorias são todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa. Estão em causa despesas naturais ou materiais, ou seja, que se concretizam em tos materiais de obra na coisa beneficiada Podem ser (n.ºs 2 e 3 do mesmo artigo): - necessárias – as que têm por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa; - úteis – as que, não sendo indispensáveis para a conservação da coisa, lhe aumentam, todavia, o valor; - voluptuárias – as que, não sendo indispensáveis para a conservação da coisa, nem lhe aumentando o valor, servem apenas para recreio do benfeitorizante. No ensinamento de Oliveira Ascensão[17]: «As benfeitorias estão ligadas ao poder jurídico de transformação, que é um dos aspectos do gozo. São melhoramentos de uma coisa, portanto alterações nela realizadas com o fim de a beneficiar. Consoante o benefício efectivamente obtido distinguem-se em necessárias, úteis e voluptuárias (art.º 216.º/2 e 3). São necessárias as que evitam o detrimento da coisa; úteis as que aumentam a potencialidade de gozo desta (…).». Já no que tange à indemnização/compensação devida ao autor das benfeitorias, diz-nos o n.º 1 do 1273ºdo Código Civil que tanto o possuidor de boa-fé, como o de má-fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias que hajam feito. E bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela. Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa, nos termos do n.º 2 do mencionado art.º 1273.º do Código Civil. Em conformidade com o preceituado no art.º 342.º, n.º 1, do Código Civil, incumbe a quem invocar o direito a indemnização por realização de benfeitorias o ónus de provar as características das obras efetuadas com vista à respetiva qualificação, à luz do disposto no citado artigo 216.º, bem como a impossibilidade de remoção das benfeitorias úteis sem detrimento da coisa benfeitorizada, para os efeitos do disposto no artigo 1273.º do mesmo Código. Nas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela[18], no caso de ser impossível levantar as benfeitorias úteis sem detrimento da coisa, “o possuidor tem direito a uma indemnização, incumbindo-lhe o ónus de provar que do levantamento das benfeitorias resulta detrimento da própria coisa.”. E, no respeitante a tal detrimento, o que releva, como decorre do próprio texto do n.º 1, parte final, do indicado art.º 1273.º, é o detrimento da coisa benfeitorizada e não o da benfeitoria naquela incorporada. Quanto à determinação do valor a indemnizar pelas benfeitorias úteis, manda o mencionado artigo 1273.º, n.º 2, que seja calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa, o que, nos termos do artigo 479.º, n.º 1 do Código Civil, deverá equivaler ao que o titular da coisa tiver obtido à custa do empobrecido benfeitorizante. Nessa conformidade, a medida de restituição será estabelecida na base de dois limites: o custo da benfeitoria, correspondente ao empobrecimento de quem a suportou e o enriquecimento do titular da coisa benfeitorizada, correspondente à valorização incorporada[19]. Tal não significa que a medida de enriquecimento não possa equivaler ao custo das benfeitorias; mas pode ser inferior, nunca podendo ser superior a esse custo. Na situação vertente, a sentença entendeu estar demonstrado o crédito indemnizatório reclamado, no valor de €27.000,00, com a seguinte fundamentação: “In casu, atentos os factos provados, atinentes às obras realizadas no r/c, as mesmas podem considerar-se como uteis e necessárias, porque, em termos simplistas, mas face à prova produzida e aos factos provados, aumentaram o valor do imóvel e evitaram a degradação, verificada no 1º andar. Como referido na fundamentação de facto, o tribunal ficou convencido que a maioria das obras de melhoramentos e as mais dispendiosas foram custadas pelos RR, ao longo dos anos, e seguramente após a morte do pai, em 1991. Mas ainda que o pai tivesse ainda custeado obras, todos sabiam que o r/c seria para o Réu e que era essa a vontade do pai. E, em 1995, o R. pagou aos irmãos, incluindo ao A. um valor por eles aceite para os compensar por “ficar” com a parte melhor da herança. O valor das benfeitorias introduzidas antes dessa data – que não podem ser levantadas - estão já pagas, não havendo qualquer dúvida que, depois dessa data, foram sendo executados e custeados vários melhoramentos a cargo e expensas dos RR. Segundo a prova pericial, o valor das obras de benfeitorias é de 27.000€. O facto imediatamente seguinte (ponto 22) tem a seguinte redação “No r/c foram construídas paredes em tijolo, rebocadas, areadas e pintadas, construída uma casa de banho, colocadas portas interiores, revestido o pavimento com alcatifas, equipada a casa de banho, equipada uma cozinha e melhorado o pavimento”. Pese embora a posição sequencial dos factos n.ºs 21 e 22, a verdade é que, face ao tipo de obras descritas, há que concluir que pelo menos parte delas não foi levada a cabo pelos réus, uma vez que foi o pai do réu marido (e do autor) quem realizou as obras de adaptação daquele espaço para uma habitação independente. A conclusão que facilmente se alcança é que não possível destrinçar de entre essas abras quais foram levadas a cabo pelos pais do réu e do autor e aquelas que foram realizadas pelos réus, nem quem suportou o respetivo custo, como acaba por reconhecer a Mmª Juiz a quo. Tanto que assim que a sentença considerou como não provados que “todas as obras /benfeitorias existentes no r/c (que se demostraram) tenham sido executadas e pagas pelos RR, no r/c” e “que o obras em concreto fez o pai do A. e R.” Por outro lado, foi considerado provado que “o valor estimado das obras no rés-do-hão é de €27.000,00” (facto n.º 31) Por outro lado ainda, nada foi alegado em ordem à demonstração de que o levantamento das invocadas benfeitorias, a verificar-se, determinaria a deterioração do edifício, sendo que, em rigor, a alusão genérica a que “foi equipada uma casa de banho, equipada uma cozinha e melhorado o pavimento” não permite sequer aferir que trabalhos/obras em concreto foram realizados e, por conseguinte que tipo ou categoria de benfeitorias estão em causa, nem se as mesmas podem ser levantadas sem deterioração do imóvel. Salvo o devido respeito, perante esta factualidade, não deveria a Mmª Juiz a quo ter decidido que os réus têm direito a ser ressarcidos do valor correspondente a (todas) as obras realizadas naquele rés-do-chão. Impõe-se assim a anulação do ponto n.º 22 dos factos provados, com fundamento no citado art.º 662º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Civil, determinando-se a ampliação da matéria de facto para apuramento da factualidade mencionada no parágrafo anterior. * Sumário (ao abrigo do disposto no art.º 663º, n.º 7 do CPC):(…).
* III. Decisão Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em: * Custas pelos réus recorrentes. Coimbra, 27 de maio de 2025
Com assinatura digital: Hugo Meireles Luís Manuel Carvalho Ricardo Cristina Neves
[10] Neste sentido, cf., entre outros, os Acórdãos desta Relação de 23.10.2012 (processo n.º 16/11.1TBVZL.C2, relator Freitas Neto) e de 7-04-2016 (Processo n.º 421/13.9TBOHP.C1, relatado por Sílvia Pires), bem como os Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 13-10-2022 (processo n.º 17/18.9T8VLC.P1, sendo relatora Judite Pires) e de 16-102017 (Processo n.º 2506/15.8T8VFR-A.P1, relatado por Manuel Domingos Fernandes). [11] Processo n.º 151/17.2T8ODM.E1, relatado por Mário Coelho, disponível em www.dgsi.pt. [18] Código Civil Anotado, Vol. III, Coimbra Editora, 2.ª Edição (reimpressão), 1987, nota 3, p. 42. |