Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
931/23.0T8CTB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RICARDO
Descritores: PROCESSO EXECUTIVO
CUMULAÇÃO DE EXECUÇÕES
INDEFERIMENTO LIMINAR
DOCUMENTO AUTENTICADO APENAS ASSINADO PELO EXECUTADO
FORÇA EXECUTIVA
Data do Acordão: 09/16/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO – CASTELO BRANCO – JUÍZO CENTRAL CÍVEL – JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 352.º, 363º, Nº3, 458.º, N.º 1DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 703º, Nº1, ALÍNEA B) E 731.º DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Um documento autenticado, subscrito apenas pelos executados, reveste-se de força executiva desde que importe o reconhecimento ou a constituição de uma obrigação por parte dos mesmos.

II – Um suporte documental dessa natureza, que não inclua obrigações a cargo do credor, não carece de ser assinado pelo exequente.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral: *

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I – RELATÓRIO.

Na execução que A..., LDA, move contra AA veio a exequente, através de peça processual apresentada a 1/10/2024, requerer a cumulação de execuções, nos seguintes moldes:

1.º

A Exequente detém um crédito, melhor identificado no processo executivo n.º 931/23.0T8CTB, que corre termos neste juízo;

2.º

Para além das quantias já peticionadas nos presentes autos, aquando da instauração do

presente processo executivo para pagamento de quantia certa, as partes estabeleceram entre si um acordo para pagamento da dívida a prestações, para pagamento integral das quantias em dívida;

3.º

Assim, no dia quatro do mês de setembro de dois mil e vinte e três, foi outorgada Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento, através da qual foi reconhecida a quantia em dívida, no montante de € 191.174,32 (cento e noventa e um mil, cento e setenta e quatro euros e trinta e dois cêntimos), a pagar em 29 (vinte e nove) prestações mensais de € 6.592,22 (seis mil, quinhentos e noventa e dois euros e vinte e dois cêntimos) cada, vencendo-se ao dia 20 de cada mês, a qual foi devidamente autenticada no Escritório de Advogados a cargo do Advogado Dr. BB, (cfr. doc. n.º1 que ora se junta e se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos);

4.º

Sucede que, os Executados não efetuaram o pagamento das prestações conforme o acordo, sendo que as partes convencionaram que: “Acordam ambas as partes que, a falta de pagamento de duas ou mais prestações ora acordadas, constitui o Segundo Outorgante em mora e importa o vencimento imediato das seguintes, reservando-se neste caso a Primeira Outorgante no direito de fazer prosseguir a respetiva ação judicial”;

5.º

Assim, encontra-se em dívida o valor de € 98.762,24 (noventa e oito mil, setecentos e

sessenta e dois euros e vinte e quatro cêntimos);

6.º

Àquele montante acresce a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros) a título cláusula penal;

7.º

Pelo que se encontra em dívida o montante total de € 108.762,24 (cento e oito mil, setecentos e sessenta e dois euros e vinte e quatro cêntimos);

8.º

“Há cumulação de execuções quando o mesmo credor promove contra o mesmo devedor mais do que uma execução no mesmo processo” (Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, Almedina, 7ª. Edição, p. 65);

9.º

Em causa está, pois, uma cumulação sucessiva de execuções, dispondo o artigo 711.º n.º 1 do CPC que o exequente pode requerer no mesmo processo a execução de outro título, desde que inexistam circunstâncias que impeçam a cumulação, como é o caso.

10.º

Em conclusão, inexistem obstáculos à presente cumulação sucessiva, pelo que se Requer o seu deferimento;

11.º

À quantia peticionada no Requerimento Executivo datado de 23/05/2023, deve somar-se o valor que não foi pago no âmbito do acordo, requerendo-se a notificação do mesmo, nos termos do artigo 728.º n.º 4 do CPC.”.


**

Em anexo ao requerimento executivo, apresentou os seguintes documentos:

               

        



    **

Em 26/11/2024, foi proferido despacho a indeferir liminarmente o requerimento referente à cumulação de execuções, nos seguintes termos:

A exequente A..., L.da veio requerer a cumulação da execução a que se reporta o requerimento executivo com a referência n.º 3727982, solicitando o pagamento coercivo da quantia de € 108.762,24, a qual deverá acrescer ao valor da ação executiva inicialmente instaurada.

Como título executivo apresentou a sociedade exequente o documento particular intitulado “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento”, subscrito apenas pelos executados e acompanhado do termo de autenticação datado de 4 de setembro de 2023.

Cumpre apreciar e decidir.

Antes de mais, é relevante atender ao disposto no artigo 703º, n.º 1, do CPC, do qual resulta que “à execução apenas podem servir de base: a) as sentenças condenatórias; b) os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação; c) os títulos de crédito, ainda que meros quirógrafos, desde que, neste caso, os factos constitutivos da relação subjacente constem do próprio documento ou sejam alegados no requerimento executivo; d) os documentos a que, por disposição especial, seja atribuída força executiva”.

Embora o documento particular apresentado pela sociedade exequente se encontre autenticado por Ilustre Advogado e importe o reconhecimento de uma obrigação, afigura-se, com o respeito devido por entendimento diverso, que o mesmo não tem força executiva.

Com efeito, verifica-se que no documento particular apresentado como título executivo foi identificada, como primeira outorgante, a exequente A..., L.da, “neste ato representada pelo seu sócio-gerente, com poderes para o ato”.

Sucede, porém, que o documento particular dado à execução não contém a identificação do sócio-gerente que terá representado a sociedade exequente na outorga da “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento” a que se tem vindo a aludir, nem a assinatura do mesmo.

Para além disso, no termo de autenticação datado de 4 de setembro de 2023 que acompanha o referido documento particular não é feita qualquer alusão à sociedade exequente, nem ao respetivo representante legal, não constando do referido termo de autenticação a assinatura do representante da exequente, nem qualquer justificação para essa ausência.

Como é sabido, o artigo 46º, n.º 1, do Código do Notariado, estatui que “o instrumento notarial deve conter: (…); c) o nome completo, estado, naturalidade e residência habitual dos outorgantes, bem como das pessoas singulares por estes representadas, a identificação das sociedades, nos termos da lei comercial, e das demais pessoas coletivas que os outorgantes representem, com menção, quanto a estas últimas, das suas denominações, sedes e números de identificação de pessoa coletiva; (…); m) a indicação dos outorgantes que não assinem e a declaração, que cada um deles faça, de que não assina por não saber ou por não poder fazê-lo; n) as assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento”.

Acresce ainda que, nos termos previstos no artigo 70º, n.º 1, do Código do Notariado, “o ato notarial é nulo, por vício de forma, apenas quando falte algum dos seguintes requisitos: (…); e) a assinatura de qualquer dos outorgantes que saiba e possa assinar”.

Por seu turno, o artigo 151º, n.º 1, do Código do Notariado, estatui que “o termo de autenticação, além de satisfazer, na parte aplicável e com as necessárias adaptações, o disposto nas alíneas a) a n) do n.º 1 do artigo 46º, deve conter ainda os seguintes elementos: a) a declaração das partes de que já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade; b) a ressalva das emendas, entrelinhas, rasuras ou traços contidos no documento e que neste não estejam devidamente ressalvados”.

Deste modo, impõe-se concluir que na elaboração do documento particular autenticado apresentado pela sociedade exequente como título executivo não foram observadas as formalidades legais impostas pelos artigos 46º, n.º 1, e 151º, n.º 1, ambos do Código Notariado, já que nem o documento particular outorgado pela sociedade exequente, nem o termo de autenticação que o acompanha contêm a assinatura ou, sequer, a identificação do representante legal da sociedade exequente.

Como salienta o Supremo Tribunal de Justiça [1], “a lei parece clara ao exigir, para a validade da autenticação, que no termo de autenticação seja feita menção/identificação, expressa, a ambas as partes outorgantes no Acordo a autenticar e, outrossim, que ambas o assinem, constando, também, esta menção naquele termo (cfr, designadamente, as cfr. als. c) e n) do art. 46º do CN, ex vi do art. 151º do mesmo Código).

Acrescentando-se no art. 70º do mesmo Código do Notariado que “o ato notarial é nulo, por vício de forma, designadamente, quando não contém a assinatura de qualquer dos outorgantes que saiba e possa assinar (al. e) do nº 1). (…). Como, pertinentemente, se escreveu no Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães de 22 de setembro de 2022: “o art. 70º do Código do Notariado comina com a nulidade a violação das exigências contidas nas alíneas a) a g) do seu n.º 1, entre elas e para o que ora releva, a falta de assinatura dos outorgantes (…) os termos de autenticação, lavrados em conformidade com o estatuído no artigo 38º do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de março, obedecem a determinados requisitos: devem ser lavrados no próprio documento a que respeitam ou em folha anexa (cfr. artigo 36º, n.º 4 do Código do Notariado); devem satisfazer, na parte aplicável e com as necessárias adaptações, às formalidades comuns dos atos notarias, estabelecidas no artigo 46º do Código do Notariado.(…) Ora, como se evidencia do exposto, o termo de autenticação não foi assinado pelos outorgantes do documento, como se impunha face ao disposto no art. 46º, n.º 1, al. n), do Cód. Notariado, ao determinar que do instrumento notarial constem as assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento.(…) Pelo que, não podem ser considerados documentos autenticados, aqueles em que os respetivos termos de autenticação não se mostram lavrados em conformidade com as formalidades essenciais à validade do referido termo”.”.

De facto, resulta do disposto no artigo 363º, n.º 3, do Código Civil, que “os documentos particulares são havidos por autenticados, quando confirmados pelas partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais”.

Assim, por não terem sido observadas, na sua elaboração, as leis notariais a que atrás se aludiu, o documento particular apresentado como título executivo não pode ser “havido por autenticado”, o que significa que não se encontra dotado de força executiva.

Na verdade, a este propósito esclarece Rui Pinto [2] que “o título executivo apresenta as características da tipicidade e literalidade. Efetivamente, o legislador, de modo imperativo, fixa que documentos podem desempenhar função de título executivo. Não são títulos executivos os documentos que a lei não qualifique como tal. O rol de títulos executivos, constante do artigo 703º, n.º 1, é completado pelos artigos 704º a 708º, além de legislação avulsa. Trata-se de um rol taxativo, não se admitindo o seu alargamento por interpretação extensiva e, muito menos, por analogia. Vale para eles uma regra de tipicidade, segundo TEIXEIRA DE SOUSA. Mas, podem as partes determinar que outros documentos possam valer como título executivo? A resposta é negativa: a tipicidade do artigo 703º é acompanhada de imperatividade. Não está na disponibilidade de credor e devedor darem ou retirarem força executiva a certo documento.”.

Deste modo, uma vez que o documento apresentado pela sociedade exequente não se encontra abrangido por nenhuma das alíneas do n.º 1 do artigo 703º do CPC, não poderá ser admitida a cumulação de execuções pela mesma requerida.

Em conformidade com o preceituado no artigo 726º, n.º 1, do CPC, “o processo é concluso ao juiz para despacho liminar”.

Por seu turno, acrescenta o n.º 2 do preceito legal citado que “o juiz indefere liminarmente o requerimento executivo quando: a) seja manifesta a falta ou insuficiência do título”.

Como decorre do que já foi referido, afigura-se manifesto que o documento particular apresentado pela sociedade exequente juntamente com o requerimento executivo a que corresponde a referência n.º 3727982 não constitui título executivo.

Em face do exposto, nos termos e com os fundamentos já mencionados, indefiro liminarmente o requerimento executivo apresentado pela sociedade exequente com a referência n.º 3727982, não admitindo, portanto, a cumulação de execuções pela mesma requerida.

Custas a cargo da exequente.”.


***

Não se conformando com a decisão de indeferimento liminar, a exequente interpôs o presente recurso, no qual formula as seguintes conclusões:     

1- A recorrente requereu a cumulação da execução a que se reporta o requerimento executivo com a referência n.º 3727982, de 1-10-2024, solicitando o pagamento coercivo da quantia de € 108.762,24.

2- Como título executivo, a recorrente apresentou um documento particular intitulado “Confissão de Dívida e Acordo de Pagamento”, subscrito pelos executados e acompanhado do respectivo termo de autenticação.

3- Sucede que, o tribunal recorrido entendeu que o documento particular apresentado pela recorrente “não tem força executiva”.

4- Para o efeito de justificar a decisão, o tribunal recorrido chamou à colação os artigos 46.º, 70.º e 151.º, todos do Código do Notariado,

5- Assim, e no seguimento do entendimento propalado pelo tribunal recorrido, foi proferido o despacho em crise: “Em face do exposto, nos termos e com os fundamentos já mencionados, indefiro liminarmente o requerimento executivo apresentado pela sociedade exequente com a referência n.o 3727982, não admitindo, portanto, a cumulação de execuções pela mesma requerida.”

6- Salvo o devido respeito e melhor entendimento, não pode a recorrente subscrever o entendimento do tribunal recorrido.

7- Na verdade, o título dado à cumulação não padece de qualquer vício.

8- Do termo de autenticação que acompanha o acordo dado à execução como titulo executivo consta a identificação dos executados, a declaração dos mesmos de que já leram o acordo e que o mesmo exprime a sua vontade, a menção do dia, mês, ano e lugar onde foi lavrado o termo, a assinatura do advogado e as assinaturas de cada um dos executados.

9- Ou seja, o termo de autenticação, além de satisfazer, na parte aplicável e com as necessárias adaptações o disposto nas alíneas a) a n) do n.º 1 do art. 46.º do CN, contém os elementos referidos nas als. a) e b) do n.º 1 do art. 151.º do CN.

10- Encontram-se igualmente reunidos os requisitos do artigo 70.º do CN, não padecendo o termo de autenticação de nulidade por vício de forma, uma vez que não falta qualquer um dos seus requisitos.

11- O termo de autenticação tem como finalidade a confirmação da declaração de vontades constante do documento particular, conforme cumprido in casu.

12- O facto de o termo não fazer referência à exequente não implica a sua nulidade.

13- Verificando-se, sim, a assinatura dos executados, e a expressão das suas vontades, constantes do acordo.

14- O termo de autenticação em crise foi lavrado cumprindo todos os requisitos legais, pelo que é válido, e o documento particular dado à execução encontra-se validamente autenticado, pelo que validamente serve de base ao processo de execução, nos termos do artigo 703.º, n.º1, alínea b), do Código de Processo Civil.

15- O documento, dado à execução como título executivo, cumpre todos os requisitos para consubstanciar título executivo e cumpre, ainda, os requisitos formais patentes do artigo 46º do Código do Notariado.

16- Também o registo do termo não contém qualquer irregularidade que afecte a sua validade, visto que o registo contém a devida identificação dos interessados que constam do acordo.

17- Mais, o acordo prevê uma confissão ou reconhecimento unilateral de dívida, atribuindo apenas deveres aos executados.

18- E, nestes casos, nem o acordo propriamente dito, nem o termo de autenticação, tem, necessariamente, de conter referência expressa a todos os outorgantes.

19- É que a declaração cuja autenticação se impõe é, necessariamente, apenas a da pessoa que “se obrigou”, seja a pagar, a entregar ou a prestar o facto, ou seja declaração a do devedor.

20- Inexiste, do mesmo modo, qualquer dúvida de que a autenticação colheu a vontade dos devedores do acordo a que se reporta, inexistindo assim resquício de dúvida quanto à assunção da dívida exequenda.

21- E, com a autenticação dos executados e a confirmação das suas declarações de vontade, de reconhecimento e assunção da dívida do acordo, foram cumpridos, com a suficiência exigível, os requisitos notariais para a autenticação, assumindo pois todos os documentos exequibilidade.

22- É, pois, caso de procedência do recurso, com a necessária revogação do despacho de indeferimento liminar com a referência 37934849, de 26-11-2024, e ordenado o prosseguimento da instância executiva, especialmente quanto à cumulação.”.


***

Os apelados [3] apresentaram contra-alegações, concluindo nos seguintes termos:

A. O documento apresentado pela Recorrente constitui um acordo bilateral, não uma confissão unilateral de dívida, pelo que não lhe é aplicável a jurisprudência invocada.

B. O despacho recorrido encontra-se em total conformidade com a lei e a jurisprudência aplicável a acordos bilaterais, devendo ser integralmente confirmado.

C. O documento não reúne os requisitos legais para ser considerado título executivo, por não conter a assinatura nem a identificação da Recorrente no termo de autenticação.

D. O incumprimento dos formalismos previstos nos artigos 46.º, 150.º e 151.º do Código do Notariado constitui omissão de formalidade essencial, tornando o título inidóneo para efeitos executivos.

E. As alegações da Recorrente assentam numa qualificação jurídica incorreta do documento e carecem de fundamento legal aplicável ao caso concreto.

F. Deve ser negado provimento ao recurso, mantendo-se o indeferimento liminar do requerimento executivo.”.


**

Questão objecto do recurso: exequibilidade do documento em que se baseia a cumulação de execuções.          

***

II – FUNDAMENTOS.

2.1. Fundamentação de facto.

Com interesse para a apreciação do recurso em análise, importar considerar a tramitação processual que vem descrita no relatório antecedente.


***

2.2. Enquadramento jurídico.

Sustentou o Tribunal recorrido que o suporte documental que a exequente apresentou com o requerimento referente à cumulação de execuções não reúne os requisitos para se considerado título executivo, o que decorre, de acordo com a posição expressa no despacho impugnado, da circunstância de o documento em causa não ter sido  subscrito e confirmado pela apelante, designadamente pelo respectivo sócio gerente.

Como é sabido, de harmonia com o preceituado no art. 703º, nº1, alínea b), do C.P.C., podem servir de base à execução os documentos exarados ou autenticados, por notário ou por outras entidades ou profissionais com competência para tal, que importem constituição ou reconhecimento de qualquer obrigação.

No caso vertente, a questão que se coloca diz respeito a um documento particular autenticado, espécie a que o art. 363º, nº3, do Código Civil faz referência, da seguinte forma: “Os documentos particulares são havidos por autenticados, quando confirmados pelas partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais.”.

Após a publicação do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, a competência para a autenticação de documentos particulares foi alargada a outras entidades, designadamente conservadores, oficiais de registo, advogados e solicitadores (cf. art. 38º, nº1, deste diploma legal) [4].

Sendo inequívoco que foram cumpridas as disposições legais, designadamente de ordem notarial [5], no que concerne aos executados – atente-se, em particular, no termo de autenticação supra transcrito –, também não restam dúvidas que relativamente à exequente os requisitos a que temos vindo a fazer não se mostram observados, uma vez que o documento em causa não foi confirmado perante o ilustre advogado que presidiu à autenticação.

Seria, contudo, exigível, no caso vertente, que a ora apelante tivesse subscrito o documento em apreço e que o mesmo fosse acompanhado das formalidades que dizem respeito à autenticação ?

No que diz respeito a este ponto, divergimos do entendimento adoptado pela 1ª instância, pela seguinte ordem de razões.

Em primeiro lugar, o documento em que se baseia a cumulação de execuções, contém, de forma inequívoca, uma declaração negocial, emitida pelos apelados, que se consubstancia no reconhecimento de uma obrigação de natureza pecuniária, cuja origem decorre da prestação de serviços referida no suporte documental em causa.

Entre outros aspectos, foi reconhecido, por parte da sociedade comercial ora executada (B..., Lda.), que se encontrava em dívida o montante de 191.174,32 €, quantia que a mesma se obrigou a liquidar da forma que vem descrita no documento a que temos vindo a fazer referência, sendo que os restantes executados (pessoas singulares) declararam assumir, de forma solidária, o pagamento da importância em causa, renunciando expressamente ao benefício da excussão prévia [6].

Não se trata, aqui, do reconhecimento de uma dívida, na acepção prevista no art. 458º, nº1, do Código Civil [7], uma vez que foi indicada a causa que está na origem da correspondente obrigação, o que significa que se trata de uma confissão (extrajudicial) do débito que se pretende executar (art. 352º do Código Civil [8]) [9].

Com efeito, conforme se salienta no Acórdão do STJ de 8/2/2924 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/e0594dd3f6783e1a80258abd005fe74d?OpenDocument), “A declaração constante de um documento escrito na qual uma pessoa se confessa devedor perante outro em razão de uma determinada causa constitui uma confissão extrajudicial escrita em documento particular.”

No mesmo sentido, no Acórdão da Relação do Porto de 24/11/2022 (disponível em https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/96dac27995ac52af8025891a005677b1?OpenDocument), observa-se o seguinte:     

I - O artigo 458.º do Código Civil refere-se à situação em que alguém reconhece uma dívida sem indicar a relação que está na origem da dívida, não às situações em que na declaração o devedor enuncia expressamente a causa da dívida reconhecida.

II - A declaração constante de um documento escrito na qual uma pessoa se confessa devedor perante outro em razão de uma determinada causa constitui uma confissão extrajudicial escrita em documento particular.”.   

Ora, a confissão de dívida enquadra-se no conceito mais amplo de “reconhecimento de uma obrigação” a que o legislador faz referência no art. 703º, nº1, alínea b), do C.P.C., revestindo-se o respectivo documento, na situação em apreço, de força executiva, uma vez que foram observadas as formalidades supra mencionadas.  

Em segundo lugar, não se alcança do referido documento que o cumprimento da obrigação pecuniária em causa esteja dependente da realização de qualquer prestação a cargo da exequente, caso em que seria de exigir, de forma inequívoca, que existisse uma declaração negocial expressa no correspondente suporte documental, a par da autenticação por parte de uma entidade com competência para o efeito.

A confissão de dívida, nos termos em que se encontra exarada no documento que temos vindo a mencionar, vale por si só, isto é, a declaração emitida pelos ora apelados traduz-se no reconhecimento de uma obrigação, tudo sem prejuízo de, na sede própria (embargos de executado), ser deduzida oposição com base nos fundamentos a que alude o art. 731º do C.P.C. [10].      

O entendimento que perfilhamos, deve acrescentar-se, para concluir, foi adoptado por esta Relação (Coimbra) em Acórdão de 25/5/2024 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/34862b7b66ca300f80258b32002f3783?OpenDocument), cujo sumário apresenta o seguinte teor:

Se o documento particular autenticado dado à execução consistir em assunção/confissão de dívida, o termo de autenticação notarial basta-se, para além do mais exigível nos artºs 46º e 151º do CN, com a identificação do devedor, a certificação da sua vontade de assunção da dívida, a sua assinatura e o registo informático nos termos do nº 3 do artigo 38º do DL nº 76-A/2006, de 29.03, Portaria nº 657-B/2006 de 29-06, não sendo necessária a intervenção do credor; pelo que, assim, ele assume-se título executivo com exequibilidade extrínseca.”.

Em sentido absolutamente idêntico se pronunciou a Relação de Lisboa  em Acórdão de 27/4/2023 (Aresto disponível em https://www.dgsi.pt/Jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/9a851fdba0dda7e7802589a9003cfb81?OpenDocument), constando no respectivo sumário o seguinte:          

Sendo o documento dado à execução uma confissão de dívida, expressa pela executada em documento particular devidamente autenticado, não é necessária a assinatura, muito menos autenticada, da exequente, não ocorrendo a nulidade do art.º 70º, n.º 1, e) do Código de Notariado, valendo o mesmo como título executivo nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 703.º do Código de Processo Civil.”.

Em face do exposto, o recurso merece provimento, pelo que deverá decidir-se em conformidade, com as consequências legais.


***

III – DECISÃO.

Nestes termos, decide-se julgar a apelação procedente e, em consequência, revogar o despacho recorrido, devendo a execução prosseguir os seus ulteriores termos.    

Custas pelos apelados.

Coimbra, 16 de Setembro de 2025


(assinado digitalmente)

Luís Manuel de Carvalho Ricardo

(relator)

Hugo Meireles

(1º adjunto)

Cristina Neves

(2ª adjunta)



[1] Cfr. Acórdão de 17/10/2024, proc. n.º 458/23.0T8VIS-A.C1.S1, in www.dgsi.pt.

[2] In A Ação Executiva, 1ª Reimpressão, AAFDL Editora, 2019, pág. 145.
[3] A execução a que se reporta o requerimento de 1/10/2024 é também movida contra B..., Lda., e CC.
[4]  O art. 38º, nº1, do Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, apresentava, na sua forma originária, a seguinte redacção: “Sem prejuízo da competência atribuída a outras entidades, as câmaras de comércio e indústria, reconhecidas nos termos do Decreto-Lei n.º 244/92, de 29 de Outubro, os conservadores, os oficiais de registo, os advogados e os solicitadores podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos nos termos previstos na lei notarial.”.
A disposição em apreço foi alterada pelo Decreto-Lei n.º 8/2007, de 17 de Janeiro, passando a apresentar o seguinte teor: “Sem prejuízo da competência atribuída a outras entidades, as câmaras de comércio e indústria, reconhecidas nos termos do Decreto-Lei n.º 244/92, de 29 de Outubro, os conservadores, os oficiais de registo, os advogados e os solicitadores podem fazer reconhecimentos simples e com menções especiais, presenciais e por semelhança, autenticar documentos particulares, certificar, ou fazer e certificar, traduções de documentos, nos termos previstos na lei notarial, bem como certificar a conformidade das fotocópias com os documentos originais e tirar fotocópias dos originais que lhes sejam presentes para certificação, nos termos do Decreto-Lei n.º 28/2000, de 13 de Março.”.
[5] Art. 150º do Código do Notariado: “1 - Os documentos particulares adquirem a natureza de documentos autenticados desde que as partes confirmem o seu conteúdo perante o notário.
2 - Apresentado o documento para fins de autenticação, o notário deve reduzir esta a termo.”.
Art. 151º, nº1, alínea a), do Código do Notariado: “O termo de autenticação, além de satisfazer, na parte aplicável e com as necessárias adaptações, o disposto nas alíneas a) a n) do n.º 1 do artigo 46.º, deve conter ainda os seguintes elementos: a) A declaração das partes de que já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade;”.
Art. 46º, nº1, alíneas a) a n), do Código do Notariado: “O instrumento notarial deve conter:
a) A designação do dia, mês, ano e lugar em que for lavrado ou assinado e, quando solicitado pelas partes, a indicação da hora em que se realizou;
b) O nome completo do funcionário que nele interveio, a menção da respectiva qualidade e a designação do cartório a que pertence;
c) O nome completo, estado, naturalidade e residência habitual dos outorgantes, bem como das pessoas singulares por estes representadas, a identificação das sociedades, nos termos da lei comercial, e das demais pessoas colectivas que os outorgantes representem, com menção, quanto a estas últimas, das suas denominações, sedes e números de identificação de pessoa colectiva;
d) A referência à forma como foi verificada a identidade dos outorgantes, das testemunhas instrumentárias e dos abonadores;
e) A menção das procurações e dos documentos relativos ao instrumento que justifiquem a qualidade de procurador e de representante, mencionando-se, nos casos de representação legal e orgânica, terem sido verificados os poderes necessários para o acto;
f) A menção de todos os documentos que fiquem arquivados, mediante a referência a esta circunstância, acompanhada da indicação da natureza do documento, e, ainda, tratando-se de conhecimento do imposto municipal de sisa, a indicação do respectivo número, data e repartição emitente;
g) A menção dos documentos apenas exibidos com indicação da sua natureza, data de emissão e entidade emitente e, ainda, tratando-se de certidões de registo, a indicação do respetivo número de ordem ou, no caso de certidão permanente, do respetivo código de acesso;
h) O nome completo, estado e residência habitual das pessoas que devam intervir como abonadores, intérpretes, peritos médicos, testemunhas e leitores;
i) A referência ao juramento ou compromisso de honra dos intérpretes, peritos ou leitores, quando os houver, com a indicação dos motivos que determinaram a sua intervenção;
j) As declarações correspondentes ao cumprimento das demais formalidades exigidas pela verificação dos casos previstos nos artigos 65.º e 66.º;
l) A menção de haver sido feita a leitura do instrumento lavrado, ou de ter sido dispensada a leitura pelos intervenientes, bem como a menção da explicação do seu conteúdo;
m) A indicação dos outorgantes que não assinem e a declaração, que cada um deles faça, de que não assina por não saber ou por não poder fazê-lo;
n) As assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento.”.
[6] O benefício de excussão encontra-se previsto no âmbito da fiança, estando regulado nos arts. 638º a 640º do Código Civil
[7] Art. 458º, nº1, do Código Civil: “Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respectiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.”.
[8] Art. 352º do Código Civil: “Confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.”.
[9] Como salienta José Lebre de Freitas (“A Ação Executiva – À Luz do Código de Processo Civil de 2013”, 8ª edição, 2024, pág. 73), “Os documentos autênticos e autenticados não constituem título executivo apenas quando formalizem o ato de constituição duma obrigação. Também o são quando deles conste o reconhecimento, pelo devedor, duma obrigação pré-existente: confissão do ato (ou mero facto) que a constituiu (arts. 352, 358-2 e 364 do CC); reconhecimento de dívida (art. 458º CC). É o que expressamente consta do art. 703-1-b.”.
[10] Art. 731º do C.P.C.: “Não se baseando a execução em sentença ou em requerimento de injunção ao qual tenha sido aposta fórmula executória, além dos fundamentos de oposição especificados no artigo 729.º, na parte em que sejam aplicáveis, podem ser alegados quaisquer outros que possam ser invocados como defesa no processo de declaração.”.