Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1185/21.8T8CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA CATARINA GONÇALVES
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL MÉDICA
VIOLAÇÃO DO DEVER DE INFORMAÇÃO
CONSENTIMENTO INVÁLIDO
NEXO DE CAUSALIDADE
ÓNUS DA PROVA
Data do Acordão: 05/27/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO CENTRAL CÍVEL DE CASTELO BRANCO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 640.º, N.º 1, AL.ª A), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, 70.º, 81.º, 340.º, 342.º E 799.º DO CÓDIGO CIVIL E 135.º, N.º 11, DO ESTATUTO DA ORDEM DOS MÉDICOS
Sumário: I – O ónus de identificação dos pontos de facto impugnados a que se reporta a alínea a) do n.º 1 do art.º 640.º do CPCiv. tem que ser cumprido, obrigatoriamente, nas conclusões das alegações, apenas se considerando incluída no objecto do recurso a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto em relação aos pontos de facto que estejam identificados em tais conclusões.

II – A violação do dever de informação – enquanto pressuposto do consentimento livre e esclarecido que se impõe como condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes – é fonte autónoma de responsabilidade civil médica, independentemente de ter ocorrido erro médico e violação das legis artis.

III – A responsabilidade civil médica assente na violação do dever de informação – reportada aos casos em que o acto médico foi consentido e autorizado mas em que esse consentimento se tem como inválido por não ter sido antecedido da informação necessária, não sendo, por isso, um consentimento esclarecido – pressupõe que os danos cuja indemnização se reclama possam ser imputados ao acto médico em questão por resultarem da concretização de risco ou efeito que lhe esteja associado e que dele tenha resultado e do qual o paciente deveria ter sido informado sem que se prove que o tenha sido.

IV – Recai sobre o paciente/lesado o ónus de provar a efectiva concretização de um risco ou efeito do acto médico que deveria ter sido objecto de informação e o nexo de causalidade entre esse facto e os danos cuja indemnização peticiona, recaindo sobre o médico o ónus de provar o cumprimento do seu dever de informação em relação ao concreto risco ou efeito do acto que se veio a produzir.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral:

Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

I.

AA, residente na Rua ..., ..., Quinta ..., ... ..., veio instaurar acção, com processo comum, contra A..., Lda., com sede na Rua ..., ..., ..., ... ... e contra Dra.ª BB, com domicílio profissional na Rua ..., ..., ..., ... ..., pedindo a sua condenação solidária a pagar-lhe a quantia de 60.000,00€, acrescida de juros legais e a contar da data da citação até integral pagamento, a título de indemnização por danos morais, bem como o montante que vier a ser apurado no decurso da acção correspondente a danos de natureza patrimonial ou não patrimonial, acrescido de juros à taxa legal até efectivo e integral pagamento.

Fundamenta a sua pretensão no erro médico – que imputa à 2.ª Ré – consistente no uso de técnicas e procedimentos incorrectos, com violação das legis artis, na extracção de um dente do Autor que foi executada, em 10/09/2018, pela 2.ª Ré nas instalações e sob as ordens, direcção e fiscalização da 1.ª Ré, por conta de quem exercia a sua actividade de medicina dentária e odontologia e que, além do mais, foi executada sem que tivesse sido prestada ao Autor qualquer informação acerca do método, consequências ou riscos do procedimento, apenas lhe tendo sido dito que seria uma cirurgia bastante fácil e simples. Alegando que, na execução desse procedimento, a Ré colocou massa branca no local da extracção do dente que entrou e foi absorvida pelo seio nasal, deixando restos metálicos e raízes no buraco onde foi extraído o dente, refere que, a partir de então, passou a padecer de problemas dentários – apresentando fístula oroantral – que o obrigaram a diversas consultas e tratamentos dentários e que lhe provocaram dores intensas e insuportáveis que afectaram – e afectam – de modo relevante a sua vida e tarefas diárias, determinando-lhe muitas limitações e dificuldades ao nível da mastigação, alimentação, descanso, realização da higiene dentária, socialização com família e amigos e provocando-lhe angústia, frustração, revolta e profunda depressão.

As Rés contestaram, invocando a ineptidão da petição inicial, negando qualquer responsabilidade da 1.ª Ré, tendo em conta que a 2.ª Ré não exerce a sua actividade por conta da primeira e negando, no essencial, a existência de qualquer erro médico na execução do procedimento em questão (extracção do dente 26) que foi executado sem incidentes, com sucesso e com observância das legis artis e das técnicas adequadas e com prestação ao Autor de toda a informação relevante, sendo falso que não tivessem sido extraídas as raízes ou que tivesse ocorrido entrada, absorção ou invasão de qualquer material cirúrgico para o seio maxilar. Mais alegam que, tendo sido dadas instruções ao Autor para regressar sete dias depois para remoção da sutura e do cimento cirúrgico, este regressou em momento anterior, insistindo para que lhe fosse removido aquele material e que, perante a recusa do médico que o atendeu, referiu que o iria fazer numa clínica de um familiar sem que tivesse regressado à Ré para esse efeito, desconhecendo as Rés os procedimentos feitos após essa data, pelos quais não podem ser responsabilizadas. Assim, concluem, quaisquer danos que tenham sido sofridos pelo Autor não são – nem podem ter sido – decorrentes do serviço prestado.

Com esses fundamentos, concluem pela improcedência da acção.

Além de terem formulado pedidos reconvencionais que não vieram a ser admitidos, as Rés pediram ainda a condenação do Autor, por litigância de má fé e abuso de direito, em multa e indemnização.

Deduzem ainda incidente de intervenção provocada da B..., Companhia de Seguros, S.A. para quem alegaram ter transferido a sua responsabilidade civil por actos resultantes da sua actividade e/ou profissão

O Autor replicou, sustentando a improcedência da excepção invocada e do pedido de condenação por litigância de má fé.

Tendo sido admitida a intervenção de B..., Companhia de Seguros, SA, veio a mesma – após citação – aceitar os contratos de seguro celebrados com as Rés e declarando, no mais, fazer sua e subscrever a matéria das excepções e a matéria impugnatória constante da contestação das Rés.

Foi proferido despacho saneador, onde, além do mais, se julgou improcedente a excepção de nulidade do processo por ineptidão da petição inicial.

Foi fixado o objecto do litigio e foram delimitados os temas da prova.

Na sequência dos demais trâmites processuais e após realização da audiência de julgamento, foi proferida sentença onde se decidiu julgar a acção improcedente e, em consequência, absolver as Rés dos pedidos formulados pelo Autor, mais se decidindo absolver o Autor e as Rés dos pedidos de condenação a título de litigância de má fé.

Inconformado, com essa decisão, o Autor veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).

As Rés A... Lda., e BB, responderam ao recurso, formulando as seguintes conclusões:

(…).

A Interveniente B... – Companhia de Seguros, S.A. veio declarar a sua adesão, na totalidade e sem reservas, às contra-alegações apresentadas pelas Rés.


/////

II.

Questões a apreciar:

Atendendo às conclusões das alegações do Apelante – pelas quais se define o objecto e delimita o âmbito do recurso – são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

· Saber se existiu erro de julgamento na decisão proferida sobre a matéria de facto em relação aos concretos pontos de facto que são impugnados, em termos que imponham a alteração dessa decisão;

· Saber se ocorreu violação – por parte das Rés – do dever de informação referente aos riscos do acto médico realizado (a exodontia do dente 26) e se, por força da violação desse dever, estão obrigadas a indemnizar o Autor/Apelante pelos danos por este sofridos.


/////

III.

Na 1.ª instância, julgou-se provada a seguinte matéria de facto:

1. A Ré A..., Lda dedica-se à prestação de serviços de medicina dentária e odontologia.

2. A Ré Dr.ª BB é médica dentista e exerce a sua actividade profissional nas instalações da Ré A..., Lda.

3. No dia 10 de Setembro de 2018 o Autor, por sentir dores no primeiro dente molar (dente 26), dirigiu-se às instalações da Ré A..., Lda para realização de uma consulta com a Ré Dr.ª BB, tendo em vista a realização de tratamentos dentários.

4. A 11 de Julho de 2008 a Ré Dr.ª BB já tinha realizado uma restauração do dente 26 do Autor, com compósito, nas faces mesial e oclusal.

5. No dia 8 de Abril de 2009 a Ré Dr.ª BB iniciou a realização de tratamento endodôntico ao dente 26 do Autor.

6. No dia 9 de Novembro de 2009 a Ré Dr.ª BB concluiu esse tratamento endodôntico com obturação canalar com guta-percha, tendo procedido também à restauração definitiva da cavidade de acesso oclusal do dente 26, com compósito.

7. No período compreendido entre os dias 25 de Fevereiro de 2011 e 8 de Agosto de 2011 a Ré Dr.ª BB procedeu à realização de tratamento endodôntico e restauração do dente 25 do Autor, de destartarização e de restaurações, com compósito, dos dentes 46 e 47.

8. Em consulta realizada no dia 9 de Outubro de 2017 o Autor transmitiu à Ré Dr.ª BB que apresentava queixas dolorosas esporádicas no dente 26 e que este já tinha sido alvo de uma nova intervenção realizada em Lisboa, na clínica de um familiar seu que é dentista, mas que o problema não tinha sido resolvido e que pretendia resolvê-lo de uma vez por todas.

9. Na intervenção realizada em Lisboa a que se alude em 8. a reabilitação da coroa do dente 26 do Autor foi efetuada com recurso à colocação de espigões intra-radiculares.

10. No decurso da consulta a que se alude em 8. foi realizada uma ortopantomografia, com vista a contribuir para o diagnóstico clínico.

11. Após avaliação do exame clínico e da referida ortopantomografia, o Autor foi aconselhado, pela Ré Dr.ª BB, a realizar a exodontia do dente 26, uma vez que este já tinha sido submetido aos tratamentos realizados nas duas clínicas e, ainda assim, o Autor continuava a sentir dores.

12. Ainda no decurso da consulta realizada no dia 9 de Outubro de 2017 o Autor comunicou à Ré Dr.ª BB que não pretendia realizar a exodontia do dente 26 nessa altura em virtude de residir fora do país.

13. Nessa ocasião foi realizada apenas uma destartarização.

14. Na consulta a que se alude em 3. a Ré Dr.ª BB comunicou ao Autor que a extração do dente 26 era uma cirurgia simples.

15. O Autor aceitou a realização dessa cirurgia no próprio dia 10 de Setembro de 2018.

16. O Autor comprometeu-se, perante a Ré Dr.ª BB, a permanecer na ... durante o período necessário para concluir o processo de extração do dente 26 com a remoção da sutura.

17. A Ré Dr.ª BB não informou o Autor da existência de nenhum risco associado à realização da cirurgia em causa, nem lhe entregou qualquer nota de consentimento para que o Autor a assinasse.

18. Antes de proceder à extração do dente 26 do Autor, a Ré Dr.ª BB procedeu à realização de um RX apical.

19. A Ré Dr.ª BB informou o Autor de que iria ser anestesiado localmente para se proceder à exodontia do dente 26 e de que iria ser suturado, explicando-lhe que poderia sentir algum desconforto, dor ou edema após a cirurgia, os quais seriam debelados com recurso a medicação analgésica e anti-inflamatória e aplicação de gelo na face e que, provavelmente, seria prescrita medicação antibiótica.

20. A Ré Dr.ª BB advertiu o Autor de que não deveria praticar exercício físico nos primeiros três dias após a realização da cirurgia, de que deveria optar por dieta mole e fria nesses mesmos dias, devendo higienizar cuidadosamente a zona da exodontia.

21. A extração do dente 26 do Autor foi executada pela Ré Dr.ª BB com recurso a anestesia local.

22. Durante a execução do procedimento de exodontia do dente 26 do Autor foi realizada a sindesmotomia, seguida de luxação do dente, com alavanca e boticão de molares superiores esquerdos.

23. Após, a Ré Dr.ª BB procedeu à realização de odontosecção das três raízes do dente 26, as quais ficaram individualizadas.

24. A partir desse momento, a Ré Dr.ª BB iniciou, com alavanca, a execução dos procedimentos de luxação das três raízes anteriormente individualizadas.

25. Quando as três raízes se encontravam totalmente luxadas, a Ré Dr.ª BB procedeu à exodontia sequencial de cada uma das três raízes.

26. Concluída a exodontia do dente 26 do Autor, a Ré Dr.ª BB, por observação clínica e com recurso à realização de uma ortopantomografia, avaliou os alvéolos dentários, confirmando que os mesmos se apresentavam íntegros.

27. Após a realização da ortopantomografia a que se alude em 26., quando o Autor regressou à sala onde foi realizada a cirurgia e se sentou, a lâmpada do candeeiro do equipamento dentário fundiu-se e foi substituída pela assistente dentária CC.

28. A Ré Dr.ª BB providenciou então pela colocação de esponjas hemostáticas da marca Spongostan® nos alvéolos dentários, pela realização de sutura não reabsorvível e pela protecção de todos os alvéolos e sutura com cimento cirúrgico da marca COE-PAK®, tendo este sido colocado entre os dentes adjacentes e com extensão para o fundo do vestíbulo, para uma melhor estabilização do mesmo.

29. A Ré Dr.ª BB optou por colocar o referido cimento cirúrgico por saber que o Autor era uma pessoa activa, que não se coibia de praticar desporto, incluindo desportos radicais e aquáticos.

30. O tratamento contratado pelo Autor com a Ré Dr.ª BB, inicialmente orçamentado pelo valor de €80,00, teve um custo final de €100,00, em consequência da realização da ortopantomografia a que se alude em 26..

31. Na sequência da exodontia realizada pela Ré Dr.ª BB não ocorreu entrada, absorção, nem invasão de qualquer material cirúrgico para o seio maxilar do Autor.

32. Através da observação clínica efetuada pela Ré Dr.ª BB e da análise da ortopantomografia realizada não eram visíveis quaisquer raízes, ou restos radiculares do dente 26, no alvéolo dentário.

33. Concluída a cirurgia executada pela Ré Dr.ª BB, o Autor foi medicado com um antibiótico Dalacin-C® (1 cp de 6/6 horas, durante 8 dias) e com um anti-inflamatório/analgésico Brufen 600® (1 cp 8/8 horas durante 3 dias e depois passar a regime de 1 cp em SOS).

34. O Autor foi instruído para voltar às instalações da Ré A..., Lda passados sete dias, no dia 17 de Setembro de 2018, para que lhe fossem removidos a sutura e o cimento cirúrgico.

35. No dia 14 de Setembro de 2018 o Autor dirigiu-se às instalações da Ré A..., L.da sem que, previamente, tivesse marcado uma consulta para esse dia.

36. A Ré Dr.ª BB não dava consultas no dia 14 de Setembro de 2018.

37. Nessa data, já em consulta, o Autor foi observado, pela primeira e única vez, pelo Dr. DD, médico dentista e Director Clínico da A....

38. No decurso dessa consulta o Autor transmitiu ao médico dentista Dr. DD que se encontrava bastante bem, solicitando-lhe que o mesmo removesse a sutura imediatamente, uma vez que o Autor pretendia ausentar-se da ... e não queria ir para Inglaterra com a sutura.

39. Depois do exame clínico ao Autor, o médico dentista Dr. DD informou-o de que a cicatrização estava a decorrer muito bem.

40. Nessa ocasião, o médico dentista Dr. DD confirmou o bem-estar do paciente, o qual não acusava quaisquer dores, nem apresentava edema.

41. O médico dentista Dr. DD transmitiu então ao Autor que nunca se lhe poderia remover a sutura e o cimento cirúrgico antes de terem decorrido os sete dias indicados pela Ré Dr.ª BB.

42. O Autor reiterou a sua pretensão quanto à imediata remoção da sutura, alegando que se encontrava bem e que não pretendia ir para Inglaterra com a sutura, mas o médico dentista Dr. DD manteve a mesma posição e opinião clínica de não remover a sutura antes do decurso dos sete dias subsequentes à intervenção realizada.

43. Apesar de o Autor lhe ter transmitido que se não lhe removesse a sutura iria removê-la em Lisboa, o médico dentista Dr. DD respondeu-lhe novamente que não podia, nem devia remover a sutura antes de decorridos os mencionados sete dias e que a Clínica declinava a sua responsabilidade relativamente a quaisquer actos clínicos que fossem praticados por outros médicos e alterassem a situação clínica existente até essa data e que fossem contrários à imposição feita.

44. O médico dentista Dr. DD informou ainda o Autor de que, se o pretendesse, lhe forneceria o seu historial clínico para poder ser acompanhado por outro médico dentista, o que foi recusado pelo Autor.

45. Após a data indicada em 35. o Autor não voltou a contactar as Rés A..., L.da e Dr.ª BB.

46. As Rés A..., L.da e Dr.ª BB não foram contactadas pelo Autor, nem por qualquer médico ou médico dentista para que lhes fosse facultado o processo clínico do Autor.

47. No dia 21 de Setembro de 2018 o Autor dirigiu-se à Clínica C..., em Lisboa, onde teve uma consulta com o médico estomatologista Dr. EE.

48. Pelo médico estomatologista Dr. EE, em declaração datada de 25 de Junho de 2021, foi relatado o seguinte:

AA

O paciente em epígrafe veio à consulta em 21/09/2018 apresentando fístula oroantral no dente 26. A radiografia revelou material radiopaco que, ao retirar, pareceu óxido de zinco. Fez-se um retalho rodado da mucosa palatina e colocou-se uma prótese removível com um dente.

Em 20/12/2018 o paciente apresentara recidiva da fístula oroantral.

Em 21/12/2018, limpou-se cuidadosamente o canal, curetou-se e foi colocada membrana de regeneração superior, osso de grão 0,5/1mm e inferiormente outra membrana de regeneração, seguido de recobrimento da mucosa palatina e vestibular.

Posteriormente, soube por telefonema do pai que tinha recidivado de novo e iria ao HUC à cirurgia maxilofacial, o que concordei em absoluto.

A partir desse momento, desconheço a evolução, mas prevejo que favorável.”.

49. No dia 20 de Dezembro de 2018 o Autor dirigiu-se novamente à Clínica C..., tendo o médico estomatologista Dr. EE procedido, nessa data, à remoção de um quisto para dentário, com recurso a anestesia local ou regional.

50. Na mesma data, o médico estomatologista Dr. EE procedeu ainda à colocação de uma prótese acrílica correspondente a um dente, no lugar do dente 26, bem como à colocação de membrana de regeneração óssea (duo-teck), de membrana de regeneração óssea (evolution) e de osteobiol MP3.

51. Ainda no dia 20 de Dezembro de 2018 o médico estomatologista Dr. EE colocou um gancho de aço inoxidável no dente 27 do Autor.

52. Em data posterior, o Autor foi internado no Serviço de Cirurgia Maxilofacial do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, onde foi sujeito a uma nova intervenção.

53. No dia 9 de Abril de 2019, devido às dores que sentia, o Autor dirigiu-se à Clínica D..., situada em Inglaterra, onde foi submetido à realização de um exame imagiológico com vista a determinar a patologia que afecta o Autor e a existência de material e raízes retidos no seio maxilar esquerdo.

54. Na sequência da realização desse exame concluiu-se o seguinte:

Há um defeito na crista do molar UL6 que se estende até à base Antral, medindo a parte antero-posterior 7.7mm. Os tecidos moles alinham em defeito, algumas remodelações ósseas ocorreram anterior e posteriormente.

Existem duas partes retidas de material da raiz UL6 e estão presentes (6mm e 4mm) no vestibular da coroa na face distal do espaço. Os 6mm mais anteriores do fragmento alcançam a base antral, mas não perfuram o espaço.

As raízes estão rodeadas de osso em estreita aproximação à placa vestibular sem patologia óssea associada.

Um pequeno denso foco de resíduos de material dentário está localizado no osso no aspeto posterior do defeito antral – de significado duvidoso.

(…), há um leve espessamento da mucosa de acordo com características inflamatórias benignas. (…).

Os dentes da imagem apresentam ligeira perda óssea peridental e estão bem como mostra a radiologia. Contudo, o UL5 tem um defeito ósseo palatino mais moderado. Não há mais nada a registar.

Comentários: 2 partes retidas da suposta raiz bucal da UL6 na cavidade óssea bucal, nenhuma raiz deslocada no espaço sinusal imerso. Defeito de base antral – OAC sugerido.”.

55. Os dois fragmentos de raízes a que se alude em 54. não têm qualquer significado clínico.

56. No dia 4 de Maio de 2020 o Autor dirigiu-se à Clínica E..., nos Emirados Árabes Unidos, por sentir dores de garganta e congestionamento nasal.

57. No dia 25 de Maio de 2020 o Autor dirigiu-se à Clínica F..., em Abu Dhabi, onde foi submetido à realização de uma endoscopia.

58. No dia 3 de Junho de 2020 o Autor dirigiu-se novamente à Clínica E... para tomar a vacina Tetavax.

59. No dia 28 de Julho de 2020 o Autor dirigiu-se à mesma clínica para realização de uma consulta de neurologia, na qual foram abordadas questões relacionadas com paralisia bulbar e cisto neuro entérico.

60. No dia 8 de Janeiro de 2021 o Autor dirigiu-se à Clínica G..., L.da, onde foi realizada uma consulta de fisioterapia.

61. Nessa data foi definida a história clínica e o plano de tratamento referente a DTM, tendo sido realizada uma ortopantomografia.

62. O Autor despendeu a quantia de €130,00 com a execução dos actos indicados em 60. e 61..

63. Desde data não apurada o Autor tem vindo a sentir dores fortes que lhe afectam o sono, a mastigação dos alimentos e a lavagem dos dentes.

64. O Autor sente receio, angústia e frustração pela sujeição à realização de tratamentos dentários regulares.

65. Por causa das dores que sente o Autor tornou-se uma pessoa menos sociável.

66. O Autor sempre foi uma pessoa saudável, alegre, com muita energia, com vontade de viver e muito dedicada à sua actividade profissional.

67. O Autor ainda hoje se sente martirizado pela sujeição aos tratamentos que tem vindo a realizar para debelar as dores que sente.

68. O Autor necessita de tomar medicamentos que aliviem as dores que sente.

69. O Autor sente angústia e desgosto por ver diminuída a sua capacidade física.

70. À exodontia executada pela Ré Dr.ª BB não se encontrava associado nenhum risco em especial, não existindo contraindicações ou antecedentes para que a mesma não fosse bem-sucedida.

71. Mediante contrato de seguro do ramo Responsabilidade Civil – modalidade Responsabilidade Civil Profissional/Exploração, com início a 22 de Novembro de 2011, titulado pela apólice n.º ...94, a Ré A..., L.da transferiu para a Ré B... – Companhia de Seguros, SA a sua responsabilidade civil por atos resultantes da exploração da actividade a que se dedica.

72. O capital seguro contratado pelas Rés A..., L.da e B... – Companhia de Seguros, SA ascende ao montante de €150.000,00, tendo sido fixado o limite máximo de €75.000,00 por sinistro relativamente à Responsabilidade Civil Profissional, bem como a franquia de 10% do valor dos danos resultantes de lesões materiais, com o valor mínimo de €250,00.

73. Mediante contrato de seguro do ramo Responsabilidade Civil – modalidade Responsabilidade Civil Ordens Profissionais, com início a 21 de Outubro de 2015, titulado pela apólice n.º ...85, a Ré Dr.ª BB transferiu para a Ré B... – Companhia de Seguros, SA a sua responsabilidade civil por actos praticados no exercício da sua profissão de médica dentista.

74. O capital seguro contratado relativamente à Responsabilidade Civil Profissional ascende ao montante de €600.000,00, tendo sido fixado o limite máximo de €300.000,00 por sinistro, bem como a franquia de 10% do valor dos danos resultantes de lesões materiais, com o valor mínimo de €125,00.

*

Não se julgaram provados os seguintes factos:

1. A Ré Dr.ª BB exerce a sua actividade de médica dentista por conta da Ré A..., L.da.

2. Na data indicada em 4. dos factos considerados provados o Autor apresentava uma cárie do dente 26.

3. A restauração a que se alude em 4. dos factos considerados provados foi realizada com anestesia local.

4. Na data indicada em 5. dos factos considerados provados o Autor queixava-se de dores no dente 26, tendo-lhe sido diagnosticada uma pulpite irreversível.

5. A Ré Dr.ª BB só informou o Autor de que seria necessário extrair o dente 26 na consulta realizada no dia 10 de Setembro de 2018.

6. Na consulta a que se alude em 3. dos factos considerados provados foi o Autor que tomou a iniciativa de solicitar a extração do dente 26.

7. A Ré Dr.ª BB não informou o Autor do método que iria utilizar, nem dos cuidados a observar após a realização da cirurgia.

8. Na extracção do dente 26 do Autor a Ré Dr.ª BB procedeu de acordo com as ordens, direcção, fiscalização e prescrição da Ré A..., L.da, através do seu representante legal.

9. A Ré Dr.ª BB é médica dentista desde o ano de 2002.

10. Durante a cirurgia realizada no dia 10 de Setembro de 2018 a Ré Dr.ª BB não logrou proceder à extracção do dente 26 do Autor.

11. Durante o procedimento de extracção realizado no dia 10 de Setembro de 2018 o Autor deitava bastante sangue pela boca.

12. Em consequência da impossibilidade de extracção do dente 26, a Ré Dr.ª BB ordenou que o Autor abandonasse a sala onde estava a ser realizada a cirurgia.

13. A ortopantomografia a que se alude em 26. dos factos considerados provados foi realizada para descortinar o motivo pelo qual a Ré Dr.ª BB não lograva extrair o dente 26 do Autor.

14. Após a realização desse exame a cirurgia recomeçou.

15. O equipamento a que se alude em 27. dos factos considerados provados sobreaqueceu.

16. Em consequência da falha de luz do referido equipamento, a Ré Dr.ª BB foi obrigada a desaparafusar o vidro, originando o arrefecimento do equipamento.

17. Posteriormente, a Ré Dr.ª BB aparafusou o vidro e retomou a execução da cirurgia.

18. No decurso da cirurgia a Ré Dr.ª BB não logrou extrair as raízes do dente 26 do Autor.

19. A Ré Dr.ª BB informou o Autor de que realizou uma ligação oroantral, sem pré-informar o Autor.

20. Aquando da extracção do dente 26 do Autor, a Ré Dr.ª BB colocou massa branca no local da extracção do dente, a qual entrou para o seio nasal.

21. A referida massa branca foi absorvida pelo seio nasal.

22. A Ré Dr.ª BB deixou restos metálicos e raízes no local de onde foi extraído o dente 26 do Autor.

23. Ao extrair o dente 26 do Autor, a Ré Dr.ª BB utilizou uma técnica médica dentária inapropriada e incorrecta que não se mostrou adequada à obtenção do resultado visado.

24. Após a cirurgia realizada pela Ré Dr.ª BB, o Autor sentiu bastantes dores, uma sensação de desconforto e mal-estar persistente na zona da extracção do dente 26.

25. O pai do Autor contactou então as Rés A..., Lda e Dr.ª BB, informando que o seu filho se encontrava com bastantes dores.

26. As Rés disseram ao pai do Autor para este se dirigir às instalações da Ré A..., Lda, informando que necessitavam de fazer uma nova intervenção no local da remoção do dente 26 e que o “buraco” teria que ser intervencionado futuramente.

27. A nova intervenção realizada nas instalações da Ré A..., Lda foi executada por outro médico dentista, trabalhador da sociedade Ré.

28. Posteriormente, o Autor diligenciou, junto das Rés A..., Lda e Dr.ª BB, pela reparação das lesões que a actuação das mesmas provocou na pessoa do Autor.

29. As dores sentidas pelo Autor agravaram-se com a exodontia do dente 26 executada pela Ré Dr.ª BB.

30. As dores sentidas pelo Autor impedem-no de proceder à sua higiene diária.

31. O Autor padece de problemas dentários anómalos desde o dia em que lhe foi extraído o dente 26.

32. O Autor dirigiu-se à Clínica C... nas circunstâncias indicadas em 47. dos factos considerados provados com vista ao tratamento das patologias de que padecia.

33. Nas circunstâncias indicadas em 49. dos factos considerados provados o Autor foi obrigado a dirigir-se novamente à Clínica C... para tratar das sequelas causadas pelas Rés A..., L.da e Dr.ª BB.

34. No dia 21 de Dezembro de 2018 o Autor deslocou-se novamente à Clínica C..., tendo o médico dentista Dr. EE procedido, nessa data, à limpeza cuidadosa do canal, curetando-o, e à colocação de uma membrana de regeneração superior, osso de grão 0,5/1 mm e inferiormente outra membrana de regeneração, seguido de recobrimento da mucosa palatina e vestibular.

35. O internamento a que se alude em 52. dos factos considerados provados teve lugar no dia 20 de Fevereiro de 2019 e tinha a finalidade de fechar a abertura causada pela extração do dente 26 do Autor.

36. A intervenção a que se alude em 52. dos factos considerados provados foi realizada no dia 21 de Fevereiro de 2019.

37. No dia 22 de Fevereiro de 2019 foi concedida alta ao Autor.

38. No mês de Abril de 2019 o Autor dirigiu-se à clínica dentária H..., em Londres, por sentir bastantes dores, tendo-lhe sido explicado, por um médico dentista, que as raízes do dente 26 deveriam ter sido removidas.

39. A partir da exodontia do dente 26 executada pela Ré Dr.ª BB surgiram diversas inflamações.

40. A partir dessa altura surgiram dores muito fortes na zona onde foi efectuada a intervenção executada pela Ré Dr.ª BB.

41. Desde o dia em que foi efectuada a exodontia do dente 26 o Autor sofre uma enorme pressão contínua na zona afectada pela intervenção executada pela Ré Dr.ª BB.

42. As dores a que se alude em 56. dos factos considerados provados advinham da exodontia do dente 26 do Autor.

43. Os tratamentos dentários executados pela Ré Dr.ª BB causaram lesões ao Autor.

44. Em consequência da exodontia do dente 26 executada pela Ré Dr.ª BB, o Autor sofreu sequelas para cuja ocorrência não prestou qualquer consentimento e de cuja possibilidade não foi informado.

45. Em consequência da exodontia do dente 26 executada pela Ré Dr.ª BB, o Autor sofreu um enorme traumatismo psicológico.

46. O Autor passou vários dias sem se alimentar e noites sem dormir devido às dores que sente.

47. As dores sentidas pelo Autor resultam da exodontia do dente 26 executada pela Ré Dr.ª BB no dia 10 de setembro de 2018.

48. Em consequência dos tratamentos executados pela Ré Dr.ª BB o Autor sofreu alteração no seu olfacto e no hálito.

49. O Autor sofreu uma enorme ansiedade e temor das sequelas sofridas em consequência dos tratamentos dentários efectuados nas instalações da Ré A..., Lda.

50. O Autor sofreu um enorme desgosto, tristeza e ansiedade em consequência das lesões resultantes dos tratamentos efectuados nas instalações da Ré A..., Lda.

51. O Autor organizava, com frequência, jantares com a família e amigos e viu-se privado de continuar a fazê-lo devido às dores e mal-estar que sente diariamente.

52. O Autor encontra-se em profunda depressão, afectando gravemente o seu sistema nervoso.

53. Em consequência da extracção do dente 26, o Autor tem que ser submetido a novos tratamentos.

54. As Rés A..., Lda e Dr.ª BB conheciam os riscos inerentes à técnica médica utilizada na exodontia do dente 26 do Autor e não lhos comunicaram.

55. As Rés A..., Lda e Dr.ª BB actuaram com falta de cuidado, aptidão, zelo, senso e experiência.

56. O Autor sabe que a sua pretensão carece de fundamento.

57. O Autor alterou conscientemente a verdade dos factos.

58. As Rés A..., Lda e Dr.ª BB deturparam, conscientemente, a realidade dos factos.


/////

IV.

Apreciemos então o objecto do recurso.

1. Impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.

Na conclusão B das suas alegações, o Apelante declara impugnar os factos dados como não provados sob os pontos 19 e 22

Os citados pontos reportam-se aos seguintes factos:

19. A Ré Dr.ª BB informou o Autor de que realizou uma ligação oroantral, sem pré-informar o Autor.

22. A Ré Dr.ª BB deixou restos metálicos e raízes no local de onde foi extraído o dente 26 do Autor.

Pretende ainda o Apelante que se julguem provados os seguintes factos (resultantes dos relatórios do INML):

- Que, em consequência da extração do primeiro dente molar (dente nº 26), o Autor apresenta a ausência de peça dentária e diminuição do volume do rebordo gengival correspondente ao local edêntulo;

- Que as lesões que o Autor apresenta, derivadas da extração do primeiro dente molar (dente nº 26) são previsíveis de ocorrer;

- Que, em consequência da extração do primeiro dente molar (dente nº 26), o Autor ficou a padecer de uma incapacidade permanente parcial de 5%.

Sustentam as Apeladas, na resposta ao recurso, que o ponto 19 dos factos não provados que o Recorrente considera incorrectamente julgado não tem qualquer correspondência com o facto não provado posto em crise no presente recurso, o que, no seu entender, implica, nessa parte, a imediata rejeição do recurso.

Vejamos se têm razão.

É inequívoco, à luz do disposto no art.º 640.º do CPC, que a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto implica e exige o cumprimento, por parte do recorrente, de uma série de ónus (ali discriminados) e entre os quais se inclui o ónus de indicar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

Ainda que se admita que o cumprimento dos restantes ónus possa ser feito no corpo das alegações (sem necessidade, portanto, de os incluir nas respectivas conclusões) – conforme posição firmada pelo AUJ n.º 12/2023, proferido em 17/10/2023, no proc. 8344/17.6T8SNTB.E1-A.S1[1], a decisão alternativa pretendida também não tem que constar das conclusões, bastando que resulte de forma inequívoca das alegações –, temos como indiscutível que o ónus de identificação dos pontos de facto impugnados a que se reporta a alínea a) do n.º 1 do citado art.º 640.º tem que ser cumprido, obrigatoriamente e sob pena de rejeição do recurso, nas conclusões das alegações. Na verdade, se as conclusões das alegações se destinam a balizar o objecto do recurso, através da indicação dos fundamentos pelos quais se pede a alteração ou a anulação da decisão (cfr. art. 639, nº 1), é imperioso que a indicação precisa dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados e que se pretendem ver reapreciados pelo Tribunal da Relação seja incluída nas conclusões porque, se assim não for, essa questão não poderá considerar-se incluída no objecto do recurso.

Isso mesmo também se refere no AUJ acima indicado, onde se diz, a dado passo, que “...em termos de ónus a cumprir pelo recorrente quando pretende impugnar a decisão sobre a matéria de facto, sempre terá de ser alegada e levada para as conclusões, a indicação dos concretos pontos facto que considera incorretamente julgados, na definição do objeto do recurso”.

No mesmo sentido, diz-se no Acórdão do STJ 26/11/2024[2] que “a especificação dos concretos pontos de facto tem de se incluir necessariamente nas conclusões, sem embargo de ter sido feita antecedentemente nas alegações stricto sensu, pela simples razão de que são as conclusões que definem o objecto do recurso – nº 4 do art 635º - e este não ser alcançável em matéria de impugnação da matéria de facto sem a referida especificação”.

Em idêntico sentido, lê-se no sumário do Acórdão do STJ de 11/03/2025[3]: “O não cumprimento pelo apelante do ónus de impugnação da decisão da matéria da 1.ª instância, representado pela falta de individualização ou especificação, nas conclusões da alegação daquele recurso ordinário, dos factos que reputa de mal julgados, por um erro sobre provas, determina, irremissivelmente, a imediata rejeição, nesse segmento, do recurso, não havendo lugar ao convite do recorrente para que supra a omissão”.

É indiscutível, portanto, que a indicação dos concretos pontos de facto que se consideram incorrectamente julgados tem que ser incluída nas conclusões das alegações, apenas se considerando incluída no objecto do recurso a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto em relação aos pontos de facto que estejam identificados nas conclusões.

Resta saber em que termos isso foi feito no caso dos autos.

Olhando à conclusão B das alegações – onde o Apelante afirma impugnar os factos dados como não provados, sob os pontos 19 e 22 – impor-se-á considerar cumprido o ónus em questão em termos de se considerar que está (validamente) incluída no objecto do recurso a impugnação dos citados pontos de facto, tanto mais que nas conclusões S. e AA. se diz expressamente que deverão ser julgados provados os factos constantes dos pontos 19 e 22 dados como não provados.

Mas essa aparente clareza na identificação dos pontos de facto cuja reapreciação é incluída no objecto do recurso vem depois a ser posta em causa, na medida em que os meios probatórios indicados pelo Apelante e a sua argumentação não têm correspondência com o facto constante do referido ponto 19. Este ponto 19 reporta-se apenas a uma concreta informação que a Ré teria prestado ao Autor e à falta de informação prévia do mesmo facto e a argumentação do Apelante não se adequa a esse facto, sendo certo que os meios probatórios que invoca e as considerações que faz não dizem respeito à prestação dessa informação, constatando-se, por outro lado, que, no corpo das alegações (cfr. pág. 14), ao reproduzir o ponto 19 ao qual dirige a sua impugnação, o que o Apelante reproduz é o facto constante do ponto 20 (Aquando da extração do dente 26 do Autor, a Ré Dr.ª BB colocou massa branca no local da extração do dente, a qual entrou para o seio nasal). Poder-se-á, portanto, admitir, neste ponto, a existência de um lapso do Apelante quando indicou o ponto 19, sendo certo que pretenderia referir-se ao ponto 20.

É certo que, ainda assim, a argumentação do Apelante também parece ultrapassar o que consta do ponto 20,  uma vez que, na apreciação que vai fazendo, com base nos elementos probatórios que indica, alude a uma comunicação oroantral que teria resultado da exodontia do dente 26 realizada pela Ré, às consequências da colocação do material/cimento cirúrgico resultante da cirurgia (designadamente o atraso no processo de cicatrização), ao facto de a colocação desse material corresponder a má prática e erro médico e ao facto de ter sido isso a causar a dor do Autor sem afirmar, no entanto, em momento algum e de modo claro e expresso, a sua pretensão no sentido de se julgarem provados quaisquer factos relacionados com essa matéria, como seria obrigatório para que, conforme se disse, ela se considerasse incluída no recurso na parte referente à decisão da matéria de facto.

O mesmo se passa, aliás, com o ponto 22, em relação ao qual a argumentação do Apelante também ultrapassa o facto aí em questão, na medida em que aborda vários factos e alude a juízos conclusivos, relacionados com pretenso erro médico e falta de cuidado da Ré no que toca às raízes aí mencionadas e à falta de informação.

De todo o modo, pensamos que o facto de a argumentação do Apelante e os meios probatórios que indica não terem exacta correspondência com os concretos pontos de facto que são indicados como incorrectamente julgados será questão que interfere com o mérito da impugnação que poderá conduzir à sua improcedência, sem interferir, contudo, com a definição do objecto do recurso.

A definição do objecto do recurso é feita pela indicação dos concretos pontos de facto que são indicados nas conclusões das alegações, pelo que, não tendo sido indicado – de modo claro e expresso – qualquer outro facto que, na perspectiva do Apelante, devesse ser julgado provado, os factos em questão são apenas os que constam do ponto 19 (podendo admitir-se, conforme acima mencionado, que é o 20 e não o 19) e do ponto 22 da matéria de facto não provada, a que acrescem ainda os factos acima indicados que, segundo o Apelante, devem ser aditados por resultarem dos relatórios do INML.

Passamos, portanto, a analisar essa matéria.

(…).

Em face de tudo o exposto, mantém-se a decisão proferida sobre a matéria de facto.


**

2. Violação do dever de informação/obrigação de indemnização

Em termos jurídicos, o Apelante restringe o seu recurso à violação do dever de informação por parte das Rés, sendo esse, portanto, o único fundamento da responsabilidade civil que (agora) imputa à Ré e que aqui pretende ver reconhecido como fonte da obrigação de indemnização dos danos que, alegadamente, sofreu em consequência da extracção do dente n.º 26 que foi executada, pela Ré Dr.ª BB, em 10/09/2018.

 

Ou seja, apesar de, inicialmente, também ter fundado a sua pretensão na negligência e no erro médico – que imputava à 2.ª Ré – na execução da exodontia do dente referido e que, alegadamente, teria sido realizada com uso de técnicas e procedimentos incorrectos, com violação das legis artis, dando origem aos danos que alegava e cuja indemnização peticionava (erro e negligência que foram afastados pela decisão recorrida), o Apelante restringe agora o seu recurso à alegada violação de deveres de informação por parte das Rés.

Para o efeito, argumenta, no essencial:

- Que as Recorridas – em particular a Recorrida Dr.ª BB, enquanto médica – estavam obrigadas a informar o Recorrente, antes da extracção do dente e para fins da realização da extracção, dos riscos associados e, designadamente, o risco de a execução da extracção determinar as dores sentidas com as consequências que se produziram;

- Que, nos termos do n.º 2 do art.º 342.º do CC – e também porque a culpa da 2º Ré na falta de cumprimento das suas obrigações no plano contratual vem presumida por força do art. 799º, do CC – cabia às Rés o ónus de provar o cumprimento dos seus deveres contratuais e, especificamente, o direito de informação;

- Que a Recorrida apenas comunicou ao Autor que a extracção do dente 26 era uma cirurgia simples, sem que o tivesse informado da existência de nenhum risco associado à realização da cirurgia em causa, nem lhe entregou qualquer nota de consentimento para que o Autor a assinasse;

- Que não foi informado de nenhum risco, fosse de lesões possíveis, dos procedimentos a utilizar, do método, se seria alvo de complicações, que iria deixar raízes, colocado material não reabsorvível no interior do alvéolo;

- Que não foi informado da colocação no interior do alvéolo de esponjas hemostáticas da marca “Spongostan” ou de cimento cirúrgico;

- Que não foi informado sobre a necessidade de remoção do material utilizado no tratamento endodôntico na semana seguinte ao procedimento e que a ausência de remoção adequada poderia ter causado infecções ou complicações adicionais, exigindo intervenções correctivas ainda mais invasivas;

- Que o incumprimento do dever de informação nestas condições traduz-se numa desconformidade objectiva entre o comportamento devido pela R. e o efectivamente realizado, o qual foi relevante para o resultado que se veio a verificar;

- Que a violação deste dever legal de informar torna a intervenção (extracção do primeiro dente molar – dente nº 26) numa ofensa corporal não consentida para efeitos do art. 340º, do CC, e esta omissão gera responsabilidade para o obrigado, nos termos previstos nos art.485º, nº 2, e 486º, do CC, ainda que a título de mera culpa.

Pensamos, contudo, não lhe assistir razão.

É indiscutível que – conforme vem sendo dito pelo STJ[4] –  quer o direito nacional (cfr. artigos 70.º, 81.º e 340.º do CC; art.º 157.º do CP ou o n.º 11 do art.º 135.º do Estatuto da Ordem dos Médicos), quer o art.º 5.º da Convenção sobre os Direitos do Homem e a Biomedicina – Convenção de Oviedo, exigem, como regra e como condição da licitude de uma ingerência médica na integridade física dos pacientes – por exemplo, através de uma cirurgia – que estes consintam nessa ingerência e que tal consentimento seja, naturalmente, um consentimento livre e esclarecido o qual pressupõe o prévio fornecimento de informações que, podendo ser variáveis em função das concretas circunstâncias do caso, sejam adequadas a dar conhecimento do objectivo e natureza da intervenção, bem como das suas consequências e riscos que são próprios e inerentes.

E também é certo que a responsabilidade civil médica pode fundar-se autonomamente na violação do dever de informação, independentemente, portanto, de ter ocorrido erro médico e violação das legis artis, ou seja, ainda que se demonstre a inexistência de erro médico e violação das legis artis (e ainda que, por isso, não exista responsabilidade civil com esse fundamento), pode existir responsabilidade civil emergente da realização de acto médico com fundamento na violação do dever do informação do paciente relativamente aos riscos e aos danos eventualmente decorrentes da realização do acto médico[5].

Aceitamos também – como sustenta o Apelante – que o ónus de prova do cumprimento do dever de informação esteja a cargo do médico[6], não obstante subsista, a cargo do paciente/lesado, o ónus de alegação da omissão desse dever.

Mas, abstraindo dos casos em que tenha inexistido (em absoluto) qualquer consentimento do paciente (casos em que a ilicitude do acto e a consequente obrigação de indemnização dos danos dele decorrentes não resultará, em bom rigor, de omissão do dever de informação, assentando apenas na ingerência não autorizada na integridade física do paciente, se e na medida em que ela não encontre justificação e apoio legal), para que possa ser configurada uma responsabilidade civil médica assente especificamente na violação do dever de informação – nos casos, portanto, em que o acto médico foi consentido e autorizado mas em que esse consentimento se tem como inválido por não ter sido antecedido da informação necessária, não sendo, por isso, um consentimento esclarecido – será necessário que se demonstre a efectiva existência de alguma circunstância ou risco do acto que devesse ter sido objecto de informação e que, de algum modo, esse risco se tenha concretizado em resultado e como consequência do acto. E é necessário, naturalmente, que os danos invocados – cuja indemnização se reclama –, possam ser imputados ao acto médico em causa em termos de causalidade adequada por resultarem de risco do acto que se concretizou e do qual o paciente deveria ter sido informado sem que se prove que o tenha sido.

Ora, tal não acontece na situação dos autos, importando notar que, apesar de recair sobre o médico nos termos acima mencionados, o ónus de provar o cumprimento do dever de informação, recai sobre o paciente/lesado o ónus de provar a efectiva concretização de um risco ou efeito do acto médico que deveria ter sido objecto de informação e o nexo de causalidade entre esse acto e respectivo resultado com os danos cuja indemnização peticiona.

Resultou efectivamente provado (ponto 14, 17, 19, 20 e 34 da matéria de facto provada) que a Ré comunicou ao Autor que a extracção do dente 26 era uma cirurgia simples, sem que o tivesse informado da existência de qualquer risco associado à sua realização e sem lhe entregar qualquer nota de consentimento para que o Autor a assinasse, explicando-lhe, contudo, as consequências previsíveis da cirurgia (desconforto, dor ou edema) que seriam ultrapassadas com recurso a medicação analgésica e anti-inflamatória e aplicação de gelo na face, fazendo advertências ao nível dos cuidados que devia adoptar após a cirurgia e dando instruções para regressar à Clínica passados sete dias para remover a sutura e o cimento cirúrgico.

Resultando provada a prestação dessas concretas informações e advertências, a verdade é que não resultou provado que a cirurgia comportasse algum outro risco especifico que estivesse associado a tal cirurgia e que, à data, se admitisse como possível, resultando provado, aliás (cfr. ponto 70 da matéria de facto) que à exodontia em questão não se encontrava associado nenhum risco em especial, não existindo contraindicações ou antecedentes para que a mesma não fosse bem-sucedida.

Poder-se-ia agora indagar qual a amplitude do dever de informação em termos de saber se ele abrange a totalidade dos riscos (eventuais e possíveis, ainda que, porventura, sejam de verificação rara e excepcional) ou se abrange apenas os riscos mais significativos que, no caso e tendo em conta a concreta situação clínica do paciente, se possam ter como normais e possíveis, com exclusão, portanto, daqueles que sejam de verificação excepcional ou muito rara, mesmo que graves ou ligados especificamente àquele tratamento, conforme se considerou nos Acórdãos do STJ de 09/10/2014 e de 02/07/2024[7]. Sem que se pretenda, para já, tomar posição definida sobre a questão (porque, como veremos, tal não é necessário), não deixaremos de notar que a prestação de informação com amplitude bastante para incluir todos os riscos possíveis e eventuais (incluindo aqueles que são de verificação improvável, excepcional ou imprevisível), além de, na prática, ser muito difícil de cumprir, assustaria facilmente os pacientes que, com a mera possibilidade – cuja probabilidade não conseguirão sequer percepcionar com a devida clareza – de verificação de riscos graves (que, potencialmente, podem sempre resultar de qualquer acto médico), recusariam os tratamentos pondo, de facto, em risco grave a sua saúde e a sua vida.

Pensamos, no entanto, não ser necessário enveredar por esse tema, uma vez que a relevância da omissão de informação sobre determinado risco para efeitos de originar a obrigação de indemnizar a cargo do médico, pressupõe que esse risco se tenha concretizado como consequência do acto médico e na situação dos autos tal não se verifica, uma vez que não resultou provado que os danos cuja indemnização se peticiona possam ser imputados ao acto médico em causa (a exodontia do dente 26) e à concretização de um risco que lhe seja associado.

Os danos invocados pelo Autor/Apelante – cuja indemnização vem peticionar – correspondem a danos não patrimoniais que se traduzem nas dores intensas que tem vindo a sentir, nas limitações que elas lhe provocam na sua vida e nas consequências psicológicas e emocionais que resultam dessa situação e dos tratamentos a que tem sido obrigado a sujeitar-se.

Todavia, ainda que essas dores, limitações e consequências psicológicas tenham resultado provadas (cfr. pontos 63 a 69 da matéria de facto provada), não resultou provado que elas tenham resultado do acto médico aqui em causa, ou seja, da exodontia do dente 26 executada pela Ré Dr.ª BB, sendo certo que os factos que permitiriam estabelecer esse nexo causal não foram julgados provados (cfr. pontos 31, 39 a 50 e 53 da matéria de facto não provada) sem que o Apelante tivesse sequer impugnado essa decisão.

Nada se provou, portanto, que permita imputar os danos em causa ao acto médico em causa praticado pela Ré, importando notar que o dente em causa foi submetido a diversas intervenções antes e após a exodontia realizadas por outros médicos (cfr. pontos 8, 9, 11, 47 a 52 da matéria de facto provada), não existindo apoio factual para concluir se a concreta patologia e sintomatologia apresentada pelo Autor resultou do acto praticado pela Ré, se resultou de qualquer outro acto médico (anterior ou posterior) ou se resulta de alguma outra causa.

É certo que a situação do Autor (a patologia e sintomatologia dolorosa) poderá ser considerada (em teoria) como risco da cirurgia em causa, já que, teoricamente, a exodontia do referido dente pode provocar uma comunicação oroantral (de que tanto se falou na produção de prova), poderá provocar uma qualquer lesão dos nervos e poderá provocar uma série de outras complicações (normais ou excepcionais) decorrentes, designadamente, de qualquer infecção que venha a ocorrer por variadas razões e tudo isso pode, em teoria e em abstracto, desencadear a patologia e sintomatologia que o Autor/Apelante apresenta.

Mas, ainda que se considerasse – numa perspectiva mais ampla do dever de informação nos termos acima mencionados – que a Ré estava vinculada ao dever de informar e alertar o Autor para a eventualidade (ainda que imprevisível e improvável) de verificação desses riscos, a verdade é que essa falta de informação não teria qualquer nexo causal com os danos aqui em causa na medida em que não resultou provado que algum desses riscos potenciais da exodontia se tenha concretizado provocando os concretos danos cuja indemnização é reclamada pelo Autor/Apelante. Com efeito, não se provou qual é a origem e causa concreta da sintomatologia dolorosa apresentada pelo Autor e não se provou que ela resulte da exodontia do dente 26 e de qualquer risco ou complicação dela decorrente.

  

Assim e em função de tudo o exposto, a pretensão do Autor/Apelante não está em condições de proceder.

Improcede, portanto, o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.


******

SUMÁRIO (elaborado em obediência ao disposto no art. 663º, nº 7 do Código de Processo Civil, na sua actual redacção):

(…).


/////

V.
Pelo exposto, nega-se provimento ao presente recurso e, em consequência, confirma-se a sentença recorrida.
Custas a cargo do Apelante.
Notifique.

                              Coimbra,

                                             (Maria Catarina Gonçalves)

                                             (Anabela Marques Ferreira)

                                                   (Maria João Areias)


[1] Disponível em http://www.dgsi.pt.             
[2] Proferido no processo n.º 3692/21.3T8LRS.L1.S1A, disponível em http://www.dgsi.pt.
[3] Proferido no processo n.º 2404/20.3T8CBR.C1.S1, disponível em http://www.dgsi.pt.
[4] Cfr., designadamente, os Acórdãos de 02/11/2017 (processo n.º 23592/11.4T2SNT.L1.S1), 22/03/2018 (processo n.º 7053/12.7TBVNG.P1.S1), 26/11/2020 (processo n.º 21966/15.0T8PRT.P2.S1) e 02/12/2020 (processo n.º 359/10.1TVLSB.L1.S1), disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[5] Cfr. Acórdãos do STJ de 24/10/2019 (processo n.º 3192/14.8TBBRG.G1.S2), de 19/09/2024 (processo n.º 17587/16.9T8LSB.L1.S1) e de 14/12/202119-09-2024 (processo n.º 711/10.2TVPRT.P1.S1, disponíveis em http://www.dgsi.pt. e André Gonçalo Dias Pereira, “Responsabilidade Civil em Saúde e Violação do Consentimento Informado na Jurisprudência Portuguesa Recente”, Revista Julgar, n.º 42, pág. 150.
[6] Cfr. designadamente, os Acórdãos citados na nota anterior e o Ac. Do STJ de 14/03/2024 (processo n.º 20769/18.5TBPRT.P1.S1), disponível em http://www.dgis.pt.
[7] Proferidos nos processos n.ºs 3925/07.9TVPRT.P1.S1 e  2615/18.1T8VFR.P1.S1, respectivamente, disponíveis em http://www.dgsi.pt.