Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
185/24.0GBPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANTÓNIO MIGUEL VEIGA
Descritores: PRIMEIRO INTERROGATÓRIO JUDICIAL DE ARGUIDO DETIDO
DIREITO DE DEFESA
CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
FORTES INDÍCIOS DA PRÁTICA DE UM CRIME
DIREITO À IMAGEM E À RESERVA DA INTIMIDADE DA VIDA PRIVADA
VIDA PÚBLICA
VIDA ÍNTIMA
DIREITO À IMAGEM
CAPTAÇÃO DE IMAGENS DA VIA PÚBLICA
REPRODUÇÕES VIDEOGRÁFICAS OBTIDAS A PARTIR DAS IMAGENS RECOLHIDAS POR SISTEMA DE VIDEOVIGILÂNCIA
INTERESSE PUBLICO LEGÍTIMO
DIREITO DE NECESSIDADE PROBATÓRIA
PRISÃO PREVENTIVA
PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ACTIVIDADE CRIMINOSA
Data do Acordão: 10/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - JUÍZO DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE LEIRIA - JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 26.º, N.º 1, 28.º, N.º 1, E 32.º, N.º 8, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA
ARTIGO 79.º, N.º 2, E 80.º, N.º 2, DO CÓDIGO CIVIL
ARTIGOS 31.º, 192.º, 197.º E 199.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 61.º, N.º 1, ALÍNEAS B) E D), 125.º, 126.º, 141.º, N.º 1, 202.º, N.º 1, 204.º, N.º 1, ALÍNEA C), E 254.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGO 8.º DA CONVENÇÃO EUROPEIA DOS DIREITOS HUMANOS
ARTIGO 12.º DA DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS
ARTIGO 17.º DO PACTO INTERNACIONAL DOS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS
Sumário: I - O 1.º interrogatório judicial de arguido detido não visa a produção probatória ínsita a uma discussão dialéctica entre acusação e defesa, de que a audiência de discussão e julgamento constitui o fórum próprio por excelência.

II - Os direitos de defesa do arguido em sede de 1.º interrogatório traduzem-se no conhecimento dos motivos da detenção e do acervo probatório que a fundamentaram a fim de poder, se assim o desejar, prestar declarações acerca de tais factos, mais podendo opinar, através do respectivo defensor, quanto à medida coactiva adequada à sua situação processual.

III - Os indícios da prática de um (ou mais) dos crimes mencionados no artigo 202.º do C.P.P., prius para a possível aplicação da prisão preventiva, são fortes se fizerem nascer no espírito do juiz, nas fases anteriores ao julgamento, uma razoável convicção da prática (dolosa), pelo arguido, do(s) crime(s) em termos tais que, num juízo de prognose ex ante coerente com a normalidade das coisas, possa antever-se a respectiva acusação e condenação como uma solução bastante crível.

IV - Só essa exigência metódica faz cumprir, para as medidas de coacção mais graves, as exigências de adequação e proporcionalidade contidas no n.º 1 do artigo 193.º C.P.P.

V - No âmbito da violência doméstica uma eventual aproximação da vítima ao arguido não significa uma espécie de “salvo-conduto”, de causa de exclusão da ilicitude, para a continuação da factualidade agressiva.

VI - Uma boa abordagem para a discussão do direito à reserva da vida privada é a que confronta “vida privada” e “vida pública”, que deve ter atenção a duas ideias fundamentais: a dicotomia vida privada-vida pública só tem sentido se equacionada num contexto socialmente partilhado; o entorno social, com a panóplia de referentes e regras de organização intersubjectiva que comporta, é algo de absolutamente essencial para colorir o conceito de “vida privada” e a destrinça deste perante o de “vida pública.

VII - A tutela penal e civil abarcam mais do que apenas a “vida íntima”, tomando também sob a sua protecção diversos aspectos que assumem inequívoco cariz intersubjectivo e relacional, como é o caso dos tipos legais contidos nos artigos 192.º a 194.º Código Penal e nas previsões dos artigos 70.º e seguintes do Código Civil, não devendo tomar-se como critério único da distinção entre vida privada e vida pública o da “espacialidade” ou do lugar onde essa experiência vivencial se desenrola.

VIII - A noção de que a reserva da vida privada tem essencialmente que ver com aspectos de resguardo da pessoa quanto às possíveis obtenção e divulgação de informações acerca dessa dimensão privada da sua existência, sendo o aspecto que mais ressalta a protecção da intimidade da vida privada, ou seja, o domínio de vivência que corresponde a algo ainda mais restrito dentro do campo da vida privada.

IX - O direito à imagem é expressão da autonomia pessoal, consubstanciado, além do mais, no direito à autodeterminação da imagem exterior, ou seja, no direito ao controlo da utilização dos registos da captação e divulgação de todos os elementos ou sinais essenciais à identificação visual da pessoa, nesse sentido abrangendo mais do que o respectivo retrato, direito este, além do mais, sujeito a restrições.

X - O “interesse público legítimo” pode postergar a protecção da reserva da intimidade da vida privada ou do direito à imagem, designadamente no que toca aos meios pelos quais essa postergação possa ocorrer, maxime através das imagens fotográficas ou fílmicas do visado.

XI - Não ocorre violação da reserva da intimidade da sua vida privada na captação da imagem do arguido, na via pública, a agredir fisicamente a ex-companheira.

XII - A perspectiva do perigo de continuação da actividade criminosa legitimador da aplicação de uma medida de coacção, ainda para mais da magnitude deletéria da prisão preventiva, é focada e circunscrita aos fenómenos criminosos que já denotou o agente, pelo menos indiciariamente, haver cometido.

Decisão Texto Integral: *

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Acordam, em conferência, os Juízes da Relação de Coimbra:


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I. RELATÓRIO


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Nos autos de inquérito n.º 185/24.0GBPMS, a correr termos no Juiz 1 do Juízo de Instrução Criminal de Leiria, do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, foi o arguido detido e presente a primeiro interrogatório judicial, … findo o qual foi … proferido despacho, …, a considerar que a matéria fáctica fortemente indiciada consubstancia a prática, pelo arguido, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152º/n.os 1-b) e 2-a) do Código Penal (C.P.), mais entendendo, por estarem preenchidos os pressupostos contidos nos arts. 193º, 202º/n.º 1-b) – este, conjugado com o art. 1º-j) – e 204º/n.º 1-c) C.P.P., ser de aplicar ao arguido, para além do termo de identidade e residência então já prestado, a medida de coacção de prisão preventiva.


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            Inconformado, o identificado arguido interpôs recurso, pugnando pela substituição da medida coactiva de prisão preventiva por outra menos gravosa, …

            O recorrente concluiu a sua motivação do modo ora exposto (conforme a transcrição que segue):

«

B. Da análise dos demais elementos de prova, carreados nos autos, resulta, pelo menos, uma séria dúvida de que o arguido tenha perseguido a ofendida, e agido propulsionado por sentimentos de perda e rejeição após a relação ter terminado, tal como entendeu concluir o Tribunal a quo.

C. No juízo de ponderação que determinou a aplicação da medida de coacção mais gravosa – prisão preventiva – foi ignorada a prova junta dos autos, designadamente as declarações da ofendida, seja junto dos órgãos de polícia criminal seja as feitas através de mensagens enviadas a outras testemunhas deste processo, e que determinam, sem dúvida, a necessidade de uma ponderação diferente quanto à personalidade, intencionalidade e prática dos crimes de que o arguido é acusado.

D. O arguido, que necessariamente terá de enfrentar o seu julgamento, está preso sem possibilidade de ter apresentado a sua defesa, tendo a sua prisão sido decretada ao arrepio das regras que a permitem.

E. Nem poderia ser irrelevante na ponderação da medida de coacção a aplicar o facto de o arguido ser uma pessoa socialmente inserida, ter um filho menor a seu encargo, e deter um negócio (agência funerária) que depende exclusivamente de si para poder laborar, dependendo igualmente o sustento da sua família do resultado do seu negócio.

G. Não existe perigo de fuga, nem sequer o mesmo foi ponderado na aplicação da medida de coacção.

H. O arguido está preso há várias semanas (cerca de um mês) e interiorizou fortemente a necessidade de manter o afastamento da ofendida, ainda que esta o queira voltar a procurar.

I. Ainda que se entenda presumir a existência de perigo de continuação de actividade criminosa, o mesmo pode ser controlado com medidas de afastamento, sistemas de teleassistência (botão de pânico) e controlo do arguido, seja através de proibição de contactos e apresentações periódicas.

J. Não se verifica qualquer perigo de perturbação da ordem pública, pelo contrário, o que se verifica na comunidade na qual o arguido se insere é a estranheza por se manter preso sem julgamento.

K. Para mais quando é sobejamente conhecido que a ofendida (e confessado pela própria) sempre revelou comportamento atípicos na relação com o arguido.

L. Perante as circunstâncias apresentadas, não se encontram preenchidos os pressupostos prescritos pelo art. 204º C.P.P., necessários para a aplicação da medida de coacção mais gravosa do elenco do (…)» C.P.P..

«M. Sendo que na convicção que seria necessário sujeitar o arguido à medida de coacção mais gravosa, suportou-se o Tribunal aquoem prova ilegal, obtida através de câmaras de videovigilância privadas, com captação de imagens ilícitas da via pública».


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            O Ministério Público junto da primeira instância respondeu ao recurso.


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            Nesta Relação, o Ministério Público aderiu ao teor da resposta apresentada ao recurso do arguido em sede de primeira instância, …


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            Foi dado cumprimento ao disposto no art. 417º/n.º 2 C.P.P..


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            Colhidos os necessários vistos, foram os autos à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º/n.º 3-b) C.P.P..


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            II. FUNDAMENTAÇÃO


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            …

A este propósito, parece-nos que, no caso presente, o recorrente faz assentar os motivos da sua discordância relativamente à decisão recorrida em três núcleos argumentativos principais: por um lado, na circunstância de, na sua óptica, se encontrar preso sem possibilidade de ter apresentado a inerente defesa, ocorrendo a respectiva prisão preventiva ao arrepio das regras que a permitem; por outro lado, no argumento de o Tribunal a quo não haver estruturado o seu juízo em uma adequada percepção e ponderação da matéria fáctica que deveria ser tida por (fortemente) indiciada para sustentar a aplicação de uma medida coactiva da gravidade da prisão preventiva (chegando mesmo esta a escorar-se em prova proibida, maxime a que decorre das câmaras de videovigilância privadas, com captação de imagens ilícitas da via pública); finalmente, no facto de dispor aquele Tribunal de outras medidas de coacção potencialmente aplicáveis que seriam bastantes para acautelar os bens jurídicos supostamente colocados em perigo pela conduta do recorrente e que não causariam a este o prejuízo irreparável que neste momento o afecta por via da sua prisão preventiva.

Cumpre ainda dizer que, ao abrigo do art. 417º/n.º 2 C.P.P., pretendeu também o recorrente trazer à liça a circunstância de a ofendida no processo haver entretanto prestado declarações para memória futura que, na óptica daquele, confirmam a sua tese, ou seja, a da inexistência de actos de perseguição e acossamento do recorrente sobre a dita ex-companheira, sucedendo, antes, o contrário.

Pelo que, resumindo e concluindo, centra-se o objecto do recurso nas três primaciais questões suscitadas nas aludidas conclusões, as quais, por uma questão de coerência e precedência lógicas, entendemos serem de enunciar do seguinte modo.

Primeira questão: decretamento da medida coactiva de prisão preventiva sem que o arguido tivesse possibilidade de apresentar a sua defesa (conclusão D do recurso).

Segunda questão: deficiente ponderação de todos os elementos probatórios disponíveis, e recurso a prova proibida inerente às câmaras de videovigilância privadas, com captação ilícita de imagens da via pública, no modo por que entendeu o Tribunal a quo existir uma forte indiciação da prática, pelo recorrente, de um crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152º/n.os 1-b) e 2-a) C.P. (conclusões A, B, C, K e M do recurso).

Terceira questão: excessividade da medida de coacção de prisão preventiva aplicada, com o desrespeito pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, e não verificação in casu dos pressupostos prescritos no art. 204º C.P.P. (conclusões E, F, G, H, I, J e L do recurso).


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O teor da decisão recorrida – e o contexto do auto de interrogatório de arguido, de 20 de Junho de 2025, em que a mesma decisão surge exarada – é (são) o(s) seguinte(s) (conforme a transcrição ora exposta):

«(…) os factos concretos que lhe são» (ao arguido) «concretamente imputados, incluindo as circunstâncias de tempo e lugar e modo e os elementos do processo que servem de suporte probatório indiciário em relação aos factos imputados, os quais se encontram descritos na sua versão integral na douta promoção-requerimento do Ministério Público de sujeição do arguido a primeiro interrogatório judicial datada de 19 de Junho de 2025, com referência 111240652, junta aos autos que infra se reproduz:

1. O arguido, …, e a vítima, …, mantiveram uma relação de namoro durante cerca de três anos, no entanto cada um vivia na sua casa.

2. Durante o período de namoro eram frequentes as discussões entre o casal, culminando em agressões físicas.

3. A primeira agressão física ocorreu no início da relação, em data não concretamente apurada, o arguido, durante uma discussão, na rua, perto da sua residência, …, agarrou a vítima pelos braços, abanou-a e deu-lhe empurrões.

4. Pelo menos desde o dia 30 de Agosto de 2022, o arguido controla(va) a vítima, telefonando várias vezes ao longo do dia e durante a madrugada, questionando-a com quem estava, onde e a fazer o quê, insinuando muitas vezes que estava a mentir.

5. Nessas ocasiões, o arguido chamava-a de “mentirosa”, bem como a acusava de o “andar a trair”.

6. O arguido, no início da relação, acedeu ao telemóvel da vítima e à sua rede social “Facebook”, onde se fez passar por aquela, marcando encontros com outras pessoas.

7. O arguido, com uma periodicidade quase diária, dizia à vítima que “andava com vários homens”, “que era uma puta camuflada e uma oferecida”.

8. Em novembro de 2023, no decurso de uma discussão, o arguido, em sua casa, com as duas mãos apertou o pescoço da vítima, tendo a mesma perdido os sentidos por alguns segundos.

9. Nesse dia, mais tarde, o arguido desferiu-lhe um estalo na cara.

10. Por força das supracitadas agressões, a vítima não recebeu qualquer tratamento médico.

11. Porém, a vítima sofreu dores e ficou com marcas-hematomas no corpo, braços e face; a vítima para esconder colocava creme-base de forma.

12. Em data não concretamente apurada, quando a vítima se encontrava no parque de estacionamento das bombas da “A...”, …, o arguido apareceu e dirigiu-se à vítima com as seguintes palavras “vaca” e “puta”.

13. No dia 22 de Maio de 2024, cerca das 2 horas, na casa do arguido, durante uma discussão, o arguido lhe dirigiu as seguintes expressões “puta de merda”, mais dizendo que “só podes vir da casa do preto”, insinuando que a mesma tinha estado com outro homem.

14. Neste circunstancialismo, quando a vítima tentou sair da residência, o arguido agarrou na mala da vítima e de seguida apertou-lhe o pescoço, e ato imediato desferiu um estalo no lado esquerdo da face da vítima.

15. De seguida, o arguido tapou-lhe a boca com as mãos, enquanto tentava imobilizar a vítima.

16. No entanto, a vítima conseguiu soltar-se e sair da habitação pela porta da cozinha para o exterior, onde chamou o órgão de polícia criminal e aguardou a sua chegada.

17. A vítima não recebeu tratamento médico.

18. Mercê do comportamento do arguido, a vítima sofreu dores e as seguintes lesões, no membro superior direito: duas equimoses arroxeadas no antebraço, a maior no terço proximal da face medial; equimose arroxeada no dorso da mão na região em correspondência com o quinto metacárpico e no quinto dedo; no membro superior esquerdo; equimose arroxeada, no terço médio da face medial do antebraço.

19. As lesões suprarreferidas determinarão, em condições normais, um período de doença fixável em sete dias, com afectação da capacidade de trabalho geral (quatro dias) e com afectação da capacidade de trabalho profissional (quatro dias).

20. Mais tarde, cerca das 5 horas e 4 minutos, após uma altercação, o arguido, na presença dos militares da Guarda Nacional Republicana – …, dirigiu as seguintes palavras à vítima: “essa senhora entrou em minha casa e roubou-me dinheiro”, “essa senhora roubou-me a chave do portão de casa”.

21. O arguido tem vindo a difamar publicamente diversos amigos da vítima que lhe prestam auxílio, fazendo com que os mesmos se afastem de si, isolando-a.

22. O arguido tem intimidado a vítima, dizendo-lhe que vai expor e-ou divulgar vídeos íntimos seus.

23. O arguido liga inúmeras vezes à vítima, acusando-a de o trair, bem como tem tentado aceder às redes sociais da vítima.

24. No dia 8 de Outubro de 2024, a vítima encontrou-se com o arguido no “Café …”, onde pediu ao mesmo para aceder ao seu telemóvel, o que aquele negou; após nova insistência, o mesmo disse que acederia se esta se deslocasse à sua agência funerária, para conversarem.

25. Durante o percurso, o arguido deu o telemóvel a vítima, tendo a mesma visualizado que o arguido possuía várias fotografias suas nua e que havia criado vários perfis falsos nas redes sociais, fazendo-se passar por si.

26. De imediato deslocou-se ao seu veículo automóvel e deslocou-se ao posto da Guarda Nacional Republicana, no entanto o arguido foi no seu encalce, conduzindo o veículo …, interceptando-a e bloqueando-a, junto à Estrada Nacional n.º ..., …, inviabilizando assim a fuga da vítima.

27. No dia 31 de Janeiro de 2025, a vítima, acompanhada da sua filha (…) e uma amiga (…), dirigiram-se à danceteria “…, para aí jantar; quando se encontrava a efectuar o pagamento, cerca das 00 horas e 10 minutos, o arguido aproximou-se da vítima para conversar, tendo sido impedido por ….

28. De seguida, a vítima, acompanhada de … e … saíram da danceteria, instantes depois foram abordadas pelo arguido que ali se encontrava, tendo o mesmo iniciado uma discussão ….

29. Nesse instante, a vítima e a filha tentaram abandonar o local, porém o arguido, ao dar-se conta, foi ao seu encontro e colocou-se à frente da porta do veículo da vítima impedindo-a de entrar no mesmo, de seguida entrou dentro do veículo enquanto insinuava na presença da vítima e da sua filha que esta o havia traído, enquanto em tom agressivo dizia “Diz agora em frente à tua filha se não me traíste”, ao que a mesma disse que não.

30. Nesse exacto momento, o arguido agarrou a vítima pelo pescoço e de seguida tentou beijá-la, tendo a mesma o afastado e após abandonado o local na sua viatura.

31. Depois deste episódio, o casal esteve separado por uns tempos, porém, a pedido do arguido, a vítima reatou novamente a relação.

32. No dia 26 de Abril de 2025, a vítima encontra o arguido com outra mulher e decide terminar definitivamente a relação com o mesmo.

33. O arguido nunca aceitou o fim da relação e começou a ligar de forma insistente para a vítima de número privado.

34. Em data não concretamente apurada, durante o mês de Maio de 2025, o arguido devolveu todos os presentes a vítima, dizendo que “não precisava daquilo para nada”, tendo forçado a entrada na casa da vítima.

35. Já no interior da residência da vítima, o arguido disse àquela “és uma traidora, andas-me a trair com vários homens, continuas no meu registo”.

36. Enquanto proferia estas expressões, o arguido agarrou-lhe o pescoço e apertou-o durante alguns segundos, sufocando-a, acabando por se conseguir soltar.

37. No dia 23 de Maio de 2025, o arguido enviou emails a vítima, nos quais o arguido lhe enviou fotos do casal, deu-lhe os parabéns e disse que queria fazer um acordo com a mesma, pois ainda lhe devia cerca € 17.000 (dezassete mil euros).

38. Que a mesma lhe disse que não aceitava o acordo.

39. O arguido, ao ver-se ignorado, no dia 3 de Junho de 2025, cerca 2 horas, deslocou-se a casa de …, amigo da vítima, onde, com o telemóvel na mão, começou a tirar fotos e-ou a filmar, enquanto apodava a vítima de “oferecida”, mais insinuando que aquela tinha uma relação e que o estava a trair.

40. Neste instante o arguido dirigiu-se à testemunha e tentou agredi-lo, tendo este fugido para o terraço da habitação.

41. Nesse instante o arguido dirigiu-se à vítima e acto contínuo começou a empurrá-la com força, ao mesmo tempo que lhe puxava a mala e lha tentava tirar, o que conseguiu, fazendo com que a depoente caísse desamparada de lado no chão.

42. A vítima, ao ver o arguido ausentar-se do local, levantou-se e foi atrás do mesmo na tentativa de recuperar a sua mala, mas o denunciado voltou a empurrá-la, projectando-a com força contra o chão, ao mesmo tempo que lhe dizia “isto não vai ficar assim”.

43. De seguida, o arguido ausentou-se do local ao volante de um veículo não identificado, indo para parte incerta.

44. O arguido retirou do interior da mala da vítima o telemóvel da mesma, sem o seu consentimento.

45. No dia 12 de Junho de 2025, o arguido deixou o telemóvel dentro de um saco à porta da vítima, porém o mesmo encontrava-se formatado sem qualquer contacto, emails, agendas, fotografias, vídeos, mensagens, etc.

46. A vítima é cantora, a maior parte do conteúdo que tinha no seu telemóvel é resultado da sua actividade profissional, sendo um instrumento de trabalho.

47. O facto de ter perdido o conteúdo do mesmo causa-lhe imenso transtorno e prejuízo tanto a nível pessoal, profissional e até mesmo financeiro.

48. Por força desta situação a vítima já perdeu, pelo menos, três contratos para actuações.

49. A vítima terminou de forma definitiva a relação que mantinha com o arguido.

50. A vítima não depende economicamente do denunciado.

51. Mercê dos comportamentos do arguido, a vítima procurou ajuda, encontrando-se a ser acompanhada por médico psiquiatra.

52. A vítima sente-se triste, humilhada e com medo do que o arguido possa vir a fazer, uma vez que o mesmo tem apresentado comportamentos instáveis e agressivos, mesmo na presença de terceiros.


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Como elementos probatórios constantes dos autos que nos permitem considerar fortemente indiciada a prática dos factos descritos indicamos todos os constantes dos autos, designadamente:

A. Testemunhal:


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B. Documental:

i. CD-imagens de videovigilância de fls.309;

k. Auto de visionamento de vídeo e extracção de fotogramas de fls. 370 e ss.;

m. Fotogramas de fls. 397 e ss.;


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                Seguidamente, instado pelo Mm.º Juiz de Instrução Criminal, pelo arguido … foi dito desejar prestar declarações quanto aos factos, o que fez em conformidade.

Consigna-se que, durante as declarações do arguido, o mesmo foi confrontado com CD-imagens de videovigilância, prints de mensagens de fls. 452 a 469 e fotogramas de fls. 471 e 472 dos presentes autos.



                Retomada a diligência (…), o Mm.º Juiz de Instrução Criminal proferiu o seguinte:

DESPACHO

a) Os elementos de prova a ponderar são aqueles que estão enunciados na promoção, sobretudo os depoimentos testemunhais, o vídeo (CD, e visualizado pelo arguido), as mensagens cuja cópia a fls. 452 a 469, e as fotografias de fls. 470 a 472 (que o arguido negou ter sido o agressor).

3 – Face à factualidade indiciada, o arguido realiza como autor um crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152º/n.os 1-b) e 2-a) C.P.. Na verdade, é a integridade pessoal da vítima que aqui está em causa, a qual é posta em perigo com as condutas de insulto, agressão, e perseguição acima referidas (art. 25º da Constituição).

5 – No caso, face ao descontrolo do arguido em razão da relacionalidade havida e perda, exercendo a violência junto da ofendida e de terceiros, há perigo elevado de perturbação da tranquilidade pública [art. 204º/n.º 1-c) C.P.P.], pois não tem pejo de fazer em público actuações danosas (humilhantes) para com a ofendida. Por outro lado, a forma incidental de relacionalidade indiciada nos últimos meses, embora sentimental e de comunhão de afectos (namoro), implica, no agir concreto para com a ofendida, outrossim perante o descontrolo propulsionado pela perda ou não aceitação da perda, no sentido da prognose comportamental dirigida à repetição, perigo de continuação da actividade criminosa, cfr. art. 204º/n.º 1-c) C.P.P.. Este perigo é intenso e elevado, perante o suceder repetido de condutas.

Ora, as apresentações, ou a proibição de contactos não são de forma alguma suficientes para diminuir o risco de repetição, pois se com uma condenação voltou a delinquir, sendo violento, em maior grau repetirá, atenta a personalidade expressa e os factos fortemente indiciados, com medidas provisórias, e com um espaço de liberdade amplo pelo menos nas 23 horas restantes.

Por outro lado, a multiplicidade de feitos contribui para este juízo de prognose.

O facto de trabalhar só é de todo irrelevante. Pois o que está em causa é a sua propensão para a violência contra mulheres, no caso, contra a ofendida, impondo-se a diminuição do risco de repetição de forma acentuada.

Assim, a prisão preventiva é necessária, adequada, e nada excessiva, pois, quanto a este último parâmetro, não importará o que o julgamento, caso haja, decidirá. O que importa agora e tão só é o que sucederá nas próximas semanas, ou um par de meses, atento o risco elevado como assinalado. E a conclusão é simples: nas próximas semanas, ou um par de meses, em liberdade, a repetição das condutas será altamente provável.


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            Apreciemos, então, as questões que constituem o objecto do presente recurso.


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Primeira questão:

Do decretamento da medida coactiva de prisão preventiva sem que o arguido tivesse possibilidade de apresentar a sua defesa.



Emerge da conclusão D do recurso a asserção acabada de referir, ou seja, que «o arguido, que necessariamente terá de enfrentar o seu julgamento, está preso sem possibilidade de ter apresentado a sua defesa, tendo a sua prisão sido decretada ao arrepio das regras que a permitem».

Asserção que, podendo ser integrada na impugnação mais ampla quanto àquilo que na óptica do recorrente é a inexistência de factos bastantes para legitimarem a ideia de haver ele perpetrado um crime de violência doméstica – e a esse ponto irá este Tribunal de recurso responder daqui a pouco –, consubstancia, per se, uma invocação dotada de relevo idóneo a uma consideração individualizada por parte da presente instância.

            Porquê?

            Porque, desde logo, nos termos do art. 28º/n.º 1 da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.), «a detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa».

            Convém, pois, ter em mente, na hipótese sobre que versa o recurso, haver sido o recorrente detido e conduzido, em 20 de Junho de 2025, a primeiro interrogatório judicial de arguido detido, nos termos e para os efeitos do art. 141º C.P., ou seja, para, de acordo com o n.º 1 desta norma legal, ser «(…) interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de 48 horas após a detenção, (…) com a indicação circunstanciada dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam» [cfr., ainda, o art. 254º/n.º 1-a) do mesmo diploma].

            Ora, «o primeiro interrogatório judicial de arguido detido visa revelar ao detido os motivos da sua detenção, ouvir as razões do detido e colocar o juiz em posição de decidir se os motivos que determinaram a detenção ainda subsistem em face das razões do detido e se justificam uma medida de coacção, além do termo de identidade e residência. Não se trata apenas de saber se há indícios dos factos imputados ao arguido pelo Ministério Público, mas também se existem motivos que justificam a privação da liberdade do arguido» (Profs. Inês Godinho e Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, Volume I, 5ª edição actualizada, Lisboa, 2023, pág. 580).

            E, repete-se, foi precisamente de um interrogatório judicial que se tratou no caso vertente – e não, perdoe-se-nos a expressão, de uma “audiência de discussão e julgamento avant la lettre”… –, tal significando, pois, em obediência ao mandamento constitucional há pouco referido (art. 28º/n.º 1 C.R.P.), na lógica do funcionamento das garantias do processo criminal adequadas ao acto em causa (vide, igualmente, art. 32º/n.os 1, 5 e 7 C.R.P.), que, com a observância dessas garantias de defesa, a possibilidade de intervenção do recorrente se traduziu, nos termos da lei, na tomada de conhecimento dos motivos da detenção e do acervo probatório que a fundamentaram, a fim de poder então o mesmo recorrente, assim o desejando [pois que, como contraponto, a sua remessa ao silêncio seria outra opção perfeitamente válida e tutelada por lei – arts. 141º/n.º 4-a) e 61º/n.º 1-d) C.P.P.], prestar declarações acerca dos factos que concretamente lhe foram imputados e motivaram a sua detenção [cfr., ainda, art. 61º/n.º 1-b) C.P.P.], mais podendo opinar (através do respectivo ilustre defensor) quanto à medida coactiva adequada à sua situação processual (art. 194º/n.os 1 e 4 C.P.P.).

            Foi o que aconteceu in casu, como deflui do auto de interrogatório do recorrente (cuja autenticidade em momento algum foi colocada em crise), sendo cumprido todo o ritualismo contido na previsão do art. 141º C.P.P., nesse mesmo contexto processual decidindo o interrogado, ao abrigo da faculdade prevista no n.º 5 deste preceito, prestar declarações acerca do conjunto factual (acima por nós já transcrito) que então lhe foi imputado e dos elementos do processo indiciadores desses factos.

No conspecto acabado de expor, tem, pois, este Tribunal de recurso bastante dificuldade em compreender a asserção do recorrente no sentido de que «(…) está preso sem possibilidade de ter apresentado a sua defesa, tendo a sua prisão sido decretada ao arrepio das regras que a permitem» (conclusão D do recurso).

Não; o recorrente teve a possibilidade de exercer o contraditório permitido e previsto pela lei processual penal para um acto da especificidade do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, prestando declarações nos moldes que entendeu mais côngruos à sua defesa. O acto processual em questão, repitamo-lo, não é o da produção probatória ínsita a uma discussão dialética entre acusação e defesa, de que a audiência de discussão e julgamento constitui, como sabemos, o fórum próprio por excelência. Aliás, «o juiz não pode proceder a diligências de prova durante o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, com vista a decidir sobre a validade da detenção ou a necessidade da medida de coacção. O juiz deve decidir de acordo com os elementos dos autos, não podendo substituir-se ao Ministério Público na instrução do processo. A tanto obriga a estrutura acusatória do processo (art. 32º/n.º 5 C.R.P.), na qual assenta a direcção do inquérito pelo Ministério Público (…)» (Profs. Inês Godinho e Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos” e Volume I citados, pág. 587).

Em suma, na senda do que atrás expusemos, em sede de interrogatório judicial de arguido detido não se faz como que um “pré-julgamento” no qual, para além do acervo já recolhido e apresentado pelo Ministério Público à análise do juiz, poderia a entidade investigadora “aproveitar” para produzir meios probatórios suplementares ou, como contrapartida, seria ao arguido lícito, sem mais, arregimentar e apresentar os seus meios de prova. Não (e abstraiamos agora, como é evidente, da ocorrência futura do julgamento), tudo isso será (ou foi) levado a cabo no decurso da fase investigatória (e, se for o caso, da fase instrutória), na(s) qual(ais) o arguido poderá (ou pôde) intervir, «(…) oferecendo provas e requerendo as diligências que se lhe afigurarem necessárias» [art. 61º/n.º 1-g) C.P.P.].

            Pelo que importa (re)afirmar, sem tibiezas ou subterfúgios, que, no caso agora em análise, o recorrente foi detido e, em menos de 48 horas, apresentado a primeiro interrogatório judicial, nos termos do art. 141º C.P.P., a fim de lhe ser concedida a possibilidade de ser confrontado, de modo circunstanciado, com os motivos da detenção e das provas que a fundamentaram, tendo ele exercido o seu direito ao contraditório (cfr. presentes autos de recurso, assentes na certidão extraída do inquérito n.º 185/24.0GBPMS), tal como legalmente consignado para o específico acto a que foi sujeito [sempre se acrescentando, algo a latere, que o “remédio” jurídico a utilizar, caso ocorresse o decretamento da prisão preventiva do recorrente sem a possibilidade da sua audição prévia perante o juiz de instrução criminal, seria o da arguição de nulidade que nos parece enquadrar-se na alínea d) do n.º 2 do art. 120º C.P.P., por se tratar de acto processual legalmente obrigatório, arguição essa a ser efectivada nos termos do n.º 3-c) do mesmo art. 120º caso não tivesse havido de todo interrogatório judicial, ou nos moldes do n.º 3-a) desse art. 120º na hipótese de ter ocorrido interrogatório, estando presentes o arguido e o seu ilustre defensor, mas o juiz de instrução criminal não precedesse o decretamento da medida coactiva da audição da defesa do arguido (ou do Ministério Público) quanto a tal aspecto – neste sentido, embora em tese geral, cfr. Profs. Elisabete Ferreira e Paulo Pinto de Albuquerque e Profs. Inês Godinho e Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos” e Volume I citados, págs. 897 e 589, respectivamente].

            Questão bastante distinta – a que tentaremos responder já de seguida – e, portanto, não confundível com a que acabámos de enfrentar, será a de perceber se, perante todo o material probatório existente nos autos, o Tribunal a quo andou ou não bem em entender fortemente indiciada a prática, pelo recorrente, de um crime de violência doméstica, com as consequências que depois daí extraiu, maxime em termos coactivos, para a posição processual do mesmo.

            Intui-se, pois, o destino a dar à primeira questão suscitada pelo recorrente: a improcedência do recurso nessa parte.


*

Segunda questão:

Da deficiente ponderação de todos os elementos probatórios disponíveis, e do recurso a prova proibida inerente às câmaras de videovigilância privadas, com captação ilícita de imagens da via pública, no modo por que entendeu o Tribunal a quo existir uma forte indiciação da prática, pelo recorrente, de um crime de violência doméstica.

            O ponto, agora, e como se intui, poderá resumir-se a esta pergunta: interpretou ou não o Tribunal a quo correctamente os elementos probatórios existentes quando entendeu estar fortemente indiciada a prática, pelo recorrente, de um crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152º/n.os 1-b) e 2-a) C.P.?

            Ponderemos.

Sendo a ocorrência de indícios da prática de um crime uma condição sine qua non da aplicação de todas as medidas de coacção (art. 193º/n.º 1 C.P.P.), a lei é ainda (compreensivelmente) mais exigente no que toca à prisão preventiva, por isso usando a expressão “fortes indícios” (art. 202º/n.º 1 C.P.P.), a qual parece representar, pelo menos prima facie, uma intensidade acrescida em relação ao conceito de “indícios suficientes” quanto à probabilidade da ocorrência de condenação (podendo ver-se a este propósito, e a título de exemplo, os arts. 283º/n.os 1 e 2 e 308º/n.º 1 C.P.P.).

Se os indícios devem ter-se por verificados quando, com base neles, a probabilidade de condenação é, pelo menos, maior do que a de absolvição, reportada à fase da audiência de discussão e julgamento, os indícios só serão fortes quando o seu grau de certeza acerca do cometimento do crime e da identidade do seu autor é próximo do que é exigido na fase do julgamento, apenas com a diferença de que, aquando da aplicação da medida de coacção, os elementos probatórios têm uma maior fragilidade, resultante da ausência da dialéctica do contraditório, da imediação e da oralidade, que, como acima já notámos, são característicos da referida fase da discussão e julgamento da causa.

Dito de outro modo, os “fortes indícios” da prática de um (ou mais) dos crimes mencionados no art. 202º C.P.P. enquanto indeclinável prius para a possível aplicação da prisão preventiva [ou até, no tocante aos arts. 200º e 201º do mesmo diploma, da perpetração de um (ou mais) dos ilícitos penais aí elencados como pressuposto da possibilidade de recurso às medidas coactivas de proibição e imposição de contactos ou de obrigação de permanência na habitação, respectivamente] devem fazer nascer no espírito do juiz, nas fases anteriores ao julgamento, uma razoável convicção da prática (dolosa), pelo arguido, do(s) crime(s) em termos tais que, em um juízo de prognose ex ante coerente com a normalidade das coisas, possa antever-se a respectiva acusação e, finda a audiência de julgamento, a condenação como uma solução bastante crível. Crê-se, aliás, que só essa exigência metódica poderá fazer cumprir, para as medidas de coacção mais graves – porquanto mais fortemente restritivas dos bens pessoais dos arguidos, designadamente da sua liberdade –, as exigências de adequação e proporcionalidade contidas no n.º 1 do art. 193º C.P.P. (a propósito, Prof. Maria João Antunes, “Direito Processual Penal”, 5ª edição, reimpressão, Coimbra, 2024, pág. 179).

Como se sumariou no Ac. S.T.J. de 28/8/2018, «quando, na fase de inquérito, para a fixação da medida de coacção de prisão preventiva, se alude, como no art. 202º/n.º 1-a) a e), a “fortes indícios”, o que se pretende é inculcar a ideia de que o legislador não permite que se decrete a medida com base em meras suspeitas mas exige que haja já sobre a prática de determinado crime uma “base de sustentação segura” quanto aos factos e aos seus autores que permita inferir que o arguido poderá por eles vir a ser condenado e que, por conseguinte, essa base de sustentação deverá ser constituída por “provas sérias”, provas que deixem uma impressão já nítida da responsabilidade do arguido objectivadas a partir dos elementos recolhidos.(…) Sendo diferente o contexto probatório em relação ao (primeiro) momento da aplicação da medida de coacção e ao momento da acusação, poderá então afirmar-se que de certo modo se equivalem o conceito de “fortes indícios” usado no art. 202º e o de “indícios suficientes” explicitado no art. 283º/n.º 2 C.P.P.: aqueles como estes pressupõem a possibilidade de ao arguido vir a ser aplicada em julgamento uma pena, devendo ter idoneidade para tal. (…) Mas aferida essa idoneidade pela circunstância de serem usados perante realidades processuais distintas. “Fortes indícios” tendo em conta que a medida de coacção é fixada ainda em uma fase de aquisição da prova, configurando-se esse conceito como uma exigência de que ela não se apoie em uma débil consistência probatória, mas antes em elementos probatórios já de solidez suficiente embora porventura não bastantes ainda para deduzir uma acusação. “Indícios suficientes” no sentido em que, finda essa fase de investigação e aquisição da prova, eles terão então de possuir força necessária e solidez vincada para deles resultar uma possibilidade razoável de em julgamento ser aplicada uma pena ao arguido» (aresto disponível em www.dgsi.pt; em sentido substancialmente coincidente, vide também Dr. Jorge Noronha e Silveira, “O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Lisboa, 2004, pág. 174).

A exigência legal acabada de referir (um pouco à semelhança do que postula o n.º 1 do art. 273 do Codice di Procedura Penale italiano quanto à existência de gravi indizi di colpevolezza para a possibilidade de aplicação de misure cautelari – cfr., a propósito, Dr. Giuseppe Amato e Profs. Ennio Amodio, Oreste Dominioni e Novella Galantini, “Commentario del Nuovo Codice di Procedura Penale”, Volume III, Parte II, Milano, 1990, págs. 17 e 18) deverá, pois, servir de crivo aferidor da justeza ou não do despacho agora sob impugnação.

Vejamos.

Como há pouco dissemos, o despacho em causa considerou fortemente indiciado o cometimento, em autoria material, pelo recorrente, de um crime consumado de violência doméstica, p. e p. no art. 152º/n.os 1-b) e 2-a) C.P..

Pois bem, em face do acervo probatório já disponível nos autos, não se vêem razões para discordar da avaliação das circunstâncias apuradas feita pelo Tribunal a quo.

Alega o recorrente, além do mais, no sentido de do conjunto da prova carreada para o processo resultar pelo menos uma séria dúvida de que aquele haja perseguido a ofendida e agido propulsionado por sentimentos de perda e rejeição após a relação ter terminado, como entendeu o despacho recorrido. Neste aspecto, invocou, então, que o juízo de ponderação formulado pelo Tribunal a quo ignorou o depoimento da ofendida junto dos órgãos de polícia criminal e o conteúdo de algumas mensagens escritas enviadas a outras testemunhas do processo, determinantes da necessidade de uma ponderação diversa da ensaiada pelo despacho recorrido quanto à personalidade, intencionalidade e prática do ilícito penal imputado ao recorrente, tanto mais que a ofendida sempre revelou comportamentos atípicos na sua relação com aquele.

Bom, salvo o devido respeito pela visão do arguido, importará esclarecer três pontos.

Em primeiro lugar, a ofendida – entretanto admitida a intervir nos autos n.º 185/24.0GBPMS na qualidade processual de assistente (cfr. certidão junta ao presente recurso) – é bastante clara nos relatos que fez junto do órgão de polícia criminal (bastando, para tal, ter em conta os respectivos autos de inquirição de 6 de Fevereiro de 2025 e 13 de Junho de 2025) quanto ao “tratamento” (quer físico, com algumas agressões de que resultaram dores e hematomas, quer sobretudo verbal e psicológico, com as constantes acusações de traição com diversos “amantes”) que, nas suas palavras, lhe foi sendo dispensado pelo recorrente ao longo do tempo que durou o relacionamento sentimental de ambos. Relatos que, concatenados e conjugados com os depoimentos das diversas testemunhas ouvidas igualmente nos autos, parecem surgir, pelo menos nesta fase investigatória, ainda mais vívidos e autênticos.

Depois, não compreende bem este Tribunal de recurso como, pelo menos na presente fase, o conjunto de mensagens escritas fotografadas no processo poderiam permitir aquilo que o recorrente apelida de “diferente ponderação” quanto à “personalidade, intencionalidade e prática do ilícito penal” que lhe é imputado. Basta percorrer algumas das mensagens trocadas entre ambos para, além do mais, constatar a “toada” comunicacional protagonizada pelo mesmo recorrente relativamente à assistente: “Fizeste bem bloquear as fotos”, “Preocupa te com teus amantes quando as mulheres receberem as conversas”, “És uma puta camuflada”, “Não mereces nada”, “Deves estar na mata do valado”, “Vai lá ter com os teus cavaleiros”, “Pois não. Estás com algum cavaleiro” (aqui, como resposta do recorrente à mensagem escrita a ele antes enviada pela assistente no sentido de que “Não estou em casa… deixa me em paz… Chega …”). Tal como nas comunicações trocadas entre a assistente e a testemunha … se percebe o estado de acossamento, vexame e sofrimento pela primeira sentido e dado a entender à segunda.

Em terceiro lugar, talvez as atitudes “atípicas” da assistente invocadas pelo recorrente tenham que ver, na sua perspectiva, com o teor que se desprende, por exemplo, do seguinte segmento de comunicação entre a assistente e a testemunha …. Efectivamente, começou esta última, vendo uma fotografia, por perguntar à assistente “Que foi isso”, ao que a mesma assistente respondeu “…” e “Quase que me matou. Tive inconsciente durante uns minutos”. Então, a nova pergunta da testemunha … no sentido de que “Não me tinhas dito que tinha acabado da última vez que falámos e que era de vez?”, declarou a assistente “Pois… Mas voltei a cair… sou fraca. Agora é que foi de vez”, redarguindo a referida testemunha, em outro ponto da sua conversa, “…, o teu caso é como o caso de um drogado… diz que muda mil vezes e isso nunca acontece até que as pessoas deixam de acreditar e destroem tudo à volta deles…”, replicando a assistente “Eu sei que tens razão” e, um pouco mais à frente, “Mas eu sou fraca… e ele consegue me enfeitiçar” (cfr. relatório fotográfico relativo ao conjunto de mensagens trocadas entre ambas).

Pareceria, pois, que a circunstância – aliás, de que se dá conta na súmula de factos tidos por indiciados do despacho recorrido – de ter havido cessações e reatamentos da relação entre assistente e recorrente, sentindo-se aquela porventura ainda afectivamente próxima (ou mesmo dependente) deste ao longo de parte do tempo em que a factualidade agressiva acima descrita foi ocorrendo, deveria significar, na perspectiva do recorrente, a existência das tais atitudes “atípicas” da assistente, que supostamente implicariam uma forma diversa de analisar o comportamento do arguido.

Convirá, no entanto, não esquecer a realidade – humana e jurídico-penal – com que lidamos.

Por um lado, porquanto uma eventual aproximação da assistente relativamente ao arguido não poderia significar uma espécie de “salvo-conduto” para a continuação da dita factualidade agressiva (física, psicológica, verbal) protagonizada por este último sobre aquela.

Por outro lado, ainda – e convenhamos que nem o próprio chega ao ponto de o sugerir… –, porque não dispõem os autos de elementos probatórios alguns que pudessem inculcar a ideia de existir como que uma espécie de causa de exclusão da ilicitude do comportamento ou da culpa do recorrente de cariz “inominado” [ou mesmo nominado, ao jeito, por exemplo, de um hipotético consentimento do(a) ofendido(a)…, que, aliás, a demonstrar-se – e não está esse consentimento minimamente indiciado, repita-se –, encontraria sérios problemas de aceitação por parte da ordem jurídica, dada a cláusula geral contida no art. 38º/n.º 1 C.P.].

Não deflui dos autos, em suma, a imagem do recorrente enquanto pessoa “atormentada” pela “marcação” e pelas “perseguições” da assistente. Não. O que o processo nos ilustra, pelo menos nesta fase, é precisamente o contrário, e de um modo tal que não podemos sequer dizer resumir-se a atitude do recorrente a “meras” (que seriam já de si graves…) perseguições lançadas sobre a assistente, antes se alargando, de modo ostensivo, a diversas agressões físicas, verbais e psicológicas dela vitimadoras.

A matéria fortemente indiciada tem que ver, pois, com a prática de um crime de violência doméstica, figura típica que, como sabemos, poderá revestir um sem-número de variantes, desde as mais brutais agressões físicas e sexuais (espancamentos, pontapés, estrangulamentos, queimaduras, agressões com objectos, esfaqueamentos, actos sexuais considerados degradantes e não consentidos pela vítima) até às mais subtis atitudes de agressão psicológica (insultos, verberações destinadas ao amesquinhamento e ao desprezo da vítima), passando por violações e limitações da liberdade de movimentos ou do acesso da vítima a recursos de vária ordem (financeira, por exemplo).

E a violência doméstica não “desaparecerá” – antes pelo contrário… –, quer nos seus contornos, quer nos seus efeitos, só porque o agressor, ao longo dos tempos, continua a manter um ascendente e um poderio mais ou menos “magnético” sobre a vítima, que assim melhor vai podendo subjugar de acordo com os seus intuitos e desígnios… (constituindo até tal subjugação – seja por que forma for – da vítima ao agressor, como é comummente afirmado, um dos traços mais evidentes de relações intersubjectivas enquadráveis em contextos de violência doméstica – vide, a título de mero exemplo, o Ac. Rel. Guimarães de 4/6/2018, disponível em www.dgsi.pt).

Compreende-se, segundo cremos, a razão de ser da nossa afirmação precedente: como escreveu o Dr. Plácido Conde Fernandes a propósito da actual redacção do art. 152º C.P., «não se vê razão para alterar o entendimento (…) sobre o bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da saúde física, psíquica, emocional e moral. (…) O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa, conduzindo à sua degradação pelos maus tratos» (“Violência doméstica, novo quadro penal e processual penal”, in “Jornadas sobre a revisão do Código Penal”, “Revista do C.E.J.”, n.º 8, pág. 305).

A elevação a crime público da violência doméstica surgiu, aliás na decorrência de uma cada vez maior consciencialização comunitária dos terríveis efeitos (amiúde “calados” ou aparentemente “aceites” pelas vítimas, mas prolongados no tempo) que aquela violência é susceptível de gerar, quer física quer psiquicamente, para o normal desenvolvimento da personalidade humana. Preocupações das quais fizera já eco a reflexão do Conselho da Europa, que caracterizou as situações de maus tratos ou violência doméstica como «(….) acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade» (Projecto de Recomendação e de Exposição de Motivos do Comité Restrito de Peritos Sobre a Violência na Sociedade Moderna – 33ª Sessão Plenária do Comité Director Para os Problemas Criminais, in B.M.J. n.º 335, pág. 5). Semelhante posição adoptando outros instrumentos internacionais, como a Declaração Sobre a Eliminação da Violência Contra as Mulheres e a Convenção Para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação da Mulher, sob a égide da Organização das Nações Unidas, e o Roteiro Para a Igualdade Entre Homens e Mulheres Para o Período 2006-2010, no âmbito da União Europeia, que revelam a clara preocupação pelo fenómeno em questão (cfr., a propósito, e no espaço nacional, o IV Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, o V Plano Nacional de Prevenção e Combate à Violência Doméstica e de Género 2014-2017, e ainda a mais recente Estratégia Nacional Para a Igualdade e a Não Discriminação 2018-2030, especialmente no que toca ao seu Plano de Acção Para a Prevenção e o Combate à Violência Contra as Mulheres e a Violência Doméstica, todos disponíveis em www.portugal.gov.pt).

Tudo isto nos mostrando, em síntese, que, em uma situação como a vivida por recorrente e assistente, o quadro de violência doméstica imposto pelo primeiro sobre a segunda se manifesta relativamente claro e constante, com a saúde física e psíquica da vítima a ser repetida e ostensivamente violada, bem andando o Tribunal a quo em concluir do modo como concluiu, a partir dos diversos elementos probatórios em que se apoiou.

            Todavia, em abono da sua tese da inexistência de indiciação de factualidade integrável no tipo penal da violência doméstica, invoca também o recorrente um aspecto particularmente interessante do ponto de vista jurídico, a saber, o que se prende com a circunstância de haver o Tribunal a quo considerado na sua convicção prova proibida, consubstanciada em imagens da via pública, ilicitamente recolhidas através de câmaras de videovigilância privadas, que violaram, assim, a protecção da vida privada do recorrente e integraram até a prática de um crime de gravações ilícitas, p. e p. no art. 199º C.P..

            A questão ora em análise prende-se, pois, com o auto de visionamento de vídeo e extracção de fotogramas integrante da certidão que deu origem ao presente recurso, e que terá escorado também a convicção do Tribunal a quo quanto à matéria factual ínsita aos pontos 39 a 44 do conjunto de factos indiciários acima elencado.

            Note-se, antes do mais, que os aludidos pontos factuais 39 a 44 não se perfilam como fortemente indiciados apenas por causa das apontadas imagens de videovigilância, recolhidas pelo sistema de videovigilância (“Sistema C.C.TV”, ou seja, de “Closed Circuit Television”) existente na residência de …, que terá captado a dita factualidade, ocorrida, ao que parece de tais imagens, na zona fronteira à entrada daquela residência e, nessa medida, possivelmente abrangendo ainda espaço público. A convicção quanto à verificação de tal indiciada factualidade, dizíamos nós, não decorre só das mencionadas imagens, pois que a própria assistente relatou também, nas suas declarações de 13 de Junho de 2025, esse mesmo episódio, assim permitindo uma melhor – e mais circunstanciada – compreensão do teor das imagens em causa.

            Ora, como há pouco afirmámos, o apport probatório trazido pelas referidas imagens consubstanciará, na óptica do recorrente, prova proibida, porquanto violadora da intimidade da sua vida privada.

            Assistirá razão ao recorrente?

Vejamos.

Nos termos do n.º 1 do art. 26º C.R.P., «a todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, (…) à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar (…)», enquanto direitos fundamentais inalienáveis da pessoa e da respectiva dignidade, cuja promoção se arvora em exigência irrenunciável para um Estado de Direito como aquele em que (felizmente) nos movemos (cfr. art. 1º da mesma C.R.P.), devendo estabelecer a lei «(…) garantias contra a obtenção e utilização abusivas, ou contrárias à dignidade humana, de informações relativas às pessoas e famílias» (n.º 2 do referido art. 26º da Lei Fundamental) (em geral, filiando a intimidade da vida privada na dignidade humana, vide Prof. Tommaso Auletta, “Riservatezza e Tutela della Personalità”, Milano, 1976, págs. 33 e ss.).

Em termos internacionais (constituindo também direito interno no ordenamento jurídico português – art. 8º/n.º 2 C.R.P.), é indispensável uma referência ao art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (C.E.D.H.), ao art. 12º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (D.U.D.H.) e ao art. 17º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (P.I.D.C.P.).

Compreende-se que a protecção acabada de enunciar – tal como sucede, aliás, quanto aos demais direitos fundamentais de cariz radicalmente pessoal como, à “cabeça”, o direito à vida, o direito à integridade pessoal ou o direito à liberdade e à segurança (arts. 24º, 25º e 27º, respectivamente, C.R.P.) – encontre diversas refracções subsequentes ao estalão constitucional, do qual serão, aliás, naturais emanações, gerando por isso mesmo princípios, normas e mecanismos de tutela em diversos ramos jurídicos, maxime – e para o que ora mais nos interessa – no direito civil [com a tutela geral da personalidade e a consagração, ex vi legis, de específicos direitos de personalidade – cfr. arts. 70º e ss. do Código Civil (C.C.)] e no direito penal (mediante a actuação de ultima ratio própria dos tipos legais que protegem os bens jurídico-penais mais radicalmente pessoais – arts. 131º e ss. C.P.), sem esquecer ainda, naturalmente, a dimensão processual sempre adscrita a tais ramos jurídicos.

Assim, no campo processual penal, existe a garantia constitucional de que «são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações» (n.º 8 do art. 32º C.R.P.).

Concomitantemente, o nosso C.P.P., após a proclamação mais geral, contida no seu art. 125º, de que «são admissíveis as provas que não forem proibidas por lei», logo estatui, no n.º 1 do subsequente art. 126º, serem «(…) nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas», referindo também expressamente, no n.º 3 do mesmo art. 126º, que, «ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular».

Em um verdadeiro Estado de Direito, assente, como dissemos, na promoção da dignidade humana (e nos diversos direitos fundamentais em que esta se refracta) e na obediência ao primado da lei, é «insuprível a bipolaridade dos sistemas probatórios em matéria penal, oscilantes entre a aspiração à verdade e o respeito pela legalidade. Fundada sobre a dúvida que sustenta a descoberta da verdade, a prova criminal confronta-se a cada momento com a filigrana de regras legais que, dispondo sobre a competência para a aquisição da prova, sobre os meios legítimos e os caminhos excluídos, etc., limitam e orientam essa descoberta» [Prof. Sandra Oliveira e Silva, “Legalidade da prova e provas proibidas”, “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 21 (2011), n.º 4, págs. 545 e 546]. Espraiando-se a consequência da impostação – basilar – acabada de aludir na aceitação de que o “jogo” processual penal tem regras, também no domínio da aquisição e produção da prova, de cuja (in)observância necessariamente decorrerá a subsequente valoração dos elementos probatórios recolhidos – e o destino dessa mesma valoração – nas subsequentes etapas que compõem o processo, com natural destaque para a audiência de discussão e julgamento e a sua “síntese” comunicacional traduzida na sentença ou acórdão a proferir [isto, claro está, se – como será preferível e expectável – as entidades responsáveis por cada uma das mencionadas etapas até à fase de julgamento não tiverem empreendido tal valoração e agido em conformidade…; existindo até quem defenda que, em pleno inquérito, e não obstante a posição do Ministério Público de dominus dessa fase, possa o juiz de instrução conhecer e sindicar violações de proibições de prova (pelo que as mesmas tenderão a comportar de dano ilegítimo de direitos fundamentais ou de afronta de interesses colectivos de primeira ordem), sendo-lhe consequentemente permitido, se se justificar, proibir a utilização de determinadas provas – assim, Prof. Nuno Brandão, “O controlo de proibições de prova pelo juiz de instrução no decurso do inquérito”, “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 29 (2019), n.º 1, págs. 47 e 48 e, especialmente, 52 a 58; na jurisprudência, vide, com interesse, colocando a tónica na possibilidade de intervenção do juiz de instrução apenas em caso de existência de actos lesivos de direitos fundamentais, o Ac. Tribunal Constitucional n.º 121/2021, de 9/2/2021, em www.tribunalconstitucional.pt, e, em termos mais abrangentes, mesmo para os casos em que as invalidades processuais aflijam aqueles direitos, o Ac. Rel. Évora de 23/3/2021, em www.dgsi.pt].

Feito este breve travejamento normativo-doutrinário, e se tivermos ainda em mente que «as reproduções fotográficas, cinematográficas, fonográficas ou por meio de processo electrónico e, de um modo geral, quaisquer reproduções mecânicas só valem como prova dos factos ou coisas reproduzidas se não forem ilícitas, nos termos da lei penal» (n.º 1 do art. 167º C.P.P.), impor-se-á, portanto, que tentemos perceber se as reproduções videográficas em questão no processo, obtidas a partir das imagens recolhidas, no dia 3 de Junho de 2025, pelo sistema de videovigilância existente na residência de AA, consubstanciarão, como entendido pelo recorrente, uma intolerável e ilegal forma probatória por violarem a intimidade da sua vida privada.

Colocando-se a ânsia e a necessidade de reconhecimento, a cada ser humano, de uma esfera de privacidade relativamente à natural e inevitável dimensão da socialidade que enforma a sua existência, importa tentar traçar os critérios mínimos por via dos quais consigamos destrinçar a (i)legitimidade da invocação, em cada momento, daquela esfera de privacy e consequências daí advenientes quanto à (in)admissibilidade de eventuais intrusões alheias (Prof. Tommaso Auletta, “Riservatezza e Tutela della Personalità” citado, págs. 37 e ss.). Intromissões que, como facilmente se compreende, revestirão para o indivíduo atingido um potencial de danosidade tanto maior quanto também mais amplas e graves forem as repercussões comunitárias do conhecimento adquirido e-ou divulgado.

Portanto, um natural prius problemático se erige: o que deverá ser considerada a “vida privada” de uma pessoa, talvez por contraposição à ideia de “vida pública”?

Importa, desde logo, que estejamos bem cônscios de lidarmos com conceitos indeterminados, com o grau de fluidez de sentido e significado que sempre acarretam.

Esclarece a Dra. Rita Amaral Cabral, a propósito de uma teoria de origem alemã, que ficou conhecida como a “teoria das três esferas”, ter a mesma pretendido diferenciar, a propósito, «(…) a vida íntima (…), que compreende os gestos e factos que em absoluto devem ser subtraídos ao conhecimento de outrem (concernentes não apenas ao estado do sujeito enquanto separado do grupo, mas também a certas relações sociais); a vida privada (…), que engloba os acontecimentos que cada indivíduo partilha com um número restrito de pessoas; e a vida pública (…), que, correspondendo a eventos susceptíveis de ser conhecidos por todos, respeita à participação de cada um na vida da colectividade», sendo que, para a Autora ora citada, caso transpuséssemos a mencionada teoria para a ordem jurídica portuguesa, teríamos de fazer coincidir o direito à reserva sobre a intimidade da vida privada somente com a primeira esfera, ou seja, a “vida íntima” [“O direito à intimidade da vida privada” (breve reflexão acerca do artigo 80º do Código Civil)”, “Estudos em Memória do Professor Doutor Paulo Cunha”, Lisboa, 1989, págs. 398 e 399; também sobre a aludida “teoria das três esferas”, Profs. Rui Medeiros e António Cortês, “Constituição Portuguesa Anotada”, Volume I, 2ª edição revista, Lisboa, 2017, págs. 452 e 453].

Cremos, ainda assim, que a lei – penal e civil – portuguesa, em termos de tutela, parece abarcar mais do que apenas a “vida íntima” (prima facie dotada de contornos sobretudo confinados a uma “esfera de segredo”), tomando também sob a sua protecção diversos aspectos que assumem inequívoco cariz intersubjectivo e relacional (e que, neste sentido, seriam integráveis, segundo a lógica da referida teoria, já na esfera da “vida privada”): pensemos, por exemplo, nos tipos legais contidos nos arts. 192º a 194º C.P. e nas previsões dos arts. 70º ss. C.C., e na panóplia de situações típicas que serão susceptíveis de abarcar.

Entendendo-se, pois, que uma boa dicotomia operativa para o centramento da nossa questão deverá ser a que confronta (simplesmente) “vida privada” e “vida pública”.

E se parecerá relativamente óbvio que a nossa lei emprega a expressão “vida privada” para a tutela da privacidade, pensamos, ainda assim, não devermos tomar como critério único da distinção entre vida privada e vida pública – apesar de ser seguramente muito importante – o da “espacialidade” ou do lugar onde essa experiência vivencial se desenrola. Como escreve o Prof. Paulo Mota Pinto, «não nos referimos (…) à vida pública, contraposta à vida privada, apenas no sentido daquela que decorre em público ou em lugares públicos. Episódios da vida privada que devem ser objecto de tutela (por exemplo, conversas particulares) podem desenrolar-se em lugares públicos (v. gr., num restaurante). Tal como, por outro lado, episódios pertencentes à vida pública podem ter como palco lugares privados. Assim, e em geral, a vida pública será a vida social, mundana, do indivíduo, enquanto a vida privada é a sua vida particular e pessoal. A vida pública é a que respeita ao público, enquanto a vida privada é a que diz respeito apenas aos particulares, abrangendo aquele “pequeno mundo do qual cada um é rei e senhor”. Mas o conceito de vida privada não poderá, por outro lado, ser apenas em função de cada pessoa. Sem dúvida que uma certa variação em relação a cada indivíduo e em cada caso tem de ser reconhecida, mas não se pode admitir uma relatividade absoluta do conceito, sob pena de nos faltar um padrão comum pelo qual possamos medir novas hipóteses, e de não sabermos em muitos casos se estamos perante a vida privada de outrem. Há que estabelecer uma directriz geral, determinando-a de acordo com critérios objectivos (…) que (…) só podem ser os que resultam das valorações sociais correntes sobre a questão, desde que harmonizáveis com os princípios gerais do conhecimento jurídico nesta matéria, e, portanto, (…) além de a própria noção de vida privada ser em certa medida dependente do indivíduo, é também função das valorações de cada formação social. Esse deve ser o critério geral» (“O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada”, “Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra”, Volume LXIX, 1993, págs. 526 e 527).

Pelo que nos parece ser de atender, nesta matéria, a duas ideias fundamentais.

Por um lado, a de que a dicotomia vida privada-vida pública só tem sentido se equacionada em um contexto socialmente partilhado [podendo ilustrar bem esta asserção o intemporal romance “Robinson Crusoé”, de Daniel Defoe: com efeito, antes de aparecer em cena aquele que viria a ser o seu fiel companheiro Sexta-feira, e enquanto se manteve sozinho na (parte da) ilha para onde fora remetido por um naufrágio, Robinson Crusoé não vivia propriamente em termos privados ou públicos, simplesmente (sobre)vivia…].

Por outro lado, a ideia de que o entorno social, com a panóplia de referentes e regras de organização intersubjectiva que comporta, se afigura como algo de absolutamente essencial para colorir o conceito de “vida privada” e a destrinça deste perante o de “vida pública” (assim, Prof. Raffaele Tommasini, “Osservazioni in tema di diritto alla privacy”, “Il Diritto di Famiglia e delle Persone”, Anno V, 1976, págs. 248 e 249).

Pois bem, a privacidade, entendida por alguns como uma espécie de genérico right to be let alone (para o conceito, Prof. Raffaele Tommasini, “Osservazioni in tema di diritto alla privacy” citado, págs. 243 e ss., especialmente 249 e 250), parece implicar, do ponto de vista teleológico, um interesse com particular ênfase no domínio da informação (e da putativa possibilidade de divulgação dessa mesma informação). Em termos mais concretos, e seguindo de novo o pensamento do Prof. Paulo Mota Pinto, tal «(…) interesse é o de evitar ou de controlar a tomada de conhecimento ou a revelação de informação pessoal (…)», ou seja, de factos, comunicações ou opiniões relacionados com a pessoa e o seu “mundo interior” e por ela encarados como íntimos ou confidenciais, sendo por isso legítimo expectar que os queira excluir do conhecimento público, os queira subtrair à atenção dos outros, quando não mesmo, por via desse desiderato, excluir até o acesso físico dos outros a si própria (“O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada” citado, pág. 508).

Claro que, para além da questão da informação, a privacidade poderá igualmente implicar uma ideia de liberdade na acção do indivíduo, no sentido de uma ausência de peias no que este pretenda fazer, mas não falaremos, nesse domínio, exactamente da mesma realidade, antes de duas valências que se condicionam mutuamente mas serão estruturalmente algo distintas (Prof. Raffaele Tommasini, “Osservazioni in tema di diritto alla privacy” citado, págs. 244 e ss.), compreendendo-se até que uma delas – a liberdade de acção – possa encontrar condicionalismos mais naturais e evidentes à sua total possibilidade de expressão, mercê da evidente necessidade de compatibilizar o respectivo exercício com a liberdade de todos os demais componentes da comunidade social.

Concordando-se, pois, em jeito de síntese, com a noção de que a reserva da vida privada terá essencialmente que ver com aspectos de resguardo da pessoa quanto às possíveis obtenção e divulgação de informações acerca dessa dimensão privada da sua existência (sobre estas principais formas de violação da privacidade, com particular ênfase na intrusion e na public disclosure of private facts, cfr. Prof. William Prosser, “Privacy”, “California Law Review”, Volume 48, 1960, N.º 3, págs. 389 a 398). Parecendo ser o aspecto ora referido, aliás, o que mais se deve ter por adscrito à garantia constitucional, já acima citada, contida no n.º 2 do art. 26º da nossa Lei Fundamental (assim, Profs. Joaquim Gomes Canotilho e Vital Moreira, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Volume I, 4ª edição revista, Coimbra, 2007, pág. 467).

Em termos gerais, que aspectos serão, então, de incluir na informação atinente à vida privada de uma pessoa?

Desde logo, «(…) a sua identidade, isto é, o seu nome e outras marcas ou sinais de identidade, além de dados pessoais como filiação, residência ou número de telefone. O estado de saúde da pessoa faz também parte, sem dúvida, da sua vida privada, bem como a vida conjugal, amorosa e afectiva do indivíduo, isto é, os projectos de casamento e de divórcio, aventuras amorosas, afectos e ódios, etc.. Por outro lado, se é certo que o locus não parece ser o único critério, deve notar-se que é um indício importante, pelo que a vida do lar, com o conjunto dos factos que aí decorrem, deve ter-se por privada salvo prova em contrário. (…) Poderá pôr-se ainda o problema quanto a outros locais, privados (como um automóvel) ou mesmo públicos (uma cabina telefónica, por exemplo, ou um café). Pensamos que mesmo acontecimentos que se desenrolem nestes últimos lugares poderão fazer parte da vida privada, de acordo com o critério geral acima referido. (…) Diga-se, também, que certos eventos da vida de uma pessoa, como, por exemplo, (…) os seus passatempos, locais e dias de férias, etc. (…)», integrarão igualmente aquela área privada. «A pessoa tem em relação a estes acontecimentos, desde que sejam pessoais (também v. gr. encontros com amigos, deslocações, saídas e entradas em casa, etc.), um interesse de privacidade. (…) Quanto à imagem e à voz de uma pessoa, (…) o interesse protegido com os direitos que sobre elas incidem não é rigorosamente o da privacidade. Quando este interesse estiver em causa, contudo, a imagem ou a palavra falada farão parte da vida privada» (Prof. Paulo Mota Pinto, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada” citado, págs. 527 a 529).

Como se percebe, o aspecto que mais ressalta à vista em toda esta matéria atina à protecção da intimidade da vida privada, ou seja, a um domínio de vivência que, em uma determinada interpretação, corresponderá a algo ainda mais restrito dentro do campo da vida privada. A questão não é, pois, totalmente líquida: podendo perguntar-se: «(…) que sentido devemos atribuir à palavra “intimidade”? O único sentido útil e mais ou menos preciso (…)» talvez seja «(…) o de excluir aspectos como a vida profissional, ou o chamado “segredo dos negócios” (…) – aspectos, esses, que mesmo quando fizessem parte da vida privada dificilmente poderiam ser considerados “íntimos” – e, possivelmente, ainda o de excluir factos que, apesar de fazerem parte da vida privada, a pessoa normalmente não resguarda dos outros, pelo que para ela não são “íntimos” (embora neste caso pareça que desde logo deixarão de integrar a própria “vida privada”)» (Prof. Paulo Mota Pinto, “O direito à reserva sobre a intimidade da vida privada” citado, págs. 531 e 532).

Bom, apesar de todas interrogações que a propósito se suscitem, um ponto nos parece indubitável: a ideia de que a reserva da intimidade da vida privada terá ínsita a si mesma a preocupação daquilo que, tocando aspectos mais recônditos da existência da pessoa, diferenciando-a enquanto ser único e tendencialmente não confundível com as demais, ela possa pretender resguardar da “praça pública”. Podendo, todavia, esta pretensão pessoal chocar, depois, com o eventual relevo e repercussão social dos aspectos em causa – sejam eles de cariz lícito ou ilícito à face da ordem jurídica –, a gerarem a eventual legitimidade (ou até, em certos casos, como veremos daqui a pouco, a necessidade…) do respectivo conhecimento pela comunidade (entendida esta lato sensu), tudo dependendo, segundo cremos, das concretas características de cada caso.

A propósito deste último aspecto, e como antes se notou, o local onde se desenrola poderá não ser totalmente determinante para perceber se estaremos ou não perante vida privada a proteger. Embora, reconheça-se, seja o locus certamente um importante elemento a atender.

Pensemos, pois, neste brevíssimo exemplo: A (que está longe de beneficiar da notoriedade das chamadas “figuras públicas”), porque tal lhe traz uma enorme tranquilidade interior, tem o hábito de se sentar em um dos bancos existentes no extenso jardim da sua casa; a dado momento, vê a sua imagem em um cartaz publicitário da empresa que construiu a zona residencial onde a dita casa se acha implantada,  elaborado a partir de uma fotografia que lhe foi tomada quando se encontrava no jardim, sem que de tal se tivesse apercebido e sem que o fotógrafo tivesse questionado A sobre se o poderia fazer (vide, a propósito de casos com algumas atinências ocorridos nos tribunais norte-americanos, nos princípios e meados do século passado, Prof. William Prosser, “Privacy” citado, págs. 394 e 395).

Parece-nos ser difícil sustentar, pelo menos a priori (e mesmo tendo em conta a cláusula geral contida no n.º 2 do art. 79º C.C.), que o anterior exemplo não configurará um caso de eventual desrespeito pela reserva da intimidade da vida privada e do direito à imagem de A, susceptível de gerar responsabilidade civil e até, porventura, uma possível valoração penal (cfr. arts. 192º e 199º C.P.).

Mas imaginemos, agora (e o exemplo é por nós propositadamente extremado), que o mesmo A é surpreendido em uma fotografia ou um filme vídeo, que o retratam, debruçado da parte interior do muro que veda a sua casa de habitação e jardim, de madrugada, a arremessar uma tocha de fogo na direcção do jardim de uma casa situada nas proximidades, onde reside B, sua ex-namorada (a qual, por iniciativa própria, havia com ele rompido o respectivo relacionamento três dias antes, deixando-o absolutamente inconsolável)…

Apesar de captado no interior do respectivo jardim (do respectivo “lar”, portanto), teria este último comportamento de A (gerado pelo enorme desgosto amoroso que então o corroía) cabimento no “casulo” protector da reserva da intimidade da vida privada (e do direito à imagem), impedindo, portanto, uma qualquer captação e divulgação pública do arremesso da mencionada tocha?

Crê-se que a resposta a esta questão terá de ser, sem margem para grandes dúvidas, negativa.

Por duas razões essenciais.

Em primeiro lugar, porquanto não se surpreende na atitude de A qualquer facto atinente à esfera da sua vida privada: embora com raízes em algo radicado na respectiva vida amorosa – e, nesse sentido, importante para a dimensão mais estritamente pessoal e reservada da sua existência –, o acto protagonizado por A tocou uma dimensão comunitária absolutamente inegável, susceptível de abranger, de modo verosímil, a consistência de direitos e interesses (e, quiçá, vidas…) de um núcleo de pessoas e valores que (em muito) excederam A e B e o seu anterior relacionamento amoroso. Se apelarmos a um critério social (e solidaristicamente) integrado de “vida privada”, nos moldes acima propugnados, a luz alguma poderemos chegar a solução diversa.

Mas – segunda razão –, ainda que se entendesse (mal, a nosso ver) estarmos perante um aspecto da “vida privada” do seu autor, a forte carga criminosa (de natureza pública – crime de incêndio, p. e p. no art. 272º C.P.) do facto praticado por A – a partir do seu domicílio, note-se – tornou legítima ou pelo menos tolerada pela ordem jurídica toda uma panóplia de possibilidades comportamentais de sentido oposto ao daquele facto.

Sendo, pois, a este último propósito usual falar-se em um “interesse público legítimo” para a postergação da reserva da intimidade da vida privada ou do direito à imagem, designadamente no que toca aos meios pelos quais essa postergação possa ocorrer, maxime – e foquemo-nos no nosso exemplo –, através das imagens fotográficas ou fílmicas do visado. Por isso mesmo, teríamos, do ponto de vista civil, as salvaguardas enunciadas, em termos gerais, no n.º 2 do art. 79º (que dá conta de não ser necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o justifiquem, além do mais, “exigências de justiça” ou a reprodução da imagem vier enquadrada na de factos de interesse público ou disser respeito a acontecimentos ocorridos em locais públicos) e no n.º 2 do art. 80º (que refere ser a extensão da reserva da vida privada definida conforme a “natureza do caso”) C.C.. E, em termos penais, para além da intervenção aí (no campo penal) também operativa das cláusulas acabadas de aludir em nome da unidade do sistema jurídico (art. 31º C.P.), recorreríamos ao n.º 2 do art. 192º C.P. (excludente da punibilidade do crime de devassa da vida privada se a divulgação de factos relativos à vida privada for levada a cabo como meio adequado para a realização de um interesse público legítimo e relevante), norma que, em casos como o exemplo por nós há pouco figurado, teria até uma aplicação subsidiária relativamente ao entendimento de que a aparente comissão do crime de gravações e fotografias ilícitas, p. e p. no art. 199º C.P., estaria justificada e desprovida de ilicitude ao abrigo de um direito de defesa ou mesmo de necessidade, se não de adequação social na prática do facto ou, a montante, nos colocasse até no patamar da atipicidade da conduta (a propósito, cfr. Prof. Manuel da Costa Andrade, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I, Coimbra, 1999, págs. 836 e 837, e, na jurisprudência, entre outros, os Acs. Rel. Évora de 28/6/2011, Rel. Coimbra de 24/2/2016 e Rel. Porto de 20/9/2017, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Retornemos, então, aos pontos 39 a 44 do conjunto de factos indiciários acima elencado.

Andou bem o Tribunal a quo ao valorar (também) as imagens de videovigilância para ter a referida matéria fáctica por indiciada?

Crê-se que a resposta deve ser afirmativa.

Por um lado, é patente não poder o recorrente queixar-se de a reserva da intimidade (que intimidade, aliás…?) da sua vida privada ser beliscada pela circunstância de haver a captação da respectiva imagem, em plena via pública, a agredir fisicamente a ex-companheira.

Pelos motivos há pouco mencionados para o caso da nossa hipotética personagem A (os quais, por isso, não repetiremos neste momento), acrescidos, ainda, do local público escolhido pelo seu autor, parece-nos relativamente claro que os comportamentos protagonizados – reafirme-se, na via pública fronteira à residência de AA – pelo recorrente sobre a assistente (após – aspecto que parece curiosamente menosprezado pelo mesmo recorrente – lhe haver tirado fotografias e efectuado filmagens, ao que tudo indica, contra a vontade da visada…) nada tiveram que ver com a vida privada do agressor. Diríamos, aliás, once again, que a actuação do recorrente, integrando (rectius, continuando a integrar) a prática de um crime público (violência doméstica), em zona também pública, tocou uma constelação de valores e interesses de dimensão comunitária inescapável… Não resistindo o Tribunal a afirmar, tomando de empréstimo as palavras da Dra. Rita Amaral Cabral, que «o facto que ocorre perante quem o queira presenciar não é privado por definição ()» [“O direito à intimidade da vida privada” (breve reflexão acerca do artigo 80º do Código Civil)” citado, pág. 400]…

Logo, inexistindo acto da vida privada do recorrente susceptível de “devassa”, não colherá, de modo mínimo, a possível contaminação, por essa via (ou seja, pelo hipotético cometimento do crime p. e p. no art. 192º C.P.), das imagens de videovigilância neste recurso contestadas por parte do aludido recorrente.

A questão, todavia, convocará igualmente um enfoque pelo prisma do direito à imagem do recorrente, pois, como acima já demos a entender, o direito à imagem, podendo estar (e estando) amiúde conexionado com o direito à intimidade da vida privada, com ele não se confunde, podendo ser ofendido fora da vida privada, ou seja, na vida pública, tanto mais que os limites contidos no n.º 2 do art. 79º C.C. não abrangem toda a vida pública das pessoas [acentuando estes aspectos, nos quais nos revemos inteiramente, Prof. Paulo Mota Pinto, “O direito à intimidade da vida privada” (breve reflexão acerca do artigo 80º do Código Civil)” citado, pág. 549, e “A protecção da vida privada e a Constituição”, “Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra”, Volume LXXVI, 2000, pág. 178].

Direito à imagem aquele, note-se, entendido enquanto expressão típica da autonomia pessoal, por isso consubstanciado, além do mais, no direito à autodeterminação da imagem exterior, ou seja, no direito ao controlo da utilização dos registos da captação e divulgação de todos os elementos ou sinais essenciais à identificação visual da pessoa, nesse sentido abrangendo mais, portanto, do que o respectivo retrato; todavia, e como bem se compreenderá, «não estão (…) excluídas restrições a este direito em função de contextos específicos» (Profs. Rui Medeiros e António Cortês, “Constituição Portuguesa Anotada” e Volume I citados, pág. 451; também a propósito do alcance e restrições ao direito à imagem, Acs. Tribunal Constitucional n.º 128/92, de 1/4/92, n.º 263/97, de 19/3/97, e n.º 81/2007, de 6/2/2007, todos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt).

Pois bem, assentes as noções gerais acabadas de delinear, cremos, sem embrago, ter sido já praticamente tudo dito acerca de como o direito à imagem do recorrente, no caso concreto sob escrutínio, e apesar da captação da respectiva figura pelas imagens de videovigilância, não pode ter-se por ilicitamente restringido ou violado.

Recordemos que a figura imagética do recorrente surge captada, em bom rigor, em pleno acto agressivo do mesmo sobre a assistente (a quem, além do mais, empurrou violentamente e projectou ao solo, na via pública). Ora, entender-se que o recorrente, no pleno exercício do seu direito à imagem, estaria a coberto, por força do tipo legal contido no art. 199º C.P., de uma qualquer captação e divulgação das imagens do comportamento criminoso por si protagonizado, equivaleria a conseguir dois resultados “estranhos” (para dizermos o mínimo…) à face do nosso ordenamento jurídico.

Em primeiro lugar, implicaria a obnubilação da cláusula de salvaguarda (neste caso, por exigências de justiça e atentos o relevo e o interesse públicos da factualidade captada e divulgada, para além – questão não menor – de a captação das imagens abarcar um lugar público) contida no n.º 2 do art. 79º C.C.. Dito de outro modo, implicaria a obnubilação de que nos situaríamos no campo da atipicidade da conduta (relativamente ao possível cometimento do ilícito p. e p. no art. 199º C.P.) (neste sentido, Prof. Manuel da Costa Andrade, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e Tomo I citados, págs. 833 e 834, e Dr. Tiago Caiado Milheiro, “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, Tomo II, 3ª edição, Coimbra, 2021, pág. 553).

Em segundo lugar, e sem prescindir, mesmo que se advogasse (não vislumbramos bem porquê…) não nos remeter o presente caso para o domínio da atipicidade penal, a “hiperbolização” do entendimento do (suposto) pleno exercício do direito à imagem por parte do recorrente traduziria a negação de duas outras realidades. Por um lado, desprezaria a necessidade de chamar à colação uma redução teleológica de sentido vitimodogmático do tipo do art. 199º C.P., olvidando os limites imanentes de um direito fundamental como o direito à imagem, que não pode servir para acobertar a prática de comportamentos juridicamente censuráveis e funcionalmente desviados dos interesses em vista dos quais foi consagrado (cfr. Prof. Manuel da Costa Andrade, “Comentário Conimbricense do Código Penal” e Tomo I citados, págs. 834 e 835, e, a propósito da metódica da teoria constitucional dos limites imanentes dos direitos fundamentais, Prof. José Carlos Vieira de Andrade, “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, 6ª edição, reimpressão, Coimbra, 2024, págs. 269 e ss.). Por outro lado, ainda, negaria a possibilidade de reconhecer na hipótese sub judicio, com a colocação de uma câmara de videovigilância que abrangeu parte de espaço público e captou a actuação criminosa do recorrente sobre a assistente, um caso de direito de necessidade, permitido pelo art. 34º C.P..

Efectivamente, entendemos, com o Ac. Rel. Évora de 29/3/2016, e em tese, que filmar a materialidade da autoria de um crime e utilizar posteriormente o vídeo como prova do facto, embora possa eventualmente preencher a factualidade típica do crime de gravações e fotografias ilícitas (art. 199º C.P.), pode ser lícito, por exemplo, se quem filmou agiu ao abrigo do direito de necessidade (art. 34º C.P.), o que vale tanto para a obtenção do vídeo como para a sua posterior utilização em processo crime, que constitui a concretização daquele mesmo fim (no mesmo sentido, e para além dos Acs. Rel. Évora de 28/6/2011, Rel. Coimbra de 24/2/2016 e Rel. Porto de 20/9/2017 acima já citados, vide igualmente os Acs. Rel. Porto de 23/10/2013 e Rel. Guimarães de 29/4/2014, todos colhidos in www.dgsi.pt).

Ao cabo e ao resto, estaríamos, pois, perante um “direito de necessidade probatória” quanto à demonstração do crime, que, na lógica própria dos critérios de necessidade, adequação e proporcionalidade acolhidos constitucionalmente no art. 18º/n.º 2 C.R.P., legitimaria a compressão e restrição momentâneas do direito à imagem do recorrente [e isto ainda que, note-se, o equipamento de videovigilância pudesse porventura não obedecer, ipsis verbis, à legislação regulamentar vigente na matéria, designadamente aos arts. 31º da Lei n.º 34/2013, de 16/5, e 19º da Lei n.º 58/2019, de 8/8 – assim, e mais recentemente, o Ac. S.T.J. de 28/4/2022, disponível em www.dgsi.pt, que, de modo particularmente avisado, salienta não definir a Lei n.º 58/2019, sequer, a licitude ou ilicitude da recolha ou utilização das imagens, sendo que a existência ou inexistência da licença concedida pela Comissão Nacional de Protecção de Dados (aspecto que, na hipótese em análise, parece preocupar o recorrente, sem que todavia dessa questão, ao que consta, tenha qualquer dado confirmador…) só poderá integrar um eventual desrespeito pela legislação de protecção de dados].

Consequentemente, por todas as razões acabadas de explanar, moveu-se – sempre – o Tribunal a quo, ao recorrer aos fotogramas acima mencionados, no âmbito de um método lícito de prova, admitido pelos arts. 125º e 167º C.P.P..

Em suma, mostrando-se fortemente indiciada a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica, e inexistindo, para alcançar essa mesma indiciação, o recurso a prova proibida (designadamente por suposta violação da intimidade da vida privada do recorrente ou restrição ilícita do seu direito à imagem), improcede igualmente o recurso nessa parte.


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Terceira questão:

Da excessividade da medida de coacção de prisão preventiva aplicada, por desrespeito pelos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, e não verificação in casu dos pressupostos prescritos no art. 204º C.P.P..



O problema, neste particular, tem que ver com a asserção, por parte do recorrente, de que a medida de coacção aplicada é excessiva e desadequada, atentas as exigências cautelares que o caso reclama.

Como já antes tivemos o ensejo de sugerir, o princípio da liberdade do cidadão constitui, a par de outros, um dos princípios basilares de um Estado de Direito que promove e assegura a defesa da dignidade da pessoa (arts. 27º/n.º 1 da nossa Lei Fundamental, 5º/n.º 1 C.E.D.H. e 3º e 9º D.U.D.H.).

Por o direito à liberdade individual ser um direito fundamental do Estado de Direito Democrático, apenas poderá ser restringido na estrita medida do necessário para salvaguardar outros direitos constitucionalmente protegidos, nos termos do também há pouco mencionado art. 18º/n.º 2 C.R.P., mais devendo todo o arguido presumir-se inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação (art. 32º/n.º 2 C.R.P.).

Se atendermos à circunstância de as medidas de coacção serem meios processuais de limitação da liberdade pessoal, compreende-se que visem acautelar a eficácia do procedimento penal, segundo rigorosos critérios de legalidade, necessidade, adequação e proporcionalidade (arts. 191º e 193º C.P.P.), a que acresce ainda, no caso das medidas coactivas de obrigação de permanência na habitação e prisão preventiva, uma exigência de subsidiariedade, imposta pelo seu cariz radicalmente mais grave para o direito à liberdade dos visados (arts. 201º e 202º C.P.P.).

Revelando-se, então, a prisão preventiva a medida mais grave e, portanto, de ultima ratio, significa tal que só deverá ser imposta quando se revelarem inadequadas ou insuficientes  as restantes medidas de coacção e houver “fortes indícios” (nos moldes já acima por nós explanados) da prática de um dos crimes dolosos elencados nas alíneas a) a e) do n.º 1 do art. 202º C.P.P. [ou se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional ou contra a qual estiver a correr processo de extradição ou expulsão – alínea f) do mesmo n.º 1 do art. 202º], sendo ainda necessário, para o efeito, como requisito geral, a verificação, na hipótese concreta, de um ou mais dos perigos referidos no n.º 1 do art. 204º do aludido diploma legal.

Assim, estatui o n.º 1 do art. 204º C.P.P. que «nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no art. 196º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida: a) fuga ou perigo de fuga; b) perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou c) perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas».

Importa salientar que os requisitos exigidos por esta norma (art. 204º C.P.P.) não são de verificação cumulativa, bastando, por isso, a verificação de um dos perigos pelo preceito enunciados para que, uma vez preenchidos também os respectivos requisitos especiais constantes do art. 202º C.P.P., se mostre justificada a aplicação da prisão preventiva.

No presente momento, cabe apreciar a tese do recorrente de que inexistem os perigos que o despacho sob recurso invoca, concretamente os perigos insertos na alínea c) do n.º 1 do antes citado art. 204º C.P.P..

Como vimos, está em causa a forte indiciação da prática, pelo recorrente, de um crime de violência doméstica, p. e p. no art. 152º/n.os 1-b) e 2-a) C.P., ilícito penal a que cabe a moldura penal abstracta de 2 a 5 anos de prisão, tratando-se, por força da definição legal contida no art. 1º-j) C.P.P., de um exemplo típico de “criminalidade violenta”.

Por conseguinte, está preenchido o primeiro dos pressupostos apontados, melhor dizendo, a existência de «(…) fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta», nos termos exigidos pelo art. 202º/n.º 1-b) C.P.P..

Tal como há pouco assinalámos, o recorrente refuta a existência dos perigos que foram apontados no despacho recorrido, constantes da alínea c) do n.º 1 do art. 204º C.P.P., que o Tribunal a quo convocou para fundamentar a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva.

Desde logo, entende o recorrente não se vislumbrar o perigo de continuação da actividade criminosa, pois que se trata de uma pessoa socialmente inserida, tem um filho menor a seu cargo e explora um negócio (agência funerária) que dela exclusivamente depende para laborar, sendo firme intenção do recorrente focar-se precisamente nestes aspectos, sem se aproximar da assistente – como, aliás, já vinha ele tentando fazer, sem que aquela o permitisse…

Bom, convirá salientar não se confundir, pelo menos de modo necessário, o perigo de continuação da actividade criminosa com a possibilidade mais ou menos indistinta de consumação de novos actos criminosos. Neste sentido, a aplicação de uma medida coactiva ao recorrente não pode servir para acautelar a prática de um qualquer crime, mas tão-somente a continuação da actividade criminosa pela qual se encontra ele fortemente indiciado, neste caso, como sabemos, o crime de violência doméstica (vide, a propósito, o Ac. Rel. Coimbra de 11/3/2009, o Ac. Rel. Porto de 6/5/2015 e o Ac. Rel. Coimbra de 22/3/2023, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

Consequentemente, e em tese geral, o juízo de prognose a formular pelo Tribunal quanto à maior ou menor verosimilhança do perigo de continuação da actividade criminosa pelo arguido deverá partir do lastro factual indiciário já recolhido no processo, suas características e condicionantes de eclosão do(s) crime(s) e – ponto absolutamente essencial – a personalidade do arguido revelada em todo esse melting pot (cabendo ainda perceber, aliás, se aquelas condicionantes não serão amiúde criadas pelo próprio e não terá ele, portanto, a predisposição para futuramente as replicar).

Quase que diríamos, pois, que, diferentemente do juízo de prognose a fazer sobre a possibilidade de aplicação da suspensão de execução da pena de prisão – no qual, mais do que uma aposta na especificidade de um ou outro concreto tipo de criminalidade, se pretende antever como o agente se relacionará, no futuro, relativamente à possibilidade do cometimento de crimes tout court –, a perspectiva do perigo de continuação da actividade criminosa legitimador da aplicação de uma medida de coacção, ainda para mais da magnitude deletéria da prisão preventiva, é focada e circunscrita aos fenómenos criminosos que já denotou o agente, pelo menos indiciariamente, haver cometido.

Percebendo-se, assim, a diferença de enfoques: através do juízo de prognose pressuposto pelo art. 50º C.P. pretende-se atingir com o condenado «(…) o “conteúdo mínimo” da ideia de socialização, traduzida na “prevenção da reincidência”» (polítropa, acrescentaríamos nós) (Prof. Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Lisboa, 1993, pág. 343); por via do juízo de prognose do perigo de continuação da actividade criminosa visa-se, no mais curto prazo, antever a melhor forma de pacificar as necessidades cautelares inerentes ao iter processual.

Retornando ao caso concreto, não temos grandes dúvidas em afirmar, contrariamente ao recorrente, que o perigo de continuação da actividade criminosa pelo mesmo é evidente.

Bastará perscrutar, de modo sério e desapaixonado, os elementos já recolhidos nos autos e a factualidade fortemente indiciada para perceber que estamos longe da realidade de alguém que, no último ano, tivesse tentado, por todos os meios, evitar os contactos com a assistente, sendo antes esta a “atormentá-lo” e a persegui-lo de um modo “implacável”. Como acima dissemos, o quadro indiciário vai precisamente no sentido contrário ao afirmado pelo recorrente, bastando perceber, depois, não só o tipo de insistência, mas também os contornos bastante violentos (física e psicologicamente) dessa mesma insistência, levada a cabo pelo recorrente sobre a assistente (recordando-se, a propósito, e apenas porque mais “fresca” em termos temporais, a “cena” do passado dia 3 de Junho do corrente ano, ou seja, de há pouco mais de quatro meses atrás…).

E se é verdade que não se pode negar uma marca de inserção social e laboral ao arguido (que gere a sua própria empresa), também não será menos verdade que essa marca de inserção não o impediu nunca, até ser detido e preso preventivamente, de recalcitrar nos comportamentos integradores (pelo menos do ponto de vista indiciário) do crime de violência doméstica.

Não podendo nós deixar, a final, de apontar o óbvio: o arguido foi-se envolvendo do modo persistente, violento e incansável que já acima referimos, em uma “fixação” constante na pessoa e no “mundo” da assistente, durante um lapso substantivo de tempo em parte coincidente com o decurso do período da suspensão de execução da pena de 2 anos e 3 meses de prisão de que beneficiou, através de decisão judicial de 11 de Fevereiro de 2025, pela prática de um crime de… violência doméstica…

Portanto – e apesar de a vítima da mencionada condenação penal do recorrente não ser a ora assistente –, como, em consciência e atenção à realidade e ao normal porvir das coisas, poderíamos dizer, como faz o recorrente, inexistir o perigo de continuação da actividade criminosa?

Fica a pergunta…

Alega também o recorrente que não se verifica o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas.

Tal perigo tem de resultar da natureza e circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, relevando para o mesmo a alteração negativa que prejudique ou cause dano à ordem pública e não apenas a mera alteração ou inquietação gerada no meio social mais próximo dos intervenientes do caso trazido a juízo.

Na nossa hipótese, parece ser de reconhecer que o perigo agora aludido – perigo de perturbação da ordem e tranquilidade pública – não se mostra patente. E isto no sentido de que a actuação do arguido foi incidindo sempre, apesar de tudo, em um foco definido, a saber, na assistente, e só de um modo que poderíamos dizer “indirecto” naquele(s) que circunstancialmente a acompanhava(m) em cada momento e, admite-se, terá(ão) sido(s) pelo recorrente visto(s) como momentâneo(s) “intruso(s)”. Nessa estrita medida, apesar de as “cenas” em público protagonizadas pelo recorrente (pense-se, uma vez mais, no dia 3 de Junho de 2025…) serem certamente intranquilizadoras para quem com a assistente se encontrava e até um ou outro eventual ignoto circunstante, cremos, ainda assim, não dispormos de material indiciário bastante para dizer que a ordem ou a tranquilidade pública geral (ou da sociedade em geral, que não apenas do grupo social e de amizade a que pertence a assistente) se alterou em termos tais que na mesma possamos ver um forte dano ou abalo (sobre isto, em geral, Profs. Elisabete Ferreira e Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos” e Volume I citados, págs. 926 e 927).

Assim, na específica parte acabada de analisar, não acompanhamos o Tribunal a quo, pois entendemos não se verificar o perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas, ocorrendo, sim, e em grande medida, o perigo de continuação da actividade criminosa.

            Finalmente, sustenta ainda o recorrente que, mesmo a entender-se presumível a existência de perigo de continuação da actividade criminosa, o mesmo poderá ser controlado com medidas de afastamento, sistemas de teleassistência (“botão de pânico”) e controlo do recorrente, proibição de contactos e apresentações periódicas, para além, no limite, da obrigação de permanência na habitação, mediante vigilância electrónica.

            Sendo indiscutível que, como assinalámos, o crime indiciado, por corresponder à categoria de “criminalidade violenta”, admite a aplicação de uma medida coactiva da gravidade da prisão preventiva (não se colocando, por isso, qualquer questão de legalidade em tal aplicação), deveremos rapidamente retornar, ainda assim, por via da afirmação do recorrente, à problemática dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade na mobilização das medidas de coacção. Cabendo também ver, por fim, e sendo tal pertinente, se foram ou não atendidas in casu preocupações de subsidiariedade.

            Sobre o ponto acabado de referir, dado o (evidente, sério e consistente) perigo, por nós já escalpelizado, de continuação da actividade criminosa pelo recorrente – e do específico tipo de actividade ilícita em questão –, chamaremos apenas a atenção para os seguintes aspectos.

            Desde logo, a ideia de necessidade aponta para a circunstância de que «(…) as medidas de coacção só podem ser aplicadas em função de exigências processuais de natureza cautelar. Só em função deste tipo de exigências é que a liberdade das pessoas pode ser limitada (…), à luz de um princípio de proporcionalidade em sentido amplo (arts. 27º/n.º 1 e 18º/n.º 2 C.R.P.)»; depois, o requisito de adequação tem que ver com o princípio de que as «(…) as medidas de coacção a aplicar em concreto sejam adequadas às exigências cautelares que o caso requer»; finalmente, «segundo o princípio da proporcionalidade, (…) as medidas de coacção devem ser proporcionais à gravidade do crime e às sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas (…)» (Prof. Maria João Antunes, “Direito Processual Penal” citado, págs. 167 a 169).

            Ora, salvo o devido respeito, a discussão do nosso caso não terá tanto que ver com a atitude de “garantia” actualmente expressa pelo recorrente de que a experiência reclusiva o fez interiorizar fortemente a necessidade de manter o afastamento da assistente (ainda que esta o queira voltar a procurar), mas mais, e sobretudo, com o tipo de comportamento intersubjectivo do qual, na prática, o recorrente nunca se absteve. A ser verdade começar ele, só agora, a ganhar a dita consciência, poderíamos certamente perguntar qual a razão pela qual, não obstante ter sido há pouco mais de oito meses a esta parte condenado por um crime da mesmíssima natureza e sendo-lhe dado o voto de confiança inerente à suspensão de execução da pena, não “compreendeu” então aquela necessidade de afastamento em relação a condutas como as que o conduziram a uma experiência reclusiva…

            E não adiantará esconder o que, em termos objectivos, a possibilidade de exercício do seu ius ambulandi lhe foi incutindo em toda esta questão: a sensação de que, afinal, inexistiam barreiras para o livre curso da sua atitude agressiva e persecutória quanto à assistente.

            Não sejamos ingénuos: uma parte significativa da matéria indiciada denota, sem margem para grandes dúvidas, quer a capacidade de “monitorização” do recorrente em relação à assistente, quer a subsequente disponibilidade de acercamento físico e inerente “cerco”, quer, ainda, a vontade de o fazer – sem pensar em recuar –, sempre que a sua personalidade a tal o impeliu.

            Por isso mesmo, não devendo nós desprezar o nuclear papel do referido ius ambulandi do recorrente em todo este processo factual, concordamos com a resposta do Ministério Público junto da primeira instância ao recurso aqui em análise: «(…) atenta a personalidade do arguido, a medida de coacção de proibição de contactos não se afigura adequada e capaz de acautelar o risco de repetição dos comportamentos tidos até então, visto que apesar de o arguido já contar com uma condenação pela prática deste tipo legal de crime, tal condenação não o inibiu de repetir uma conduta semelhante e que, com grande grau de probabilidade, se voltará a repetir. Por seu turno, já quanto à medida de coacção de permanência na habitação, a mesma não se afigura como adequada, uma vez que a residência da vítima e do arguido distam 10 quilómetros, e, atento o modo como o arguido maltratava a vítima (perseguindo-a), não deverá ser a mesma aplicada, em virtude de o arguido se poder deslocar com facilidade à residência da vítima, bastando para o efeito sair de casa e conduzir até ao local de residência da vítima, acabando novamente por a perseguir e intimidar».

            Pelo que se nos afigura necessário à pacificação das exigências cautelares do caso, adequado às concretas condicionantes impostas pela personalidade e modo de agir do recorrente, e proporcional à gravidade (e moldes factuais concretos) do crime em causa e à sanção que previsivelmente poderá vir a ser-lhe aplicada em sede de decisão substantiva final, manter, no presente contexto, o mesmo recorrente sujeito à medida de coacção de prisão preventiva em que actualmente se encontra (cfr., a propósito de um caso dotado de alguma homologia de características com o presente, o Ac. Rel. Évora de 3/3/2015, in www.dgsi.pt).

            Uma vez mais obtendo improcedência, pois, o presente recurso.


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            III. DECISÃO


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            Por todo o exposto:

            - Acordam os Juízes desta Relação de Coimbra em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido …, mantendo-se a decisão recorrida do Tribunal a quo que determinou a sujeição do recorrente à medida de coacção de prisão preventiva.


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            Custas pelo recorrente, fixando-se em 3 U.C. a taxa de justiça devida.


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            Notifique, e comunique de imediato à primeira instância, com cópia.


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(Revi, e está conforme)

D.S.

António Miguel Veiga (Juiz Desembargador Relator)

Paulo Registo (Juiz Desembargador Adjunto)

Paula Carvalho e Sá (Juíza Desembargadora Adjunta)