Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
329/25.5T8FND-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO CORREIA
Descritores: CONVITE A REQUERER A INVERSÃO DO CONTENCIOSO
RECORRIBILIDADE
DESTITUIÇÃO DE TITULARES DE ÓRGÃOS SOCIAIS
PEDIDO DE SUSPENSÃO DO CARGO
DECISÕES COM CARÁTER DEFINITIVO
INSUSCEPTIBILIDADE DE INVERSÃO DO CONTENCIOSO
Data do Acordão: 09/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE COMÉRCIO DO FUNDÃO DO TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO
Texto Integral: N
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTIGOS 6.º, 152.º, N.º 4, 369.º, 376.º, N.º 4, 630.º, N.º 1, 988.º E 1055.º, N.ºS 1 E 2, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: I – Ainda que se admita que o juiz possa, sem requerimento prévio da parte, a coberto do dever de gestão processual, efetuar convite para ser requerida a inversão do contencioso a que se refere o art. 369.º do CPC, esse convite corresponde a um poder funcional (ou poder-dever), e não a uma atividade burocrática ou administrativa decorrente do mero arbítrio do juiz, exercitado no uso de critérios de conveniência ou de oportunidade, pelo que a decisão respetiva não é irrecorrível.

II – Não tendo o tribunal recorrido tomado posição quanto à suscitada exceção da incompetência absoluta do tribunal para apreciação do pedido de destituição dos sócios (art. 1055.º do CPC), tendo remetido a apreciação dessa matéria para a decisão final, de acordo com o disposto no art. 595.º, n.º 4 do CPC, o recurso é inadmissível na parte em que se pretendia a declaração de incompetência por parte do tribunal.

III – Não obstante o tribunal recorrido ainda não ter apreciado e decido a questão relativa à existência, ou não, de uma convenção de arbitragem válida (apreciação relegada para a decisão final), eventualmente excludente da intervenção dos tribunais estaduais quanto ao pedido de destituição dos órgãos sociais, dada a natureza cautelar do pedido enxertado de suspensão dos titulares desses órgãos, inserido na ação especial prevista no art. 1055.º do CPC, os tribunais estaduais gozam de competência para a apreciação deste último (art. 7.º da LAV).

IV – Ainda que o processo previsto no art. 1055.º do CPC. se apresente como de jurisdição voluntária, e, consequentemente, com o valor das resoluções submetido ao que decorre do art. 988.º do CPC, as decisões proferidas no seu âmbito, ao contrário do que ocorre com as relativas aos procedimentos cautelares (a precisarem de uma “causa principal” para a subsequente definição dos direitos), apresentam caráter definitivo, não sendo suscetíveis da inversão do contencioso a que se refere o art. 369.º do CPC., também não lhes sendo aplicável subsidiariamente esse regime por força do disposto no art. 376.º, n.º 4 do CPC.

V – Acresce que o pedido de suspensão em causa, apesar das suas características cautelares e preventivas, não corresponde a “procedimento cautelar comum”, estando, antes, submetido a regras procedimentais próprias, constantes dos arts. 292.º a 295.º e 986.º a 988.º do CPC, que excluem a aplicabilidade do regime da inversão do contencioso.


(Sumário elaborado pelo Relator)
Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes que integram este coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]:

I-Relatório

AA, contribuinte fiscal n.º ...76, residente na Rua ..., ... (Lote ...0), ..., ..., ...,

intentou contra

A..., Lda., com sede na Quinta ..., ... ..., freguesia ... e ..., concelho ..., matriculada na conservatória do registo comercial, sob o número único de matrícula de pessoa coletiva ...80,

BB, contribuinte fiscal n.º ...35 residente no Estrada ..., ..., ... ... (“2.º Requerido”)

e

CC, casado, contribuinte fiscal n.º ...69, residente na Rua ..., ... ...

a presente ação especial prevista no art. 1055.º do CPC, pedindo, com os fundamentos que aduziu,

a. Ser, de forma cautelar (…), declarada a imediata suspensão dos sócios BB e CC da gerência da A..., Lda, ficando impedidos de exercer quaisquer funções inerentes ao cargo de gerente e consequentemente, sejam condenados a:

a) entregar as chaves de acesso às instalações da sociedade 1.ª Requerida;

b) entregar os códigos e cartões de acesso e movimentação das contas bancárias de que a sociedade 1.ª Requerida é titular;

c) abster-se de praticar quaisquer atos em representação da sociedade 1.ª Requerida, designadamente, movimentação das contas bancárias da sociedade, encomendas, compras, vendas, pagamentos e outros;

d) abster-se de assumir quaisquer compromissos ou obrigações em nome da sociedade 1.ª Requerida;

e) abster-se de entrar e/ou permanecer nas instalações da sociedade 1.ª Requerida.

b. Ser julgada definitivamente a destituição judicial dos sócios BB e CC da gerência da A..., Lda.”.

                                           *

Os Requeridos BB e CC contestaram (ref. 4016350 e 4020638), suscitando, ao demais, a incompetência absoluta do tribunal judicial por, de acordo com <<a cláusula 20.ª dos estatutos da A..., Lda (…) cláusula integrada no capítulo quinto dos mesmos estatutos, sob a epígrafe “Disposições gerais” que, as dúvidas resultantes da aplicação dos estatutos, bem como quaisquer diferendos que possam vir a ocorrer entre os sócios ou entre estes e a Sociedade, poderão ser submetidos, com vista à sua conciliação, por iniciativa da Sociedadeou qualquer um dos sócios, a uma pessoa, designada ou aceite pela assembleia geral, reconhecida como especialmente qualificada para o efeito ou resolvidas por arbitragem nos termos do Código de Processo Civil >>, norma que <<só pode ser entendida, na inteireza da sua letra e da sua substância, como prescrevendo uma verdadeira e própria cláusula compromissória, devendo ser lida no sentido deter sido convencionado que, em caso de dúvida de interpretação dos estatutos, ou de litígio ou diferendo entre os sócios e entre algum ou alguns deles e a Sociedade mesma, deverá constituir-se uma arbitragem adrede, destinada a julgar do litígio emergido>> pelo que, <<a Requerente ao intentar esta ação, de imediato, sem diligenciar pela instituição da arbitragem, desrespeitou a cláusula compromissória acima mencionada (…) pelo que deve ser dada por verificada, no caso, a exceção dilatória da preterição de tribunal arbitral, prevista na alínea b) do art.º 96º do Código de Processo Civil>>.

                                           *

A Requerente pronunciou-se (ref. 4025473), manifestando o entendimento que, de acordo com o art. 7.º da Lei da Arbitragem Voluntária, “não é incompatível com uma convenção de arbitragem o requerimento de providências cautelares apresentado a um tribunal estadual, antes ou durante o processo arbitral, nem o decretamento de tais providências por aquele tribunal”.

                                                               *

Em 25 de junho de 2025 a Sra. Juíza proferiu o seguinte despacho:

“Dispõe o artigo 5.º, n.º 1 da Lei da Arbitragem Voluntária – Lei n.º 63/2011, de 14 de Dezembro – que «o tribunal estadual no qual seja proposta ação relativa a uma questão abrangida por uma convenção de arbitragem deve, a requerimento do réu deduzido até ao momento em que este apresentar o seu primeiro articulado sobre o fundo da causa, absolvê-lo da instância, a menos que verifique que, manifestamente, a convenção de arbitragem é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível», de onde decorre que o tribunal judicial, desde que o Réu o requeira (no momento indicado) e desde que considere que a questão colocada está abrangida por uma convenção de arbitragem, não poderá deixar de absolver o demandado da instância, a não ser que seja patente que a convenção «é nula, é ou se tornou ineficaz ou é inexequível» (efeito negativo da convenção de arbitragem).

Ou seja, o tribunal judicial só poderá deixar de proferir a pertinente absolvição da instância se for manifesto, claro, patente, a invalidade ou a inexequibilidade da cláusula, cf. a este propósito, entre muitos outros, Acórdão do STJ de 02.06.2015, referente ao processo nº 1279/14.6TVLSB.S1, disponível in www.dgsi.pt.

Uma vez que os requeridos nestes autos suscitaram esta exceção e que a requerente já a exerceu o competente contraditório relativamente à mesma, que apesar de espontâneo se admite, porque sempre seria conferido, a sua procedência impunha a prolação imediata de despacho no referido sentido.

Sucede que a exceção invocada não pode proceder, pelo menos, nos exatos termos pretendidos pelos requeridos, o que impõe que o Tribunal profira este despacho [que podemos qualificar de pré-saneador] a apreciar especificamente esta questão.

Conforme referimos no despacho liminar datado de 29.04.2025, de acordo com o regime processual decorrente do artigo 1055.º, n.ºs 1 e 2 do CPC, o interessado que pretenda a destituição judicial de titulares de órgãos sociais pode requerer a suspensão do cargo que será decidida imediatamente, após a realização das diligências necessárias.

O pedido de suspensão configura, assim, um pedido autónomo e cumulável nos termos expressos da lei, que atenta a feição do processado consagrado revela natureza urgente, reconduzível a um procedimento cautelar e que se não compadece com os normais trâmites do processo de destituição em que é deduzido – cf. neste sentido Abrantes Geraldes in Temas da Reforma do Processo Civil, III vol., Procedimento Cautelar Comum, pg. 102, nota 146 e jurisprudência aí citada – sendo que, por regra, após a decisão do pedido de suspensão se passará a tramitar o pedido de destituição.

A requerente deduziu ambos os pedidos: suspensão dos dois gerentes da sociedade requerida, cumulando-o com o pedido de destituição de ambos.

Nem os requeridos sustentaram, nem se colocam quaisquer dúvidas de que o tribunal judicial é competente para o conhecimento de procedimento cautelar, mesmo que exista uma convenção para resolver por árbitros os litígios que surjam entre as partes, sendo a competência para decretar providências cautelares concorrente entre os tribunais estaduais e arbitrais, nos termos dos artigos 7º e 29º da Lei da Arbitragem Voluntária, aprovada pela Lei nº 63/2011, de 14 de dezembro.

Assim sendo, não pode haver dúvidas de que este Tribunal é competente para apreciar a primeira pretensão deduzida pela requerente: pedido de suspensão, o mesmo não se podendo defender relativamente à segunda: pedido de destituição.

Aqui chegados, cumpre, contudo, referir o seguinte.

Não obstante o regime constante no sobredito artigo 1055.º do CPC, a verdade é que do mesmo apenas resulta a possibilidade de o pedido cautelar de suspensão ser deduzido em simultâneo com o pedido de destituição – sendo este, aliás, o procedimento processual habitual nos nossos tribunais –, não existindo, contudo, qualquer impedimento que aquele pedido de suspensão seja proposto como procedimento cautelar prévio.

Caso tal suceda, nada obsta, também, a que se lance mão do regime geral da inversão do contencioso, cuja dedução seria inútil se proposta simultaneamente a suspensão e a destituição, mas já o não será se o Tribunal só puder apreciar a primeira, desde logo por só deter competência para conhecer daquela.

Conforme decidido no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 21.12.2021, referente ao processo n.º 12144/21.0T8LSB-A.L1-7, disponível in www.dgsi.pt, a inversão do contencioso (artigos 369.º e ss. do CPC) não converte a decisão do procedimento cautelar em decisão definitiva da causa de que aquele constituiria preliminar, antes tem por efeito dispensar o requerente do ónus de intentar tal ação declarativa, transferindo tal ónus para o requerido. Nessa medida, a decisão de tribunal estadual que defira o pedido de inversão do contencioso, não está viciada de incompetência absoluta por preterição de Tribunal arbitral (artigos 64.º, 577.º, al. a), e 578.º, todos do CPC). Nestas circunstâncias os requeridos mantêm a faculdade de intentar ação declarativa para decisão definitiva do litígio, sendo que a circunstância de o procedimento cautelar ter corrido termos em Tribunal estadual não o impede de intentar aquela ação no Tribunal arbitral.

Acresce que a inversão do contencioso aplica-se apenas a providências cuja natureza antecipatória permita realizar a composição definitiva do litígio e, expressamente, a lei indica que, dos procedimentos cautelares especificados previstos no Título IV do CPC, se aplica à restituição provisória de posse, à suspensão de deliberações sociais, aos alimentos provisórios e ao embargo de obra nova – cfr. n.º 4 do artigo 376.º do CPC.

Ora, a suspensão de titular de cargo social tem natureza antecipatória, permitindo realizar a composição definitiva do litígio e mesmo não estando prevista no Titulo IV, a verdade é que a aplicação da figura legal da inversão do contencioso não se fica pelos procedimentos elencados na sobredita norma, sendo admissível a sua aplicação às demais providências cautelares previstas em legislação avulsa ou em processos especiais, desde que a sua natureza possibilite realizar a composição definitiva do litígio.

Em face do exposto, e sem prejuízo da eventual necessidade de o Tribunal se vir a pronunciar acerca da sua incompetência absoluta para conhecimento do segundo pedido deduzido, o que fará em sede de despacho final, convida-se a requerente, ao abrigo do disposto no artigo 6.º do CPC, a, querendo, requerer a inversão do contencioso nos termos supra expostos”.

                                           *

Os Requeridos BB e CC interpuseram recurso dessa decisão, fazendo constar nas alegações apresentadas as conclusões que se passam a transcrever:

(…).

                                           *

A Ré respondeu defendendo o acerto da decisão recorrida com os fundamentos seguintes:

(…).

   *

Colhidos os vistos, foi realizada a conferência, com obtenção dos votos dos Exmos. Juízes Desembargadores Adjuntos.

    *

II-Questão prévia

Da inadmissibilidade do recurso

Na resposta ao recurso a apelada defendeu, a título de questão prévia, a inadmissibilidade do recurso na parte em que a Sra. Juíza efetuou o convite à Requerente para, querendo, requerer a inversão do contencioso, já que, a seu ver, estamos em presença de despacho proferido no uso legal de um poder discricionário.

Estatui-se no n.º 1 do art. 630.º do CPC “Não admitem recurso os despachos de mero expediente nem os proferidos no uso legal de um poder discricionário”.

Na situação dos autos está em causa o convite efetuado pelo juiz para a parte, querendo, requerer a inversão do contencioso a que se refere o art. 369.º do CPC.

Como resulta expressamente da lei, esta inversão está dependente de requerimento da parte do requerente de procedimento cautelar.

 A Sra. Juíza, apesar da inexistência de qualquer requerimento nesse sentido, entendeu efetuar o convite à parte para requerer a inversão do contencioso ao abrigo do disposto no art. 6.º do CPC.

Não está em causa para o objeto da discussão (admissibilidade do recurso) saber se era legítimo à Sra. Juíza efetuar o convite para requerer essa inversão (e, sem prejuízo de melhor estudo, afigura-se que o ónus desse impulso se encontra especialmente imposto pela lei às partes e, consequentemente arredado dos deveres de cooperação e gestão processual legalmente deferidos ao juiz), antes o de saber se esse exercício, efetuado a coberto do dever de gestão processual impresso no art. 6.º do CPC, corresponde a um poder discricionário.

Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, vol. V, págs. 253 e 254) conceptualizou o poder discricionário como o poder “absolutamente livre, subtraído a quaisquer limitações objectivas ou subjectivas” (…) uma norma em branco: a vontade do juiz é que preenche a norma, é que, em cada caso concreto, lhe molda o conteúdo”.

O legislador parece continuar a respeitar essa conceção, resultando do art. 152.º, n.º 4 do CPC considerarem-se “proferidos no uso legal de um poder discricionário os despachos que decidam matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador”.

Do exposto decorre que se a lei atribui ao juiz o poder de decidir sem sujeição a limites ou condicionalismos, confiando a decisão da matéria exclusivamente ao seu prudente arbítrio, estaremos perante um poder discricionário; se, diversamente, pese embora confira ao juiz a iniciativa na apreciação e decisão de certos atos, estabelece determinados limites ou condicionalismos a essa iniciativa, impondo-lhe um dever de atuação, então, já não pode considerar-se discricionário o poder conferido.

Ora, o legislador, ao estabelecer expressamente a atuação do juiz relativa à gestão processual como um “dever”, excluiu as decisões proferidas nesta sede como sendo decorrentes de poder discricionário.

Tal dever corresponde antes a um poder funcional (ou poder-dever), atribuído com a finalidade de tutelar interesses das partes e o interesse público na boa administração da Justiça, cujo exercício se impõe sempre que se verifique o condicionalismo previsto na lei, e não a uma atividade burocrática ou administrativa decorrente do mero arbítrio do juiz, exercitado no uso de critérios de conveniência ou de oportunidade.

Do exposto resulta que, tendo o aludido convite sido efetuado no âmbito de um dever legal, não corresponde a uma decisão irrecorrível, mantendo-se, consequentemente, a admissibilidade do recurso.

III - Objeto do recurso

Como é sabido, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso que possam ser decididas com base nos elementos constantes do processo e que não se encontrem cobertas pelo caso julgado, são as conclusões do recorrente que delimitam a esfera de atuação deste tribunal em sede do recurso (arts. 635, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.ºs 1, 2 e 3 e 640.º, n.ºs 1, 2 e 3 do CPC).

No caso, perante as conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:

Saber se:
a) O tribunal omitiu decisão quanto à incompetência absoluta do tribunal, devendo ter declarado essa incompetência e absolvido os requeridos da instância;
b) Existiu erro de qualificação jurídica ao considerar que o pedido formulado nos autos corresponde a um procedimento cautelar, não sendo, como tal, admissível o convite à Requerente para requerer a inversão do contencioso.

                                          *

IV-Fundamentação

A – Da competência do tribunal

No entender dos recorrentes resulta da cláusula 20.ª dos estatutos da Requerida A..., Lda. uma cláusula compromissória que determina a jurisdição do tribunal arbitral para o julgamento das matérias correspondentes a litígios entre os sócios ou entre eles e a sociedade, pelo que, incidindo os presentes autos em litígio dessa natureza, sem intervenção do tribunal arbitral, estamos em presença de incompetência absoluta nos termos do art. 96.º b) do CPC que devia ter sido declarada.

Antes de avançarmos na apreciação da questão importa deixar assinalada que na decisão recorrida o tribunal não tomou posição quanto à arguida exceção da incompetência absoluta do tribunal para apreciação do pedido de destituição dos sócios, tendo expressamente remetido a apreciação dessa matéria para a decisão final – “e sem prejuízo da eventual necessidade de o Tribunal se vir a pronunciar acerca da sua incompetência absoluta para conhecimento do segundo pedido deduzido, o que fará em sede de despacho final”.

Significa isto, de acordo com o disposto no art. 595.º, n.º 4 do CPC, o recurso se apresenta inadmissível na parte em que se pretende que o tribunal declare a incompetência absoluta para a apreciação do 2.º pedido formulado nos autos (pedido de destituição).

                                          *

Quanto à invocada incompetência absoluta para a apreciação do pedido de suspensão dos recorrentes como gerentes da sociedade que foi objeto de apreciação pelo tribunal recorrido:

O art. vigésimo dos estatutos da Requerida A..., Lda. tem a seguinte redação:

As dúvidas resultantes da aplicação dos estatutos, bem como quaisquer diferendos que possam vir a ocorrer entre os sócios ou entre estes e a Sociedade, poderão ser submetidas, com vista à sua conciliação, por iniciativa da Sociedade ou de qualquer dos sócios, a uma pessoa designada ou aceite pela Assembleia Geral reconhecida como especialmente qualificada para o efeito, ou resolvidas por arbitragem nos termos do Código do Processo Civil”.

Decorre inequivocamente da citada norma dos estatutos terem os contratantes previsto que todo o manancial de potenciais questões sobrevindas (dúvidas na aplicação dos estatutos e divergências entre os sócios ou entre estes e a sociedade[2]) pudessem ser submetidas à conciliação efetuada por pessoa especialmente qualificada (a designar ou a ser aceite na assembleia geral), ou resolvidas através da arbitragem.

Importa assumir que o tribunal recorrido ainda não tomou posição a este propósito, considerando – ou não – essa norma como consubstanciadora de uma convenção de arbitragem/cláusula compromissória, com o sentido e alcance impresso pelo art. 1.º da Lei n.º 63/2011, de 14 de dezembro, que determina a submissão obrigatória à arbitragem para a resolução das dívidas e diferendos em causa[3].

E, com efeito, não se apresenta como inequívoca a resposta à questão de saber se a inclusão no texto em causa do vocábulo “poderão” (verbo poder, futuro, 3.ª pessoa do plural), deva ser interpretada no sentido de se ter pretendido que, quer a conciliação, quer a resolução por arbitragem, apresentassem caráter facultativo[4] relativamente aos tribunais estaduais, ou, antes, para conferir a mera alternativa entre a conciliação e a arbitragem[5], sendo obrigatório o recurso a alguma delas, e portanto, com exclusão da intervenção dos tribunais estaduais.

Seja como for, posto que apenas incumbe a este tribunal aferir se, para efeitos do pedido de suspensão dos órgãos sociais, ocorreu ou não preterição da arbitragem, a opção por qualquer das alternativas apresenta-se indiferente.

É que, ainda que se entenda estarmos em presença de uma convenção de arbitragem válida, excludente da intervenção dos tribunais estaduais para a resolução das “dúvidas resultantes da aplicação dos estatutos, bem como quaisquer diferendos que possam vir a ocorrer entre os sócios ou entre estes e a Sociedadedada a natureza cautelar do pedido de suspensão dos titulares dos órgãos sociais suscetível de ser inserido na ação especial prevista no art. 1055.º do CPC, de acordo com o art. 7.º da LAV os tribunais estaduais gozam de competência para a sua apreciação.

Com efeito, nos termos desse preceito, “Não é incompatível com uma convenção de arbitragem o requerimento de providências cautelares apresentado a um tribunal estadual, antes ou durante o processo arbitral, nem o decretamento de tais providências por aquele tribunal”, sendo que, como é entendimento jurisprudencial dominante, o pedido de suspensão enxertado no processo de destituição apresenta uma óbvia natureza cautelar, a decidir antes do pedido de suspensão (neste sentido, v.g., os acórdãos do TRP de 10.02.2015, do TRG de 30.05.2013 e do TRE de 21.04.2016).

Assim, no que respeita à incompetência para a apreciação do primeiro dos pedidos formulados (suspensão), importa manter o decidido.

B- Da natureza da ação interposta e possibilidade de convite para a parte, no âmbito do pedido de suspensão dos titulares de órgãos sociais, requerer a inversão do contencioso.

 O tribunal recorrido, tendo ponderado a possibilidade de se vir a declarar incompetente para a apreciação do pedido de destituição dos órgãos sociais pretendida, e ante a consideração da ação, nesta parte (suspensão), como uma “providência cautelar”, decidiu convidar a Requerente a, querendo, requerer a inversão do contencioso previsto no art. 369.º do C.P.C.

Já os recorrentes defendem que o pedido de suspensão cumulado na ação não é um procedimento cautelar autónomo, nem se integra no regime dos arts. 362.º e segs., pelo que a inversão do contencioso não apresenta suporte legal.

                                          *

Tem-se por firme a ideia de que as decisões judiciais não são o campo de discussão teórica e conceptual da dogmática jurídica, antes o momento, a partir das diversas fontes do direito, de tomada de posição ante a concreta pretensão deduzida em juízo.

É com esta assumida linearidade que nos afastamos da possibilidade de aplicação neste campo do disposto no art. 369.º do CPC.

Isto porque, mau grado a inserção do processo previsto no art. 1055.º do CPC. como de jurisdição voluntária (Livro V, Título XV do CPC) – e, consequentemente, com o valor das resoluções submetido ao que decorre do art. 988.º do CPC –, as decisões proferidas no seu âmbito, ao contrário do que ocorre com as relativas aos procedimentos cautelares (a precisarem de uma “causa principal” para a subsequente definição dos direitos), apresentam caráter definitivo.

Ou seja, a inversão do contencioso, que mais não representa do que a dispensa da propositura da ação principal e definitividade do decidido se não for intentada a ação destinada a impugnar a existência do direito acautelado (art. 369.º e 371.º do CPC), não incorpora qualquer relevância em sede da decisão proferida na ação especial do art. 1055.º do CPC, porquanto esta, já é, em si mesma, definitiva.

Claro está que, no âmbito do processo especial previsto no art. 1055.º do CPC, a suspensão do titular de órgão social, tem como pressuposto o pedido de destituição, não sendo, de resto, admitida a possibilidade de no âmbito desta ação haver lugar à apreciação da suspensão, sem que o pedido de destituição seja efetuado (cfr. neste sentido João Labareda, Notícia sobre os processos destinados ao exercício de direitos sociais, Direito e Justiça, 1999, págs. 79 e 80).

Ora, ainda que se admita a autonomia das decisões respetivas (cautelarmente, e decidida a título imediato, a suspensão, e, na decisão final, a destituição), como o fez o acórdão do TRP de 28.05.2009, proferido no processo 781/06 (a que não se conseguiu ter acesso mas citado por António Santos Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa no Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina Vol. II, 2020, reimpressão, pág. 501), apresenta-se como inconciliável a manutenção de uma suspensão decretada com uma improcedência, ou exceção impeditiva do conhecimento, quanto ao pedido final de destituição dos titulares dos órgãos sociais.

Acresce que no art. 376.º, n.º 4 do CPC se encontram enunciados os processos em que o regime da inversão do contencioso é aplicável, aí não se incluindo o processo especial contemplado no art. 1055.º, n.º 4 do CPC, precisamente porque este último, já é suscetível de, por si próprio, realizar a composição definitiva do litígio.

Diga-se ainda, que o pedido de suspensão em causa, mau grado as suas características cautelares e preventivas, não corresponde a “procedimento cautelar comum”, previsto no art. 362.º e segs. do CPC, estando, antes, submetido a regras próprias, constantes dos arts. 292.º a 295.º e 986.º a 988.º do CPC, que excluem a aplicabilidade do regime da inversão do contencioso – o qual, de resto, só teria utilidade para a situação que já vimos não poder ocorrer – a de procedência da suspensão e improcedência da destituição e considerar-se que, ainda assim, dever manter-se a decisão de suspensão.

Importa, como tal, revogar a decisão recorrida nesta parte, com a consequente ineficácia da notificação efetuada à Requerente para requerer a inversão do contencioso quanto ao pedido efetuado na ação em a.

                                           *             

Sumário[6]

(…).

 V - DECISÃO

Nestes termos, sem outras considerações, acorda-se em:
a) não admitir o recurso quanto à suscitada questão da incompetência absoluta do tribunal para apreciação do pedido de destituição judicial dos sócios BB e CC da gerência da A..., Lda.,
b) revogar a decisão recorrida na parte em que convidou a requerente, ao abrigo do disposto no artigo 6.º do CPC, a, querendo, requerer a inversão do contencioso
e
c) julgar, no demais, improcedente o recurso, confirmando-se a decisão recorrida.
                                           *

Custas pelos recorrentes e pela recorrida na proporção de 1/5 e 4/5, respetivamente.

Coimbra, 30 de setembro de 2025


______________________

(Paulo Correia)

______________________

  (Chandra Gracias)

_______________________

(Catarina Gonçalves)




[1] Relator – Paulo Correia
Adjuntos – Chandra Gracias e Catarina Gonçalves.
[2] - Não sendo este o momento para a discussão dessa questão, sobressai a interrogativa quanto ao cumprimento do dever de especificação legalmente imposta na formulação da cláusula compromissória, suscetível de afetar a sua validade (cfr. art. 2.º, n.º 6 da LA). 

[3] - À data da constituição da Sociedade (2 de setembro de 1987) a arbitragem encontrava-se submetida ao regime constante do Decreto-Lei n.º 31/86, de 29 de agosto.

[4]- Num caso similar (processo 01849/12.7BEBRG, 22.05.2015, disponível em www.dgsi.pt), o Tribunal Central Administrativo Norte decidiu que, “a utilização do verbo “poder” alinha-se com o reconhecimento de que, por força do acordo a que chegaram, as partes têm a possibilidade, a faculdade, de acionar um Tribunal Arbitral para dirimirem o seu litígio. Um poder, não uma obrigação”.

[5] - Embora com textos de cláusulas não coincidentes, parecem ir nesse sentido as decisões proferidas nos Acórdãos do STJ de 12.11.2019 (processo 8927/19.7T8LSB-A.L1.S1) e de 20/01/2011 (processo 2207/09.6TBSTB.E1.S1).
 
[6] - Da exclusiva responsabilidade do relator (art. 663.º, n.º 7 do CPC).