Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | PAULO GUERRA | ||
Descritores: | CONTRA-ORDENAÇÕES RODOVIÁRIAS MUITO GRAVES EXECUÇÃO CONTÍNUA DA SANÇÃO ACESSÓRIA DA INIBIÇÃO DE CONDUÇÃO INEXISTÊNCIA DE PREVISÃO DS SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA SANÇÃO ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR INEXISTÊNCIA DE MEDIDA ALTERNATIVAS - LIMITAÇÃO TEMPORÁRIA E NÃO ESSENCIAL DO DIREITO AO TRABALHO | ||
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Data do Acordão: | 05/14/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA LOUSÃ – JUIZ 1 - TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO CRIMINAL | ||
Decisão: | CONFIRMADA | ||
Legislação Nacional: | ART. 32º, Nº 10, DA CRP; ARTS 18, Nº1 E. 50º DO RGCOC; ARTºS 81º, NºS 1 E 6, AL. B), 133º, 136º, 138º, 139º, 141º, 146º, AL. J), E 147º, DO CÓDIGO DA ESTRADA;ARTIGO 18º, Nº 1, DO DL 433/82, DE 27/10, ARTIGO 50º, N.º 1, DO CÓDIGO PENAL. | ||
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Sumário: | 1. O legislador não estabeleceu qualquer excepção ou limitação à execução da sanção acessória para contra-ordenações rodoviárias muito graves, nem previu que a mesma fosse suspensa na sua execução, razão pela qual permitir que tal sanção acessória seja cumprida ao sabor dos interesses do agente da contra-ordenação atenta contra o princípio da legalidade também plasmado para o ilícito de mera ordenação social.
2. Não está prevista a substituição de tal sanção por medida alternativa, como a frequência de acções de sensibilização rodoviária. 3. Não existe fundamento legal para a pretensão de cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir fora do horário laboral do condenado pois as disposições legais relativas ao modo de cumprimento de tal pena acessória apontam, inelutavelmente, para a necessidade da execução contínua de tal sanção. 4. O conteúdo essencial do direito ao trabalho que o arguido vê ofendido com a aplicação da sanção acessória da inibição de condução não é atingido, na medida em que a ponderação que resulte do confronto deste direito do trabalho com a protecção de outros bens - que fundamentam a sua limitação, através da aplicação das penas principal e acessórias infligidas - não redunda na aniquilação ou, sequer, na violação desproporcionada de qualquer direito fundamental ao trabalho, mas antes numa limitação temporária. (Sumário elaborado pelo Relator) | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:
I - RELATÓRIO
1. No processo de recurso de contra-ordenação nº 4997/24.7T9CBR do Juízo de Competência Genérica da Lousã, em que é recorrente o arguido AA, por sentença datada de 27 de Janeiro de 2025, foi julgado improcedente o recurso interposto, mantendo-se, na íntegra, a decisão final da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária que o condenou na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 90 dias, «pela prática de uma contra-ordenação, a título de negligência, p.p. pelos artigos 81º, nºs 1 e 6, al. b), 133º, 136º, 138º, 139º, 146º, al. j), e 147º, do Código da Estrada, com base nos factos descritos na aludida decisão proferida nos autos».
2. Inconformado, o arguido recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
Nestes termos, e nos demais de direito supridos por V. Exa, deve ser dado provimento ao presente recurso, com as devidas consequências, 4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido de que o recurso não merece provimento.
5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante, CPP), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.
II – FUNDAMENTAÇÃO
1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271). Além disso, há que dizer que o presente recurso é restrito à matéria de direito, visto o disposto nos artigos. 75º, nº 1 e 41º, nº 1, ambos do DL nº 433/82, de 27 de Outubro, sucessivamente alterado (alterado pelos Decretos-Leis nºs 356/89, de 17 de Outubro, 244/95, de 14 de Setembro, e 323/2001, de 17 de Dezembro, e pela Lei nº 109/2001, de 24 de Dezembro - RGCOC), salvo verificação de qualquer dos vícios previstos no nº 2 do artigo 410º do CPP (sabemos que só o processamento e julgamento conjunto de crimes e contra-ordenações, previsto no art. 78º do RGCOC, permite o conhecimento pela 2.ª instância, em sede de recurso, da matéria de facto[1]). No fundo, sabemos que não está o tribunal de recurso impedido de conhecer dos vícios referidos no art. 410º, nº 2 do CPP, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum. Note-se que o recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – nº 3 do referido preceito. Assim, balizados pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso, as questões a decidir são as seguintes:
2. DA SENTENÇA RECORRIDA 2.1. Transcreveremos, em seguida, o teor da sentença recorrida: «O arguido AA, solteiro, engenheiro civil, titular do documento de identificação civil nº ...53, residente na Rua ..., ..., veio, nos termos do artº 59º do RGCOC, interpor recurso para impugnação da decisão da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária que o condenou na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 90 dias, pela prática de uma contra-ordenação, a título de negligência, p.p. pelos artºs 81º, nºs 1 e 6, al. b), 133º, 136º, 138º, 139º, 146º, al. j), e 147º, do Código da Estrada, com base nos factos descritos na aludida decisão proferida autos. Questionou a prova em que assentou o apuramento da taxa de álcool no sangue, invocando que do auto de contra-ordenação se verifica a ausência de testemunhas para além do próprio agente autuante e que dos autos se verifica ausência de prova de verificação dos alcoolímetros utilizados na fiscalização, mais alegando que exerce a profissão de engenheiro civil e efectua direccão de obra, pelo que necessita de se deslocar às diversas obras espalhadas por todo o país, para o que a sua carta de condução é necessária, pugnando pela não aplicação de qualquer sanção. * * * 1. No dia 01.01.2023 (com correcção de lapso de escrita em sede da audiência de julgamento), pelas 06:56 horas, na E.N ...7, km 22, ..., o arguido, não procedendo com o cuidado a que estava obrigado e agindo de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta é proibida e sancionada pela lei contra-ordenacional, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula ..-EL-.., com uma taxa de álcool no sangue de pelo menos 1,15 g/l, correspondente à taxa de álcool no sangue registada de 1,21 g/l, deduzido o valor do erro máximo admissível. 2. O arguido efectuou o pagamento voluntário da coima. 3. O arguido tem averbado no seu registo de condutor a prática de contra-ordenação por condução de veículo automóvel ligeiro fora de localidade a uma velocidade de mais de 30 km/h até 60 km/h, cometida a 27.02.2021, tendo-lhe sido aplicada, por decisão condenatória de 29.08.2021, notificada a 07.05.2022, a sanção de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, suspensa na sua execução por 180 dias, com início a 27.05.2022 e termo a 23.11.2022. 4. O arguido tem carta de condução desde 13.03.2007. 5. O arguido exerce a profissão de engenheiro civil por conta doutrem e efectua direccão de obra, pelo que necessita de se deslocar às diversas obras espalhadas pelas zonas centro e norte do país, ao que procede, em média, duas/três vezes por semana, conduzindo veículo da sua entidade patronal para o efeito, deslocando-se, na maioria das vezes, sozinho e, por vezes, acompanhado da técnica de segurança, tendo sido um dos requisitos para a sua contratação o facto de ser titular de carta de condução. * * Assim, quanto à demais factualidade, teve-se em consideração a carta de condução do arguido, exibida em julgamento, e foram tidas em conta as declarações do arguido quanto à factualidade constante do ponto 5. Quanto aos antecedentes contra-ordenacionais, o tribunal teve em consideração o registo individual do condutor. * Atento o disposto no artº 81º, do Código da Estrada, constitui contra-ordenação a condução sob influência de álcool, o que se verifica quando o condutor apresenta uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l. Ora, tendo em consideração a factualidade dada como provada, a decisão da autoridade administrativa não suscita qualquer reparo, resultando preenchidos todos os elementos típicos objectivos e subjectivos necessários à verificação no caso da contra-ordenação por que vem o arguido acusado, bem como a consciência da ilicitude da conduta, mais não resultando existir qualquer exclusão da ilicitude ou da culpa. Mais resulta, em face dos citados dispositivos legais, que a contra-ordenação cometida pelo arguido constitui uma contra-ordenação muito grave e, como tal, é punida com coima, que o arguido pagou voluntariamente, e com sanção acessória de inibição de conduzir, pelo que tal inibição de conduzir não pode deixar de ser aplicada e podia, no caso concreto, ser fixada entre dois meses e dois anos. Destarte, se, por um lado, não pode deixar de ser o arguido condenado na sanção acessória de inibição de conduzir, não se verificando sequer nenhuma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, por outro lado, no caso concreto, não é possível suspender a execução da sanção acessória. Com efeito, nos termos do disposto no artº 141º, nºs 1 e 2, do Código da Estrada, apenas é possível suspender a execução da sanção acessória aplicada a contraordenações graves, não estando aquela possibilidade de suspensão da execução da sanção acessória prevista para as contraordenações muito graves, como é o caso da cometida pelo arguido, e, por maioria de razão, se o Código da Estrada não permite a suspensão da execução da sanção acessória em caso de prática de contra-ordenação muito grave muito menos admite a dispensa de sanção, por ser um instituto que, numa escala de graduação, está a montante da suspensão, não tendo, pois aplicação, no caso, o disposto no artº 74º, do Código Penal, precisamente por contrariar as disposições legais vindas de analisar. Com efeito, preceitua o nº 1 do citado artigo 141º que “Pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contraordenações graves no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números seguintes”, pelo que nenhuma dúvida se levanta da leitura da norma, reportando-se os requisitos nela estabelecidos e nos demais números do mesmo artigo às situações em que foram cometidas contraordenações graves. Assim sendo, tendo o arguido incorrido na prática de uma contra-ordenação muito grave, não lhe pode ser suspensa na sua execução a sanção acessória, nem pode ser dispensada a aplicação da mesma, pelo que nada há a alterar ao já decidido em sede de decisão administrativa, sendo, aliás, elevada a ilicitude da conduta, dada a taxa de alcoolemia apurada, quase atingido o valor da punibilidade criminal, e contando o arguido com antecedente contraordenacional estradal. Com efeito, quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias - artº 292º, nº 1, do Código Penal - prescrevendo o artº 69º, nº 1, al. a), do mesmo Código, a condenação na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos de quem for punido designadamente por crime previsto no citado artº 292º. * Custas a cargo do recorrente-arguido, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC (uma unidade de conta). Deposite e comunique à ANSR e ao IMT». 3. APRECIAÇÃO DE DIREITO
3.1. No caso concreto que ora se analisa, já aqui o deixámos escrito, o recurso é restrito à matéria de direito, nos termos do artigo 75º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (RGCOC) e por força do nº 13 do artigo 148º do Código da Estrada, doravante CE. Todavia, de harmonia com o disposto no artigo 410º, nº 1, do CPP, ex vi do artigo 74º, nº 4 do mesmo RGCOC, “sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida”, razão pela qual poderá este Tribunal conhecer oficiosamente os vícios enumerados nas alíneas do nº 2 do referido artigo 410º, mas tão só quando os mesmos resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum. De facto, tem-se entendido que neste tipo de processo é admissível a revista alargada (da matéria de facto) decorrente da aplicação do regime do artigo 410º do CPP.
3.2. Estamos no campo contra-ordenacional, um direito distinto do direito penal. Ambos os ilícitos tentam proteger valores dignos de protecção legal – enquanto o ilícito penal empresta, efectivamente, a protecção jurídico-penal, o ilícito de mera ordenação social empresta uma tutela mais administrativa. Ambos os ilícitos tentam prevenir violações a certos interesses que carecem de protecção legal (é verdade que ambos os ilícitos impõem aos infractores consequências jurídicas desfavoráveis - penas/medidas de segurança e coimas -, é verdade que o crime tem de ser um facto típico, ilícito contrário à lei e censurável, também o devendo ser a contra-ordenação). Enquanto no âmbito do ilícito penal se exige sempre a intervenção judicial (não se podendo aplicar nenhuma sanção jurídico-penal sem a intervenção dos tribunais), quem aplica as coimas no ilícito da mera ordenação social é a administração, e só em caso de não conformação (como o presente caso) ou de concurso de crime e contra-ordenações (valendo aqui a regra do artigo 38º do RGCOC), é que poderá haver a intervenção jurisdicional. As sanções dos ilícitos são diferentes: a sanção característica do ilícito penal é a pena, sendo a coima o veículo sancionador do ilícito de mera ordenação social. No âmbito do ilícito penal, por regra e por força do art. 11º do CP, vigora o princípio da personalidade, salvo disposição em contrário, na medida em que só as pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade criminal. Diferentemente sucede no ilícito da mera ordenação social, em que as pessoas colectivas podem ser sancionadas (art. 7º do RGCOC), não havendo impedimento conceitual à aplicação de coimas a pessoas colectivas, distintamente do que sucede enquanto regra no âmbito do Direito Penal.
3.3. O direito de mera ordenação social, ligado historicamente à concretização do princípio da subsidiariedade do direito penal e ao movimento de descriminalização, pretendeu construir um modelo em que a protecção de interesses eticamente neutros, de natureza eminentemente administrativa, mas cuja violação justificaria reacções que devam exprimir uma censura de natureza social, fosse levada a cabo através da previsão e aplicação de sanções de natureza administrativa, com o "sentido de mera advertência despido de toda a mácula ético-jurídica", e desprovidas dos sinais ou cargas que caracterizam as sanções de natureza penal. Na realidade, estamos perante comportamentos humanos – igualmente contrários à lei - que angariam uma censura ética com menor ressonância que as condutas criminais. «Uma coisa será o direito criminal, outra coisa o direito relativo à violação de uma certa ordenação social, a cujas infracções correspondem reacções de natureza própria. Este é, assim, um aliud que, qualitativamente, se diferencia daquele, na medida em que o respectivo ilícito e as reacções que lhe cabem não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estando, portanto, sujeitas aos princípios e corolários do direito criminal» (cfr. Eduardo Correia, "Direito penal e direito de mera ordenação social", in Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLIX (1973), pp. 257-281; e Faria Costa, "A importância da recorrência no pensamento jurídico. Um exemplo: a distinção entre o ilícito penal e o ilícito de mera ordenação social", in Revista de Direito e Economia, ano IX, nºs 1 e 2, Janeiro-Fevereiro de 1983, pp. 3-51). Através da aplicação de medidas que devem constituir advertências de natureza social «a Administração limita-se a reagir contra a desobediência a certos imperativos visando, mediante o forte apelo em que se traduzem, tornar sensíveis as suas intenções» (Eberhardt Schmidt). No fundo, o que está em causa, afinal, é «utilizar uma de entre as muitas medidas através das quais a Administração afirma a sua vontade relativamente ao cidadão desobediente, e cuja aplicação é, portanto, da sua estrita competência» (cfr. Eduardo Correia, loc. cit.). Sabemos que o direito de mera ordenação social, passando da dimensão categorial e da elaboração dogmática para a realidade normativa, entrou no interior do sistema nacional com o Decreto-Lei nº 232/79, de 24 de Julho, em cujo preâmbulo se afirmam os princípios, as necessidades, a oportunidade política (verdadeiramente de política criminal - a "instante" necessidade "de dispor de um ordenamento sancionatório alternativo e diferente do direito criminal") e a natureza das respostas. O que é verdade que tal diploma não durou muito tempo em termos de vigência já que foi revogado pelo Decreto-Lei nº 411-A/79, de 1 de Outubro (por dificuldades práticas emergentes da inclusão em lei quadro de uma disposição com intensas repercussões práticas - o nº 3 do artigo 1º), acabando por ressurgir na pele do DL 433/82 de 27/10 (RGCOC). No preâmbulo deste diploma, com efeito, reafirma-se que: «O aparecimento do direito das contra-ordenacões ficou a dever-se ao pendor crescentemente intervencionista do Estado contemporâneo, que vem progressivamente alargando a sua acção conformadora aos domínios da economia, saúde, educação, cultura, equilíbrios ecológicos, etc. Tal característica, comum à generalidade dos Estados das modernas sociedades técnicas, ganha entre nós uma acentuação particular por força das profundas e conhecidas transformações dos últimos anos, que encontraram eco na lei fundamental de 1976. A necessidade de dar consistência prática às injunções normativas decorrentes deste novo e crescente intervencionismo do Estado, convertendo-as em regras efectivas de conduta, postula naturalmente o recurso a um quadro específico de sanções». O legislador justificou, assim, a urgência de conferir efectividade ao direito de mera ordenação social, com uma configuração distinta e autónoma do direito penal, em resultado das transformações operadas ou em vias de concretização no ordenamento jurídico português, a começar pelas transformações do quadro jurídico-constitucional. O DL nº 433/82, de 27 de Outubro, foi objecto de uma profunda reformulação por via das alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 244/95, de 14 de Setembro - nesse sentido, e com a finalidade de reforçar os direitos e garantias dos arguidos, foram estabelecidas regras que aproximaram o regime dos princípios e soluções próprias do direito penal e do processo penal: «disposições sobre a atenuação das coimas e a alteração dos limites mínimos e máximos (artigos 13º, nº 2, 16º, nº 2, e 17º), normas sobre o cúmulo jurídico em caso de concurso (artigo 19º), clarificação dos pressupostos da aplicação de sanções acessórias (artigo 21º-A), regras sobre suspensão e interrupção da prescrição (artigos 27º-A e 30º-A) e reforço dos direitos de audiência e defesa (artigos 50º, 53º, 58º, 59º, nº 2, 68º e 72º-A)». A aproximação do ilícito de mera ordenação social aos institutos e figuras do direito e do processo penal foi, pois, determinada - é o próprio legislador a reconhecê-lo - pelo alargamento das áreas de intervenção do direito de mera ordenação social, em particular a "circuitos económicos e tecnológicos complexos", com "um considerável agravamento dos montantes das coimas e um alargamento do leque de sanções acessórias aplicáveis": em consequência, "o legislador [procurou] equilibrar este agravamento sancionatório com um incremento da componente de garantia do regime do ilícito de mera ordenação social, realizando para o efeito uma aproximação vincada aos institutos e soluções do direito penal" (cfr. Frederico de Lacerda da Costa Pinto, "O ilícito de mera ordenação social e a erosão do princípio da subsidiariedade da intervenção penal", in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 7º, Janeiro-Março de 1997, pp. 14 e segs.). Assim sendo, o DL nº 433/82 estabeleceu, pois, o regime geral do direito de mera ordenação social, definindo os princípios gerais aplicáveis à determinação de comportamentos que constituam contra-ordenações e às regras sobre o respectivo sancionamento (plano material), e a conformação do procedimento para aplicação das sanções (plano processual), não estabelecendo, porém, um regime material autónomo completo, remetendo-se, subsidiariamente, ao regime substantivo do direito penal. Assim mesmo dispõe o artigo 32º: «Em tudo o que não for contrário à presente lei, aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contra-ordenações, as normas do Código Penal». 3.4. Não o ignoramos - as contra-ordenações não respeitam à tutela de bens jurídicos ético-penalmente relevantes, mas apenas e tão-só à tutela de meras conveniências de organização social e económica e à defesa de interesses da mais variada gama, que ao Estado incumbe regular através de uma actuação de pendor intervencionista, que nos últimos anos se vem acentuando com progressiva visibilidade, impondo regras de conduta nos mais variados domínios de relevo para a organização e bem-estar social. Estas normas, ditas de mera ordenação social (que não devem validar a afirmação de que estaremos perante um «direito de bagatelas penais»), não têm a ressonância ética das normas penais mas não deixam de ter a sua tutela assegurada através da descrição legal de ilícitos que tomam o nome de contra-ordenações, cuja violação é punível com a aplicação de coimas, a que podem, em determinados casos, acrescer sanções acessórias. A execução da vertente sancionatória pressupõe um processo previamente determinado, de pendor não tão marcadamente garantístico como o processo penal (que por força da gravosa natureza das sanções que por seu intermédio podem ser aplicadas, exige a observância de apertadas garantias de defesa) mas que assegure, ainda assim, os direitos de audiência e de defesa (arts. 32º, nº 10, da CRP e art. 50º do RGCOC). Para essa finalidade, o legislador adoptou um procedimento consideravelmente mais simplificado e menos formal do que o processo penal, cujo quadro geral consta dos arts. 33º e ss. do RGCOC. Trata-se, no fundo, de um processo que no seu início é meramente administrativo e que só se torna judicial se o arguido pretender impugnar a decisão proferida na fase administrativa. Desta forma, são aplicáveis no processo contra-ordenacional as normas dos artigos 92º, 93º, 94º, 95º, 99º, 100º, 104º, 105º, 113º, 127º, 163º, 169º, 277º e 380º do CPP. Falou-se em fase administrativa do processamento das contra-ordenações. Contudo, tal não significa que se tenha aqui de aplicar os procedimentos administrativos constantes de um CPA, tendo sido intencional o afastamento da solução do direito administrativo como direito subsidiário (não se confundindo com a antiga noção do direito penal administrativo[2]). Decidiu o Acórdão do STJ nº 1/2003, publicado no Diário da República, Série I-A, de 25 de Janeiro, o seguinte, a este propósito: «O processamento das contra-ordenações [...] compete às autoridades administrativas [...] (artigo 33º do regime geral das contra-ordenações). Porém, os actos correspondentes não constituirão, propriamente «actos administrativos» nem a essa actividade se aplicará, directamente, o «direito administrativo». É que, por um lado, no processo de aplicação da coima [as autoridades administrativas gozam dos mesmos direitos e estão submetidas aos mesmos deveres das entidades competentes para o processo criminal [...] (artigo 41º, nº 1). Iniciado um processo de contra-ordenação existe a possibilidade de actos da Administração - que fora desse contexto seriam actos administrativos tout court (sujeitos, portanto, ao regime e garantias próprias do direito administrativo) - passarem a ser regulados por outro sector do sistema jurídico. Nestes termos, quando um acto de uma autoridade administrativa possa ser visto simultaneamente como um acto administrativo e um acto integrador de um processo de contra-ordenação, o seu regime jurídico, nomeadamente para efeitos de impugnação, deverá ser em princípio o do ilícito de mera ordenação social e subsidiariamente o regime do processo penal, mas não o regime do Código de Procedimento Administrativo. Uma solução diferente criaria o risco de um bloqueio completo da actividade sancionatória da administração por cruzamento de regimes e garantias jurídicas». Quanto às sanções contra-ordenacionais, e por ser extremamente eloquente, transcreve-se aqui parte da argumentação jurídica aposta no Acórdão desta Relação de 24/3/2004, publicado em http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf (tendo como relator o hoje Juiz Conselheiro Jubilado Oliveira Mendes): «Passando ao conhecimento da segunda questão, seja a da medida da coima, começar-se-á por assinalar que as condutas ou comportamentos contra-ordenacionais, em si mesmos, isto é, independentemente da sua proibição legal, são axiologicamente neutros e, daí que, a coima represente um mal que de nenhum modo se liga à personalidade do agente, antes servindo como mera «admonição», como especial advertência ou reprimenda conducente à observância de certas proibições ou imposições legais, pelo que não é conatural a uma tal sanção uma dimensão de retribuição ou expiação de uma culpa ética, como a não será a da ressocialização do agente (Cfr. Figueiredo Dias, «O movimento de descriminalização e o ilícito de mera ordenação social», estudo publicado pelo Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Criminal: O Novo Código Penal Português e Legislação Complementar, I (1983), 317/336 e republicado em Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários (Coimbra Editora – 1998), 19/33). Em todo o caso, como sanção que é, ela só é explicável enquanto resposta a um facto censurável, violador da ordem jurídica, cuja imputação se dirige à responsabilidade social do seu autor por não haver respeitado o dever que decorre das imposições legais, justificando-se a partir da necessidade de protecção dos bens jurídicos e de conservação e reforço da norma jurídica violada (Cfr. o recente trabalho do relator e do Exmº Desembargador Santos Cabral, Notas ao Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas (2003), 58.), pelo que a determinação da medida da coima deve ser feita, fundamentalmente, em função de considerações de natureza preventiva geral ( - Como refere Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal – 5º Tema – Do Direito Penal Administrativo ao Direito de Mera Ordenação Social (2001), 150/151, relativamente à culpa, tal como na pena criminal, também na coima o pensamento da retribuição não joga qualquer papel, pelo que as finalidades da coima são (apenas) preventivas, às quais são em larga medida estranhas sentidos positivos de prevenção especial ou de (re)socialização), sendo que a culpa constituirá o limite inultrapassável da sua medida. Tal como decorre do texto legal – art.18º, nº 1, do RGCO –, na determinação da medida da coima, haverá também que considerar a gravidade da contra-ordenação». Na linha do preceituado pelo artigo 18º, nº 1, do DL 433/82, de 27/10, «a determinação da medida da coima faz-se em função da gravidade da contra-ordenação, da culpa, da situação económica do agente e do benefício económico que este retirou da prática da contra-ordenação».
3.5. Com este pano de fundo conceptual e legal, vejamos a argumentação deste recurso, assente que a questão factual está devidamente fechada, não sendo agora relevante colocar em causa a validade das provas exaradas nos autos, tendo os certificados de verificação dos alcoolímetros sido analisados em sede de audiência de julgamento (aí tendo sido constatada a sua conformidade com as exigências legais), nada tendo sido requerido pela defesa, conforme consta inequivocamente da acta de fls 49-50.
3.5.1. A Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), por decisão datada de 9.11.2023, aplicou, estando paga a coima respectiva, uma sanção acessória de 90 dias de inibição de conduzir pela prática da contra-ordenação muito grave, p. e p. pelos artigos 81º, nºs 1 a 6, alínea b), 133º, 136º, 138º, 139º, 146º, alínea j) e 147º do Código da Estrada, aprovado pelo DL nº 114/94, de 3 de Maio, já revisto 28 vezes. Recorre a defesa da decisão judicial que confirmou tal condenação. Vejamos uma a uma as questões levantadas no recurso.
3.5.2. A contra-ordenação em causa, praticada em 1.1.2023, de forma negligente (artigo 133º do CE foi esta: «Artigo 81º Condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas 1 - É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas. 2 - Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico. 3 - Considera-se sob influência de álcool o condutor em regime probatório e o condutor de veículo de socorro ou de serviço urgente, de transporte coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxi, de TVDE, de automóvel pesado de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,2 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico. 4 - A conversão dos valores do teor de álcool no ar expirado (TAE) em teor de álcool no sangue (TAS) é baseada no princípio de que 1 mg de álcool por litro de ar expirado é equivalente a 2,3 g de álcool por litro de sangue. 5 - Considera-se sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial. 6 - Quem infringir o disposto no nº 1 é sancionado com coima de: a) (euro) 250 a (euro) 1250, se a taxa de álcool no sangue for igual ou superior a 0,5 g/l e inferior a 0,8 g/l; b) (euro) 500 a (euro) 2500, se a taxa for igual ou superior a 0,8 g/l e inferior a 1,2 g/l ou, sendo impossível a quantificação daquela taxa, o condutor for considerado influenciado pelo álcool em relatório médico ou ainda se conduzir sob influência de substâncias psicotrópicas». A contra-ordenação em causa é legalmente classificada como MUITO GRAVE [cfr. artigos 136º, nºs 1 e 3, e 146º, alínea j) do CE], sendo sancionável com coima e sanção acessória (não uma «pena» mas uma sanção[3] – cfr. artigo 138º, nº 1 do CE), lida enquanto «inibição de conduzir, à luz do que preceitua o artigo 147º do CE. Determina o artigo 139º do CE que: «1 - A medida e o regime de execução da sanção determinam-se em função da gravidade da contra-ordenação e da culpa, tendo ainda em conta os antecedentes do infrator relativamente ao diploma legal infringido ou aos seus regulamentos. 2 - Na fixação do montante da coima, deve atender-se à gravidade da contra-ordenação e da culpa, tendo em conta os antecedentes do infrator relativamente ao diploma legal infringido ou aos seus regulamentos, e a situação económica do infrator, quando for conhecida. 3 - Quando a contra-ordenação for praticada no exercício da condução, além dos critérios referidos no número anterior, deve atender-se, como circunstância agravante, aos especiais deveres de cuidado que recaem sobre o condutor, designadamente quando este conduza veículos de socorro ou de serviço urgente, de transporte coletivo de crianças, táxis, de TVDE, pesados de passageiros ou de mercadorias, ou de transporte de mercadorias perigosas». A moldura desta sanção acessória – por ser relativa a uma contra-ordenação muito grave - consta do artigo 147º, nº 2 do CE: «A sanção de inibição de conduzir tem a duração (…) mínima de dois meses e máxima de dois anos (…) e refere-se a todos os veículos a motor. Com esta pena de fundo legal, defende o arguido a aplicação de uma suspensão desta sanção acessória. Legalmente, tal não é possível como bem exarou a decisão recorrida. Na realidade, estatui o artigo 141º do CE o seguinte: «1 - Pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contraordenações graves no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei penal geral faz depender a suspensão da execução das penas, desde que se encontre paga a coima, nas condições previstas nos números seguintes. 2 - Se o infrator não tiver sido condenado, nos últimos cinco anos, pela prática de crime rodoviário ou de qualquer contra-ordenação grave ou muito grave, a suspensão pode ser determinada pelo período de seis meses a um ano. 3 - A suspensão pode ainda ser determinada, pelo período de um a dois anos, se o infrator, nos últimos cinco anos, tiver praticado apenas uma contra-ordenação grave, devendo, neste caso, ser condicionada, singular ou cumulativamente: a) (Revogada.) b) Ao cumprimento do dever de frequência de ações de formação, quando se trate de sanção acessória de inibição de conduzir; c) Ao cumprimento de deveres específicos previstos noutros diplomas legais. 4 - A caução de boa conduta é fixada entre (euro) 500 e (euro) 5000, tendo em conta a duração da sanção acessória aplicada e a situação económica do infrator. 5 - Os encargos decorrentes da frequência de ações de formação são suportados pelo infrator. 6 - (Revogado.)» No nosso caso, estamos perante uma contra-ordenação classificada como MUITO GRAVE, não cabendo, pois, na letra típica da lei. Portanto, da simples leitura desta disposição legal resulta que pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada às contra-ordenações graves mas não às muito graves independentemente de se mostrarem reunidas as condições objectivas para tal suspensão. Isso mesmo declarou sabiamente o acórdão da Relação de Évora, datado de 8.5.2018 (Pº 777/17.4T8BJA.E1): «Neste mesmo sentido, pronunciou-se o Ac. do TRL, de 18-12-2007, proferido no Proc. N.º 9345/2007-5, tendo entendido que: “É certo que o n.º 1 do artigo 141º, do Código da Estrada, ao dispor que pode ser suspensa a execução da sanção acessória aplicada a contra-ordenações graves no caso de se verificarem os pressupostos de que a lei geral faz depender a suspensão da execução das penas, remete para a norma do artigo 50º do Código Penal. Esta remissão não é, obviamente, para todos os pressupostos de que o artigo 50º, n.º 1, faz depender a suspensão da execução da pena de prisão. A suspensão da execução da pena prevista no artigo 50º, n.º 1, do Código Penal, assenta em pressupostos formais e em pressupostos substanciais (cfr. neste sentido Jorge de Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, páginas 342 e 343). Assim, tendo como referente a actual redacção do artigo 50º, n.º 1, do Código Penal, constitui pressuposto formal da suspensão da execução da pena de prisão que a medida desta não seja superior a 5 anos. Sob o ponto de vista substancial a suspensão pressupõe que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, conclua que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Ora o conteúdo que o n.º 1 do artigo 141º, do Código da Estrada, importa do artigo 50º, n.º 1, do C. Penal, é exclusivamente o relativo aos pressupostos materiais da suspensão da execução da pena. Quanto aos pressupostos formais da suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir, eles são definidos pelo artigo 141º, do Código da Estrada. Sob o ponto de vista lógico, o tribunal só averiguará se os pressupostos materiais estão reunidos depois de dar por verificados os formais”. Anote-se, a final, que o Tribunal Constitucional já se pronunciou, diversas vezes, por unanimidade, nomeadamente, nos Acórdãos n.ºs 603/2006, 604/2006, 629/2006, 6/2007, e 32/2007, disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc, esclarecendo que a norma do artigo 141º, nº 1, do CE, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 44/2005, de 23 de Fevereiro, interpretada no sentido de a suspensão da execução da sanção acessória de inibição de conduzir abranger, apenas, as contra-ordenações graves, não é orgânica, ou materialmente inconstitucional. Como tal, esta sanção acessória não pode ser suspensa na sua execução.
3.5.3. Passemos à segunda questão, ultrapassado que está o primeiro pedido do recurso. Olhando para os critérios apostos no artigo 139º do CE, a sanção em causa deveria ter sido reduzida no seu montante? Lembremos – o mínimo são dois meses, o máximo são dois anos. O tribunal validou a sanção aplicada de 90 dias (3 meses, um mês apenas acima do limite mínimo). A lei manda dar ênfase à gravidade da contra-ordenação e da culpa, aos antecedentes do infractor relativamente ao diploma legal infringido ou aos seus regulamentos, e aos especiais deveres de cuidado que recaem sobre o condutor (assente que esta contra-ordenação foi cometida no exercício de uma condução). Aqui chegados: · há que constatar que a taxa de alcoolemia apurada quase atinge o valor da taxa de álcool no sangue da punibilidade criminal de 1,20 g/l, porquanto tinha uma taxa de álcool no sangue de pelo menos 1,15 g/l, correspondente à taxa de álcool no sangue registada de 1,21 g/l, deduzido o valor do erro máximo admissível; · o recorrente já conta com um antecedente contraordenacional estradal (excesso de velocidade, praticado em 2021, punido com uma sanção de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, suspensa na sua execução por 180 dias); Face ao exposto, também nós entendemos que nunca seria adequado nem proporcional a redução do período da sanção acessória, constatando-se até que a mesma já foi aplicada com razoável benevolência[4]. Ou seja, falece a argumentação do recurso de que o montante da sanção acessória é pouco criterioso e que o mesmo viola os princípios da proporcionalidade e necessidade (prevaricou o arguido em 2021, viu suspensa uma sanção acessória, volta a prevaricar, de forma assaz mais grave e pretende de novo ver suspensa tal inibição, o que já vimos não ser legalmente possível).
3.5.4. E que dizer da pretensão de ver substituída tal sanção por medida alternativa, como a frequência de acções de sensibilização rodoviária? Ora, tal pretensão não está legalmente prevista na lei, parecendo-nos absolutamente despropositada.
3.5.5. Finalmente, pede a defesa que se possa aplicar esta inibição em horários específicos que não comprometam o exercício da actividade profissional do arguido, engenheiro civil, muito necessitado de usar o seu automóvel para se poder deslocar às suas obras em curso no país. Ligada a esta questão se abordará a outra relacionada com a necessidade que este arguido tem de conduzir na sua actividade profissional. Também aqui a lei não permite tal benesse. * Alega o arguido que, tal como ficou provado na sentença revidenda, necessita da carta de condução para o exercício da sua atividade profissional.Mais invoca o arguido que, se não puder conduzir veículos, “será despedido” (facto que não foi dado como assente na sentença em causa, sem qualquer impugnação em sede de recurso), não conseguirá “arranjar outro trabalho”, e, assim sendo, “corre o risco de desmoronar toda a sua família”. Por outras palavras: o recorrente entende que o modo de execução contínuo da pena de proibição de conduzir contende com o exercício do seu direito ao trabalho, mostrando-se, por isso, um modo de execução excessivo e desproporcionado. Estabelece o artigo 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos”. Por sua vez, o artigo 58º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, refere que “todos têm direito ao trabalho”. Preceitua o artigo 40º do Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2). Por último, traduzindo a reprodução, ao nível da lei ordinária, do comando constante do artigo 30º, nº 4, da Constituição da República Portuguesa, dispõe o artigo 65º, nº 1, do Código Penal, que “nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de direitos civis, profissionais ou políticos”. Aplicando estes normativos ao caso dos autos, há que salientar, em primeiro lugar, que nenhum ponto da matéria de facto dada como provada na sentença recorrida (matéria de facto esta não impugnada nem questionada no recurso do arguido) nos permite concluir pela perda de emprego por parte do arguido em consequência do cumprimento da proibição de conduzir em questão. A este propósito, ficou apenas provado que, para efeito do exercício da sua atividade profissional, o arguido necessita da sua carta de condução, já que nas suas funções está incluída a prestação de assistência comercial numa vasta área do território do Algarve. Ora, e como é da experiência comum, o arguido sempre poderá efectuar outras tarefas ou exercer outras funções na empresa onde trabalha, que não necessitem da sua condução. Em suma, e repetindo: nada nos permite dizer, face aos factos provados, que o arguido “será despedido” em consequência da proibição de conduzir imposta na sentença sub judice. Em segundo lugar, a “manutenção do posto de trabalho do arguido”, o concreto exercício do seu “direito ao trabalho” (artigo 58º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa), não são realidades que, à partida, se possam configurar como não podendo sofrer determinadas limitações no seu âmbito, quando forem restringidas ou sacrificadas em virtude de outros direitos ou interesses também relevantes e constitucionalmente protegidos. A esta luz, a constrição do direito ao trabalho que possa resultar para o arguido da aplicação da medida sancionatória em causa apresenta-se como plenamente justificada, não revelando qualquer excesso ou desproporção. Tal justificação resulta da circunstância de a pena de proibição (temporária) de conduzir se apresentar como um meio de salvaguarda de outros interesses, legal e constitucionalmente protegidos, quer, por um lado, na perspetiva do arguido, a quem é imposta e destinada a pena aplicada, quer, por outro lado, na perspetiva da sociedade, posto que se visa proteger essa sociedade, e, simultaneamente, como que “compensá-la” do risco a que os seus membros foram sujeitos com a prática de uma condução em estado de embriaguez. Com a aplicação da pena acessória de proibição de condução, e a nosso ver, pretendem-se proteger bens ou interesses de grande relevo e constitucionalmente protegidos (por exemplo, a vida e a segurança das pessoas), sobretudo em face da dimensão do risco que, para esses bens, a conduta criminosa de condução de veículo em estado de embriaguez comporta, pondo em causa a vida, a integridade física e a segurança de todos os que circulam nas estradas. Assim, as invocadas consequências negativas, quer para o arguido, quer para o respetivo agregado familiar, da execução contínua da pena de proibição de conduzir, não podem impedir, como parece entender-se na motivação do recurso, a prossecução dos fins visados com a aplicação de uma tal pena. Acresce que, não estando o arguido perante qualquer perda do direito de conduzir, mas apenas perante uma proibição temporária (5 meses e 15 dias) do exercício da condução, não pode considerar-se que a sua liberdade de exercer o trabalho esteja postergada ou limitada de forma desproporcionada, excessiva ou desadequada. O núcleo essencial do direito ao trabalho do arguido está, por conseguinte, plenamente assegurado. Em jeito de síntese: atenta a natureza do crime em questão, com a inerente perigosidade decorrente da conduta nele pressuposta, surge como adequada e proporcional a pena acessória de proibição de conduzir, que tem de ser executada de modo contínuo, mesmo que dela pudesse decorrer, no caso concreto, a perda de emprego por parte do arguido. Os custos, de ordem profissional e/ou familiar, que poderão advir para o arguido do facto de a proibição de conduzir em causa poder afetar o seu emprego, são próprios das penas, que só o são se representarem para o condenado um verdadeiro e justo sacrifício, com vista a encontrarem integral realização as finalidades gerais das sanções criminais, sendo que tais custos nada têm de desproporcionados em face dos perigos para a segurança das outras pessoas criados pela condução em estado de embriaguez e que a aplicação da pena pretende prevenir». Completamente de acordo, mesmo estando a falar de sanção acessória e já não de pena acessória. O facto de o arguido, ora recorrente, poder carecer da sua carta de condução para o exercício da sua actividade profissional, não pode ser um critério que conduza à derrogação daquela consequência, em detrimento de um outro cidadão, nas mesmas circunstâncias, mas que tenha uma actividade profissional diversa da do ora recorrente. A adopção de tal entendimento seria, sim, ela própria, uma interpretação e aplicação da lei violadora do princípio da igualdade e, por conseguinte, inconstitucional. Esta inibição temporária não coloca em causa a dignidade humana e o direito ao trabalho, na medida em que, tal como já se explanou supra, tal consequência tem um efeito pedagógico e de prevenção, com vista a sensibilizar os condutores para as consequências inerentes às suas condutas. Existe uma necessidade de reduzir os acidentes de viação, através de acções a vários níveis, onde se incluam medidas de educação contínua dos cidadãos, incentivando-os a adoptar um melhor comportamento, designadamente, através do cumprimento das regras rodoviárias, da previsão de medidas restritivas da atribuição das licenças de condução e a aplicação de justas e assertivas penas ou sanções acessórias suficientemente dissuasoras de futuros comportamentos negligentes na estrada. Neste sentido, o direito a conduzir não constitui um direito absoluto, estando sujeito à verificação de determinados pressupostos. Na verdade, e em caso algo paralelo,tal como decorre do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15.1.2020 (Pº 576/19.9T9GRD.C1) “A licença de condução não assume cariz definitivo e imutável, situado no âmbito dos direitos absolutos. O seu carácter transitório revela-se, não só na periodicidade da respectiva validade e na sujeição a diversas restrições, renovações e actualizações tendentes a verificar se as condições físicas e psíquicas do agente se mostram adequadas ao exercício da condução de veículos (cf. artigos 121º, 122º a 130º, do Código da Estrada), mas também, no sistema de aquisição e perda de pontos, acima referenciado (artigo 121º A e 148º, do Código da Estrada)”. Ora, se assim não se entendesse, “(…) no limite, poder-se-ia chegar à conclusão de que quem quer abraçar uma profissão para a qual o único meio de a prosseguir é o exercício da condução, nem sequer se haveria de sujeitar às condições necessárias para poder ter acesso à condução, ou nem sequer teria que respeitar uma reprovação nas provas prévias exigidas para a condução de veículos automóveis, pois essas condições constituiriam um atentado ao direito ao trabalho»”- vide in acórdão do Tribunal Constitucional nº 276/2002, disponível em www.tribunalconstitucional.pt». Em suma: Não vale agora invocar que se precisa da carta para trabalhar. Desta forma, não será de esperar – esse o nosso desejo - que volte de delinquir pois já sabe a falta que lhe faz a carta. Esta pena exerce uma função de emenda cívica e, por isso, é justificada, ao contrário do que defende o recorrente. E, também, não deve ser esquecido que o conteúdo essencial do direito ao trabalho que o arguido vê ofendido com a aplicação da sanção acessória da inibição de condução não é atingido, na medida em que a ponderação que resulte do confronto deste direito do trabalho com a protecção de outros bens - que fundamentam a sua limitação, através da aplicação das penas principal e acessórias infligidas - não redunda na aniquilação ou, sequer, na violação desproporcionada de qualquer direito fundamental ao trabalho, mas antes numa limitação temporária – ver, neste sentido, Acórdão 440/2002, do Tribunal Constitucional, publicado no D.R. nº 277/2002, Série II, de 29/11/2002.
3.6. É, assim, de concluir que o legislador não estabeleceu qualquer excepção ou limitação à execução da sanção acessória para contra-ordenações muito graves, nem previu que a mesma fosse suspensa, razão pela qual permitir que tal sanção acessória seja cumprida ao sabor dos interesses do agente da contra-ordenação atenta contra o princípio da legalidade também plasmado para o ilícito de mera ordenação social. D Face ao exposto, só pode improceder este recurso.
3.7. Em sumário: 1. O legislador não estabeleceu qualquer excepção ou limitação à execução da sanção acessória para contra-ordenações rodoviárias muito graves, nem previu que a mesma fosse suspensa na sua execução, razão pela qual permitir que tal sanção acessória seja cumprida ao sabor dos interesses do agente da contra-ordenação atenta contra o princípio da legalidade também plasmado para o ilícito de mera ordenação social. 2. Não está prevista a substituição de tal sanção por medida alternativa, como a frequência de acções de sensibilização rodoviária. 3. Não existe fundamento legal para a pretensão de cumprimento da sanção acessória de inibição de conduzir fora do horário laboral do condenado pois as disposições legais relativas ao modo de cumprimento de tal pena acessória apontam, inelutavelmente, para a necessidade da execução contínua de tal sanção. 4. O conteúdo essencial do direito ao trabalho que o arguido vê ofendido com a aplicação da sanção acessória da inibição de condução não é atingido, na medida em que a ponderação que resulte do confronto deste direito do trabalho com a protecção de outros bens - que fundamentam a sua limitação, através da aplicação das penas principal e acessórias infligidas - não redunda na aniquilação ou, sequer, na violação desproporcionada de qualquer direito fundamental ao trabalho, mas antes numa limitação temporária.
III – DISPOSITIVO
Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - desta Relação em negar provimento ao recurso, mantendo na íntegra a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC [artigos 513º, no 1, do CPP e 8º, nº 9 do RCP e Tabela III anexa].
Coimbra, 14 de Maio de 2025 (Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria nº 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20/09) Relator. Paulo Guerra Adjunta: Maria da Conceição Miranda Adjunta: Sara Reis Marques
[1] Como já acima se mencionou, o Tribunal da Relação, em regra e no âmbito dos recursos de contra-ordenação, apenas conhece de direito por força do disposto no art. 75º-1 do DL nº 433/82 de 27/10. Constituem excepções a esta regra as que constam do art. 410º-2-3 do CPP, aplicável ex-vi dos arts. 41º-1 e 74º-4 do DL nº 433/82 de 27/10. Ora, nos termos do art. 410º, nº 2 do CPP, "mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação; c) Erro notório na apreciação da prova". [2] Fernanda Palma fala mesma num “direito penal especial” ou num “direito penal secundário”, expressões que não secundamos pois o afastamento filosófico de base do direito penal é, por demais, evidente e necessário. [3] Uma modalidade de punição é a pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor prevista no artigo 69º do CP. Outra bem diversa é a sanção acessória de inibição de conduzir (artigo 147º do CE), sendo destinada a sancionar, acessoriamente, a prática de contra-ordenações graves e muito graves, sendo, pois, uma medida de segurança administrativa. |