Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5/23.3GDPNH.C2
Nº Convencional: JTRC
Relator: SARA REIS MARQUES
Descritores: CRIME DE AMEAÇA AGRAVADA
FUNDAMENTAÇÃO DOS DESPACHOS
ARGUIÇÃO DO VÍCIO
DIREITO DE DEFESA DO ARGUIDO
PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO
LEGALIDADE E NECESSIDADE DE PRODUÇÃO DE PROVAS
EMBRIAGUEZ AQUANDO DA PRÁTICA DOS FACTOS
AMEAÇA DE MAL FUTURO
CONCURSO REAL OU APARENTE DO CRIME DE AMEAÇA COM OUTRO CRIME
EXECUÇÃO DA PENA EM REGIME DE PERMANÊNCIA NA HABITAÇÃO COM VIGILÂNCIA ELETRÓNICA
Data do Acordão: 10/08/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - JUÍZO LOCAL CRIMINAL DA GUARDA - JUIZ 1
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 43.º, 131.º, 153.º, N.º 1, E 155.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO PENAL
ARTIGOS 97.º, N.º 1, ALÍNEA B), E N.º 5, 340.º DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Sumário: I - A falta de fundamentação de um despacho constitui uma irregularidade que deve ser arguida junto do tribunal que alegadamente a cometeu e só do despacho que sobre ela recair é que se poderá recorrer.

II- O direito à defesa de que o arguido beneficia não significa que possa, por seu livre arbítrio, produzir todas as provas que entender sem um prévio controlo jurisdicional que afira da sua legalidade e da sua necessidade para a realização da justiça.

III- O princípio da necessidade é o fim e o limite do princípio da livre investigação, tal como resulta da sua configuração nos nºs 1 e 2 e das restrições consagradas nos nºs 3 e 4 do art. 340º do CPP.

IV - A mera referência, em audiência de julgamento, ao facto de, no momento dos factos, o arguido se encontrar embriagado e de ter vários antecedentes criminais relacionados com o consumo do álcool, não consubstancia motivo gerador de fundadas dúvidas acerca da sua imputabilidade: é necessário um plus para que a suspeita se tenha por fundada.

V- A deficiência da fundamentação da sentença só constitui nulidade quando for de tal forma relevante que impeça o conhecimento da razão para determinado facto ter sido dado como provado ou não provado ou dos raciocínios subjacentes à qualificação jurídica dos factos ou à determinação da medida da pena.

VI- Há ameaça de mal futuro sempre que se não esteja perante a eminência da execução do mal anunciado, ou seja, desde que não se trate já de uma tentativa criminosa. Futuro é todo o tempo compreendido a partir do momento em que é proferida a expressão que anuncia o mal, desde que não seja acompanhada de actos correspondentes à sua simultânea ou imediata concretização.

VII – Sobre o concurso aparente ou real do crime de ameaça com outro crime, a resposta não pode ser dada em geral e abstrato, mas apenas à luz das circunstâncias do caso concreto e resolve-se aferindo se da conduta global do agente praticada nesse momento resulta que o desvalor contido na ameaça se esgota- ou não- no desvalor do ilícito típico executado nessa mesma ocasião, aferida esta pelo critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito-global.

VIII- Se a ameaça com a prática de um dos crimes de referência do artigo 153º ocorrer em simultâneo com a execução desse crime- sob a forma tentada ou consumada - ou se a execução do crime prometido ainda não se iniciou mas está iminente, o desvalor da ameaça é consumido pelo desvalor do crime prometido consumado, o desvalor do comportamento global é dominado por “um único sentido de desvalor jurídico-social”.

IX - Se a expressão se refere a um crime iminente que não chega a consumar-se, pode haver, em tese, punição pela ameaça (por exemplo, por a ameaça se dirigir à integridade física e a tentativa de crime contra a integridade física não ser punível), e isto não obstante o mal anunciado se trate de um mal de concretização imediata. Efetivamente, em face da não punibilidade da tentativa, mantém-se a autonomia do desvalor da ameaça e a consequente necessidade de tutela penal. Mas é também possível, em tese, existir um concurso efetivo entre um crime de ameaça agravado consumado e um crime de ofensa à integridade física consumado (se por exemplo a ofensa não for o crime prometido mas um homicídio), já que aqui encontramos uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude jurídico-penal do comportamento global.

X - Apesar dos antecedentes criminais, o recorrente tem apoio familiar, tem um trabalho e está a ser acompanhado pela unidade de alcoologia, pela unidade de psiquiatra do Hospital, razão pela qual introduzi-lo em ambiente prisional por crimes de menor gravidade, como é o caso, constituiria um assinalável retrocesso na reintegração social que se deseja alcançar. Esta execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação permitirá que ao arguido manter os laços familiares e profissionais, contribuir validamente para a comunidade e não interromper o acompanhamento clínico de que beneficia, afastando-o simultaneamente dos efeitos criminógenos da institucionalização. Por outro lado, tutela-se o bem jurídico protegido pela norma que pune o crime em causa, pois a pena não deixa de, com sentido pedagógico, constituir forte sinal de reprovação.


(Sumário elaborado pela Relatora)
Decisão Texto Integral: *

Acordam em conferência na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra

                                                                     *

                                                                *          *  

I – RELATÓRIO:

 
-» No Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, Juízo Local Criminal da Guarda, foi proferida sentença , datada de 3/10/2024, que julgou a acusação procedente por provada, e em consequência,  decidiu:

Julgar a acusação deduzida pelo Ministério Público procedente por provada e, consequentemente:
a) Condenar o arguido … como autor material e na forma consumada de um crime de ameaça, agravada, p. e p. nos termos dos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 131.º, todos do Código Penal, em relação à ofendida AA, na pena de 9 (nove) meses de prisão efetiva.
b) Condenar o arguido … como autor material e na forma consumada de um crime de ameaça, agravada, p. e p. nos termos dos artigos 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alínea a), por referência ao artigo 131.º, todos do Código Penal, em relação à ofendida BB, na pena de 9 (nove) meses de prisão efetiva.
c) Operar o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicada em A) e B), e condenar o arguido …, na pena única de 14 (catorze) meses de prisão efetiva.
d) Condenar o arguido … a pagar as custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC (artigos 513.º, n.º 1 e 514.º, n.º 1, do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais).


*

        *


-» Inconformado com esta decisão final condenatória, dela interpôs recurso o arguido motivando o recurso e apresentando as seguintes conclusões (transcrição):

I. Calcorreando os autos, constata-se que a douta sentença recorrida violou os arts.º 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1 do C.P., uma vez que não se mostra preenchido o elemento objectivo do crime de ameaça, pelos seguintes motivos:
a) Não se verificou a ameaça de mal futuro, pois o tempo verbal utilizado pelo arguido nas expressões alegadamente consubstanciadoras do crime de ameaça é o presente do indicativo, que o mesmo enfatizou ao utilizar o advérbio de tempo “já” e o advérbio de lugar “aqui”, da seguinte forma dada como provada: «já vos fodo aqui às duas», «mato-vos a todos, enterro-vos aqui», as quais foram ainda acompanhadas da execução dos seguintes actos também dados como provados: “em ato contínuo, agarrou os cabelos da ofendida AA e, mediante o uso de força física, puxou-os na sua direcção”.
b) foi desse mal presente que as ofendidas disseram que sentiram medo:


c) o arguido não ameaçou matar as ofendidas com armas de fogo, pois dizer «eu tenho várias caçadeiras» (dado como provado no ponto 5), é diferente de dizer que vai matar com as caçadeiras. Aliás, quando a ofendida AA foi expressamente perguntada sobre se o arguido disse que as mataria com armas, nunca respondeu afirmativamente e a sua resposta foi: “ele disse que tinha armas em casa”, o que foi corroborado pelo depoimento da ofendida …
d) como o mal ameaçado não foi um mal futuro, não se pode interpretar a expressão «eu tenho várias caçadeiras».”, como “susceptíveis de ser entendidas como reportadas a uma agressão futura, pois teria que ir buscar as caçadeiras”, tal como refere o Tribunal recorrido, de facto, a expressão “eu tenho várias caçadeiras”, teria como único propósito do arguido, mostrar-se às ofendidas, naquele momento presente, como uma pessoa perigosa.
e) dos depoimentos das ofendidas resulta patente o desvalor que atribuíram à expressão do arguido “eu tenho várias caçadeiras”, quando referiram:
II. …

DO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
III. O Tribunal fez errada interpretação do depoimento da ofendida AA que mentiu em audiência quando referiu factos (“é o fim da tua vida”, “fodo-te”, “aconteço-te”, “que me enterrava ali e que depois que se ia entregar às autoridades”, “vaca”, “eu isto, eu aquilo”, “ele disse que tinha armas” aos minutos 03:17, 06:16 a 07:10 e 10:21 a 10:32), diferentes daqueles de que se queixou ao órgão de polícia criminal (“eu mato-te”), cujas declarações foram lidas em audiência de julgamento. Pelo que, não pode o mesmo ser positivamente valorado e apto a dar como provada a factualidade vertida no ponto 3 “já vos fodo aqui às duas” e no ponto 5 “eu tenho várias caçadeiras, mato-vos a todos enterro-vos aqui e depois vou entregar-me às autoridades.” Sendo certo que,
IV. a referida factualidade (vertida nos pontos 3 e 5) também não pode ser dada como provada, apenas e só, com base no depoimento da testemunha/ofendida … (qual não pode, também ser positivamente valorado), sem que haja outro elemento de prova que o corrobore, que não há, sob pena de violação do princípio do “in dúbio pro reo”. De facto,
V. o Tribunal também fez errada interpretação do depoimento da ofendida …, quando refere que a mesma disse que “a sua mãe foi pedir auxílio e que ficou lá só ela, e que o seu tio referiu ainda que as enterrava lá, que tinha várias caçadeiras e que depois se ia entregar às autoridades, tendo transmitido tal à sua mãe.”, pois que, em julgamento, referiu exactamente o oposto, ou seja, que o arguido proferiu tais expressões na presença de ambas, dela e da sua mãe: Testemunha, ao minuto 04:35 – (…) que já nos fodia ali a todos, que nos enterrava e que depois se ia entregar às autoridades. Que ele tinha várias armas, que nos matava, com armas.
VI. …

DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO APLICADA AO ARGUIDO
VII. A fundamentação utilizada pelo Tribunal recorrido para não aplicar ao arguido a medida de OPHVE como forma de execução da pena de prisão é examente a mesma que foi utilizada pelo Tribunal no Processo n.º 83/23.... (conforme sentença que se junta como doc. 1) para fundamentar a aplicação ao arguido da medida de OPHVE para cumprimento da pena de prisão, o que torna a decisão proferida nos presentes autos contraditória com aqueloutra, não podendo pois a mesma fundamentação permitir ao Tribunal fundamentar decisão diversa da proferida no processo n.º 83/23.....
VIII. Os factos a que se refere o Processo n.º 83/23.... foram praticados em 16.05.2023, conforme emerge da factualidade dada como provada no ponto xiii. E, nesse processo, entendeu o Tribunal que a execução da pena de prisão em regime de OPHVE, a par do efeito dissuasor da prática de novos crimes, terá a virtualidade de contribuir para a ressocialização do arguido. Pelo que, tendo os factos em causa nos presentes autos sido praticados em data anterior, ou seja, em 28.04.2023, então, por maioria de razão, também nestes autos, a execução da pena de prisão de OPHVE cumprirá essas as exigências de prevenção geral e especial.

                                                                                *

-» O recurso foi admitido por legal e tempestivo, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo - arts. 391.º, 406.º, n.º 1, 407.º, n.º 2, al. a) e 408.º, n.º 1, al. a), todos do Código de Processo Penal.

                                                                                               *

-» O MINISTÉRIO PÚBLICO apresentou resposta ao recurso …

                                                                                *

-» Recurso interlocutório:

Na audiência de julgamento que teve lugar a 04-07-2024 foi proferido despacho judicial que indeferiu a realização de um exame pericial ao arguido a fim de aferir da sua imputabilidade, que tinha sido por este requerida, por requerimento de 14/6/2024.  

                                                                                *

-» Inconformado com tal decisão, veio o arguido recorrer, motivando o recurso e concluindo do seguinte modo:
I. O despacho proferido na audiência de julgamento do dia 6 de Junho que indeferiu a realização de exame pericial ao arguido, com vista a aferir da sua inimputabilidade, padece de total ausência de fundamentação de Direito, uma vez que não se estriba num único artigo da Lei que o fundamente, em manifesta violação do art.º 97.º, n.º 5 do C.P.P. Pelo que, ao abrigo do art.º 380.º, n.º 1, al. a) do C.P.P., deve o mesmo ser revogado e substituído por outro que, de forma devidamente fundamentada nos preceitos da Lei, se pronuncie sobre o pedido do arguido.
II. O douto despacho recorrido refere que o arguido, depois de notificado da acusação, e “ficar a conhecer todos os factos constantes da acusação”, deveria ter requerido, na contestação, a realização das “diligências necessárias e probatórias”. No entanto, mais à frente refere, de forma contraditória, que “em lado algum é referido que o mesmo os praticou embriagado, ou que o mesmo anda embriagado”. E, na verdade, da factualidade constante da douta acusação, pela qual o arguido foi submetido a julgamento, nada consta ou é referido quanto ao facto do ar-guido ter praticado os factos cuja prática lhe é imputada, sob o efeito de álcool, pelo que, ja-mais na contestação poderia ter requerido a produção da prova pericial quanto a tal questão que não se mostrava, até então, suscitada nos autos. Foi, pois, na sequência dos depoimentos das testemunhas AA e BB, prestados na sessão de julgamento do dia 06.06.2024 (transcritos supra nos arts.º 15.º e 16.º cujo teor aqui se dá por reproduzido), que referiram que arguido é boa pessoa, que estava alcoolizado quando praticou os factos em causa nos autos e que andava habitualmente bêbado, que emergiu a necessidade do arguido demonstrar e provar a sua inimputabilidade e, ao abrigo

do art.º 340.º, n.º 1 do C.P.P., requerer a realização da prova pericial, por se lhe afigurar indispensável à descoberta da verdade material e à boa decisão da causa. Tanto mais que, III. como emerge do seu registo criminal junto aos autos, o arguido tem averbado nos seus antecedentes criminais onze condenações, todas sob efeito do álcool, por factos praticados no período compreendido entre 17.09.1993 e 19.09.2018, encontrando-se, de momento, pendentes no mesmo Juiz 1 do Juízo Local Criminal, para julgamento, os processos n.º 5/23...., 6/23...., 53/23.... e 97/23.... movidos contra ele por motivos de saúde por dependência alcoólica, e foi recentemente condenado pela prática de um crime de desobediência, por sentença proferida em 19.07.2023, pelo Juiz 2, no processo n.º 83/23...., e pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez, por sentença proferida em 14.12.2023, pelo Juiz 1, no processo n.º 183/23.... E,

IV. nos referidos processos n.º 6/23.... e 53/23...., o Tribunal deferiu a realização do exame pericial ao arguido por ele requerido, com o fundamento de “que tal possa vir a ser útil e necessário para a decisão a tomar.”. Pelo que, o despacho recorrido viola princípios do Estado de Direito Democrático, tais como o da protecção da confiança legítima e da segurança jurídica, o da igualdade e o da descoberta da verdade material, atento o deferimento do pedido do arguido de realização de perícia que deduziu nesses processos, conforme certidões que se protestam juntar.

Termos em que deve o douto despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que admita o pedido deduzido pelo arguido/recorrente, por ser legal e tempestivo.

                                                                                *

-» Este recurso foi admitido, com subida imediata (art,º 407 n.º 2 al. j) do CPP) , em separado e efeito meramente devolutivo (art.º 406 n.º 2 e art.º 408 a contr. do CPP).

                                                                                *

-» O M.º P.º respondeu ao recurso,  …

                                                                                *

-» Já nesta Relação, por despacho proferido a 26/8/2025, foi alterado o efeito do recurso, atribuindo-lhe subida a final, juntamente com o recurso da sentença final, determinando ainda a incorporação do apenso de recurso no processo principal.

                         

                                                                                *

                                                                                *

-» Parecer do Ministério Público:

 Neste Tribunal, o Exmº. Procurador-Geral Adjunto apresentou parecer,  …

                                                                                *

                   Foi cumprido o disposto no art.º 417º n.º 2 do CPP.

                   Os autos foram aos vistos e à conferência.

                                                                            *

                         

II – QUESTÕES A DECIDIR
            …

Assim, face às conclusões extraídas pela recorrente da motivação do recurso interposto nestes autos, as questões a apreciar e decidir são as seguintes:

Recurso interlocutório:
- saber se o despacho recorrido é nulo por falta de fundamentação, nos termo do art.º 97.º, n.º 5 do C.P.P. 
- saber se o despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que determine a realização de exame pericial ao arguido a fim de aferir da sua imputabilidade.

 

Recurso da sentença final;
- saber se os factos provados são subsumíveis ao crime de ameaça pelo qual o arguido foi condenado.
- saber se há erro de julgamento relativamente aos factos 3 a 5.
- saber se há erro notório na apreciação da prova, relativamente aos factos 3 a 5.
- saber se foram violados os princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo; - saber se a pena de prisão efetiva deve ser cumprida em regime de permanência na habitação.

                                                                                *

Invocado no parecer: nulidade da sentença por deficiente fundamentação – art. º379 do CPP.

                                                                                *

As questões suscitadas serão conhecidas por ordem lógica.

                                                                                  *

III –  TRANSCRIÇÃO DAS PEÇAS PROCESSUAIS RELEVANTES PARA A DECISÃO DA

CAUSA  FACTUALIDADE PROVADA NA SENTENÇA RECORRIDA:               

  

1) Requerimento do arguido datado de 14/6/2024:

“1.Dispõe o art.º 340.º n.º 1 do CPP que “o tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova… necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.”. Ora,

2. segundo a acusação e as declarações prestadas em julgamento pelas próprias queixosas:
a) O arguido é uma pessoa boa;
b) Estava alcoolizado quando praticou os factos que lhe são imputados nos presentes autos; e
c) Andava habitualmente bêbado. Mais,

3. do boletim do Registo Criminal do arguido, pode constar-se que foi condenado por comportamentos tidos em estado de embriaguez nos dias e pelos ilícitos que a seguir se transcrevem:
-

4. encontram-se pendentes neste tribunal, os seguintes processos movidos contra o arguido, por motivos de saúde por dependência alcoólica, a saber: a) o presente processo, em fase de julgamento;

5. À luz do homem médio, afinal, o arguido, mais do que em criminoso, é um doente dependente, um doente grave, que não prevarica, nem se coloca no estado de embriaguez porque quer, mas porque é um doente, dependente do álcool. Ou seja,
6. o arguido sofre de uma uma condição patológica grave associada ao consumo crónico de álcool, toma uma quantidade elevada de medicamentos todos os dias, e isso é relevante para determinar se o arguido é ou não inimputável, ou para se aferir do real móbil dos ilícitos imputados ao arguido.
7. Para determinar a inimputabilidade associada a uma enfermidade grave decorrente do consumo de bebidas alcoólicas, o arguido deve ser submetido a criteriosos exames médicos, destinados a uma avaliação psiquiátrica eficaz, e séria, como se descreve e requer:
1) Avaliação Psiquiátrica: para avaliar o estado mental do arguido, através de entrevista(s) clínica(s), aplicação de testes psicológicos e revisão do histórico médico e psiquiátrico.
2) Exames Toxicológicos: a fim de determinar o padrão e a extensão do consumo de álcool por banda do arguido.
3) Avaliação Neuropsicológica: com vista a medir as funções cognitivas, como memória, atenção, raciocínio e outras debilidades mentais, para identificar os déficits causados pelo abuso de álcool.
4) Exames de Imagem Cerebral: com vista a identificar alterações estruturais ou funcionais no cérebro associadas ao consumo crónico de álcool, através de ressonância magnética (RM) ou tomografia computadorizada (TC).
5) Exames Laboratoriais Gerais: consubstanciados em exames de sangue e fígado, para avaliar o impacto do álcool na saúde geral do arguido, uma vez que o consumo crónico causou danos significativos ao fígado e outros órgãos.
6) Entrevistas com Familiares e Terceiros: obtenção de informações adicionais que pelo filho do arguido – … – por ser pessoa próxima ao arguido, que pode fornecer contexto sobre seu comportamento e histórico de consumo de álcool.

Sendo que

8. só a combinação desses exames e avaliações permitirá uma compreensão abrangente da condição psiquiátrica do arguido e de como o consumo de álcool influenciou a sua capacidade de entender e agir. Ou seja, a perícia devidamente fundamentada nos exames e avaliações atrás referidas em 7., será fundamental para se aferir da inimputabilidade do arguido.”

 

2) Despacho recorrido, datado de 04 de Julho,:

“A fls. 197 a 199 veio o arguido, já no decurso da audiência em julgamento, dos presentes autos requer, resumidamente, um exame pericial ao arguido. Ora aquando do recebimento contestação, foi o arguido, oportunamente, notificado do despacho acusatório e bem assim para, querendo, querendo requerer as diligências necessárias e probatórias. Sendo que nesse momento nada requereu, com a excepção da prova testemunhal, contudo e apesar de ficar a conhecer todos os factos constantes da acusação, limitou-se a oferecer o merecimento dos autos, pelo que consideramos o ora requerido extemporâneo e sem qualquer fundamento. Mais, o arguido nos presentes autos não vem acusado de qualquer crime de condução em estado de embriaguez, mas sim de factos que integram os crimes de ameaça e ofensa à integridade física simples, e em lago algum é referido que o mesmo os praticou embriagado, ou que o mesmo anda embriagado, ou seja, só com o seu requerimento, já no decurso da audiência e julgamento é que o mesmo, pretende trazer tal defesa, pelo que por extemporaneidade, se indefere o requerido.

Notifique, contudo dado ainda não haver nos autos relatório social do arguido, solicite-se o mesmo.”

 

3) Sentença recorrida – transcrição parcial:

“II – Fundamentação:

1. Factos provados:

Da discussão da causa resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão:
1. O arguido … é irmão e tio das ofendidas AA … e BB …, respetivamente.
2. Em 28 de abril de 2023, pelas 11:30 horas, junto a um terreno agrícola situado em …, o arguido iniciou uma discussão com as ofendidas … por motivos não concretamente determinados.
3. Nesse seguimento, o arguido dirigiu às ofendidas a expressão «já vos fodo aqui às duas».,  (sendo que, em ato contínuo, agarrou os cabelos da ofendida AA … e, mediante o uso de força física, puxou-os na sua direção, causando-lhe dores e lesões corporais), facto não considerado para imputação criminal, uma vez que o procedimento criminal foi extinto, mas transcrito para melhor compreensão do decorrer dos acontecimentos.
4. Atento o modo e contexto em que atuou, o arguido causou forte receio e intimidação na ofendida AA … que, assim que se conseguiu libertar, de imediato fugiu daquele local em busca de auxílio.
5. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido, num tom exaltado e referindo-se às ofendidas, proferiu, ainda, a expressão «eu tenho várias caçadeiras, mato-vos a todos, enterro-vos aqui e depois vou-me entregar às autoridades».
6. O arguido tinha efetiva consciência que as expressões acima referidas, dirigidas às ofendidas e por estas conhecidas, conjugadas com o tom sério e ameaçador com que foram proferidas, assim anunciando a intenção de atentar contra as suas vidas, eram aptas a lhes provocar perturbação nos seus sentimentos de segurança, liberdade e paz individual, como provocou, derivado do receio que aquele concretizasse a ameaça feita de as atingir fisicamente de forma grave ou até que as matasse, o que quis e conseguiu.
7. O arguido agiu sempre de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Mais se provou que:

Relativamente à problemática alcoólica, esteve internado na Unidade de Alcoologia ... em dezembro/2023, tendo-se mantido abstinente de bebidas alcoólicas desde essa altura, segundo relatório médico. 
8. … continua em acompanhamento por esta unidade de saúde, tendo ocorrido a última consulta em 22/07/2024, aguardando marcação para futura consulta.
9. Segundo informações do meio, o arguido é conotado com o consumo abusivo de bebidas alcoólicas e em estado de embriaguez é conflituoso nos diferentes contextos sociais, embora seja considerado pessoa trabalhadora.
10. As autoridades locais contactadas, referem que o arguido tem uma imagem conotada com o consumo abusivo de álcool.

2. 2. Factos não provados:

Inexistem factos não provados, com interesse para a causa

*

2.3. Motivação da decisão da matéria de facto:

Funda-se a convicção do Tribunal no conjunto da prova que se produziu em audiência de julgamento e no teor da prova documental e pericial junta aos autos, analisada de forma crítica e com o auxílio de juízos de experiência comum, nos termos do art. 127.º e ainda nos termos do art. 163.º, ambos do Código de Processo Penal. 

Pelo que foi tomado em consideração, quanto à prova documental e pericial, o teor:
Do auto de denúncia, fls. 6 a 10.
Do C.R.C. do arguido, juntos aos autos
Do relatório social, junto aos autos.
Da                 certidão               da           sentença,            junto     aos         autos,   relativamente    ao       processo              n.º 183/23.....
Da certidão, junta aos autos, relativamente ao Relatório da Perícia Médico-legal, efetuado no processo 53/23.....

                •        

Quanto à restante prova analisada em sede de audiência: 

 

                                                                            *

IV-  DO MÉRITO DO RECURSO:

 

A- Recurso interlocutório:

1- Nulidade do despacho recorrido por falta de fundamentação:

O dever de fundamentação das decisões judiciais tem  consagração constitucional no artigo 205º, nº 1, da Lei Fundamental.

Como salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira «…o dever de fundamentação é uma garantia

integrante do próprio conceito de Estado de Direito Democrático, ao menos quanto às decisões judiciais que tenham por objecto a solução da causa em juízo, como instrumento de ponderação e legitimação da própria decisão judicial e

de garantia do direito ao recurso» (cfr. “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 2.º vol., 3.ª edição, Coimbra Editora, pp. 798/799).

O CPP consagrou tal princípio constitucional no art.º. 97º, nº 5 do CPP.

Relativamente à sanção a aplicar para a inobservância deste dever, tratando-se de sentença ou de despacho que aplique medida de coação (outra que não o T.IR.)  ou medida de garantia patrimonial, a lei prevê a nulidade como sanção para a falta de fundamentação- cfr. arts. 118, 379° n° 1 e 194° n° 5 do C.P.P., respetivamente.

Já estando em causa um despacho, como é o caso dos autos, uma vez que   inexiste norma expressa que comine com a nulidade tal omissão de fundamentação, estamos perante uma irregularidade, como resulta do disposto no art.º 118 do CPP, irregularidade essa que não afeta a validade do ato enquanto tal e que está sujeita à disciplina do art. 123° do CPP.

Como tal, a irregularidade do despacho recorrido teria de ter sido arguida perante o Tribunal recorrido nos prazos fixados no art.º 123º do CPP, ou seja, na própria audiência de julgamento em que o despacho foi proferido, já que o recorrente a ela assistiu.

Não o tendo sido, a pretensa irregularidade encontra-se sanada.

De qualquer forma, sempre se dirá que, não se tratando aqui de uma questão de conhecimento oficioso e não estando nós no âmbito de aplicação do n° 2 do art. 379° do C.P.P., nunca poderia este Tribunal da Relação  conhecer da invocada nulidade, pois sobre ela não se pronunciou previamente a primeira instância. 

De facto, os recursos têm por objeto questões já objeto de decisão na primeira instância e, salvo as supra referidas exceções, não apreciam questões novas.

Assim, a irregularidade do despacho por falta de fundamentação deve ser arguida junto do tribunal que alegadamente as cometeu e só do despacho que sobre ela recair é que se poderá recorrer.

 (cfr. neste sentido os Acs. da RL de 02/2/2022, Processo: 3105/21.0T9AMD.L1-3 e de 01-03-2021, Processo: 401/19.0PLLRS.L1-9 e da RP de 26 Outubro 2016, Processo:

108/01.5TBLSD.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt)

Pelo exposto, improcede o recurso neste segmento.

                                                                                              *

2. Saber se deve ser revogado o despacho e ordenada a realização de uma perícia médico-legal para aferir da imputabilidade do arguido:

Requereu o arguido, já no decurso da audiência de julgamento e ao abrigo do disposto no art.º 340 do CPP, que fosse ordenada uma perícia médico-legal para aferir da sua inimputabilidade e/ou imputabilidade diminuída no momento da prática dos factos em causa nos autos. 

Alegou para o efeito, por um lado, que em audiência de julgamento foi dito pelas queixosas (as testemunhas AA e BB) que o arguido estava alcoolizado no momento em que praticou os factos descritos na acusação e que andava habitualmente embriagado e, por outro lado, que os seus antecedentes criminais patenteiam inúmeras condenações por crimes relacionados com  o consumo do álcool, para além de que se encontram pendentes processos de inquérito pela prática de crimes relacionados com esse mesmo consumo.

Assim, argumenta, é um doente dependente do álcool, que toma diversos medicamentos por dia e que deve ser sujeito a uma perícia para se compreender se o consumo do álcool afetou a sua capacidade de entender e agir e se deve ser considerado inimputável – cfr. requerimento de fls. 197 a 199.
O juiz a quo indeferiu tal pedido, alegando, como vimos, a sua extemporaneidade. 

Esqueceu, contudo, que o Ministério Público, o assistente, o arguido e as partes civis podem requerer a produção de meios de prova durante a audiência de julgamento, ao abrigo do disposto no art. 340.º n.º1 e 2 do CPP. 

De facto, em processo penal vigora o princípio da investigação, da oficiosidade ou da verdade material - que, como é consensualmente reconhecido, mitiga a estrutura acusatória do processo penal português (cfr. art. 32º nº 5 da Constituição da República Portuguesa e Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1974, pág. 72) – e dele resulta o poder/dever do tribunal de ordenar, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade, como se consagra no referido artigo 340°, n° 1, do CPP.

 Este princípio da investigação sofre, é certo - e em concretização do princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 18º nº 2 da Constituição - as limitações impostas pelos princípios da necessidade – só são admissíveis os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para a descoberta da verdade – da legalidade – só são admissíveis os meios de prova não proibidos por lei – e da adequação – não são admissíveis os meios de prova notoriamente irrelevantes, inadequados ou dilatórios.

Ensina Oliveira Mendes, Comentário ao Código de Processo Penal, 2016, 2ª edição, p. 1049, que:

A prova deve ser considerada irrelevante quando é indiferente, sem importância ou interesse para a decisão da causa; supérflua quando é inútil para a decisão da causa; inadequada quando é imprópria, nada permite demonstrar ou, de nada serve para a decisão da causa; de obtenção impossível ou de obtenção muito duvidosa quando é inalcançável ou, segundo as regras da experiência, improvavelmente alcançável; com finalidade meramente dilatória quando visa protelar ou demorar a audiência”  

A ideia de necessidade da prova está umbilicalmente ligada ao princípio da relevância e, em particular, com os princípios da celeridade, da lealdade e da proibição de atos inúteis. 

O direito à defesa de que o arguido beneficia não significa que o arguido possa, por seu livre arbítrio, produzir todas as provas que entender sem qualquer controlo jurisdicional, que afira da sua legalidade e da sua necessidade para a realização da justiça.

Como lembra o Ac. da RL de 22-05-2024, Processo: 136/22.7PATVD.L1-3, in www.dgsi.pt, “uma das manifestações de um processo justo e equitativo é que o julgamento e a decisão dos factos ocorra em tempo útil, o que não aconteceria se fosse possível a eternização dos processos através de uma infindável e ilimitada possibilidade de indicar e produzir todos os meios de prova e de obtenção de prova indicados pelas partes, como aconteceria se ao juiz não fosse atribuído um poder de direcção do processo, na fase de produção de prova, que lhe permitisse rejeitar liminarmente as diligências probatórias notoriamente irrelevantes, supérfluas, inadequadas ou meramente dilatórias.
O princípio da necessidade é, por conseguinte, o fim e o limite do princípio da livre investigação, tal como

resulta da sua configuração nos nºs 1 e 2 e das restrições consagradas nos nºs 3 e 4 do art. 340º do CPP.”

Relativamente à prova pericial, rege o disposto no art.º 151 do CPP, que nos diz que esta tem lugar quando a perceção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos.

As perícias podem ser realizadas em qualquer das fases processuais, como atesta o disposto no art.º 154º n.º 1, do C.P.P., ao determinar que a sua realização é ordenada, a requerimento ou oficiosamente, por despacho da autoridade judiciária. E nada impede até que o julgamento possa ter lugar antes da sua realização, existindo situações em que é precisamente no decurso do julgamento que se colhem elementos tendentes a habilitar o Tribunal a tomar uma posição fundada relativamente à necessidade não da sua realização, o que se mostra compaginável com o disposto no art.º 340º CPP.

Estando em causa perícias para aferir da inimputabilidade do arguido (cfr. art.º 20º do CP), rege ainda o artigo 351.º do CPP, onde se lê que:
1 - Quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da inimputabilidade do arguido, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, ordena a comparência de um perito para se pronunciar sobre o estado psíquico daquele.
2 - O tribunal pode também ordenar a comparência do perito quando na audiência se suscitar fundadamente a questão da imputabilidade diminuída do arguido.
3 - Em casos justificados, pode o tribunal requisitar a perícia a estabelecimento especializado.
4 - Se o perito não tiver ainda examinado o arguido ou a perícia for requisitada a estabelecimento especializado, o tribunal, para o efeito, interrompe a audiência ou, se for absolutamente indispensável, adia-a.

Esta norma dirige-se diretamente aos casos em que tal questão apenas se revela fundadamente no decurso da audiência de julgamento.

Ora, foi precisamente nesta sede que, no nosso caso, o arguido suscitou a questão da inimputabilidade, requerendo a realização de uma perícia que o afira e invocando padecer de uma anomalia psíquica de que sofre - o alcoolismo crónico – e que, alega, poderá ter influenciado no momento dos factos a sua capacidade de entender e agir.

 Contudo, segundo se entende, as dúvidas que o arguido levanta não são fundadas, em termos de justificarem e imporem a realização da perícia médico-legal.

De facto, não juntou nenhum elemento clínico que sustente ou admita essa possibilidade e a mera referência, em audiência de julgamento, ao facto de se encontrar no momento dos factos embriagado e de ter vários antecedentes criminais relacionados com o consumo do álcool, não consubstancia motivo gerador de fundadas dúvidas acerca da sua imputabilidade. É preciso um plus para que a suspeita se tenha por fundada. 

 (neste sentido, cfr AC RC de 07-02-2018, Processo: 166/17.0GBLSA.C1, in www.dgsi.pt)  

E este Tribunal da Relação, como é sabido, apenas pode valorar, na decisão do recurso, os elementos de prova de que o Tribunal a quo dispunha no momento da prolação da decisão recorrida, devendo ignorar todos aqueles que foram posteriormente juntos aos autos (concretamente o relatório social para determinação da sanção, o exame médico-legal feito no processo 53/23...., as sentenças proferidas no âmbito dos processos 83/23.... e 183/23.... e os Acórdãos proferidos nestes processos).

É de facto há muito pacífico, na doutrina e na jurisprudência que os recursos estão configurados no nosso sistema processual penal como remédios jurídicos, visam apenas modificar as decisões recorridas e não criar novas decisões sobre matérias ou questões novas que não foram, nem podiam ter sido, suscitadas ou conhecidas pelo tribunal recorrido (cfr. Ac STJ de 09/03/2017, Processo: 582/05.0TASTR.E2.S1 ECLI:PT:STJ:2017:582.05.0TASTR.E2.S1.ED) 

Caso a Relação atendesse ao conteúdo dos documentos que foram juntos ao processo após a prolação da decisão recorrida, não formularia um juízo sobre a justeza da mesma mas estaria a proferir decisão nova sobre a questão.

Notamos ainda que a circunstância da perícia ter sido ordenada no âmbito de outro dois inquéritos - que foi invocada no recurso interposto (cfr. conclusão IV) - não foi ponderada  no despacho a quo e não foi invocada pelo arguido no requerimento apresentado para deferimento da perícia, razão pela qual não pode agora ser tida em conta.

Tudo para concluir que, se por um lado, o requerimento do arguido não é extemporâneo, por outro lado a verdade é que a perícia médico legal requerida, à luz dos elementos de prova juntos aos autos no momento da decisão, não se mostrava necessária para a descoberta da verdade. 

O indeferimento da perícia requerida não significa nenhum atropelo dos princípios do Estado de Direito Democrático, tais como o da proteção da confiança legítima e da segurança jurídica, o da igualdade e o da descoberta da verdade material.

Pelo exposto, a decisão recorrida, ainda que por razões distintas, deve ser confirmada, improcedendo o recurso interposto.

                                                                            *

                                                                                                     *

B. Recurso da Sentença Condenatória:

 

1. Nulidade da sentença por insuficiente fundamentação - art.º 379.º, n.º 1, al.ª c), do CPP:

 Entende o M.º P.º no parecer junto, que a sentença recorrida  é nula por falta de fundamentação, nos termos do disposto no art.º 379 n.º 1 al. c) do CPP.

A deficiência da fundamentação só constitui nulidade quando for de tal forma relevante que impeça o conhecimento da razão para determinado facto ter sido dado como provado ou não provado, ou dos raciocínios subjacentes à qualificação jurídica dos factos ou à determinação das medidas das penas.

O M.º P.º entende que a sentença “não está suficientemente fundamentada em sede de medida da pena e espécie de pena, e até sobre a imputabilidade do arguido, pois nem a imputabilidade diminuída foi apreciada, pelo que é nula – art.º 379.º, n.º 1, al.ª c), do CPP - por falta de fundamentação ou suporte crítico 

Ora, lida a sentença parece-nos que tal segmento se mostra fundamentado. Se é verdade que nele o juiz a quo não questionou a questão da imputabilidade do arguido, foi  por entender, claramente, que esta questão não tinha de ser apreciada, por não ter tido dúvidas sobre a mesma 

Diz ainda o M.º P.º que “A mera indicação na sentença do relatório pericial de outro processo, negando-se a realização de relatório pericial atualizado, sem que tenham sido devida e concretamente sopesados e tidos em consideração factos referidos nesse relatório, desatualizado, que reflitam ou não a personalidade propensa ao crime, à luz dos factos (posteriores) provados na sentença, consubstancia uma insuficiente fundamentação que torna nula a decisão - art.º 379.º, n.º 1, al.ª c), do CPP.

Ora, diz o juiz a quo, na sentença recorrida, que valorou na formação da convicção o teor da certidão, junta aos autos, relativamente ao Relatório da Perícia Médico-legal, efetuado no processo 53/23.....

E assim foi, pois deu como provado no facto 35, o seguinte:             No âmbito do processo 53/23...., o arguido foi considerado imputável.

O facto de não terem extraído outras consequências de tal relatório, designadamente as pretendidas pelo M.º P.º não inquina a sentença recorrida de nulidade.

Termos em que improcede a arguida nulidade 

2 Recurso em matéria de facto:

Como resulta do disposto no artigo 428º, nº 1 do Código de Processo Penal, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, do que decorre que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respetivos poderes de cognição. 

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, no que se denomina de «revista alargada», que são vícios que traduzem defeitos estruturais da decisão penal e não do julgamento e no âmbito da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nos 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal, caso em que a apreciação se alarga à análise da prova produzida em audiência, dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, só podendo alterar-se o decidido se as provas indicadas obrigarem a decisão diversa da proferida.

E o arguido, embora faça menção apenas ao erro notório na apreciação da prova, impugna a matéria dos artigos 3 a 5 e invoca o teor de depoimentos produzidos em julgamento e a prova documental junta aos autos para argumentar que tais factos não podiam ter sido considerados provados.

Ora, tal forma de impugnação remete-nos para o disposto nos artigos 412º nºs 3 e 4 e 431º do Código de Processo Penal, recurso este que envolve, não apenas o texto da decisão, mas a apreciação da prova produzida ou examinada em audiência de julgamento.

Lembramos contudo que a análise que este Tribunal tem de fazer não envolve um segundo julgamento, uma nova análise de todos os elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas e tão só uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorretamente julgados, valorando as provas que o recorrente entende que impõem uma decisão diferente pelo tribunal e outras que se afigurem necessárias para a decisão.

Este Tribunal de recurso tem de averiguar se relativamente à matéria de facto impugnada, a convicção do Tribunal a quo está fundamentada e se tal fundamentação e os meios de prova em que se baseou conduzem à decisão tomada ou se, ao invés, os meios de prova que o recorrente invocou impunham que a decisão tivesse sido distinta.

Escreve Sérgio Poças, in “Quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar:

“Como o tribunal de recurso não vai rever a causa, mas, como vimos, apenas pronunciar-se sobre os concretos pontos impugnados, é absolutamente necessário que o recorrente nesta especificação seja claro e completo. De facto, não podem ficar dúvidas sobre quais os concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados(…) Em segundo lugar, o recorrente deve especificar as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. O recorrente, tratando-se de prova testemunhal (outra pode ser, como é obvio) deve identificar as testemunhas cujos depoimentos, no seu entendimento, e relativamente ao concreto ponto de facto em questão, impõem decisão diversa (importa reter as considerações feitas sobre a motivação e as conclusões no ponto anterior). Mas não basta identificar as testemunhas; o recorrente deve ainda indicar concretamente as passagens dos depoimentos dessas testemunhas em que se funda a impugnação — artigo 412.º, n.º 4.”

Salientamos ainda que no nosso sistema processual penal vigora o princípio da livre apreciação da prova, estabelecendo o art. 127° do CPP, que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada seguindo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. 

A este propósito, ensina Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, v. I, Coimbra Editora, Lda., 1981, pág. 202: 

" Uma coisa é desde logo certa: o princípio não pode de modo algum querer apontar para uma apreciação imotivável e incontrolável - e portanto arbitrária - da prova produzida. Se a apreciação da prova é, na verdade discricionária, tem evidentemente esta discricionariedade (...) os seus limites que não podem ser licitamente ultrapassados: a liberdade de apreciação da prova é, no fundo, uma liberdade de acordo com um dever - o dever de perseguir a chamada" verdade material" - de tal sorte que a apreciação há-de se, em concreto, recondutível a critérios objectivos e portanto, em geral susceptível de motivação e de controlo”.

A apreciação da prova não é feita por segmentos isolados, estanques, opacos e incomunicáveis entre si, mas antes através da análise de todo o acervo produzido e da sua ponderação à luz dos critérios estabelecidos no artigo 127º do Código de Processo Penal.

Esta livre valoração da prova não é livre arbítrio ou valoração puramente subjetiva, pela qual se chega a uma conclusão unicamente por meio de impressões ou conjeturas de difícil ou impossível objetivação, mas sim uma valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que determinam uma convicção racional, objetivável e motivável. 

Tal não significa que a motivação seja totalmente objetiva, pois não pode nunca dissociarse da pessoa do juiz que a aprecia e na qual “(…) desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais (...)” - cfr. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, pág. 205.  

O princípio da livre apreciação da prova obriga à fundamentação da decisão proferida sobre a matéria de facto, inclusive por imperativo constitucional, o que implica - para além da sua sustentação em prova efetivamente produzida - uma explicação analítica e racional do processo de valoração da prova, que deixe claros os motivos que levaram o tribunal a julgar provada ou não provada a factualidade relevante.

E tal convicção só existirá quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável, exigência que entre nós sempre deriva dos princípios da culpa e da presunção de inocência.
É unânime a jurisprudência no sentido de que o contacto pessoal confere ao juiz em primeira instância os meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. 

Contudo, tal não significa que o Tribunal da Relação se tenha de limitar a apreciar se a convicção do tribunal a quo respeitou as regras probatórias e que não possa formar a sua própria convicção.

Lemos no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 26.06.2019, processo: 174/17.1PXLSB.L1.S1, disponível em dgsi.pt., a cuja doutrina aderimos:

“obviamente que o legislador ao estabelecer o recurso sobre matéria de facto sabe que o tribunal de recurso não se encontra presente no julgamento e por isso o estabelece nas condições em que o fez permitindo, ainda assim, uma apreciação global da prova com base no registo da mesma;  a falta de imediação por parte do tribunal de recurso, e nos termos em que esses recursos se mostram concedidos, não assume qualquer relevância; (...); o relevante é que do processo constavam todas as provas e elementos necessário a que o tribunal de recurso pudesse apreciar toda a prova existente e formar a sua convicção”.

E ainda Ana Maria Barata de Brito, in “Os poderes de cognição das Relações em matéria de facto em processo penal”, Estudo de 2012, disponível em http://www.tre.mj.pt/ docs/ ESTUDOS:

“ Se a capacidade de reapreciação da matéria de facto pelo Tribunal da Relação sofre limitações decorrentes da falta de imediação – cumpre, então, questionar: a que falta (de imediação) nos referimos? A uma privação total, como genericamente se parece afirmar? E quais as consequências dessa privação, ou em reverso, qual o plus concretamente acrescido por via da imediação? Mesmo para além dos casos de renovação da prova (art. 430º CPP), as Relações não estão totalmente desprovidas de imediação. Têm-na desde logo, e aqui na exacta medida do juiz de julgamento, relativamente a todas as provas reais (no sentido de todas as outras provas, não pessoais: documentos, exames, perícias, apreensões, vigilâncias…). Têm-na relativamente à prova gravada/escutada – por via do acesso directo à documentação da prova, potenciado com o fim das transcrições que até 2007 mediatizavam o acesso. Ou seja, mesmo relativamente à prova pessoal existe uma imediação parcial. A prova pessoal ou oral revela-se, ao que aqui interessa, em duas componentes: de voz e de imagem. O tribunal ad quem fica privado da relação de proximidade com a imagem da pessoa que intervém no julgamento, na qualidade de arguido, testemunha ou declarante. Mas dispõe do acesso directo à voz do autor dos relatos, e pode apreender tudo o que, no processo comunicacional, é transmissível através da voz (gravada). Não deve falar-se por isso de uma total ausência de imediação, mesmo na parte referente à prova pessoal”.

Leia-se ainda Sérgio Poças, op. e loc. cit.:

“a ausência da imediação e da oralidade na Relação são factores a ponderar devidamente na decisão e daí que só com elementos seguros de uma clara e objectivada errada convicção sobre determinado facto a Relação possa alterar a decisão. Mas uma coisa é a natural ponderação e cautela, dada a ausência daqueles princípios na 2.ª instância, outra, bem diferente, é aquela invocação assumir-se de facto como impedimento ao exercício do direito ao recurso sobre a matéria de facto, o que não pode ser, como todos estaremos de acordo.”

Tendo presente todo este edifício jurídico, e em coerência, o legislador estabeleceu um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso em matéria de facto – cfr. artigo 412º, n.º 1, 3 e 4 do CPP. 

Ora, o arguido, para além de indicar a matéria de facto impugnada (factos 3 a 5), argumenta que os depoimentos ouvidos em audiência de julgamento impunham decisão diferente  da proferida pelo Tribunal recorrido, já que, sustenta, a convicção do Tribunal assentou fundamentalmente nos depoimentos das testemunhas AA e BB e fez uma errada interpretação daquilo que por elas foi dito.

Invocou segmentos do depoimento prestado pela testemunha AA em julgamento - que transcreveu -, afirmando que esta testemunha faltou à verdade, pois as expressões que nesta sede imputou ao arguido não coincidem com as que constam da queixa crime, cujo teor foi por ela confirmado quando prestou declarações em inquérito. Ora, estas declarações foram lidas em audiência de julgamento e podem por isso ser valoradas e são, pois, contraditórias com as que prestou em julgamento.

Argumenta ainda que não há nenhum outro elemento de prova que corrobore este depoimento.

Vejamos então.

Em momento algum o recorrente alega que o Tribunal recorrido atribuiu aos diversos depoimentos perante si prestados conteúdos que os mesmos não tinham ou que tenha valorado prova proibida. 

Ou seja, o arguido não assinala qualquer desconformidade entre a prova produzida e a prova considerada pelo Tribunal para formar a sua convicção, mas entende que o Tribunal  decidiu erradamente, que deveria ter concluído que as queixosas mentiram e que os respetivos depoimentos não são credíveis.

Este Tribunal ouviu o depoimento da referida testemunha AA (na sua íntegra e não apenas nos segmentos transcritos) e leu o auto de notícia, de fls. 39 a 42 e o depoimento por ela prestado perante OPC e junto a fls. 64 a 65, sendo que este foi lido em audiência de julgamento, com o acordo de todos os sujeitos processuais (cfr. ata de 6/6/2024) e que, por isso, pode ser valorado pelo Tribunal.- art.º 357.º, n.º 5, do Cód. Proc. Penal.

 Vemos que, quando prestou depoimento perante a GNR, esta testemunha confirmou  o teor do auto de notícia, acrescentando, no que ao caso dos autos interessa, que tem receio do arguido porque este refere que a mata e teme pela sua integridade física e pela da filha e do companheiro.

 No auto de notícia consta sucintamente que a arguida informou que o arguido lhe puxou os cabelos e  deu um murro na boca, dizendo “eu mato-te”, tudo na presença da testemunha/ofendida BB.

 Já em julgamento  declarou, …

                   E mais à frente:

Não vislumbramos que este depoimento esteja em contradição com o teor do auto de notícia e com as declarações prestadas em julgamento.

De facto, do auto de notícia - que contém claramente e como é usual, um resumo do episódio denunciado -  consta que o arguido disse à testemunha AA que a matava.

Em audiência de julgamento, a testemunha relatou com pormenor todo  o episódio que motivou a queixa que apresentou, concretizando as expressões ameaçadoras que o arguido lhe dirigiu e que se relacionam com a sua morte. 

E quando questionada em audiência de julgamento sobre o teor do auto de notícia, a testemunha declarou não saber se, no dia em que os factos ocorreram, relatou todas as expressões que o arguido proferiu à GNR e se foi a GNR que não as mencionou no auto ou se de facto só relatou em termos genéricos o que sucedeu. Sabe que na altura estava muito nervosa e com muito medo.

Ora, o depoimento da testemunha AA foi corroborado pelo depoimento prestado em audiência de julgamento pela testemunha BB, que contou, a instâncias do Tribunal, o seguinte:

E sabemos que o auto de notícia foi elaborado depois da deslocação da GNR ao local, certamente com fundamento em apontamentos que estes militares tomaram do que lhes foi transmitido pela queixosa e pela testemunha AA, que como referiu, se encontrava muito nervosa no momento. Já  em audiência de julgamento, sendo o discurso oral e sujeito a contraditório, é natural que se pormenorize o sucedido.

Assim, sendo os depoimentos das ofendidas entre si coincidentes e coerentes e tendo respaldo na prova documental e pericial junta aos autos e sendo corroboradas pelas regras do normal acontecer, são merecedores de credibilidade.

Note-se que eventuais discrepâncias entre  o depoimento da testemunha BB prestado em audiência de julgamento e aquele que foi prestado perante OPC não podem aqui ser sindicados, pois este último depoimento não foi lido em audiência de julgamento 

Valorando, pois, todas estes elementos probatório, não podemos deixar de subscrever a apreciação que deles fez o Tribunal recorrido e de entender que os factos impugnados devem permanecer provados.

Clarificamos ainda que as expressões constantes dos factos provados foram efetivamente todas elas proferidas na presença das duas ofendidas, conforme resulta dos depoimentos das mesmas.

O recorrente coloca em crise a convicção do tribunal recorrido e acaba por pretender simplesmente impor a sua própria e subjetiva leitura crítica da prova, em detrimento daquela que alicerçou a convicção adquirida pelo tribunal recorrido e está em consonância com a prova produzida, analisada à luz das regras da experiência e do normal acontecer.

A questão do recorrente é, pois, de discordância quanto à convicção do Tribunal, que de nada vale, porque se impõe o estatuído no artº 127º do CPP (a prova é apreciada segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do julgador). 

Os meios de prova indicados pelo recorrente não impõem, assim, decisão distinta relativamente aos pontos 3 a 5  da matéria de facto. 

Ex abundante cautela, diremos ainda que, contrariamente ao invocado pelo recorrente, o Tribunal a quo não incorreu em erro notório na apreciação da prova (vício da decisão previsto no artigo 410º, nº 2, alínea c) do Código de Processo Penal).
O “erro notório na apreciação da prova” é pacificamente considerado, na doutrina e na jurisprudência, como aquele que é evidente para qualquer indivíduo de médio discernimento e deve resultar do texto da sentença, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum. Neste sentido veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09.12.1998 (BMJ 482, p. 68) onde se conclui que “erro notório na apreciação da prova é aquele que é de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem médio facilmente dele se dá conta” e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.11.1998 (BMJ 481, p. 325) onde se refere que o erro na apreciação da prova só pode resultar de se ter dado como provado algo que notoriamente está errado, “que não pode ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras de experiência comum, sendo o erro de interpretação detectável por qualquer pessoa”. 

Assim, e ao invés do que pretende o recorrente, o erro notório na apreciação da prova não reside na desconformidade entre a decisão do julgador em relação à matéria de facto e aquela que teria sido a do recorrente. Limitando-se o recorrente a manifestar a sua discordância entre aquilo que foi dado como provado pelo Tribunal, e aquilo que ele, recorrente, teria dado como provado, não pode sequer enquadrar-se a questão na alínea c) do nº 2 do citado artigo 410º. 

E o texto da decisão recorrida, examinado na sua globalidade, assenta em premissas que se harmonizam num raciocínio lógico e coerente, também de acordo com as regras da experiência comum, não existindo o aludido vício. Acresce que na sentença recorrida estão devidamente explicitados os motivos por que foram valoradas positivamente determinadas provas e desconsideradas outras, sendo perfeitamente inteligível o itinerário cognoscitivo que conduziu à convicção do julgador e os meios de prova em que foi alicerçada essa convicção.

Não se vê, assim, que a decisão recorrida tenha de algum modo desrespeitado os princípios que regem a livre apreciação da prova, não merecendo qualquer censura por parte deste Tribunal de recurso e não enfermando do vício analisado.

Improcede assim este segmento do recurso

                                                                                                   *

                   3. Violação do princípio in dubio pro reo:

Alega o recorrente que, face à prova produzida, o Tribunal deveria ter permanecido na dúvida quanto aos factos ocorridos, o que imporia a respetiva absolvição, em obediência ao princípio in dubio pro reo.

Como sabemos, o que resulta deste princípio é que, quando o Tribunal fica na dúvida - inultrapassável - quanto à ocorrência de determinado facto, deve retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.

E, conforme refere Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal “, I, pág. 205, para que a dúvida seja relevante, tem de se tratar de uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas.

Diz-nos o acórdão da Relação de Lisboa de 10.01.2018, Processo: 63/07.8TELSB-3, acessível em www.dgsi.pt. 

“O princípio in dubio pro reo constitui um princípio de direito relativo à apreciação da prova/decisão da matéria de facto, estando umbilicalmente ligado, limitando-o, ao princípio da livre apreciação – a livre apreciação exige a convicção para lá da dúvida razoável; e o princípio «in dubio pro reo» impede (limita) a formação da convicção em caso de dúvida razoável. A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Só a dúvida séria se impõe à íntima convicção. Esta deve ser, pois, argumentada, coerente, razoável. De onde que o tribunal de recurso “só poderá censurar o uso feito desse princípio (in dubio) se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo chegou a um estado de dúvida e que, face a esse estado escolheu a tese desfavorável ao arguido – cfr. acórdão do STJ de 2/5/1996, CJ/STJ, tomo II/96, pp. 177. Ou quando, após a análise crítica, motivada e exaustiva de todos os meios de prova validamente produzidos e a sua valoração em conformidade com os critérios legais, é de concluir que subsistem duas ou mais perspetivas probatórias igualmente verosímeis e razoáveis, havendo então que decidir por aquela que favorece o réu.”

A seleção da perspetiva probatória que favorece o acusado só se impõe quando, esgotadas todas as operações de análise e confronto de toda a prova produzida perante o julgador, apreciada conjugadamente entre si e em conformidade com as máximas de experiência, a lógica geralmente aceite e o normal acontecer das coisas, subsista mais do que uma possibilidade de igual verosimilhança e razoabilidade.

Assim, só haverá violação do mencionado princípio quando, perante uma dúvida inultrapassável sobre factos essenciais para a decisão da causa, venha o julgador a decidir em desfavor do arguido e tal só em concreto é que pode ser aferido

Tal não ocorreu no caso dos autos, mostrando-se a factualidade julgada provada estribada em provas legais e em consonância com essa prova e tendo o Tribunal a quo exposto, de forma cuidada, os meios de prova de que se serviu e a credibilidade que atribuiu a uns e o descrédito que outros lhe mereceram.

A argumentação da recorrente a este respeito assenta, apenas, na avaliação dos depoimentos prestados em audiência de julgamento, dos quais entendem que se impunha que o Tribunal permanecesse na dúvida quanto aos acontecimentos, impedindo que o Tribunal alcance o juízo de certeza necessário para dar como provados os factos que nessa qualidade descreveu. 

Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática ou práticojurídica e processualmente, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. 

Não será a circunstância de se contraporem, pela prova pessoal - declarações e testemunhos - versões contraditórias, a impor que o julgador seja conduzido, irremediavelmente, a uma situação de dúvida insuperável.

Não vemos, em face do modo como foi exposta a fundamentação apresentada na decisão recorrida que o Tribunal a quo tenha feito mau uso do poder-dever de livre apreciação da prova (cujo sentido foi já supra explicado) 

Lendo a decisão recorrida, o que se verifica é que a mesma analisa de forma crítica e conjugada a prova produzida, expressando, o percurso seguido na formação da convicção com respeito pelas regras da experiência comum e da normalidade da vida e dos critérios da racionalidade e da lógica.

Deste modo, sendo os factos dados como provados na sentença recorrida conclusões lógicas da prova produzida em audiência e plausíveis face a essas provas, a convicção assim formada pelo julgador não pode ser censurada, sob pena de violação do princípio da livre apreciação da prova.

Consequentemente, inexistindo qualquer violação, quer do princípio in dubio pro reo, quer do princípio da presunção de inocência, impõe-se manter a matéria de facto nos precisos termos fixados pela 1ª instância.

*

4. Enquadramento jurídico dos factos provados:

            O recorrente discorda do enquadramento jurídico que foi feito da factualidade provada, dizendo que o mal anunciado não é um mal futuro, que as expressões proferidas se referiam a agressões futuras mas a agressões que teriam lugar naquele momento, o que não sucedeu, e que por isso os factos não integram o crime de ameaça pelo qual foi condenado.

                   Não tem razão, entendemos.

O crime de ameaça encontra-se tipificado no art.º 153º do Código Penal, que pune todo aquele que “ ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocarlhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”.

Do ponto de vista da conduta descrita e no sentido que interessa ao preenchimento do tipo legal, ameaçar corresponde ao ato de prometer ou pronunciar um mal futuro, de anunciar, de modo explícito ou implícito, a intenção de causar um facto maléfico, injusto e grave, consistente em danos físicos, económicos ou morais, necessariamente futuros, independentemente do concreto prazo eventualmente assinalado para a concretização da ameaça. Posto é que, aos olhos do homem médio, dotado das características individuais do ameaçado, a concretização futura do mal anunciado dependa ou apareça dependente da vontade do agente. 

            O mal ameaçado tem, além do mais, de configurar em si mesmo um facto ilícito e típico, embora não necessariamente culposo, ainda que, após a revisão de 95, obrigatoriamente afirmado por referência direta a determinados bens criminalmente tutelados. 

De facto, do confronto entre a redação introduzida pelo diploma revisor e aquela outra que até então vigorava, resulta que, no que concerne ao tipo em análise, foi deliberadamente estreitado o respetivo campo de aplicação através da indicação precisa dos bens ameaçados e, simultaneamente, alargado o âmbito da matéria proibida pela conversão do crime em delito de perigo concreto (cfr. Prof. Figueiredo Dias, Actas da Comissão de Revisão, 24ª sessão, pg.232).

  Com efeito, o que se exige agora para o preenchimento do tipo é apenas que a atuação do agente objetivamente reúna certas características que a tornem particularmente adequada a provocar na vítima receio ou inquietação e não já também que, em consequência da atuação contra si desenvolvida, se sinta a vítima efetivamente inquieta ou amedrontada.

O preenchimento da factualidade típica basta-se, pois, agora com a criação de uma concreta situação de perigo para o bem jurídico tutelado, independentemente do dano eventualmente produzido.

É irrelevante se a ameaça é proferida perante o visado com a ameaça ou perante terceiro, sendo, no entanto, indispensável para preenchimento do tipo que a ameaça chegue ao conhecimento do seu destinatário.

Tratando-se de um crime de perigo abstracto -concreto, é necessário, para afirmar a respetiva prática, que, através de um juízo ex ante, se reconheça na ameaça perpetrada efetiva potencialidade intimidatória, isto é, aptidão para intimidar, criar sentimentos de medo ou de inquietação. 

Mas não é necessário  que através da ameaça o agente provoque efetivamente medo ou inquietação ou prejudique a liberdade de determinação do visado, tal como não é necessário demonstrar ter ocorrido em concreto o perigo de verificação de alguma daquelas situações, bastando-se o preenchimento do tipo objetivo com a adequação em concreto da ameaça proferida para afetar a liberdade de decisão e ação, mesmo que tal afetação, ou o perigo respetivo, não venham a ocorrer

E uma vez que o critério de adequação a utilizar para um tal efeito será do tipo objetivo-individual, para se aferir da idoneidade da ameaça, deve levar-se em consideração, além do mais:
- as circunstâncias do caso concreto (mal anunciado, sua credibilidade e exequibilidade, forma, tempo e lugar da conduta maléfica anunciada, capacidade do agente para delinquir e seus antecedentes criminais, costumes locais, etc.);
- as particulares condições do sujeito passivo (impressionabilidade, passividade, estado psicológico, idade, capacidade de resistência, etc.) e o conhecimento que o agente ativo tenha, no momento da conduta, dessas particulares condições do sujeito passivo.

                   Tal análise tem de ser realizada para além do valor literal das palavras.

Para além do mais, o mal ameaçado tem de ser futuro. 

Futuro é todo o tempo compreendido naquele em que é proferida a expressão que anuncia o mal que o seu autor diz que será causado, não acompanhada, esta, de actos correspondentes à sua simultânea ou imediata concretização.

Há ameaça de mal futuro sempre que se não esteja perante a eminência da execução do mal anunciado, ou seja, desde que não se trate já duma tentativa criminosa.

Se alguém dirigir a outrem uma expressão verbal – ou de outra natureza – de anúncio de causação de um mal, não acompanhando essa acção com os actos de execução correspondentes, simultâneos ou logo de seguida à verbalização, todo o tempo que durar essa inacção e em que se mantiver a possibilidade de o mal anunciado se concretizar é o futuro, em termos de interpretação da expressão em causa. (cfre Ac. da RG de 21/05/2018

Mas quando se anuncia um mal proibido e se praticam simultaneamente atos de execução de um crime sobre a vítima, saber se a ameaça constitui já um ato de execução do crime proibido ou se existe incriminação autónoma da “ameaça” depende da intenção do agente, do significado da ameaça, o que é aferido atendendo ao contexto e concretas circunstâncias em que os factos ocorreram e características do agente e da vítima. 

Assim, se o agente afirma “vou-te matar” e agride fisicamente o visado, em tese poderemos estar perante uma tentativa de homicídio -  já que segundo a alínea c) do artigo 22º do Código Penal, o anúncio daquele mal pode, segundo a experiência comum, ser de natureza a fazer esperar que se lhe sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores, isto é, actos que preencham um elemento constitutivo de um tipo de crime, ou que sejam idóneos a produzir o resultado típico.  Esta tentativa do crime de homicídio consome naturalmente a ameaça, pois é já um ato de execução, tratado-se, pois, de diferentes estádios de evolução ou de intensidade da realização global, em que todo o comportamento é “dominado por um único sentido autónomo de ilicitude,” (Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 2007).

Quando a expressão usada não tem seriedade suficiente para ser entendida pelo visado como uma ameaça séria à vida  mas apenas como ameaça à integridade física (porque não é assim entendida nem se reconhece no emitente capacidade para delinquir a esse nível) e tal expressão é seguida de atos de execução deste crime (o mal ameaçado é um mal iminente, coincide a ameaça com a concretização), o desvalor da ameaça já estará contido na efetiva incriminação pelo crime prometido, é consumida pelo crime de ofensa á integridade física praticado e punível.  

Ou seja, se a ameaça com a prática de um dos crimes de referência do artigo 153º ocorrer em simultâneo com a  execução desse crime- sob a forma tentada ou consumada - , ou se a execução do crime prometido ainda não se iniciou mas está iminente, o desvalor da ameaça é consumido pelo desvalor do crime prometido consumado, os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global conexionam-se, de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por “um único sentido de desvalor jurídico-social” (Figueiredo Dias op. cit).

Se a expressão se refere a um crime iminente (ex: vou-te bater agora) que não chega a consumar (acaba por não bater, por levantar a mão e não acertar), pode haver, em tese punição pela ameaça, já que a  tentativa de crime contra a integridade física é não punível, e isto não obstante o mal anunciado se trate de um mal de concretização imediata. Efetivamente, em face da não punibilidade da tentativa, mantém-se a autonomia do desvalor da ameaça e a consequente necessidade de tutela penal.

Mas é também possível, em tese, estarmos em face da prática de um crime de ameaça agravado consumado em concurso efetivo com um crime de ofensa à integridade física consumado, como é a situação em que a ameaça de morte proferida em simultâneo com a agressão consumada tiver seriedade suficiente para se entender que é de facto dirigida à vida do visado, que significa de facto que é intenção do agente no futuro matar o visado. Aqui o crime consumado não é o prometido, não há uma unidade mas ao invés uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude jurídico-penal do comportamento global.

Em suma: a resposta não pode ser dada em geral e abstrato, mas apenas à luz das circunstâncias do caso concreto e resolve-se aferindo se da conduta global do agente praticada nesse momento resulta que o desvalor contido na ameaça se esgota- ou não- no desvalor do ilícito típico executado nessa mesma ocasião, aferida esta pelo critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito-global.

 (cfr. neste sentido, Ac. da RE de 17-03-2015, proc.1857/11.5PCSTB.E1 e  de 2017-1206, Processo: 1019/15.2PZLSB.L1-3, ainda, Ac. da RL de 2017-12-06, Processo: 1019/15.2PZLSB.L1-3, cfr. ainda Ac da RC de 02-06-2021 Processo: 163/ 18.9T9CNF.C1 e de 29-01-2020, Processo: 81/18.0PBFIG-C1, 08-02-2023 Processo:102/19.0GHCVL-C.C1, todos in www.dgsi.pt)

Revertendo ao caso dos autos à luz de quanto vai dito há que notar que as expressões que constam da acusação foram proferidas num contexto de conflito e de discussão no seio familiar, estando o arguido embriagado, muito exaltado e sendo ele um indivíduo que sofrera já diversas condenações criminais, inclusivamente por crimes contra as pessoas.

A expressão “eu já vos fodo aqui às duas”, de acordo com a factualidade provada, foi seguida de puxões de cabelo com força à ofendida AA … e, nessa medida, o mal apregoado pelo arguido (que é indefinido na sua literalidade mas que no contexto do caso e considerando os atos que lhe seguiram deve ser entendido como “eu já vou fazer aleijar, agredir”), não se projetou para um momento futuro, sendo antes contemporâneo do próprio anúncio. Aqui estamos perante dois estádios de realização da mesma conduta criminosa, um único sentido de ilicitude do comportamento global e o desvalor daquela conduta é consumido pelo desvalor do crime de ofensa à integridade física.
Mas já não assim relativamente às outras expressões proferidas pelo arguido: «eu tenho

várias caçadeiras, mato-vos a todos, enterro-vos aqui e depois vou-me entregar às autoridades».

Estas expressões, proferidas no contexto dado como provado, por um indivíduo com diversas condenações pela prática de crimes contra as pessoas, são evidentemente adequadas a afetar a liberdade de decisão e ação das visadas. E de facto provou-se que as vítimas se sentiram ofendidas nos seus sentimentos de segurança e liberdade, suscitando-lhes o receio de que o arguido concretizasse a ameaça feita, causando-lhes a morte.

Há, pois, uma pluralidade de sentidos sociais de ilicitude jurídico-penal do comportamento global. 

Em razão do exposto, não assiste razão ao recorrente no que concerne à suposta falta de verificação dos requisitos do tipo pelo qual foi condenado, improcedendo este segmento do recurso.

 

5. saber se a pena de prisão efetiva deve ser cumprida em regime de permanência na habitação:

Não questionado a espécie e medida da pena aplicada, pretende o recorrente a substituição da pena de prisão pelo regime de permanência na habitação, não vindo questionada a medida concreta das penas parcelares e únicas.

Como é sabido, determinada uma concreta medida da pena de prisão, impõe-se ao Juiz verificar se ela pode ser objeto de substituição, em sentido próprio ou impróprio.

Dentro das penas de substituição da prisão, encontra-se o regime de permanência na habitação, que o Tribunal a quo considerou que não deveria ser aplicada.

É com esta decisão que o recorrente não se conforma.

Ora, estipula o artigo 43.º do CP que:

“1 - Sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância:

a)A pena de prisão efetiva não superior a dois anos;

(…)
2 - O regime de permanência na habitação consiste na obrigação de o condenado permanecer na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, pelo tempo de duração da pena de prisão, sem prejuízo das ausências autorizadas.
3 - O tribunal pode autorizar as ausências necessárias para a frequência de programas de ressocialização ou para atividade profissional, formação profissional ou estudos do condenado.
4 - O tribunal pode subordinar o regime de permanência na habitação ao cumprimento de regras de conduta, suscetíveis de fiscalização pelos serviços de reinserção social e destinadas a promover a reintegração do condenado na sociedade, desde que representem obrigações cujo cumprimento seja razoavelmente de exigir, nomeadamente:
a) Frequentar certos programas ou atividades;
b) Cumprir determinadas obrigações;
c) Sujeitar-se a tratamento médico ou a cura em instituição adequada, obtido o consentimento prévio do condenado;
d) Não exercer determinadas profissões;
e) Não contactar, receber ou alojar determinadas pessoas;
f) Não ter em seu poder objetos especialmente aptos à prática de crimes.

5 - Não se aplica a liberdade condicional quando a pena de prisão seja executada em regime de permanência na habitação.»

Este normativo traduz o entendimento generalizado de que as penas curtas de prisão devem ser evitadas por não contribuírem necessariamente para a ressocialização efetiva do condenado e de que a pena de prisão ser reservada para situações de maior gravidade e que mais alarme social provocam, designadamente a criminalidade violenta e/ou organizada  (cfr. Ac. da RE de 18-02-2020 e de 12/7/2023, ambos in www.dgsi.pt).

Foi, inclusivamente, na senda desse pensamento, que se procedeu à abolição da prisão por dias livres e do regime de semidetenção, alterando-se (através da ampliação do respetivo campo de aplicação) o regime de permanência na habitação, alinhando com soluções do mesmo género e espécie que vêm sendo adotadas noutros países europeus (cfr. Lei n.º 94/2017, de 23/08). 

Posto isto, verifica-se, então, da análise do regime legal aplicável, que a execução da pena de prisão em regime de permanência na habitação depende da verificação de um conjunto de requisitos, uns de ordem substancial, outros de ordem formal.

Exige-se, em primeira linha, que o Tribunal conclua, num juízo de prognose semelhante ao estatuído no artigo 50°, n.° 1 do Código Penal, que a execução da pena na habitação realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, a saber a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

E depois, é mister que a pena de prisão tenha a medida indicada no n.º 1 do mesmo normativo.

No caso concreto, verificam-se os pressupostos formais de aplicação deste regime e, em conformidade, a sentença de 1ª instância ponderou a sua aplicação, recusando-a com a seguinte fundamentação, que se seguiu a considerações genéricas sobre o instituto em apreço:

“E, numa situação como a presente, pensamos que as exigências de prevenção especial não ficarão devidamente acauteladas com a execução da pena detentiva em regime de permanência na habitação, atendendo ao longo e vasto percurso delituoso do arguido na prática de crimes, mormente crimes estradais e crimes cometidos contra pessoas e as penas de prisão suspensas que já lhe foram aplicadas, o que não levará a dissuadir, o arguido, à prática de novos crimes, nomeadamente uma pena de prisão, suspensa na sua execução, por um ilícito da mesma natureza.

Além disso, temos que o grau de ilicitude se afigura elevadíssimo, pelo que a confiança da comunidade na validade das normas violadas não sairia satisfeita e não sairia reforçada com o cumprimento de uma pena executada no domicílio. 

Pelo que, à final, a pena do arguido será de executar em ambiente prisional.”

Não acompanhamos esta conclusão do tribunal a quo, pelas razões que infra serão expostas.

Vejamos desde logo que os factos foram praticados em 28/04/2023 e que estamos em face de um crime associado ao consumo do álcool.

Após os factos, o arguido separou-se da mulher, foi internado no Serviço de Psiquiatria do Hospital da ... em 16/06/2023, pouco após os factos e desde então que  tem vindo a ser acompanhado em consultas desta especialidade. 

Esteve também internado na Unidade de Alcoologia ... em dezembro/2023, tendo-se mantido abstinente de bebidas alcoólicas desde essa altura e é seguido em consultas periódicas.

Vive sozinho e dedicado à agricultura e pecuária, possuindo uma exploração agropecuária, constituída por vários terrenos agrícolas, 327 ovelhas 12 cabras e 70 vacas.

Possui apenas um empregado que o ajuda na sua atividade laboral.

Tem uma situação económica do arguido é, segundo o próprio, estável e que até lhe permite ajudar economicamente o filho. 

No momento da prolação da sentença, cumpria uma pena de 8 meses de prisão (crime de desobediência), no âmbito do proc. 83/23.... em regime de Permanência na Habitação (PPH), por factos contemporâneos dos presentes factos (16/5/2023)

Aguarda julgamento por um crime de violência doméstica (proc. 53/23....). 

Sofreu várias condenações por crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, mas também em crimes de desobediência e de violação de proibições (crimes estradais e relacionados com o consumo do álcool), em penas de multa e em penas de prisão substituídas e, inclusivamente, em prisão efetiva, não se tendo deixado intimidar.

Sofreu ainda condenações pela prática de crimes contra as pessoas (abuso sexual de pessoa incapaz de resistência e ofensa à integridade física simples, em penas de multa e de prisão, suspensa na sua execução.

E é notório que todo o percurso de vida do arguido demonstra que esta se tem pautado pela dependência do consumo álcool e que esta sua dependência tem estado na génese de muitos dos comportamentos criminosos pelos quais tem vindo a ser condenado.

São assim elevadas as exigências de prevenção especial positiva, sob a forma de ressocialização do arguido, atenuadas contudo pelo facto do arguido ter laços familiares (com  o filho, a quem inclusivamente ajuda economicamente) e hábitos de trabalho, possuindo uma exploração agropecuária e de, após a prática dos presentes factos, ter procurado ajuda para combater a sua dependência e a sua instabilidade emocional, sujeitando-se inclusivamente a internamentos e comparecendo nas consultas médicas que lhe são agendadas.

Por outro lado, pela prática do crime julgado no processo 83/23...., que data de 16/5/2023, o arguido foi condenado numa pena de prisão a cumprir em regime de permanência na habitação.

Como nota o recorrente, escreveu-se na sentença condenatória proferida nesse processo que: “a par do efeito dissuasor da prática de novos crimes, o RPH terá a virtualidade de contribuir para a ressocialização do arguido” e ainda que “a perda de liberdade implicada é decerto suficiente para reforçar tal sentimento comunitário”. E conclui o juiz a quo: “a natureza do crime cometido, o passado do arguido e as suas condições de vida e personalidade não parecem impor tal solução derradeira. Bastará, cremos nós, o cumprimento de uma pena de prisão efetiva, mas executada em regime de permanência na habitação, nos termos do art.º 43º do CP”.

Já no âmbito dos presentes autos, por factos praticados poucos dias antes - e de forma que não pode deixar de se julgar contraditória -, entendeu-se que o cumprimento de uma pena de prisão efetiva era necessária. 

Vejamos que as circunstâncias que se ponderaram em ambas as sentenças eram as mesmas: os antecedentes criminais do arguido, as condições de vida do arguido, a natureza dos crimes (de menor gravidade), a justificar, entende-se, uma pena de idêntica natureza.

E nada obsta a que efetivamente assim seja. 

Apesar dos antecedentes criminais, o recorrente tem apoio familiar, tem um trabalho (é agricultor por conta própria), está a ser acompanhado pela Unidade de Alcoologia ..., pela unidade de psiquiatra do Hospital ... e pelo CARG, razão pela qual introduzi-lo em ambiente prisional por crimes de menor gravidade, como é o caso, constituiria um assinalável retrocesso na reintegração social que se deseja alcançar. Esta forma de execução da pena de prisão permitirá que o arguido permaneça junto da sua família, continue a trabalhar, contribua validamente para a comunidade e não interrompa o acompanhamento clínico de que beneficia, afastando-o simultaneamente  dos efeitos criminógenos da institucionalização.

Não se vê, pois, em que pode o cumprimento da prisão na habitação prejudicar a ressocialização do arguido, pelo menos por referência ao tipo de crime em causa nos autos, sendo que tal não significa que o arguido  passe a ficar impune, pois acarreta o sacrifício inerente à privação da liberdade, mesmo que esta não seja cumprida em meio prisional.

Por outro lado, este regime de permanência na habitação tem potencialidades para realizar a tutela do bem jurídico protegido pela norma que pune o crime em causa, pois não deixa de, com sentido pedagógico, constituir forte sinal de reprovação.

Desta forma, a execução da pena de prisão através do regime previsto no artigo 44º do Código Penal revela-se, a nosso ver, adequada e suficiente para salvaguardar as necessidades de prevenção - geral e especial - reclamadas na situação ora em apreço, as quais, não exigem o contacto do arguido com o sistema prisional.

Trata-se evidentemente de um risco, mas um risco calculado e que valerá a pena correr. 

De resto, em caso de incumprimento, haverá lugar à revogação do RPH-VE e ao cumprimento institucional da pena (artigo 44.º CP).

Como bem se escreve no Ac. da T.R.E. de 06-03-2012, Processo: 56/11.0GTSTB.E1, disponível in www.dgsi.pt:

a pena de prisão deve ser cumprida em regime de permanência na habitação se o tribunal puder concluir que esta forma de cumprimento realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição - a proteção do bem jurídico e a reintegração do arguido na sociedade (art. 40º, nº 1). A proteção do bem jurídico mostra-se assegurada com a condenação em pena de prisão efetiva, independentemente do cumprimento desta se processar em estabelecimento prisional ou em regime de permanência na habitação. Não vemos como este regime de cumprimento de uma pena de seis meses de prisão possa fragilizar, no caso, a proteção do bem e a confiança na norma jurídica violada. Serão, já aqui, determinantes as razões de prevenção especial. E importa saber, não qual das duas formas de cumprimento de pena será preferível, mas sim se a menos lesiva é ainda suficiente para satisfazer essas exigências de prevenção especial. (…) À prisão como ultima ratio da política criminal, à necessidade de compressão do efeito estigmatizante e criminógeno da prisão, ao reforço da preferência pela não prisão nos casos da pequena e média criminalidade e nas penas curtas de prisão, alia-se hoje a discussão sobre a utilidade da própria prisão, na dicotomia “pena de prisão incapacitante do delinquente” versus “pena de prisão como meio de reinserção social”.

 Tendo em conta todo o quadro legal de referência e os princípios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade, determina-se, assim, a substituição da pena de prisão de 14 meses por igual período em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, mas com autorização para o arguido se ausentar da residência, quer para trabalhar -  pois o exercício da atividade laboral contribuirá certamente para a ressocialização e nos termos e com eventuais condições que o tribunal a quo entenda adequadas - quer para comparecer nas consultas médicas que sejam agendadas.

Esta substituição da pena de prisão fica condicionada aos consentimentos exigidos pelo artigo 4.º da Lei n.º 33/2010, de 02 de Setembro (alterada pela Lei n.º 94/2017, de 23 de Agosto), que regula a aplicação dos meios técnicos de controlo à distância (vigilância electrónica). 

Assim, o recurso deverá proceder, devendo o arguido cumprir a pena de 14 meses de prisão em RPH-VE ou o remanescente desta que resultar dos descontos a operar nos termos do art. 80º, nº1 e 81º do Código Penal,, diligenciando o tribunal de 1.ª instância, após a baixa dos autos, pela recolha dos consentimentos necessários e, sendo necessário pela prévia vistoria técnica da residência do arguido.

Após trânsito, deverá comunicar-se a condenação ao Tribunal de Execução de Penas (TEP), que mobilizará os serviços de reinserção social com vista à elaboração do Plano de Reinserção Social.

O Plano de Reinserção Social será homologado pelo Tribunal de Execução de Penas (artigo 222.º-A CEPMPL).

Quaisquer outras ausências da habitação serão, casuisticamente, decididas pelo Tribunal de Execução de Penas, a requerimento, ex vi artigo 222.º-B da Lei n.º 115/2009, de 12 de outubro (Código da Execução das Penas e de Medidas Privativas da Liberdade).”


*

  Acrescentamos, por fim, que a sentença recorrida não é nula por falta de fundamentação, nos termos do disposto no art.º 379 n.º 1 al. c) do CPP, por o tribunal não ter considerado o teor do relatório pericial elaborado no âmbito do processo 53/23..., na determinação da medida da pena, como invoca o M.º P.º no parecer junto

A deficiência da fundamentação só constitui nulidade quando for de tal forma relevante que impeça o conhecimento da razão para determinado facto ter sido dado como provado ou não provado, ou dos raciocínios subjacentes à qualificação jurídica dos factos ou à determinação das medidas das penas.

O M.º P.º entende que a sentença “não está suficientemente fundamentada em sede de medida da pena e espécie de pena, e até sobre a imputabilidade do arguido, pois nem a imputabilidade diminuída foi apreciada, pelo que é nula – art.º 379.º, n.º 1, al.ª c), do CPP - por falta de fundamentação ou suporte crítico 

Ora, lida a sentença parece-nos que tal segmento se mostra fundamentado. Se é verdade que nele o juiz a quo não questionou a questão da imputabilidade do arguido, foi  por entender, claramente, que esta questão não tinha de ser apreciado, por não ter tido dúvidas sobre a mesma 
Diz ainda o M.º P.º que “A mera indicação na sentença do relatório pericial de outro processo,

negando-se a realização de relatório pericial atualizado, sem que tenham sido devida e concretamente sopesados e tidos em consideração factos referidos nesse relatório, desatualizado, que reflitam ou não a personalidade propensa ao crime, à luz dos factos (posteriores) provados na sentença, consubstancia uma insuficiente fundamentação que torna nula a decisão - art.º 379.º, n.º 1, al.ª c), do CPP.

Ora, diz o juiz a quo, na sentença recorrida, que valorou na formação da convicção o teor da certidão, junta aos autos, relativamente ao Relatório da Perícia Médico-legal, efetuado no processo 53/23.....

E assim foi, pois deu como provado no facto 35, o seguinte:             No âmbito do processo 53/23...., o arguido foi considerado imputável.

Tudo para concluir que não padece a sentença da nulidade invocada. 

.

V – Decisão:

Pelo exposto, acordam as Juízas da 5ª secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido e em consequência:

1 – Alterar a modalidade de execução da pena de 14 meses de prisão aplicada na 1.ª instância, a qual será cumprida em regime de permanência na habitação com vigilância eletrónica, nos termos previstos no artigo 43.º do Código Penal, com eventuais condições que o tribunal a quo entenda adequadas e com autorização de saída da residência para trabalhar, pelo período estritamente necessário para tal e para assistir às consultas médicas que lhe sejam agendadas, devendo o arguido permanecer confinado no interior da sua residência sob meios de controlo a distância, na restante parte do dia, fins de semana e feriados.

2. Esta substituição da pena de prisão fica, todavia, condicionada ao consentimento exigido pelo artigo 4.º da Lei n.º 33/2010, de 02 de Setembro (alterada pela Lei n.º 94/2017, de 23 de Agosto), que regula a aplicação dos meios técnicos de controlo à distância (vigilância electrónica); 

3. – Deverá  o tribunal a quo designar diligência com fim exclusivo de obter o consentimento do arguido para a pena de substituição de regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, bem como para o cumprimento das regras de conduta que entender necessárias. 

4 - Se o recorrente não prestar o consentimento nos moldes expostos, a pena única de 14 meses em que foi condenado pelo tribunal a quo, operados os respetivos descontos nos termos do disposto no art. 80º, nº 1 e 81º do Código Penal, será cumprida em regime de prisão efetiva .

5-  Manter, quanto ao mais, a sentença recorrida.


*


 Sem custas.

Notifique.


Coimbra,  8 de outubro  de 2025
Sara Reis Marques - relatora
Maria da Conceição Miranda
Sandra Ferreira

                                     

(texto processado e integralmente revisto pela relatora – artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal)