Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1454/24.5PCCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FÁTIMA SANCHES
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
CONCRETIZAÇÃO DOS FACTOS
SUBORDINAÇÃO EXISTENCIAL
POSIÇÃO DE INFERIORIDADE
ASSIMETRIA E COISIFICAÇÃO DA VÍTIMA FACE AO AGRESSOR
RECURSO DA DECISÃO QUE ATRIBUIU À VÍTIMA DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA INDEMNIZAÇÃO PELOS PREJUÍZOS SOFRIDOS
Data do Acordão: 09/24/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE COIMBRA - JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE COIMBRA - JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: REJEITADO O RECURSO NA PARTE ATINENTE À CONDENAÇÃO NO PAGAMENTO DE UMA COMPENSAÇÃO À VÍTIMA E NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO QUANTO AO MAIS.
Legislação Nacional: ARTIGO 152.º DO CÓDIGO PENAL
ARTIGO 82.º-A, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
ARTIGO 21.º, N.º 2, DA LEI 112/2009, DE 16 DE SETEMBRO
Sumário: I - É irrecorrível a sentença na parte em que decidiu arbitrar à vítima 1.500 € a título de reparação pelos prejuízos sofridos, em conformidade com o preceituado nos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), segunda parte, e 414.º, n.º 2, ambos do C.P.P.

II - Conforme se vem entendendo, não seria congruente com a ordem jurídica admitir o conhecimento, em recurso, da pretensão de redução de um quantum indemnizatório arbitrado oficiosamente à vítima em 5 000,00 €, ao abrigo do disposto no artigo 82.º-A do C.P.P., quando não é susceptível de recurso igual pretensão relativamente a um pedido de indemnização civil deduzido pela vítima no mesmo valor e julgado totalmente procedente.

III - A violência doméstica não exige uma "subordinação existencial", uma posição de inferioridade, uma “assimetria” e “coisificação” da vítima.

IV - O elemento subjetivo do tipo preenche-se por qualquer forma de dolo e deve abranger a(s) circunstância(s) que agrava(m) o crime.

V - Diz-nos a experiência comum que as situações em que os casais passam uma vida inteira a ofender-se mutuamente ou um dos membros do casal a ofender o outro, esses episódios, dada a frequência e habitualidade, são difíceis de concretizar no tempo, pois fazem parte do dia-a-dia, acabando por cair, muitas vezes, na banalização.

VI - Se bem que haja situações em que a falta de concretização no tempo e no espaço dos factos dificulta o exercício do contraditório, tal não acontece, em regra, no crime de violência doméstica, dadas as suas especificidades, pois o arguido sempre pode fazer a prova de que o relacionamento do casal foi, no geral e ao longo de toda a coabitação, pacífico ou, pelo menos, que as condutas relatadas ou não existiram, ou foram muito pontuais, ou raras.

VII - Não sendo imprescindível uma continuação criminosa para configurar o crime, um único comportamento para ser passível de integrar o crime tem que assumir uma intensa crueldade, insensibilidade e desprezo pela consideração do outro como pessoa, pelo que será muito mais fácil concretizá-lo no espaço e tempo.

Decisão Texto Integral:

            Acordam os Juízes da 4ª Secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. RELATÓRIO

            1. No processo comum singular, com o NUIPC1454/24.5PCCBR que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, no Juízo Local Criminal de Coimbra, foi proferida sentença em 15-05-2025 [referência97257663], com o seguinte dispositivo (transcrição):

                «Pelo exposto, decide-se:

a) Condenar o arguido … pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artº 152º, nº 1, alínea b) e nº 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão;

b) Suspender a execução da pena de prisão aplicada ao arguido pelo período de 3 (três) anos, acompanhada de regime de prova, que deverá contemplar a frequência do programa para agressores de violência doméstica e sujeito às regras de conduta de afastamento da residência e local de trabalho da vítima e a proibição de contactos, por qualquer meio, com a vítima e com a filha desta, …

c) Condenar o arguido no pagamento à ofendida da quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de reparação, em conformidade com o disposto nos artº 82º-A, nº 1 do Cód. Processo Penal e 21º da Lei nº 112/2009, de 16/09;

d) Condenar o arguido no pagamento das custas do processo (artº 8º do Regulamento das Custas Processuais), fixando a de taxa de justiça em 2 UC – artºs 374º, n.º 4, 513º, n.º 1 e 514º, n.º 1 do Cód. Processo Penal.»

            2. Inconformado com a decisão, interpôs recurso o arguido.

            2.1. – O recorrente sintetizou os seus argumentos nas seguintes conclusões (transcrição):

               

Segundo. A impugnação da matéria de facto é fundamentada pelos vícios de insuficiência da matéria da prova e erro notório da apreciação da prova, nos termos do disposto nas alienas a) e c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

Terceiro. Impugna-se especificamente a factualidade dos pontos 4º, 5º, 12º, 13º, e 14º, - insuficiência de prova e por erro notório da apreciação da prova, por contradição com os factos dados como provados nos pontos 16º, 17º, 36º, 40º que manifestam e contrariam a alegada imposição da vontade do Recorrente sobre a liberdade de atuação da Ofendida.

Sexto.    Inexiste factualidade dada como comprovada que permita aferir de como, quando, porque, onde e de que foram, a que titulo e quantas vezes o Arguido impediu a Ofendida de sair de casa e/ou contatar com amigos e/ou familiares.

Sétimo. Inexiste no texto da sentença recorrida – factos dados como provados - a forma como e quando o Recorrente colocou em causa a segurança e/ou tranquilidade da Ofendida.

Oitavo. A inexistência da concretização dos factos limita o exercício do direito de defesa do Recorrente, pois está perante um conjunto de factos genéricos e sem concretização temporal que lhe permitam conduzir a sua defesa.

Nono. Não repugna o normal acontecer e as regras da experiência comum que no âmbito de uma relação afetiva tenham que ser dadas informações ou sejam pedidas informações sobre onde se está e com quem se está, o que é normal e decorre das normais obrigações de cooperação e colaboração, mútuos, dentro de um casal.

Décimo. Inexistem factos concretos ou prova produzida que permitam ao Douto Tribunal a quo dar como comprovado o elemento subjetivo do tipo nos moldes patentes nos factos descritos nos pontos 12, 13 e 14, os quais deverão ser suprimidos dos factos dados como provados por insuficiência da prova produzida.

Décimo primeiro. Deverão ser suprimidos dos factos dados como comprovados os factos patentes no ponto 4 e 13 por serem antagónicos com a factualidade, igualmente dada como provada, nos pontos 16 e 17, o que manifesta o aludido erro notório na apreciação da prova.

Décimo segundo.  Da prova indicada como fundamento para a sustentação da matéria de facto – que se transcreve na motivação – não é referido por qualquer testemunha que o Recorrente impedisse de qualquer forma ou meio que a Ofendida contata-se com quem ela pretendesse contatar ou que estivesse proibida na sua liberdade de movimentos.

Décimo quarto. Sem se prescindir do juízo absolutório sempre se dirá que a pena é excessiva e não deverá estar condicionada a quaisquer injunções, bem como o tempo de suspensão deverá ser igual ao da pena aplicada.

Décimo sexto.      O envio das mensagens de carater injurioso e difamatório, no final da relação afetiva de 10 anos reveste a prática de um crime de natureza particular e não o crime de natureza pública a que o Recorrente foi condenando, o que equivale a afirmar errada qualificação jurídica dos factos.

Décimo sétimo. O Recorrente nunca mais contatou a Ofendida – facto dado como provado pontos 36º e 40º.

Décimo oitavo. Inexiste relação assimétrica e coisificação da ofendida.

Vigésimo. A pena de 2 anos e 3 meses é excessiva e não deverá ser superior a 2 anos de prisão, que deverá ser suspensa por igual período sem regime de prova ou aplicação de regras de conduta e/ou injunções, por estas serem totalmente desnecessárias no caso concreto.

Vigésimo segundo. A atribuição de reparação no montante de € 1500,00, para além de ser excessiva, não é justificada de forma concreta, pelo que existe omissão de pronúncia e consequente nulidade nos termos do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal.

            3. Ao recurso interposto pelo arguido respondeu o Ministério Público, pugnando pela sua improcedência …

4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-geral Adjunto, emitiu parecer …

 5. Ao mencionado parecer respondeu a Assistente, manifestando total concordância com o mesmo.

6. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, n.º 3, alínea c) do citado código.

II – QUESTÃO PRÉVIA.

Na douta sentença recorrida foi decidido, entre o mais:

«c) Condenar o arguido no pagamento à ofendida da quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de reparação, em conformidade com o disposto nos artº 82º-A, nº 1 do Cód. Processo Penal e 21º da Lei nº 112/2009, de 16/09»

            No recurso interposto, o arguido manifesta-se inconformado quanto a esta condenação considerando que o valor de indemnização fixado é exagerado e a condenação infundada [conclusão vigésima segunda].

                Dispõe o artigo 400.º, n.º 2 do Código de Processo Penal que: “(…) o recurso da parte da sentença relativa à indemnização civil só é admissível desde que o valor do pedido seja superior à alçada do tribunal recorrido e a decisão impugnada seja desfavorável para o recorrente em valor superior a metade dessa alçada.”

Resulta do preceito legal transcrito que a admissibilidade do recurso da parte da sentença que conheça do arbitramento de uma indemnização civil está dependente do preenchimento de dois pressupostos cumulativos: 1) o valor do pedido deve ser superior à alçada do tribunal recorrido e 2) a sucumbência do recorrente ha de ser superior a metade do valor dessa alçada.

No caso dos autos não foi formulado qualquer pedido de indemnização pela Assistente, mas por imperativo legal e na sequência do requerimento formulado em sede de acusação pelo Ministério Público nesse sentido, o Tribunal arbitrou a indemnização mencionada supra, ao abrigo do disposto nos artigos 82º-A, nº 1 do Código de Processo Penal e 21º da Lei nº 112/2009, de 16/09.

            Pese embora o primeiro daqueles critérios não seja aplicável pois não há pedido cível formulado, sendo que no caso concreto aqui em análise o Ministério Público não fez, no requerimento aludido supra, qualquer indicação quanto ao valor indemnizatório a fixar, entendemos que é aplicável o disposto no artigo 400º do Código de Processo Penal, utilizando-se apenas o segundo critério o qual, como vimos, remete para a sucumbência do recorrente, no caso, o valor da indemnização fixada.

            Como se afirma no acórdão do Tribunal da relação de Évora de 10-04-2018[1]:

“No caso de recurso de indemnização arbitrada oficiosamente ao abrigo do disposto no artigo 82º-A do C.P.P. e artigo 21.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, a primeira regra da dupla sucumbência contida no artigo 400º, nº 2 do C.P.P. não é aplicável por ausência de pedido cível, estando essa admissibilidade do recurso dependente do montante arbitrado. Desta forma, utilizando apenas o segundo critério – o quantum desfavorável – por impossibilidade de uso do primeiro, só é admissível recurso se o mesmo for superior a metade da alçada do tribunal recorrido, isto é, superior a 2.500 €.”

É vasta a Jurisprudência neste mesmo sentido, indicando-se a título exemplificativo os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 29-06-2013 [processo nº26/22.3PBCLD.C1 – relatora: Helena Bolieiro]; do Tribunal da Relação de Lisboa de 16-03-2023 [processo nº743/21.5SXLSB.L1-9 – relatora: Maria Carlos Calheiros] e do Tribunal da Relação do Porto de 16-10-2013 [processo nº670/11.4PDVNG.P1 – relator: Castela Rio], de 14-09-2016 [processo nº724/14.5PBLLG.P1 – relator: Ernesto Nascimento] e de 21-03-2018 [processo nº315/16.6GALSD.P1 – relator: Jorge Langweg], todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt

Voltando ao caso dos autos.

Uma vez que o valor da alçada a atender corresponde a €5 000,00 (cinco mil euros) - cf. artigo 44.º, n.º 1 da LOSJ - verifica-se que, no presente caso, em que temos uma sucumbência de €1 500,00 (mil e quinhentos euros), a decisão é irrecorrível.

É certo que, sendo a indemnização atribuída oficiosamente, não existe um valor peticionado pelo lesado, no âmbito de um pedido cível por si deduzido.

Porém, conforme se vem entendendo, não seria congruente na ordem jurídica admitir o conhecimento, em recurso, da pretensão de redução de um quantum indemnizatório arbitrado oficiosamente à vítima em € 5 000,00 (cinco mil euros) ao abrigo do disposto no artigo 82º-A do Código de Processo Penal, quando não é suscetível de recurso igual pretensão relativamente a um pedido de indemnização civil deduzido pela vítima no mesmo valor e julgado totalmente procedente.

Acresce que, o valor que o arguido foi condenado a pagar à Assistente (€ 1 500,00) também não excede metade da alçada do tribunal de primeira instância, pelo que nunca estaria verificado o requisito da sucumbência.

Impõe-se, pois, a rejeição do recurso na parte relativa à questão em apreço, por a mesma ser irrecorrível. 

A decisão que admita o recurso ou que determine o efeito que lhe cabe ou o regime de subida não vincula o tribunal superior, pelo que nada obsta a que esta instância conheça e aprecie os pressupostos de admissibilidade da impugnação, nos termos previstos no artigo 414.º, n.º 3 do Código de Processo Penal.

Assim, considerando que a sentença proferida pela 1.ª instância é, na parte em que decidiu arbitrar à vítima uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos, irrecorrível, deve o recurso que dela interpôs o Arguido ser rejeitado, em conformidade com o preceituado nos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), segunda parte, e 414.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

            III. FUNDAMENTAÇÃO

            1. Delimitação do objeto do recurso.

[2], …

            Atentas as conclusões formuladas pelo Recorrente, as questões a decidir são as seguintes:

            1ª – Vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova [conclusões 2ª a 5ª.]

            2ª – Erro de julgamento relativamente aos factos vertidos nos pontos 4., 5., 12., 13. e 14. [conclusões 3ª e 10ª a 13ª]

3ª – Inexistência de concretização dos factos [conclusões 6º a 8ª]

4ª – Não preenchimento dos elementos típicos do ilícito de violência doméstica [conclusões 16ª a 18ª]

5ª - Pena aplicada [conclusões 19ª a 21ª] 

           

2. Da decisão recorrida.

  A sentença proferida pelo Tribunal a quo, é do seguinte teor (transcrição):

«II - Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

III - Factos não provados

IV - Motivação da decisão de facto

Este Tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise crítica e ponderada da prova produzida.

Consideram-se as declarações prestadas pelo arguido na parte em que confirmou que manteve um relacionamento com a ofendida, residindo em união de facto cerca de 10 (dez) anos, mais integrando o agregado familiar a filha daquela. Confirmou ainda o envio das mensagens á ofendida e à testemunha …, cuja transcrição se encontra junta ao processo e que mostrava desagrado quando a mesma falava com pessoas na rua, nomeadamente no supermercado, dado que esta tratava as pessoas por “tu”, o que não achava um comportamento adequado. Mais admitiu ter-se dirigido a casa da ofendida no dia 15 de Junho de 2024.

Foram também consideradas as declarações prestadas pela assistente …, a qual relatou os factos que supra se deram como provados, descrevendo as situações ocorridas, em que o arguido reagiu da forma descrita. O Tribunal valorou estas declarações, pois considera que aquela fez um relato espontâneo da vivencia em comum com o arguido e das diversas situações supra dadas como provadas, sendo certo que algumas das situações surgem corroboradas pela demais prova testemunhal produzida em audiência de julgamento.

V - Enquadramento jurídico – penal

VI - Determinação das penas concretas aplicáveis

a) Da pena principal

               

            3. Apreciação do recurso.

            3.1.Dos vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova.

            Na conclusão 2ª, invoca o Recorrente o disposto no artigo 410º nº2 alíneas a) e c) do Código de Processo Penal.

            Como veremos e resulta do teor das conclusões em causa, o Recorrente confunde a invocação destes vícios com a impugnação ampla da matéria de facto ao abrigo do disposto no artigo 412º do Código de Processo Penal.

            Com efeito, o Recorrente menciona aqueles vícios para logo afirmar que impugna especificadamente a factualidade vertida nos pontos 4., 5., 12., 13. e 14. dos factos provados os quais devem ser dados como não provados em virtude de existir “insuficiência de prova” e “erro notório da apreciação da prova” e até, por “contradição dessa matéria de facto com a vertida nos pontos 16., 17., 36. e 40.”.

            Não obstante esse patente erro de interpretação do disposto no artigo 410º nº2 alíneas a) e c) do Código de Processo Penal, o conhecimento dos vícios da decisão ali consagrados é oficioso, pelo que nos cumpre tecer breves considerações sobre os mesmos, adiantando-se, desde já, a sua não deteção no quadro da decisão recorrida.

Preceitua o artigo 410º do Código de Processo Penal [na parte ora relevante]:

1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.

2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:

a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada […]

(…)

c) Erro notório na apreciação da prova.”

No que tange ao vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, comungando do douto ensinamento do Exmo. Conselheiro Sérgio Gonçalves Poças[3], cumpre ter presente:

Se o recorrente alega este vício – partindo necessariamente da análise do texto da decisão – deve especificar os factos que em seu entender era necessário – para a decisão que devia ser proferida – que o tribunal a quo tivesse indagado e conhecido e não indagou e consequentemente não conheceu, podendo e devendo fazê-lo.

Assim, num discurso argumentativo, encorpado e completo, mas ao mesmo tempo simples e claro, o recorrente deve procurar convencer o tribunal de recurso que faltam factos (identificando-os) necessários (fundamentando esta necessidade, nomeadamente invocando as normas jurídicas pertinentes) para a decisão e que não foi levada a cabo indagação a respeito deles quando (fundamentando) podia e devia ser feita.”       

O vício em apreço tem forçosamente de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou mediante concomitante recurso às regras de experiência comum, não cabendo na previsão do preceito legal «toda a tarefa de apreciação ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração de depoimentos, mesmo que objeto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto»[4] .

A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada implica que esta, na sua globalidade, se revela inidónea ou escassa para suportar a decisão tomada pelo Tribunal.

Na invocação deste vício critica-se o tribunal por não ter indagado e conhecido os factos que podia e devia, tendo em vista a decisão justa a proferir de harmonia com o objeto do processo. O vício consiste, pois, numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito sobre a mesma. No fundo, é algo que falta para uma decisão de direito que se entenda ser a adequada ao âmbito da causa, seja a proferida efetivamente, seja outra, em sentido diferente.

Descendo ao caso concreto.

Compulsado o texto da sentença em recurso, verificamos que da mesma consta, por um lado, todo um acervo factual que preenche os elementos objetivo e subjetivo do tipo legal de crime por que o Arguido vai condenado e, por outro lado, um conjunto de factos relativos à conduta anterior e posterior àqueles outros, bem como à situação económica e familiar do Arguido, que serviu de base à escolha e determinação da medida concreta da pena aplicada, não nos merecendo qualquer censura.

            Quanto ao vício de erro notório.

Existe erro notório na apreciação da prova quando do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, resulte que se deu como provado ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum.

Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal – Cfr. artigo 374º, nº2 do Código de Processo Penal.

Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 10 de julho de 2019[5], relativamente ao erro notório na apreciação da prova “O vício a que alude a recorrente e que consta da alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP é, contrariamente à frequência com que é invocado, um vício muito raro, uma vez que só ocorre quando é detetável por qualquer pessoa – homem médio – em face do texto da decisão recorrida. E é evidente se qualquer pessoa o deteta, também o juiz que elabora o texto dificilmente o deixaria passar.

É o erro que evidencia que as regras da experiência da vida e do normal acontecer foram violadas pelo raciocínio patente no texto da decisão”.

O erro notório na apreciação da prova, verifica-se quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Perante a simples leitura do texto da decisão, o “homem médio” conclui, legitimamente, que o tribunal violou as regras da experiência ou que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. 

Volvendo ao caso dos autos.

O Recorrente não explicita em que se traduziu tal erro notório, nos termos em que o vício em causa está consagrado na lei e é definido pela Doutrina e pela Jurisprudência. Desconhecem-se, pois, os argumentos em que assentará tal invocação, estando, nesta parte, este Tribunal impossibilitado de conhecer e decidir aquilo que, na perspetiva do Recorrente consubstancia, por referência ao acórdão em recurso, a verificação do vício a que alude a alínea c) do nº2 do artigo 410º do Código de Processo Penal.

Diga-se, também, que no que concerne a este concreto vício, compulsada a decisão em crise não se vislumbra qualquer erro notório na apreciação da prova.

Em suma, improcede o recurso nesta parte.

3.2.Do erro de julgamento relativamente aos factos vertidos nos pontos 4., 5., 12., 13. e 14.

            Decorre do teor das conclusões 3ª e 10ª a 13ª que o Recorrente pretende impugnar a matéria de facto dada como provada. …

            Ora, percorridas as alegações e as conclusões do recurso, em nenhuma parte o Recorrente deu cumprimento ao disposto no artigo 412.º nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal.

            Estabelece o dispositivo em causa que:

            “1 - A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.

                (…)

                3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

                a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

                b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

                c) As provas que devem ser renovadas.

                4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.

            A este propósito se vem pronunciando o STJ, sendo exemplo da Jurisprudência produzida o acórdão de 19-5-2010[6] do qual se destaca o seguinte trecho:

             “As indicações exigidas pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP são imprescindíveis para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus de natureza puramente secundária ou meramente formal, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto”.

            Já antes, o Tribunal Constitucional através do acórdão nº 320/2002[7], havia declarado com força obrigatória geral a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32°, nº 1 da Constituição da República, da norma do artigo 412°, nº 2 do CPP interpretada no sentido de que a falta de indicação nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência.

            Na linha desta jurisprudência constitucional, o nº 3 do artigo 417° do Código de Processo Penal, na redação que lhe foi conferida pela Lei nº 48/2007, impõe que, no caso de, das conclusões não ser possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos nºs 2 a 5 do artigo 412°, o relator convide o recorrente a completar ou a esclarecer as conclusões formuladas, sob pena de o recurso não ser conhecido na parte afetada.

            No caso presente, porém, a falta de indicação das referidas menções não surge apenas nas conclusões, mas também na própria motivação, pelo que o Recorrente não deve ser convidado a corrigir as conclusões uma vez que “apresenta uma motivação com deficiências de fundo já que contra o que expressamente impõe a lei, não se preocupa minimamente em satisfazer as suas exigências, como acontece com a indicação dos suportes técnicos que documentem a sua discordância quanto ao decidido quanto à matéria de facto.”[8]

            No mesmo sentido, v.g., os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 23-06-2004, Processo n.º 0412455; Relator, Exmo. Desembargador Fernando Monterroso; do Tribunal da Relação de Guimarães de 06-02-2006, Processo nº1337/05-1; Relator Exmo. Desembargador Ricardo Silva e de 25-6-2007, Processo n.º 743/06-1ª; Relator Exmo. Desembargador Cruz Bucho[9].

            Por seu turno, o Tribunal Constitucional já afirmou no seu acórdão nº 140/2004, de 10 de Março, Processo nº 565/2003, DR, II série, de 17 de Abril de 2004 que esta última interpretação não padece de qualquer inconstitucionalidade: “Não é inconstitucional a norma do art. 412°, nº 3 do CPP interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso se impugne matéria de facto, da especificação nela exigida tem como efeito o não conhecimento da matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências”.

Impunha-se, assim, ao Recorrente que especificasse quais os concretos pontos da matéria de facto provada e não provada que considera incorretamente julgados e concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.

Pese embora, o Recorrente identifique, quer nas conclusões, quer na motivação, os concretos pontos que considera incorretamente julgados, não indica, nem numas, nem noutra as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida.

Com efeito, esta omissão é total, limitando-se a Recorrente a fazer afirmações genéricas sobre a ausência de prova dos factos, confundindo-a com os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, invocando, de forma genérica, uma contradição entre factos provados, nunca indicando quais as concretas provas que impõem decisão diversa e, tendo a prova sido gravada, em nenhum momento deu cumprimento ao disposto no nº4 do preceito transcrito, isto é, não indica as concretas passagens da gravação em que se funda a impugnação.

Ora, resulta do nº 4 do dispositivo legal em análise que havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, devendo o recorrente indicar as passagens (das gravações) ou os concretos segmentos de tais depoimentos que em que se funda a impugnação e que no seu entender invertem a decisão proferida sobre a matéria de facto, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º).

Assim, quando se trate de depoimentos testemunhais, de declarações dos arguidos, assistentes, partes civis, peritos, etc., o Recorrente tem de individualizar, no universo das declarações prestadas, quais as particulares e precisas passagens, nas quais ficam gravadas, que se referem ao facto impugnado.

Na ausência de consignação na ata do início e termo das declarações, bastará “a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas pelo recorrente”, de acordo com o acórdão do STJ de fixação de jurisprudência de 8/3/2012 (AFJ nº3/2012), publicado no DR - I - Série, nº77, 18/4/2021.

No caso vertente, encontrando-se consignado na ata o início e termo dos depoimentos e declarações, a Recorrente optou por não dar satisfação a tal ónus.

Por conseguinte, a Recorrente não cumpriu o ónus de impugnação especificada, apesar de o programa de reprodução da gravação da prova oralmente produzida em audiência de julgamento, autoexecutável a partir de suporte informático, no qual foram gravadas, para além do mais, as declarações prestadas pelo Arguido e pela Assistente, bem como, os depoimentos das testemunhas, apresentar todos os elementos necessários ao seu cumprimento.

O incumprimento das formalidades impostas pelo artigo 412º, nº3 e 4, quer por via da omissão, quer por via da deficiência, inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto por esta via ampla. Mais do que uma penalização decorrente do incumprimento de um ónus, trata-se de uma real impossibilidade de conhecimento decorrente da deficiente interposição do recurso.

            3.3. – Da inexistência de concretização dos factos

Emerge do teor das conclusões 6. a 8 que o Recorrente considera que a factualidade dada como provada é genérica, não permitindo “aferir de como, quando, porque, onde e de que forma, a que titulo e quantas vezes o Arguido impediu a Ofendida de sair de casa e/ou contatar com amigos e/ou familiares” – Conclusão 6ª; “a forma como e quando o Recorrente colocou em causa a segurança e/ou tranquilidade da Ofendida” – Conclusão 7ª e que, “a inexistência da concretização dos factos limita o exercício do direito de defesa do Recorrente, pois está perante um conjunto de factos genéricos e sem concretização temporal que lhe permitam conduzir a sua defesa – Conclusão 8ª.

Como é bom de ver não pode sufragar-se a argumentação do Recorrente.

Se bem percebemos, estão em causa os pontos 4. e 13. dos factos provados, nos seguintes segmentos:

- o arguido com o argumento de que deveriam viver um para o outro, foi afastando e isolando a vitima dos amigos, familiares e das redes sociais – Ponto 4.

- o arguido fez a Assistente temer pela sua segurança, humilhando-a e limitando a sua liberdade e movimentos – Ponto 13.

Entende o Recorrente que vaguidade, imprecisão e indeterminação desta matéria de facto impossibilita-o de se defender e de exercer o contraditório.

Ora, o comportamento descrito no ponto 4., mostra-se localizado no tempo – o período que durou o relacionamento entre ambos, isto é, cerca de 10 anos, tendo terminado em 08-06-2024 (pontos 2., 3. e 4.) – e no espaço – tendo ela saído com amigas, telefonava-lhe (ponto5.) e no supermercado (ponto 7.)

Por seu turno, a factualidade descrita em 13. (conduta do arguido que gerou na ofendida, sentimentos de insegurança e humilhação e limitação da liberdade de movimentos) também se mostra concretizada nos comportamentos descritos nos pontos 6. (acusações de que a Assistente lhe era infiel, de ser má mãe e de consumir drogas), 7. (desagrado sempre que a ofendida falava com homens), 8. (bater violentamente com as portas), 9., 10. e 11. (ida do arguido a casa da vítima impondo a sua presença e vigiando-a pela janela e envio de mensagens a ela e a terceiros acusando-a de ser adúltera, que tem amantes e que o contaminou com doenças sexualmente transmissíveis e que consome cocaína).

Todos estes comportamentos estão, também, minimamente situados no tempo (durante o relacionamento e no dia 15-06-2024) e no espaço (na casa de morada da família, nos supermercados e na residência da ofendida).

Consideramos, pois, que as condutas se mostram minimamente concretizadas e balizadas no tempo e no espaço, especialmente se tivermos em conta que se trata de condutas adotadas em largo espaço de tempo durante o qual duram as relações de conjugalidade.

Diz-nos a experiência comum que situações há em que os casais passam uma vida inteira a ofender-se mutuamente ou um dos membros do casal a ofender o outro. E, nessas circunstâncias, esses episódios, dada a frequência e habitualidade, são difíceis de concretizar no tempo, pois fazem parte do dia-a-dia, acabando por cair, muitas vezes, na banalização. 

No caso, a atuação do arguido manteve-se ao longo da coabitação e até ao fim desta ocorrendo, também, uma das situações após essa coabitação, no dia 15-06-2024.  

Se bem que haja situações em que a falta de concretização no tempo e no espaço dos factos dificulta o exercício do contraditório (parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado), assim não acontece, em regra, neste tipo de crime dadas as suas especificidades.

Isto porque, o Arguido sempre poderá fazer a prova de que o relacionamento do casal foi, no geral e ao longo de toda a coabitação, pacífico ou, pelo menos, condutas como as relatadas inexistiram, foram muito pontuais ou raras.

Além disso, não sendo imprescindível uma continuação criminosa, um único comportamento para ser passível de integrar o crime tem que assumir uma intensa crueldade, insensibilidade e desprezo pela consideração do outro como pessoa, pelo que será muito mais fácil concretizá-lo no espaço e tempo, coisa que ocorre no caso dos autos no que concerne ao envio de mensagens cujo teor fala por si no que toca ao seu caráter injurioso, humilhante e aviltante e à ida do Arguido a casa da ofendida com o intuito de a controlar.

A maior dificuldade de concretização verifica-se, como se disse, quando os episódios são reiterados.

Porém, como bem salienta o acórdão do STJ, de 20/02/2019[10]:

“I - Pretende o recorrente que sejam dado por não escritos os factos dados como provados, com consequente absolvição pelo crime de violência doméstica, alegando que o respectivo conteúdo consubstancia imputações genéricas, com utilização de fórmulas vagas e imprecisas, temporal e factualmente indefinidas, não permitindo um efectivo contraditório e impossibilitando uma cabal defesa do arguido, porém, se é certo que o contexto temporal de tais condutas não é rigoroso, sendo até muito impreciso, a falta de elementos mais circunstanciados respeitantes à localização temporal dos maus tratos tem que ser compreendida no contexto em que este tipo de crime ocorre, em dinâmica intrafamiliar, a maioria das vezes sem a presença de outras pessoas para além do ofensor e da ofendida (…).

II - Perante práticas reiteradas ao longo de dezenas de anos, os episódios em concreto diluem-se na fita do tempo, ganhando antes relevo a visão global da conduta do arguido, um pouco à semelhança de cada árvore que vê a sua individualidade ocultada na floresta.” (sublinhado nosso)

Elucidativo é, também, o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 23/09/2013[11], onde se escreve:

«O que está em causa, não é a punição autónoma de cada um dos atos que integram o conceito de violência doméstica (caso em que, sob pena de se postergar os direitos de defesa, normalmente, teriam de ser indicadas as circunstâncias de tempo, modo e lugar de cada um deles), mas um comportamento reiterado ao longo dos anos. A acusação balizou o tempo em que tal comportamento persistiu – desde meados de 1995. Sendo esse comportamento reiterado que foi submetido a julgamento, e não cada um dos atos em que se materializou, foi cumprida a norma do art. 283 nº 3 al. b) do CPP.

Há comportamentos, sancionados pelo direito, em relação aos quais não é humanamente exigível a concretização, quanto a dia e hora, de todos os atos que o integram. Deixa-se um exemplo: se um merceeiro for acusado de, durante o período de um ano, vender determinado produto alimentar avariado, não é exigível que cada um dos clientes indique em que dia e hora foi à mercearia (onde eventualmente ia todos os dias) comprar o produto em causa. As regras da experiência indicam-nos que a quase totalidade dos compradores não seria capaz de concretizar esse pormenor, embora possam afirmar que foi durante determinado período que fizeram a aquisição. O ordenamento jurídico é um todo harmonioso, não sendo pensável que o direito penal substantivo puna um comportamento, que, depois, seria indemonstrável face às regras do direito processual.

É assim também nos casos do crime de violência doméstica em que houver a imputação de comportamentos reiterados. Foi para prevenir situações como as descritas que a norma do art. 283 nº 3 al. b) do CPP impõe que as concretizações nela indicadas apenas serão feitas «se possível». Em todo o caso, a acusação balizou minimamente o comportamento no tempo e no espaço, bem como a motivação para o mesmo: ocorreu a partir de meados de 1995, no interior da residência do casal, (…).»

Assim, relativamente ao relatado nos pontos 4. e 13., as condutas em causa, estão suficientemente concretizadas e localizadas no tempo, permitindo ao Recorrente deles se defender.

Face ao exposto, improcede, nesta parte, o recurso

3.4. – Do não preenchimento dos elementos típicos do ilícito de violência doméstica.

Emerge das conclusões 16ª a 18ª o inconformismo do Recorrente no que toca a ter o Tribunal a quo subsumido os factos provados ao tipo legal de crime de violência doméstica.

Mais uma vez, as razões da sua discordância não são muito claras, mas pensamos poder identifica-las pela seguinte forma:

- O envio de mensagens descrito no ponto 11., embora de caráter injurioso e difamatório, não consubstancia a prática de crime de violência doméstica, antes integra a prática de crimes de natureza particular, concretamente os crimes de injúria e/ou de difamação;

- Resultou provado que o Recorrente não mais contactou com a ofendida nem pretende fazê-lo no futuro, de onde decorre que os sentimentos de insegurança a que se reporta o ponto 13. resultam da personalidade desta e não de qualquer conduta das que se mostram descritas nos autos;

- Não resulta da factualidade provada que a relação entre arguido e ofendida fosse assimétrica e de coisificação desta última, pelo que, inexiste qualquer conduta que possa ser subsumida ao disposto no artigo 152º do Código Penal.

Vejamos a sem razão do recorrente.

Começando pela alegada não demonstração de que a ofendida se tenha sentido insegura em resultado das condutas levadas a cabo pelo Arguido e descritas nos autos.

Como se decidiu supra, a matéria de facto dada como provada tem-se por assente, pelo que, a afirmação do Recorrente surge descabida, em face do teor dos pontos 12. e 13. dos factos provados.

Relativamente ao envio das mensagens descrito no ponto 11. dos factos provados.

A conduta em causa não pode ser dissociada do comportamento geral adotado pelo Arguido, sendo no desenho deste que reside o preenchimento do elemento objetivo do tipo e não na consideração de per se das concretas condutas adotadas, como é entendimento generalizado da Doutrina e da Jurisprudência, a não ser que um episódio único assuma gravidade tal que seja legítimo prescindir da sua reiteração.

Quanto à inexistência de uma relação assimétrica e de coisificação da vítima, também, há muito se vem entendendo não ser este um elemento de que não possa prescindir-se quando está em causa o preenchimento do elemento objetivo constitutivo do tipo legal de crime de violência doméstica.

Vejamos então se a factualidade dada por provada é suficiente e idónea para integrar as condutas perpetradas pelo arguido no tipo de crime de violência doméstica pelo qual veio a ser condenado.

Prescreve o artigo 152º do Código Penal, onde se prevê o crime de violência doméstica [na redação dada pela Lei nº 57/2021, de 16.08, que entrou em vigor em 17.08.2021e na parte que ora releva]:

“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:

(…)

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

2 – No caso previsto no número anterior, se o agente:

a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima;

(…) é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”

Algumas breves considerações sobre o tipo legal de crime que está em causa, tendo em conta a Jurisprudência e a Doutrina pertinentes.

Como referido no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.09.2011[12], «no ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto ao perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima».

É este o entendimento de Nuno Brandão[13], segundo a qual «o desvalor potencial fundamentalmente tomado em consideração para justificar esta específica modalidade de incriminação se prende com os riscos para a integridade psíquica da vítima que podem advir da sujeição a maus tratos físicos e/ou psíquicos, sobremaneira quando se prolongam no tempo».

No crime de violência doméstica tutela-se a dignidade humana dos sujeitos passivos aí elencados, mormente na vertente da sua saúde, seja a nível físico ou psíquico, ou na vertente da sua privacidade, seja de liberdade pessoal ou de autodeterminação sexual.[14]

O bem jurídico protegido por este tipo legal de crime é, assim, em primeira linha, a saúde da vítima (física, psíquica e mental), visando a incriminação protegê-la de comportamentos que impeçam ou dificultem o normal desenvolvimento de uma pessoa, afetem a dignidade pessoal e individual da pessoa que com o agente mantém (ou manteve) vínculos relacionais estreitos e/ou duradouros.

André Lamas Leite[15], após admitir as dificuldades derivadas de um tipo legal em cuja base se encontre um bem jurídico tão multimodo como o da violência doméstica, preconiza que «o fundamento último das ações e omissões abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo.»     

A necessidade prática da criminalização das espécies de comportamentos descritos no artigo 152º, nº1, resultou da consciencialização ético-social dos tempos recentes sobre a gravidade individual e social destes comportamentos.

Não se trata, como se sabe, de fenómeno novo ou recente, mas o mesmo merece atualmente um olhar por parte da comunidade resultante de uma maior e mais ampla consciencialização acerca da inadequação, da gravidade e do potencial de agressão do “outro” que esses comportamentos encerram, o que faz com que os mesmos se encarem como um problema de dimensão social.   

No apontado sentido, também Victor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette[16]:

«As relações conjugais, como outras – de certa analogia ou proximidade, que o legislador equipara àquelas –, desenrolam-se, por via de regra, num determinado clima de confiança, solidariedade e respeito, que resiste à atinente cessação, persistindo para além dela. O aproveitamento da cobertura que as mesmas relações podem facultar à prática de condutas violentas por qualquer dos respetivos sujeitos, atuando sobre o outro, em contradição com a índole mesma daquele clima e com os ditames do vínculo estabelecido, seja ele qual for, torna-se, por isso, muito em particular reprovável. A lei, assim, dado que tais condutas vão acontecendo com alguma regularidade, optou por enérgica intervenção específica, tentando reagir contra a violação da harmonia estruturante das relações em causa. Repugna-lhe, com efeito, toda a forma de violência, em nome da preservação da paz doméstica (lato sensu), cuja negação gravemente se repercute na própria paz social – minando-lhe os alicerces –, a cujo nível as referidas relações dispõem de precípuo lugar. Por isso, acorre em defesa das vítimas, atribuindo-lhes um meio capaz de garantir boa proteção da vida, da integridade física e psíquica, da liberdade e da dignidade, contra qualquer inflição de maus tratos, dos quais se não excluem, v.g., «castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais». Em tal proteção se consubstancia a tutela penal aqui estruturada e conferida. A qual, mediatamente, não deixa de alastrar ao bem supra-individual que é a referida paz doméstica».    

Estamos perante um crime específico, porquanto pressupõe que o sujeito ativo se encontre numa determinada relação para com o sujeito passivo, a vítima dos seus comportamentos.

No caso da norma incriminadora da alínea b) do nº1 (em causa nos autos), o sujeito passivo ou vítima é “pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação”

As condutas típicas preenchem-se com a inflição de maus tratos físicos (ofensas à integridade física simples) e maus tratos psíquicos (ameaças, humilhações, provocações).

A conduta típica do crime de violência doméstica inclui, assim, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p. ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima.

Estes maus tratos podem ser infligidos de modo reiterado ou não (conduta isolada).  

A este propósito urge ter presente a jurisprudência que já antes da alteração legislativa de 2007 considerava que uma conduta ainda que isolada podia configurar um crime de maus tratos desde que pela sua gravidade pusesse em causa a dignidade humana do cônjuge ofendido.[17]

Porém, não é este o caso que está em causa nos presentes autos.

O conjunto de ações típicas que integram o ilícito criminal em apreço, uma vez analisadas à luz do contexto especialmente desvalioso em que são cometidas, constituirão maus tratos quando revelem uma conduta maltratante especialmente intensa que deixa a vítima em situação degradante ou em estado de agressão permanente.

Tais comportamentos integram o conceito legal de “maus tratos” quando se reconduzem a um padrão comportamental associado a uma perigosidade típica para o bem-estar físico e psíquico da vítima.

O que justifica a punição mais severa do agente através deste tipo legal de crime numa situação de concurso aparente com as ofensas à integridade física simples, injúrias, ameaças ou outra conduta penalmente típica suscetível de integrar a violência doméstica, é precisamente o desprezo do agressor pela dignidade pessoal da vítima, enquanto revelador de um pesado desvalor de ação que agrava a ilicitude material do facto.[18]

Como referido no aludido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 28.09.2011 - citando também Nuno Brandão e o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17.05.2010, relatado pelo saudoso Exmo. Desembargador Cruz Bucho - «o importante é, pois, analisar e caracterizar o quadro global da agressão física de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, que, por si, constitui um risco qualificado que a situação apresenta para a saúde psíquica da vítima. Nesse caso, impõe-se a condenação pelo crime de violência doméstica, do art. 152º do CP. Se não, a situação integrará a prática de um ou vários crimes de ofensas à integridade física simples, do art. 143º, do CP».  

E acrescenta-se no aresto: «a acção não pode limitar-se a uma mera agressão física ou verbal, ou à simples violação de alguma ou algumas das liberdades da pessoa (vítima) tuteladas por outros tipos legais de crimes. Importa que a agressão (em sentido lato) constitua uma situação de “maus tratos”. E estes (maus tratos) só se dão como verificados quando a acção do agente concretiza actos violentos que, pela sua imagem global do facto e pela gravidade da situação concreta são tipificados como crime pela sua perigosidade típica para a saúde e bem-estar físico e psíquico da vítima».

A agravação prevista na alínea a) do nº2 do artigo 152º, na parte que aqui importa, funda-se no propósito legislativo de censurar mais gravemente os casos de violência doméstica velada, em que a ação do agressor é favorecida pelo confinamento da vítima ao espaço do domicílio e pela inexistência de testemunhas.[19]

Umas breves palavras, também, sobre aquele que parece ser o entendimento do Recorrente no que concerne à relação entre agressor e vítima, considerando que para haver violência doméstica, tem de haver uma "subordinação existencial", uma posição de inferioridade, inexistente na relação entre recorrente e assistente.

Esta interpretação traduz um entendimento que além de não ter projeção no tipo legal, faz parte de uma realidade sociológica cada vez mais ultrapassada e tem vindo a ser abandonado pela Jurisprudência.

Como resulta da letra da lei, o ilícito em apreço impõe, tão só, que o agente se encontre para com o sujeito passivo numa determinada relação, conforme explicitado supra e, nessa medida, é um crime específico. Nada se exige, porém, quanto à invocada “assimetria” e “coisificação”.

Como se disse, a violência doméstica pode configurar uma multiplicidade de comportamentos que têm como característica comum o desrespeito pela dignidade da pessoa com quem se partilha, partilhou ou tenciona partilhar a vida afetiva.

No mundo dos afetos, qualquer comportamento violento assume maior intensidade.

Com efeito ninguém contestará que uma injúria, um dano, uma agressão física, vinda de alguém com quem não se tem qualquer relação afetiva, é mais suportável do que se for recebida do cônjuge ou companheiro com quem se partilha cama, mesa e habitação.

Nestes casos, as ofensas perduram no tempo, na memória de quem as sofre, geram sentimentos negativos de forma por vezes irrecuperável.

É por isso que as ofensas à integridade física, ameaças, injúrias e outra multiplicidade de tipos legais não podem ser autonomamente tratadas, quando ocorrem no seio de uma relação afetiva, elas têm de ser avaliadas globalmente por forma a aferir da virtualidade que possuem para ofenderem a dignidade daqueles a quem se dirigem, na concreta situação de vida.

No sentido de que não é elemento típico do ilícito em causa a existência de uma relação de domínio do agressor sobre a vítima, veja-se, entre outros[20], o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-10-2024[21], onde se lê:

“III - Não se nos afigura que o crime de violência doméstica exija a ocorrência de uma relação de subjugação, de domínio ou superioridade do agressor para com a vítima. Com efeito, basta atentarmos em condutas reiteradas de maus tratos físicos e psicológicos que não integrariam o crime de violência domésticas apenas porque a vítima não se deixou submeter aos desejos do agressor, fazendo-lhe frente ou reagindo às suas provocações.

IV - A vítima de violência doméstica não tem de suportar os maus tratos ficando em silêncio ou abstendo-se de qualquer ato mais agressivo, o facto de empurrar quando é empurrada ou de responder com agressões verbais depois de ser agredida verbalmente também não afasta a possibilidade de o agressor ser condenado pela prática do crime de violência doméstica.”

Finalmente, o elemento subjetivo do tipo preenche-se por qualquer forma de dolo e deve abranger a(s) circunstância(s) que agrava(m) o crime.

Vejamos, então, se a factualidade dada por provada é suficiente e idónea para integrarem as condutas perpetradas pelo arguido o tipo de crime de violência doméstica pelo qual veio a ser condenado.

Importa, pois, atender ao quadro global de atuação do arguido para inferir se o padrão comportamental que ele denota está associado a uma perigosidade típica para o bem-estar físico e psíquico da vítima, se dele ressuma o desprezo do agressor pela dignidade pessoal da ofendida (enquanto elemento revelador de um acentuado desvalor de acção que agrava a ilicitude material do facto).

Assim, como também entendeu, acertadamente, o tribunal a quo, ponderando a factualidade dada por provada [factos 4., 5., 6., 7., 8., 9., 10. e 11.], dúvidas não sobejam de que se mostra integralmente preenchida a tipicidade objetiva e subjetiva do crime-base de violência doméstica.

In casu, os diversos comportamentos ali descritos adotados pelo arguido entre 2014 e 2024 (cerca de 10 anos, tendo em conta que o relacionamento terminou em Junho de 2024 e que teve essa duração) durante relação de conjugalidade (viveram em condições análogas às dos cônjuges) na pessoa da assistente, sua companheira, sendo reiterados e dolosos, consubstanciam um padrão de comportamento adotado ao longo de uma década, traduzido em ofensas à honra e consideração da vítima, limitadores da sua liberdade de decisão e de movimentos, impondo-lhe uma atitude de controlo e de desconfiança o que encerra um alto potencial de afetação da dignidade e autoestima da ofendida enquanto pessoa humana, a quem o arguido, seu companheiro, devia antes um particular respeito e afetuosidade.

Foram atos perpetrados pelo arguido sobre a ofendida durante um extenso lapso temporal, num quadro global de desrespeito e humilhação a que a sujeitou, sendo, em nosso entendimento, suficientes para integrar o predito conceito dos “maus tratos” típicos da “violência doméstica” por tais comportamentos representarem, em relação à vítima, no contexto do relacionamento interpessoal por eles vivenciado, um potencial de agressão que supera a proteção oferecida pelos também tipificados crimes de injúrias/difamação quando considerados isoladamente.

Destarte, os factos perpetrados pelo arguido, perspetivados em conjunto, afetam, de modo assaz relevante, a dignidade humana da ofendida e a sua saúde psíquica, não apenas através de injúrias, mas também mediante a criação de um clima de intranquilidade, insegurança, fragilidade e humilhação.

Por outro lado, face aos factos dados por provados nos pontos 12. a 15., preenchido se mostra o elemento subjetivo do imputado crime de violência doméstica.

Ademais, decorre da factualidade provada, o preenchimento da circunstância agravante prevista na alínea a) do nº2 do artigo 152º do Código Penal, porquanto provou-se que o arguido perpetrou a esmagadora maioria dos factos objetivos em questão no domicílio comum.

Pelo exposto, bem decidiu o tribunal a quo ao condenar o arguido, como autor material de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152º nº1 alínea b) e nº2 alínea a) do Código Penal.

Improcede, pois, o recurso nesta parte.

3.5. - Da medida da pena.

Das conclusões 19º a 21ª resulta que o Arguido não se conforma com a medida da pena aplicada e bem assim, com o período de suspensão e imposição de condições.

Porém, também neste segmento do recurso o Recorrente não vai muito além de generalidades.

Perscrutando, porém, o teor das alegações podemos ali surpreender algo de mais concreto, considerando o Recorrente que o Tribunal a quo, em violação do disposto no artigo 71º e 40º do Código Penal, errou na decisão de determinação da pena a alicar.

Funda essa sua posição no seguinte:

- A pena deve ser fixada no mínimo legal (dois anos de prisão) pois que, a fixada (2 anos e 3 meses) ultrapassa a medida da culpa e vai além das necessidades de prevenção geral e especial manifestadas no caso.

- O período da suspensão deve ser igual à medida da pena e não superior, não devendo ser impostas quaisquer condições, na medida em que, resultou provado que o arguido nunca mais contactou a ofendida nem pretende fazê-lo no futuro.

Conhecendo.

Damos aqui por reproduzidas, por economia, as considerações teóricas tecidas, quer na sentença recorrida, quer na resposta ao recurso do Ministério Público, sobre o regime legal constante do Código Penal no que tange aos fins das penas e aos critérios a que deve obedecer a respetiva dosimetria.

No que concerne à aplicação que dos mesmos fez ao caso concreto do Recorrente, a sentença recorrida, relembremos o seguinte excerto:

Neste caso, apenas a pena de prisão é aplicável, pelo que apenas esta será considerada.

No que se refere à medida concreta da pena, esta é fixada de acordo com os critérios gerais do art.º 71º do Cód. Penal, com base nas seguintes directivas já enunciadas: o princípio da culpa que funciona como limite máximo da pena, as exigências de prevenção geral positiva ou de integração que funcionam como limite mínimo da pena e as exigências de prevenção especial de ressocialização que, dentro dos limites máximos e mínimos referidos, actua, determinando, em último termo, a medida da pena.

Ora, no caso concreto verifica-se que levando em conta a intensidade do dolo, no que se refere quer ao tipo-de-ilícito, quer ao tipo-de-culpa, tal intensidade é elevada, pois o arguido agiu com dolo directo.

No que diz respeito à ilicitude dos factos esta é elevada, por referência ao bem jurídico violado e às consequências emergentes da conduta ilícita, pois estamos perante uma conduta objectivamente adequada a colocar em perigo a saúde de uma pessoa que neste caso foi namorada do arguido, embora presentemente estejam separados.

As exigências de prevenção geral positiva são de um nível bastante elevado, tendo em conta a necessidade de desincentivar eficazmente a comissão de crimes do tipo daquele que nos autos está em consideração. Com efeito, crimes como o que está em consideração nos autos sucedem com alguma frequência, sendo a maior parte das vezes silenciados pelas vítimas ou porque que temem represálias por parte do agressor ou por vergonha de denunciarem uma situação que as transtorna, provocando danos irreversíveis nas mesmas, pois, por vezes, estão sujeitas a este tipo de situações com alguma frequência.

As exigências de prevenção especial são diminutas, pois o arguido não tem antecedentes criminais e está socialmente integrado.

Assim, nos termos do art.º 71º do Cód. Penal, aplica-se ao arguido uma pena de 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, pela prática do crime de violência doméstica.

O artº 50º do Código Penal dispõe que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 (cinco) anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias dele, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, tendo o período de suspensão duração igual à da pena de prisão determinada na sentença, mas nunca inferior a um ano, a contar do trânsito em julgado da decisão.

No caso concreto, tendo em atenção que o arguido está socialmente inserido, é de acreditar que a simples censura do facto e a ameaça da prisão bastarão para afastá-lo da prática de novos crimes e satisfazer as necessidades de reprovação e prevenção do crime, sendo que a suspensão da pena, não atenta contra as exigências mínimas de prevenção geral, na medida em que foi aplicada uma pena de prisão e que se o arguido cometer um crime doloso a que corresponda pena de prisão, a suspensão poderá ser revogada.

Quanto à fixação do período de suspensão, o mesmo terá duração de 3 (três) anos.

De acordo com o disposto nos artºs 53º e 54º do Código Penal, o tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade, podendo impor ao arguido os deveres e regras de conduta referidos nos artºs 51º e 52º ou outras obrigações que se revelem adequadas ao plano de readaptação.

Também em conformidade com o disposto no artº 34º-B, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16/09, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e à assistência das suas vítimas, a suspensão da execução da pena de prisão de condenado pela prática de crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, em qualquer caso se incluindo regras de conduta que protejam a vítima, designadamente, o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.

No caso dos autos, e tendo em consideração que as situações supra descritas assumem gravidade, causando o arguido à ofendida insegurança e intranquilidade, entendemos que se mostra adequado ao caso concreto, a suspensão da pena de prisão, acompanhada de regime de prova, com obrigatoriedade de o arguido frequentar o programa para agressores de violência doméstica, de forma a consolidar no espírito e consciência daquele a gravidade das condutas que adoptou, potenciando-se a garantia do não cometimento de futuros crimes de idêntica natureza.

Acresce que, resulta dos factos provados, que o arguido adoptou atitudes controladoras perante os movimentos da vítima, demonstrando um comportamento possessivo e obsessivo, com prática de violência verbal, traduzida em insultos e humilhações e violência física, o que faz recear pela continuação dos comportamentos descritos, impondo medidas específicas de protecção à vítima.

Pelo exposto, aplica-se ao arguido as regras de conduta de afastamento da residência e local de trabalho da vítima, a proibição de contactos, por qualquer meio, com a vítima e com a filha desta AA.

Por todo o exposto, afigura-se-nos adequado e proporcional aplicar ao arguido a pena de  2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, acompanhada de regime de prova, com obrigatoriedade de o arguido frequentar o programa para agressores de violência doméstica e sujeito às regras de conduta de afastamento da residência e local de trabalho da vítima, a proibição de contactos, por qualquer meio, com a vítima e com a filha desta, AA.»

Resulta, pois, que o Tribunal a quo teve em consideração os aspetos a que o Recorrente faz referência, concretamente, a medida da culpa e as necessidades de prevenção geral e especial.

Quanto à culpa, considerando que o Arguido atuou com dolo direto, não oferece dúvidas que a medida da pena encontrada, apenas 3 meses acima do limiar mínimo da moldura abstrata, não ultrapassa a medida da culpa, a qual consentiria, até, medida superior.

Também as necessidades de prevenção especial e geral foram ponderadas por referência às características do caso concreto.

Assim, a alegação em causa não tem qualquer respaldo na decisão recorrida e esta não nos merece censura, também neste segmento.

A alteração das penas fixadas pelo Tribunal a quo só é legítima se as mesmas se mostrarem exageradas ou desproporcionadas.

A este propósito, afirma Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, Editorial Notícias, páginas 196 e 197, “Não há dúvidas de que é suscetível de revista a correção do procedimento ou das operações de determinação da medida da pena, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de fatores relevantes para aquela determinação, ou, pelo contrário, a indicação de fatores que devem considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis. Estando a questão do limite da culpa plenamente sujeita a revista, assim como a forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, já não o está a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exato da pena, exceto quando tiverem sido violadas regras de experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada.

O ilícito por que o Recorrente vai condenado é punido com pena de prisão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.

A operação de fixação da(s) pena(s), dentro dos sobreditos limites, faz-se, segundo o artigo 71º, nº 1, do Código Penal, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Atendendo-se, conforme prescreve o nº 2 do mesmo preceito legal, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, nomeadamente:

- Ao grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente – al. a); 

- À intensidade do dolo ou da negligência – al. b);

- Aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram- al. c);

- Às condições pessoais do agente e a sua situação económica – al. d);

- À conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime – al. e); e

- À falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – al. f).

Retornando ao caso que nos ocupa, verificamos que o Tribunal a quo teceu considerações a propósito da medida da pena consentâneas com as normas legais aplicáveis e com a matéria de facto apurada, merecendo o nosso acolhimento.  

Anote-se que o Tribunal a quo fixou a pena em 2 (dois) anos e 3 (três) meses de prisão, ou seja, ao nível do 1/12 da moldura útil aplicável.

Tudo a revelar que o Tribunal a quo procedeu com equilíbrio e com respeito pelos critérios legais de dosimetria penal, tendo em conta tudo quanto acima se explicitou.

Finalmente, e no que concerne ao período de suspensão e às condições impostas.

O período de suspensão foi fixado em 3 (três) anos não descortinando nós razões (e o Recorrente também não as concretiza) para censurar tal decisão, tendo em conta que apenas ultrapassa em 9 (nove) meses, a medida da pena aplicada.

Relativamente às condições impostas.

Conforme consta da decisão recorrida, o tribunal nada mais fez que aplicar a lei, isto é, o disposto no artigo 34º-B, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16/09, impõe que, estando em causa condenação pelo crime de violência doméstica a suspensão da execução da pena é sempre subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou ao acompanhamento de regime de prova, com especial enfoque para o afastamento do condenado da vítima, da sua residência ou local de trabalho e a proibição de contactos, por qualquer meio.

Assim, também neste segmento a decisão se mostra equilibrada e não nos merece censura.

Em suma, somos a considerar que a medida concreta da pena, bem como a sua escolha e imposição de regime de prova com a subordinação a regras de conduta impostas pela decisão recorrida não violam quaisquer regras de experiência, nem se revelam desproporcionadas, improcedendo o recurso, também nesta parte, não ocorrendo a violação de quaisquer normas, designadamente do disposto nos artigo 40º e 71º do Código Penal.

            IV. DISPOSITIVO

Pelo exposto, acordam os juízes da 4º Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra em:

A) - Rejeitar, por a decisão ser irrecorrível, o recurso interposto pelo arguido BB na parte atinente à sua condenação no pagamento de compensação à vítima nos termos do disposto nos artigos 82º-A, nº 1 do Código de Processo Penal e 21º da Lei nº 112/2009, de 16/09;

B) Quanto ao mais, julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido BB, confirmando-se a sentença recorrida.

Pela rejeição do recurso na parte cível, condena-se a recorrente/demandada na importância correspondente a três UC (art. 420º, n.º 3, do Código de Processo Penal).

Na parte criminal, condena-se o recorrente no pagamento das custas, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a três unidades de conta (arts. 513º, nº1 do C.P.P. e 8º, nº9, do Regulamento das Custas Processuais, e Tabela III anexa a este último diploma).

           


            (Texto elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários - artigo 94º, n.º 2, do CPP)

                                               Coimbra, 24-09-2025       

Os Juízes Desembargadores

Fátima Sanches (Relatora)

Maria José matos (1ª Adjunta)

Isabel Gaio Ferreira de Castro (2ª Adjunta)

 (data certificada pelo sistema informático e assinaturas eletrónicas qualificadas certificadas)


   


[1] Prolatado no âmbito do processo nº127/16.7GBSTC.E1, relator: Gomes de Sousa, disponível ara consulta em www.dgsi.pt
[2] Neste sentido, vd. o acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 7/95, proferido pelo Plenário das Secções Criminais do STJ em 19 de outubro de 1995, publicado no Diário da República, I Série - A, n.º 298, de 28 de dezembro de 1995, que fixou jurisprudência no sentido de que “É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito”.
[3] In “Processo Penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar, nº 10, 2010, p. 25/26]
[4] Cf. Exmo. Conselheiro Pereira Madeira, in “Código de Processo Penal Comentado”, António Henriques Gaspar e outros, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, anotação 1 ao artigo 410º, p. 1291]. 
[5] Prolatado no âmbito do processo nº 157/17.1T9VCT.G1, Relator: Teresa Coimbra, disponível para consulta em www.dgsi.pt

[6] Processo nº 696/05.7TAVCD.S1, Relatora Exma. Cons.ª Isabel Pais Martins, disponível para consulta em www.dgsi.pt

[7] De 9 de Julho, prolatado no âmbito do processo nº754/01, relator: Cons.º Sousa e Brito, disponível para consulta em www.dgsi.pt

[8] Acórdão do STJ de 15-7-2004, Processo nº 2360/04-5ª; Relator Exmo. Cons.º Santos Carvalho, disponível para consulta em www.dgsi.pt.

[9] Todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt
[10] Prolatado no âmbito do processo nº25/17.7GEEVR.S1, relator: Cons.º Júlio Pereira, disponível para consulta em www.dgsi.pt
[11] Prolatado no âmbito do processo nº1631/12.1PBBRG.G1, relator: Fernando Monterroso, disponível para consulta em www.dgsi.pt

[12] Prolatado no âmbito do processo nº 170/10.0GAVLC.P1, relator: Artur Oliveira, disponível em www.dgsi.pt.,

[13] In “A Tutela penal especial reforçada da violência doméstica”, Revista Julgar, 12 (Especial), p. 9-24,

[14] Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26.05.2010, processo nº 179/08.3GDSTS.P1, in www.dgsi.pt.

[15] In “A violência relacional íntima: reflexões cruzadas entre o Direito Penal e a criminologia”, Revista Julgar nº12 (especial), Edição da ASJP, 2010, págs. 46 e 47
[16] In “Código Penal Anotado e Comentado”, 2ª Edição, anotação 4 ao artigo 152º, págs. 438 e 439.

[17] Cf., a título exemplificativo, os Acórdãos da Relação de Coimbra de 13.06.2007, in www.dgsi.pt, do Supremo Tribunal de Justiça de 14.11.1997, CJSTJ, III, 235, e de 17.10.1996, CJSTJ, IV, 170, da Relação de Évora de 23.11.1999, CJ, V, 283 e de 25.01.2005, CJ, I, 260, e da Relação do Porto, de 12.05.2004, Recurso 6422/03-4ª Secção, e de 06.10.2010, processo nº 296/08.0PDVNG.P1, in www.dgsi.pt.

[18] Cf. Nuno Brandão, ob. cit., p. 18.
[19]  Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código Penal”, nota 13 ao artigo 152º, página 406.

[20] Acórdão do Tribunal da Relação de Porto de 09-07-2025, prolatado no âmbito do processo nº 426/22.9PEGDM.P1, relator: Jorge Langweg; acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-01-2025, prolatado no âmbito do processo nº227&22.4PBMTS.P1.S1, relator: Cons.º Jorge Gonçalves e acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-09-2023, prolatado no âmbito do processo nº 31/22.0GGCBR.C1, relatora: Maria José Guerra, todos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt

[21] Prolatado no âmbito do processo nº416/22.1KRSXL.L1-5, relator: Ana Lúcia Gordinho, disponível para consulta em www.dgsi.pt