Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1378/22.0T9CTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ GUERRA
Descritores: CRIME DE ABUSO DE CONFIANÇA CONTRA A SEGURANÇA SOCIAL
CONDIÇÕES OBJECTIVAS DE PUNIBILIDADE
GARANTIAS DO ESTADO DE DIREITO ESTABELECIDAS PARA OS ELEMENTOS DO TIPO
VERIFICAÇÃO CUMULATIVA E SUCESSIVA DAS CONDIÇÕES OBJECTIVAS DE PUNIBILIDADE
ACORDO DE PAGAMENTO FASEADO DA PRESTAÇÃO CONTRIBUTIVA
RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA E A RESPONSABILIDADE PENAL
Data do Acordão: 10/22/2025
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE CASTELO BRANCO - JUÍZO DE COMPETÊNCIA GENÉRICA DA SERTÃ
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: NEGADO PROVIMENTO AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 105.º, N.ºS 1, 2 E 4, E 107.º, N.º 1, DO REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS
ARTIGO 200.º, N.º 1, DO CÓDIGO DE PROCEDIMENTO E PROCESSO TRIBUTÁRIO
ARTIGOS 190.º E 208.º, N.º 1, ALÍNEA A), DO CÓDIGO DOS REGIMES CONTRIBUTIVOS DO SISTEMA PREVIDENCIAL DE SEGURANÇA SOCIAL
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 6/2008
Sumário: I - Para além dos elementos constitutivos do tipo legal, a punição pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social exige a verificação cumulativa e sucessiva das duas condições objectivas de punibilidade que a lei prevê no artigo 105.º, n.º 4, alíneas a) e b), do RGIT, quais sejam que o incumprimento perante o credor tributário ocorra além de 90 dias e que as prestações em dívida não sejam pagas decorridos mais de 30 dias após a notificação para o efeito.

II - O decurso de mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação sem que o pagamento ocorra é aplicável em geral e de forma indistinta a todas as situações referidas nos artigos 105.º, n.ºs 1 e 2, e 107.º, n.º 1, do RGIT, mas a persistência do não pagamento da prestação comunicada, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito, só é aplicável aos contribuintes que tenham comunicado previamente à administração tributária ou à Segurança Social, através das declarações legalmente previstas, as prestações devidas àquelas entidades.

III - Neste caso só depois de decorrido o período de 90 dias após a data de vencimento da prestação tributária emergente de imposto ou da contribuição devida à Segurança Social sem o pagamento correspondente é que será concedido o prazo adicional de 30 dias para tal efeito aos contribuintes que tenham apresentado as declarações legais, partindo da constatação de que quem colabora com a Administração Fiscal e com a Segurança Social, cumprindo os seus deveres de informação, merece mais uma oportunidade de se eximir à responsabilização penal, extinguindo as suas obrigações fiscais e contributivas, pela via do pagamento, nesse prazo acrescido.

IV - A relevância do incumprimento não se afere com base no artigo 200.º do CPPT, porque existe autonomia entre a responsabilidade tributária e a responsabilidade penal, e sendo diferentes as realidades que subjazem a cada uma justifica-se materialmente a diversidade de tratamento jurídico.

V - O pagamento imediato como modo de liquidação da prestação tributária é um facto que ocorre numa data determinada e o acordo de pagamento diferido no tempo, reportando-se à mesma prestação tributária, só se transforma em pagamento total, que é o que releva no caso, com a liquidação integral da divida contributiva.

VI - Por isso o acordo de pagamento entre o devedor da prestação tributária e a autoridade tributária não obsta à verificação da condição de punibilidade consagrada no artigo 105.º, n.º 4 alínea b), do RGIT quando a situação de incumprimento da divida contributiva (prestação tributária em dívida, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável) se mantem no momento em que é desencadeada a notificação referida na norma.

Decisão Texto Integral:

            Acordam em conferência os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra

            I-  Relatório

            1. No Processo Comum Singular nº 1378/22.0T9CTB que corre termos no Juízo de Competência Genérica da Sertã, do Tribunal Judicial da Comarca de Castelo Branco, foram sujeitos a julgamento os arguidos …, mediante acusação contra os mesmos deduzida pelo Ministério Pública, na qual se lhes imputava a prática, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º e 105.º, n.º, 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, por referência ao disposto nos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 3, do referido diploma legal, e dos artigos 11.º, 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 2, e 79.º, estes do Código Penal.


*

            2. Realizada a audiência de julgamento, com intervenção do Tribunal Singular, veio nela a ser proferida sentença, em 20.05.2025, depositada na mesma data, no dispositivo da qual ficou a constar:

“Pelo exposto, o Tribunal julga a acusação pública totalmente procedente, por provada, e, em consequência, decide-se:

a) Condenar a Arguida … Lda, pela prática, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos  107.º, 105.º, 6.º e 7.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), e pelos artigos 11.º, 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 2, e 79.º, estes do Código Penal, numa pena de multa de 360 (trezentos e sessenta) dias, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), perfazendo um total de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros);

b) Condenar o Arguido AA … pela prática, na forma continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º, 105.º, 6.º e 7.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), e pelos artigos 11.º, 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 2, e 79.º, estes do Código Penal, numa pena de 360 (trezentos e sessenta) dias, à taxa diária de € 4,50 (quatro euros e cinquenta cêntimos), perfazendo um total de € 1.620,00 (mil seiscentos e vinte euros);

c) Condenar o Arguido BB … pela prática na forma continuada, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido pelos artigos 107.º, 105.º, 6.º e 7.º, do Regime Geral das Infracções Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho), e pelos artigos 11.º, 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 2, e 79.º, estes do Código Penal, numa pena de 360 (trezentos e sessenta) dias, à taxa diária de € 4,50 (quatro euros e cinquenta cêntimos), perfazendo um total de € 1.620,00 (mil seiscentos e vinte euros);

(…)”


*

            3. Inconformados com tal decisão dela interpuseram recurso, em conjunto, os três arguidos, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição): 

                “I. O crime de abuso de confiança visando a Segurança Social consuma-se com o não cumprimento de um dever, traduzido na não entrega, dolosa, do montante das contribuições deduzidas do valor das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais, no prazo da entrega fixado para cada prestação.

                II. Trata-se de um crime de omissão pura, que se consuma com a não entrega, no prazo legal, à Segurança Social, das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores e membros dos órgãos socias.

                III. As condições (objetivas) de punibilidade são elementos situados fora da definição do crime, cuja presença constitui um pressuposto para que a ação antijurídica tenha consequências penais, ou seja, seja punível efetivamente.

                IV. E são condições objetivas de punibilidade do crime em causa: que tenham decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo de pagamento, nos termos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea a) e 107.º, n.º 2, do RGIT;

                V. E que, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito, não seja efetuado o pagamento, nos termos e efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, al. b), ex vi do artigo 107.º, n.º 2, do RGIT.

                VI. Não obstante, o douto Tribunal a quo ter concluído que as condições de punibilidade se encontravam validamente preenchidas, a verdade é que, à data da notificação a considerar efetuada aos ora Recorrentes, em 26.06.2023, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, alínea b) do RGIT, encontravam-se em vigor 5 planos prestacionais de pagamento previamente requeridos e deferidos pela Segurança Social, todos com garantia prestada através da constituição de hipotecas voluntárias.

                VII. A anterior notificação realizada por via postal, em 03.06.2022, não podia produzir qualquer efeitos jurídicos enquanto condição de punibilidade, porquanto à data da sua emissão todas as contribuições em causa estavam já integradas em planos prestacionais deferidos e que estavam a ser validamente cumpridos.

                VIII. Sendo por isso, a mesma inidónea enquanto condição de punibilidade nos termos e para os efeitos do previsto no artigo 105.º, n.º 4, al b) do RGIT.

                IX. Ademais, e relativamente ao disposto no artigo 200.º do CPPT, o incumprimento com relevância jurídica, ou seja, que importe o vencimento das restantes prestações só ocorre quando haja falta de pagamento de três prestações sucessivas ou seis interpoladas.

                X. Situação essaquenão foisuscetíveldeverificação aquando dareferidanotificação presencial (26.06.2023).

                XI. Aliás, a própria Segurança Social, notificada para prestar informação essencial ao apuramento da condição de punibilidade, limitou-se a indicar uma data de um incumprimento ocorrido a 01.08.2022, sem se pronunciar sobre o cumprimento das restantes e posteriores prestações.

                XII. E mais, sem esclarecer se, à data de 26.06.2023, os planos se encontravam efetivamente incumpridos, nem se havia ocorrido o vencimento antecipado das restantes prestações.

                XIII. Assim, não se demonstrou se o alegado incumprimento foi irreversível, sendo verdade que os Recorrentes continuaram e ainda continuam a efetuar os pagamentos no âmbitos dos referidos planos assim como dos acordos efetuados em sede de insolvência, mantendo-os em vigor.

                XIV. Importa ainda ressalvar, que o processo crime foi instaurado a 07.07.2022, sem que à data estivessem reunidas as condições legais para a sua instauração, desde logo, porque os planos de pagamentos prestacionais deferidos estavam todos em situação de cumprimento, não podendo se considerar preenchida qualquer uma das duas condições.

                XV. Aliás, e conforme acórdão supra citado, se o pedido de pagamento em prestações dá entrada antes da notificação realizada ao abrigo do disposto no artigo 105.º, n.º 4 do RGIT, esta não pode ser efetuada antes de ocorrerem uma de duas situações – ou o indeferimento do pedido de pagamento em prestações ou, sendo deferido, o seu incumprimento.

                XVI. Até tais momentos temporais, não pode ser dado início ao procedimento criminal, ou seja, ainda que se considere a data de incumprimento apresentada pela Segurança Social, isto é, 01.08.2022, o procedimento criminal foi instaurado em data anterior, a saber, a 07.07.2022.

            XVII. Ou seja, a Segurança Social, deu início ao procedimento criminal sem ter ocorrido o incumprimento dos planos prestacionais deferidos e garantidos por hipoteca voluntária.

                XVIII. Por outro lado, quando é efetuada, presencialmente, a notificação para pagamento das cotizações, alegadamente, em dívida acrescida dos respetivos juros a 26.06.2023, não sabemos se as condições de punibilidade estavam ou não preenchidas.

                XIX. Pois, se por um lado, é verdade que os planos prestacionais foram incumpridos a 01.08.2022, por outro lado, também é certo que tanto a prestação corresponde a esse mês como as subsequentes foram pagas em conformidade.

                XX. Nunca tendo, o incumprimento dos Recorrentes, importado o vencimento das restantes prestações, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 200.º do CPPT.

                XXI. Ora, deveria, ao abrigo do princípio do inquisitório, o Tribunal a quo, ter indagado no sentido de averiguar se à data na qual é efetuada a notificação presencial, ou seja, a 26.06.2023, os planos prestacionais se encontravam em situação de incumprimento.

                XXII. Assim, não se pode concluir que estivessem preenchidas as condições objetivas de punibilidade, pois, e conforme decisão jurisprudencial já citada, no caso de haver plano prestacional deferido em momento anterior à elaboração da notificação, somente, o incumprimento, poderia determinar a instauração do processo criminal.

               


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            3. Ao recurso, assim interposto, respondeu a Digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância, ….

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            4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer …

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            5. Cumprido o disposto no art. 417º nº2 do CPP, os arguidos responderam ao parecer, reiterando a argumentação esgrimida no recurso no recurso, salientando ainda que:

            “Existindo à data 5 (cinco) planos prestacionais deferidos previamente pela Segurança Social, garantidos por hipoteca voluntária, importava, desde logo, por um lado, aferir qual o quantum exato da dívida contributiva em causa, e por outro lado, verificar se os planos prestacionais se encontravam em situação de incumprimento.

                No que respeita ao primeiro ponto, importa sublinhar que nem o MP, nem o Tribunal a quo, em momento algum, fixaram o quantum exato da dívida contributiva em causa.

                Sendo certo que, a imputação criminal exige a demonstração de que o agente se apropriou de quantias que tinha a obrigação legal de entregar, sendo condição da tipicidade que o montante em dívida seja, ab initio, determinado.

                …

                Em relação ao segundo aspeto, e conforme alegado em sede de recurso, importa apurar, se aquando da notificação realizada ao abrigo do disposto no artigo 105.º, n.º 4 do RGIT, os planos de pagamento da sociedade arguida se encontravam em situação de incumprimento.

                Isto é, importava apurar qual a situação dos 5 (cinco) planos de pagamento, aquando da notificação pessoal dos arguidos levada a cabo em 26.6.2023.

               


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6. Colhidos os vistos, foram os autos apresentados a conferência.

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            II-  Fundamentação

            A) Delimitação do objeto do recurso

            …

            Assim sendo, estando a apreciação do recurso balizada pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, a questão a decidir no recurso em é:

            - O incorreto enquadramento jurídico-penal dos factos, decorrente da inverificação das condições objetivas de punibilidade relativamente ao crime de abuso de confiança fiscal imputado aos arguidos.


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            B) Da decisão recorrida

Para a apreciação do presente recurso, importa ter presente a factualidade nela considerada provada e não provada e a motivação que lhe está subjacente relevantes para a apreciação do presente recurso, que passamos a transcrever:

“II – Fundamentação de facto.

2.1 Factos provados.


[Acusação Pública]

2.1.1. A sociedade arguida …, Ldaª, é uma sociedade comercial por quotas, que tem como objecto social o exercício de gado vivo, abate e transformação de carnes frescas, salgadas e fumadas.

2.1.2. A sociedade arguida foi já declarada insolvente por sentença datada de 30.01.2020, transitada em julgado a 20.02.2020, tendo sido atribuída ao devedor a administração da massa insolvente por decisão de 03.02.2020.

2.1.3. O arguido BB …, desde a constituição da sociedae arguida, a 04-01-1988, e até à presente data, encontra-se registado, na qualidade de sócio e gerente, no registo comercial da arguida sociedade.

2.1.4. Por seu turno, o arguido AA … foi designado gerente por deliberação datada de 03-12-2017.

2.1.5. A sociedade arguida obrigava-se mediante a assinatura de um dos gerentes.

2.1.6. Eram também ambos os arguidos … que geriam de facto a sociedade arguida, negociando com terceiros os assuntos relativos à mesma, recebendo pagamentos, negociando e celebrando contratos, efectuando pagamentos e cumprindo obrigações perante os clientes e os credores, em suma, administrando e dirigindo a sociedade arguida, mormente tomando as decisões atinentes à sua vida comercial, nomeadamente gerindo tanto os ingressos como os pagamentos aos vários credores, entre os quais o Estado – Segurança Social.

2.1.7. A sociedade arguida, na qualidade de entidade empregadora, encontrava-se obrigada a entregar mensalmente na Segurança Social as declarações de remunerações relativas aos salários efectivamente pagos, no mês anterior, aos seus trabalhadores.

2.1.8. Assim, no acto de pagamento dessas remunerações, devia proceder ao desconto prévio dos valores das cotizações devidas à Segurança Social, estando obrigada a entregar nos cofres da Segurança Social os valores retidos das remunerações efectivamente pagas aos trabalhadores, mensalmente e até ao dia 15 do mês seguinte àquele a que as cotizações respeitam.

2.1.9. Os arguidos …, enquanto sócios-gerentes da pessoa colectiva arguida, procederam ao desconto das quotizações nas remunerações efectivamente pagas aos trabalhadores, como legalmente estava obrigada essa entidade patronal.

2.1.10. Sucede, porém, que, ao actuar nessa qualidade, os arguidos não procederam à entrega dos montantes retidos dos salários efectivamente pagos aos trabalhadores, na Segurança Social, nos prazos legalmente fixados.

2.1.11. Mais concretamente, as quotizações retidas nas remunerações efectivamente pagas respeitam aos períodos de Janeiro a Outubro de 2018, de Dezembro de 2018 a Dezembro de 2019, de Outubro a Dezembro de 2020, e de Julho de 2021 a Março de 2022, todos os meses inclusive, as quais perfazem o montante global de €49.174,25 (quarenta e nove mil cento e setenta e quatro euros e vinte e cinco cêntimos).

2.1.12. Tais quotizações respeitam aos trabalhadores …

2.1.13. Por cartas registadas com avisos de recepção assinados a 03-06-2022, os arguidos pessoas singulares, bem como a sociedade arguida, designadamente e no que para aqui releva pelos mesmos representada, foram notificados para, em 30 dias, proceder ao pagamento voluntário de tais quotizações e respectivos juros de mora, o que não foi efectuado.

2.1.14. A 26-06-2023, foram ainda os arguidos pessoas singulares presencialmente notificados para tanto, pessoalmente e enquanto legais representantes da sociedade arguida.

2.1.16. Os arguidos …, por si e em representação da sociedade arguida, agiram de modo livre, voluntário e consciente, com o propósito, concretizado, de não entregar aos cofres da Segurança Social a quantia global de €49.174,25 (quarenta e nove mil cento e setenta e quatro euros e vinte e cinco cêntimos), quantia essa que era devida a título de quotizações retidas nas remunerações, efectivamente pagas aos seus trabalhadores.

2.1.17. Agiram, igualmente, com o propósito, conseguido, de integrar tais benefícios na esfera patrimonial sua e da sociedade arguida de que eram sócios-gerentes, benefícios esses que ascenderam a €49.174,25 (quarenta e nove mil cento e setenta e quatro euros e vinte e cinco cêntimos), dos quais dispuseram como coisa sua, quando os mesmos, legalmente, pertenciam à Segurança Social, bem sabendo que a eles não tinham direito e que, dessa forma, causavam ao Estado – Segurança Social um prejuízo em montante equivalente.

2.1.18. Mais sabiam os arguidos que, ao agir da forma supra descrita, colocavam em crise o regular funcionamento do sistema de Segurança Social e dos interesses por esta servidos, e que suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.


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[Outros factos relevantes]


2.1.19. Entre os Arguidos e a Segurança Social foram celebrados cinco planos de pagamento.

                2.1.20. O pedido de pagamento em prestações referente ao plano prestacional n.º 1790/2020, foi formulado pelos Arguidos, junto da Segurança Social, a 13.11.2020 e deferido a 14.12.2020.

                2.1.21. O pedido de pagamento em prestações referente ao plano prestacional n.º 1791/2020, foi formulado pelos Arguidos, junto da Segurança Social, a 13.11.2020 e deferido a 14.12.2020.

                2.1.22. O pedido de pagamento em prestações referente ao plano prestacional n.º 160/2021, foi formulado pelos Arguidos, junto da Segurança Social, a 29.01.2021 e deferido a 11.02.2021.

                2.1.23. O pedido de pagamento em prestações referente ao plano prestacional n.º 1022/2021, foi formulado pelos Arguidos, junto da Segurança Social, a 18.04.2022 e deferido a 28.06.2022.

                2.1.24. As cotizações respeitantes ao período de Janeiro de 2018 até Outubro de 2018, encontram-se abrangidas no plano n.º 1790/2020.

2.1.25. As cotizações respeitantes ao período de Janeiro de 2019 até Dezembro de 2019, encontram-se abrangidas no plano n.º 1791/2020.

2.1.26. As cotizações respeitantes ao período de Dezembro de 2019 e Outubro, Novembro e Dezembro de 2020, encontram-se abrangidas no plano n.º 160/2021.

2.1.27. As cotizações respeitantes ao período de Julho de 2021 a Março de 2022, encontram-se abrangidas no plano n.º 1022/2022.

2.1.28. O plano prestacional n.º 1790/2020 foi incumprido a 01.08.2022.

                2.1.29. O plano prestacional n.º 1791/2020 foi incumprido a 01.08.2022.

                2.1.30. O plano prestacional n.º 160/2021 foi incumprido a 01.08.2022.

                2.1.31. O plano prestacional n.º 1022/2022 foi incumprido a 01.08.2022.

            2.1.32. Os Arguidos, a 09.10.2024, foram constituídos arguidos, prestaram termo de identidade e residência e foram notificados no âmbito do processo n.º 159/24...., para pagamento voluntário das cotizações relativas aos meses de Janeiro a Março de 2020, de Janeiro a Junho de 222, de Agosto de 2022 a Outubro de 2022 e de Dezembro de 2022 a Outubro de 2023 e Fevereiro de 2024.

                2.1.33. Os Arguidos, a 09.10.2024 foram constituídos arguidos, prestaram termo de identidade e residência e foram notificados no âmbito do processo n.º 94/24...., para pagamento voluntário das cotizações relativas aos meses de Abril a Novembro de 2022.

2.1.34. A conduta dos Arguidos deveu-se à incapacidade financeira de liquidar todas as obrigações mensais da sociedade arguida.

2.1.35. Os Arguidos confessaram parcialmente os factos.


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[Antecedentes criminais da Arguida …



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[Antecedentes criminais do Arguido AA …]



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[Antecedentes criminais do Arguido BB …]


               

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[Condições pessoais e económicas da Arguida … Lda.]



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[Condições pessoais e económicas do Arguido AA …]


               


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[Condições pessoais e económicas do Arguido BB …]


               

               


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2.2 Factos não provados.

[Contestação]

               


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Não resultaram quaisquer outros factos provados ou não provados que relevem para a boa decisão da causa, constituindo, o demais, factos conclusivos, irrelevantes ou matéria de direito.


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2.3. Motivação da matéria de facto.


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III – Fundamentação de Direito.

3.1 Enquadramento jurídico-penal.


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             C) Apreciação do recurso

            A dissensão dos arguidos e ora recorrentes em relação à sentença recorrida gravita em torno da verificação das condições objetivas de punibilidade previstas no art. 105, nº4, al.s a) e b) do Regime Geral das Infrações Tributárias, aprovado pela Lei 15/2001, de 5.06  (doravante RGIT) que naquela se decidiram estar verificadas, alegando estarem em vigor planos de pagamento em prestações da dívida contributiva em causa nos autos, acordados entre os mesmos e a Segurança Social, os quais impediam a verificação da condição objetiva de punibilidade prevista  al. b) do nº4 daquele art. 105º que na sentença veio a ser considerada, assim como a prevista na al. a) do mesmo preceito legal.

            Sem nos alongarmos sobre o preenchimento dos elementos constitutivos – objetivos e subjetivos – e das condições objetivas de punibilidade do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punidos nos termos dos arts. 107.º e 105.º, n.º, 1 do Regime Geral das Infrações Tributárias, por referência ao disposto nos artigos 6.º, 7.º, n.º 1 e 3, do referido diploma legal, e dos artigos 11.º, 14.º, n.º 1, 26.º, 30.º, n.º 2, e 79.º, estes do Código Penal, que vem imputado nos autos aos arguidos, tendo em conta tudo o que a esse propósito, com assertividade, se discorreu na decisão recorrida, centremo-nos, apenas, na ideia de que, para além do preenchimento dos elementos constitutivos do respetivo tipo legal, a punição pela prática do imputado crime de abuso de confiança contra a Segurança Social - cuja verificação os arguidos nem sequer questionam -  só poderá ocorrer se estiveram verificadas as duas condições objetivas de punibilidade que a lei prevê, a saber:

            - a situação de incumprimento perante o credor tributário subsistir para além dos 90 dias a que alude artigo 105º, nº 4, al. a), do RGIT, assim se preenchendo a condição objetiva de punibilidade ínsita no preceito;

            - as prestações em dívida não forem pagas e decorrerem mais de 30 dias após a notificação para o efeito, assim se preenchendo a condição objetiva de punibilidade prevista no artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT (introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro).

            Como os próprios recorrentes reconhecem no seu discurso recursivo, as exigências vertidas nas alíneas a) e b), do nº 4, do artigo 105º, do RGIT, assumem a natureza de meras condições objetivas de punibilidade, ou seja, de circunstâncias que se encontram em relação direta com o facto, mas que não pertencem, nem ao tipo de ilícito, nem ao tipo de culpa, por isso, não interferem com a consumação do crime, apenas se referem à imposição da sanção penal (cfr. AFJ nº 6/2008, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 9 de Abril de 2008, publicado no DR, 1.ª série, n.º 94, em 15 de Maio de 2008, que decidiu que «a exigência prevista na alínea b) do n.º 4 do artigo 105.º do RGIT, na redacção introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, configura uma nova condição objectiva de punibilidade»).

            Com efeito, as condições objetivas da punibilidade são os elementos da norma incriminadora que gravitam fora do tipo de ilícito e do tipo de culpa, mas sem cuja verificação o facto típico, ilícito e culposo, jamais terá consequências penais, o que vale por dizer, que são condições essenciais, não da consumação do crime, mas da aplicação da pena ou da medida de segurança que lhe for aplicável, segundo a sua moldura penal abstrata e os critérios legais de escolha e determinação concreta das sanções penais. Referem-se apenas à punibilidade do crime, já não também à respetiva consumação e traduzem a prossecução de finalidades extrapenais que, pela sua importância, se sobrepõem à necessidade da pena e por isso é que a sua verificação excluí a responsabilidade criminal, embora participem de todas as garantias do Estado de Direito estabelecidas para os elementos do tipo, desde os princípios da legalidade e da tipicidade criminais, às exigências de prova acerca da sua existência e ao in dubio pro reo.

         Assim, enquanto que para efeitos do preenchimento da al. a) do citado art. 105º nº 4 do RGIT o decurso do prazo de 90 dias sem o pagamento da prestação em dívida é aplicável em geral e de forma indistinta a todos aqueles que adotem algum dos comportamentos tipificados no artigo 105º nºs 1 e 2 do RGIT e no artigo 107º nº 1 do RGIT, por sua vez, a alínea b) só é aplicável aos contribuintes que tenham comunicado previamente à administração tributária ou à segurança social, através das declarações legalmente previstas, as prestações devidas àquelas entidades.

            E para estes, as condições de punibilidade previstas no art. 105º nº 4 als. a) e b) do RGIT são de verificação cumulativa e sucessiva.

            Só depois de decorrido o período de noventa dias, após a data de vencimento da prestação tributária emergente de imposto ou da contribuição devida à segurança social sem o pagamento correspondente, é que será concedido um prazo adicional de trinta dias para tal efeito, mas apenas aos contribuintes que tenham apresentado as declarações legais, partindo da constatação de que quem colabora com a Administração Fiscal e com a Segurança Social, cumprindo os seus deveres de informação, merece mais uma oportunidade, a última, de se eximir à responsabilização penal, extinguindo as suas obrigações fiscais e contributivas, pela via do pagamento, nesse prazo acrescido de mais trinta dias.

            Debruçar-nos-emos, então, sobre o caso em vertente para aferir apenas da verificação da segunda das referidas condições objetivas de punibilidade, prevista na al. b) do nº4 do RGIT, porquanto, a argumentação aduzida pelos recorrentes no seu discurso recursivo só a esta diz respeito.

            Pois bem.

            Sem deixar de levar em conta a existência de planos de pagamento a prestações da dívida contributiva, acordados entre os arguidos e a Segurança Social, por estes haviam já sido trazidos para a discussão da causa em sede de contestação, ao ponderar com base na factualidade que resultou provada – a qual os recorrentes nem sequer impugnam – a verificação de tal condição objetiva de punibilidade, da seguinte forma:

                “Em especial, quanto às condições objectivas de punibilidade, alegaram os Arguidos que, em virtude da existência de diversos planos de pagamento em prestações das quantias em dívida e em causa no âmbito dos presentes autos, aquelas não se encontram verificadas.

Ademais, e com o mesmo fundamento, alegaram os Arguidos que não poderia a Segurança Social ter participado criminalmente dos Arguidos, sob pena de actuar em abuso de direito na modalidade venire contra factum proprium.

Vejamos.

Segundo o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 12.10.2021, relatado por Fátima Bernardes, processo n.º 1192/16.2T9STR.E2, disponível em www.dgsi.pt, “A existência de um acordo de pagamento celebrado entre o devedor da prestação contributiva e a Segurança Social, anterior ao termo dos prazos estabelecidos como condições objetivas de punibilidade, previstos no artigo 105º, n.º 4, alíneas a) e b), do RGIT aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal contra a segurança social, ex vi do n.º 2 do artigo 107º do RGIT, ou deles contemporâneo, mesmo que exista cumprimento parcial desse acordo, dentro desses prazos, não afasta o preenchimento do crime de abuso de abuso de confiança contra a segurança social .”

Destarte, de forma muito linear e evidente, a existência, como nos presentes autos, de planos de pagamento anteriores ou contemporâneos ao termo dos prazos legalmente previstos para as condições objectivas de punibilidade, não afasta a tipicidade da conduta para efeitos do preenchimento do tipo de crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.

E entende-se que assim seja, pois, a assim não ser bastaria àqueles que estão obrigados à entrega das referidas cotizações que celebrassem acordos de pagamentos prestacionais com a Segurança Social, relativamente a tais cotizações, de forma a eximir-se a qualquer responsabilidade criminal, ainda que permanecendo em incumprimento ou cumprimento parcial dos mesmos. Na verdade, e como já referido, o pagamento parcial de acordo apenas relevará como circunstância atenuante, na determinação da medida concreta da pena a aplicar.

Há que cindir a responsabilidade criminal e a responsabilidade tributária perante a Segurança Social: a responsabilidade criminal consuma-se com a não entrega, nos prazos legais, à Segurança Social, das contribuições deduzidas pela entidade empregadora dos salários dos seus trabalhadores e órgãos sociais, decorridos mais de noventa dias sobre o termo do prazo de pagamento e, ainda, trinta dias sobre a notificação que para o pagamento deve ser feita, sem que o pagamento tenha sido efectuado. Tal responsabilidade em nada belisca a responsabilidade tributária, que se mantém, podendo, inclusive, a Segurança Social deduzir pedido de indemnização civil quanto às quantias em falta no âmbito do processo crime.

                Não obstante, e atendendo ao decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 21.02.2024, relatado por Maria Margarida Almeida, processo n.º 3868/22.6T9FNC.L1-3, igualmente disponível em www.dgsi.pt, mormente, e ao que ao caso dos presentes autos importa:

                “Em caso de falta de entrega de contribuições devidas á segurança social, o pagamento em prestações acarretará consequências diversas, para efeito de procedimento criminal, consoante as seguintes situações:

                A–Formulação de pedido de pagamento em prestações, dentro do prazo de 90 dias subsequente ao termo legal do pagamento da dívida:

                Se o pedido de pagamento em prestações dá entrada, a entidade credora passa a ter conhecimento de que o contribuinte relapso quer pagar e que não o pode fazer de imediato. Se assim é, até ao encerramento do processo prestacional, não pode a mesma entidade ignorar esse circunstancialismo e notificar o mesmo dito contribuinte para proceder ao imediato pagamento, no prazo de 30 dias, da totalidade do devido; isto é, se o pedido de pagamento em prestações dá entrada antes da notificação realizada ao abrigo do disposto no nº4 do artº 105 do RGIT, esta não pode ser efectuada antes de ocorrerem uma de duas situações – ou o indeferimento do pedido de pagamento em prestações ou, sendo deferido, o seu incumprimento.

Até tais momentos temporais, não pode ser dado início ao procedimento criminal, por não se mostrar reunida a condição objectiva de punibilidade que a lei impõe, nem ser passível a notificação para tal fim. Apenas se e quando se verificarem as circunstâncias reportadas aos momentos temporais acima referidos, poderá ser dado cumprimento a tal normativo notificatório.”

                Cumpre esclarecer o seguinte:

                Atentos os factos dados como provados, temos que:
a) O pedido de pagamento em prestações referente ao plano prestacional n.º 1790/2020, foi formulado pelos Arguidos, junto da Segurança Social, a 13.11.2020 e deferido a 14.12.2020, encontrando-se abrangidas as cotizações relativas ao período de Janeiro de 2018 até Outubro de 2018.
b) O pedido de pagamento em prestações referente ao plano prestacional n.º 1791/2020, foi formulado pelos Arguidos, junto da Segurança Social, a 13.11.2020 e deferido a 14.12.2020, encontrando-se abrangidas as cotizações relativas ao período de Janeiro de 2019 até Dezembro de 2019.
c) O pedido de pagamento em prestações referente ao plano prestacional n.º 160/2021, foi formulado pelos Arguidos, junto da Segurança Social, a 29.01.2021 e deferido a 11.02.2021, encontrando-se abrangidas as cotizações relativas ao período de Dezembro de 2019 e Outubro, Novembro e Dezembro de 2020.
d) O pedido de pagamento em prestações referente ao plano prestacional n.º 1022/2021, foi formulado pelos Arguidos, junto da Segurança Social, a 18.04.2022 e deferido a 28.06.2022, encontrando-se abrangidas as cotizações relativas ao período de Julho de 2021 a Março de 2022.
e) Todos os planos em causa foram incumpridos a 01.08.2022.
f) Os Arguidos foram notificados, nos termos e para os efeitos do artigo 105.º, n.º 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias, a 03.06.2022, por via postal, e a 26.06.2023, pessoalmente.

                Assim, os pedidos de planos prestacionais em causa foram, todos eles, formulados em momento anterior à notificação a que alude o do artigo 105.º, n.º 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias e que consubstancia uma condição objectiva de punibilidade, pelo que, na senda do citado aresto, não poderia a Segurança Social ignorar que os Arguidos pretendiam pagar as quantias em causa e proceder à sua notificação nos termos da referida norma.

                Todavia, e como pugnado na referida decisão, a Segurança Social pode efectuar a notificação em caso de indeferimento do pedido do pagamento em prestações ou, em alternativa, em caso de incumprimento.

                Como vimos, todos os planos foram deferidos, pelo que só com o seu incumprimento poderia a Segurança Social notificar os Arguidos. Ora, tais planos vieram a ser incumpridos a 01.08.2022, tendo sido os Arguidos notificados pessoalmente, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4 do Regime Geral das Infracções Tributárias a 26.06.2023 e, por isso, em momento posterior (sem prejuízo da anterior notificação por via postal).

                Em suma, actuou a Segurança Social em concordância com o decidido pelo citado aresto, notificando pessoalmente os Arguidos após o incumprimento dos planos em vigor quanto às quantias em causa.

                Neste sentido, igualmente inexiste qualquer actuação deste instituto em abuso de direito, nomeadamente da modalidade de venire contra factum proprium, ao participar criminalmente dos Arguidos sabendo da existência dos planos de pagamento em prestações, planos estes em incumprimento, atento o interesse de natureza pública que está subjacente à entrega das contribuições em causa e o facto de a referida participação para efeitos criminais se ter verificado após o incumprimento por parte dos Arguidos dos planos prestacionais.

                Destarte, a existência de planos de pagamentos em prestações, no âmbito dos presentes autos, nada implica em termos de responsabilidade criminal, como já referido supra, apenas relevando ao nível da determinação da medida concreta da pena.”

            Adiantando já, tal entendimento sufragado na sentença recorrida, não merece qualquer censura.

Na verdade, sufragando o mesmo e perfilhando a jurisprudência que o sustenta, também nós entendemos que a existência de um acordo de pagamento faseado celebrado entre o devedor da prestação contributiva e a Segurança Social, anterior ao termo dos prazos estabelecidos como condições objetivas de punibilidade, previstos no artigo 105º, n.º 4, alíneas a) e b), do RGIT,  que esteja em vigor aquando destes, só afasta o preenchimento do crime de abuso de confiança fiscal se esse plano estiver a ser cumprido integralmente, já assim não sendo quando exista apenas cumprimento parcial do mesmo.

Como se reconhece na sentença recorrida, resultou provado que os arguidos celebraram com a Segurança Social planos de pagamento em prestações da dívida contributiva em causa nos autos em data anterior às notificações que lhe foram feitas nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do nº4 do art. 105º do RGIT.

Todavia, como dela também decorre, ancorada no que igualmente deflui da factualidade provada, o incumprimento de tais planos de pagamento faseado verificou-se, em relação a todos, em 01.08.2022, ou seja, esse incumprimento verificou-se antes da segunda notificação feita aos arguidos nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do nº4 do art. 105º do RGIT, a qual, de acordo com a factualidade provada, ocorreu em 26.06.2023 [ponto 2.1.14.] , visto que nesta data foram os arguidos pessoas singulares presencialmente notificados para esse efeito pessoalmente e enquanto legais representantes da sociedade arguida.

            É que, não obstante ser de duvidosa eficácia para a verificação da condição objetiva de punibilidade prevista no citado art. 105º, nº4 al. b) a notificação feita aos arguidos para os efeitos ínsitos em tal normativo legal, por cartas registadas com avisos de receção assinados em 03.06.2022 [ponto 2.1.13.] - porque feita antes de verificado o incumprimento pelos mesmos dos planos de pagamento faseado acordados com a Segurança Social – já a repetição da mesma, que veio a ocorrer em 26.06.2023, não poderá deixar de considerar-se valida e eficazmente feita para os efeitos do disposto em tal preceito legal, legitimando, por isso, a prossecução do procedimento criminal instaurado nos autos contra os arguidos, os quais, aliás, apenas vieram a ser constituídos como arguidos após esta notificação, ou seja, em 9.10.2024 [pontos 2.1.32. e  2.1.33.].

            Assim, na medida em que a notificação prevista no art. 105º nº 4 al. b) do RGIT feita em 23.06.2023 se deve considerar valida e eficazmente feita, dela não podem deixar de extrair-se as necessárias consequências legais, apesar da existência de planos de pagamento em prestações acordados entre os arguidos e a Segurança Social relativamente à dívida contributiva em causa nos autos, porque tais planos de pagamento se mostravam incumpridos aquando da mesma.

            Não se ignora que os recorrentes trazem à colação o disposto no art. 200º do CPPT, para, com base neste, defenderem que o incumprimento que poderia legitimar a notificação prevista na citada al. b) do nº4 do art. 105º do RGIT feita aos arguidos nessa data de 26.06.2023 só assumiria relevância jurídica se tivesse havido falta de pagamento de três prestações sucessivas ou seis interpoladas - porque só nessas circunstâncias, de acordo com o preceito legal contida no citado art. 200º do CPPT, se despoletaria o vencimento das restantes prestações em dívida - e que esta situação não foi suscetível de verificação no caso em vertente.

            Sem razão, porém.

            No caso concreto apurou-se que os arguidos incumpriram os planos de pagamento faseados acordados com a Segurança Social, situação que resulta demonstrada ter ocorrido em 1.08.2022.

            Mesmo que não resultem apurados, como não resultam, os contornos desse incumprimento por referência a essa data, isto é, qual o valor da quantia em dívida ao momento ou quantas das prestações  nesse momento se encontravam por regularizar, a verdade é que a relevância do incumprimento que não é obstativo à verificação e funcionamento da condição de punibilidade da conduta, consagrado na alínea b) do n.° 4 do art. 105.°, do RGIT, não se afere com base no disposto  no art. 200.º do CPPT, porque existe autonomia entre a responsabilidade tributária e a responsabilidade penal.

            De facto, para efeito de responsabilidade tributária o cumprimento do acordo de pagamento em prestações determina que se considere como regularizada a dívida à Segurança Social que dele é objeto, reputando-se legalmente que esse cumprimento ocorre quando estiverem verificadas as seguintes condições:

 (i) pagamento da primeira prestação;

(ii) constituição de garantia real, quando aplicável; e

(iii) inexistência de falta de pagamento de três prestações sucessivo ou de seis prestações interpoladas, se, no prazo de 30 (trinta) dias, após notificação para o efeito, não sobrevier o pagamento das prestações incumpridas (cfr. artigos 190.º e 208.º, n .º 1, alínea a), do Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social e artigo 200 .º, n .º 1, do Código de Procedimento e Processo Tributário).

            Já para efeito de responsabilidade penal, só o pagamento integral da dívida de quotizações, acrescida de juros e da coima aplicável, no prazo de 30 dias a contar da notificação feita ao abrigo do disposto no art. 105º, nº4, al. b) do RGIT, constitui condição objetiva que obsta à punibilidade, daí que, verificado que seja esse incumprimento depois de decorrido tal prazo, se mostre perfetibilizada a condição objetiva de punibilidade prevista em tal preceito legal, para o que se torna irrelevante apurar qual o montante que continua em dívida, ou, também, se depois de se esgotar esse prazo, a dívida de quotizações se mostra ou não integralmente paga, o que só poderá ter efeito para determinação da pena aplicar pela prática do crime de abuso de confiança contra a Segurança Social.

            Sendo diferentes as realidades que subjazem à responsabilidade tributária e à responsabilidade criminal, justifica-se materialmente a diversidade de tratamento jurídico de uma e de outra: pagar a prestação acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito (art.º 105º, n.º4 al. b) do RGIT), não é assimilável ao acordo de pagamento, do mesmo montante em prestações mensais sucessivas. O pagamento imediato como modo de liquidação de uma prestação tributária é um facto que ocorre numa data determinada; o acordo de pagamento, diferido no tempo, reportando-nos à mesma prestação tributária, só se transforma em pagamento total, que é o que releva no caso, com a liquidação integral da divida contributiva, facto que depois de decorrido o prazo de 30 dias da notificação feita aos arguidos em 26.06.2023, ainda não tinha ocorrido e não se pode ficcionar.

            Com a sua argumentação recursiva, aquilo que os arguidos pretendem é fazer equivaler os acordos de pagamento prestacionais que celebraram com a Administração Fiscal ao pagamento integral em prazo previsto no artigo 105.º n.º4, alínea b), do RGIT para efeito de considerar inverificada a condição objetiva de punibilidade que neste se prevê.

            São, no entanto, realidades jurídicas diversas.

            E sendo diversas essas realidades só poderíamos chegar à referida equivalência por um esforço interpretativo, esforço interpretativo que não esteve no espírito do legislador, pois, como se refere no ac. do Tribunal da Relação do Porto, de 03.02.2016, disponível in www.dgsi.pt. “diremos apenas que essa “equivalência”, podendo o legislador tê-la feito, o certo é que não a fez, e não pode o juiz, a pretexto de interpretação, invadir a competência do legislador”.

            Até porque esforço interpretativo em que parece ancorar-se o entendimento dos recorrente, redundaria na impossibilidade da instauração do procedimento criminal ou do seu prosseguimento sempre que o devedor, com sucessivos atrasos na regularização do acordo de pagamento que não importassem o vencimento da totalidade da dívida tributária, continuasse a incumprir o pagamento integral da dívida contributiva, ainda que acabasse por regularizar esse pagamento, eternizando-a e  impedindo, assim, a possibilidade de desencadear a notificação prevista na al. b) do nº4 do art. -a105º do RGIT

            Mas, a verdade, é que assim não é.

            Em primeiro lugar, não devemos esquecer que o princípio da legalidade, como tem sido reiteradamente afirmado pelo Tribunal Constitucional, abrange na exigência de uma lei da Assembleia da República, ou por ela autorizada, não só a criminalização (ou maior criminalização) como também a descriminalização (ou menor criminalização); daí que um caminho interpretativo que conduza, por analogia, a uma redução do âmbito de punibilidade, embora teoricamente admissível, só muito excecionalmente deva ser trilhado e para colmatar situações de gritante inépcia do legislador – cfr. neste sentido a argumentação que conduziu ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2010, in Diário da República, 1.ª série, de 23.09.2010.

            Ora, no caso basta pensar que o legislador, quando desenhou a norma da alínea b) do n.º4 do artigo 105º do RGIT conhecia perfeitamente as possibilidades de pagamento em prestações constantes do Código de Procedimento e de Processo Tributário e de diplomas avulsos que ao longo do tempo foi criando; partindo dos critérios de interpretação constantes do artigo 9.º do Código Civil, a única conclusão a tirar é a de que se não consagrou a celebração de acordo de pagamento em prestações como excludente da punibilidade foi porque não quis.

            Conclui-se, assim, que o acordo de pagamento, entre o devedor da prestação tributária e a AT, não obsta à verificação e funcionamento da condição de punibilidade da conduta, consagrada no art.º 105º, n.º4 al. b) do RGIT quando, como é o caso em vertente nos autos, se verificava a situação de incumprimento da divida contributiva (prestação tributária em dívida, acrescida dos juros respetivos e do valor da coima aplicável) quando foi desencadeada a notificação a que alude a al. b) do Nº4 do art. 105º do RGIT, situação essa que continuou a manter-se quando se esgotou o prazo de 30 dias nela previsto, sendo para tanto irrelevante saber qual o quantum dessa dívida tributária que permanecia por pagar, porque, para assim não ser, apenas relevaria que essa dívida contributiva se mostrasse integralmente paga antes do decurso desse prazo.

            Daí que, o não se ter apurado qual o concreto valor que se encontrava em dívida até ao decurso do prazo de 30 dias concedido aquando da notificação feita aos arguidos – em 26.06.2023 - para efeitos do disposto no art. 105º, nº4, a. b) do RGIT, não assuma qualquer relevância para efeitos do preenchimento da condição objetiva de punibilidade prevista nesse preceito legal, não se patenteando, com base nisso, qualquer erro de julgamento na sentença recorrida, como pretendem os recorrentes, sendo certo que, mesmo a vingar a argumentação por eles aduzida, a sentença nunca padeceria, por isso, do erro de julgamento que estes expressamente lhe assacam em sede recursiva, uma vez que, na tese dos arguidos, a falta de apuramento dessa factualidade só poderia apontar para a existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do nº2 do art. 410º do CPP – que, apesar de não vir invocado sempre seria de conhecimento oficioso (cf. Acórdão do STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 7/95) - mas que não se verifica, ou, para o erro de direito, do qual também a sentença recorrida não padece.  

            Donde, sem necessidade de acrescidas considerações, improcede a pretensão recursiva dos arguidos, devendo manter-se a condenação que lhes foi imposta na sentença recorrida pelo imputado crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, nas penas nela decididas – cuja determinação por eles não vem questionada.

            Termos em que improcede o recurso.


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            III- Decisão

            Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 4ª secção Penal do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar totalmente improcedente o recurso interposto pelos arguidos …, e, consequentemente:

            1. Confirmar, na íntegra, a sentença recorrida.

            2. Condenar os recorrentes nas custas do recurso, fixando a taxa de justiça individual em 3 UCs (artigos 513.º e 514.º do CPP e 8.º do RCP, com referência à Tabela III).


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                                                       Coimbra, 22 de outubro de 2025

            (Texto elaborado pela relatora e revisto por todas as signatárias – art. 94º, nº2 do CPP )

                (Maria José Guerra – relatora)

                (Isabel Gaio Ferreira de Castro – 1ª ajunta)

              (Rosa Pinto– 2ª adjunta)