Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3555/15.1T8GMR-A.G1.S1
Nº Convencional: 7ª SECÇÃO
Relator: FERNANDA ISABEL PEREIRA
Descritores: AVAL
PROCURAÇÃO
OMISSÃO DE FORMALIDADES
RELAÇÕES IMEDIATAS
RELAÇÕES MEDIATAS
LIVRANÇA EM BRANCO
PACTO DE PREENCHIMENTO
AVALISTA
PODERES DE REPRESENTAÇÃO
INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
Data do Acordão: 03/01/2018
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO CIVIL – RELAÇÕES JURÍDICAS / FACTOS JURÍDICOS / NEGOCIO JURÍDICO / MODALIDADES DA DECLARAÇÃO / INTERPRETAÇÃO E INTEGRAÇÃO.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PARTES / DISPOSIÇÕES ESPECIAIS SOBRE EXECUÇÕES.
Doutrina:
-Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial III, 1956, p. 117;
-Gonçalves Dias, Da Letra e da Livrança, Volume I, p. 273 ; Volume II p. 44;
-Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, Almedina, Coimbra, 2002, p. 43;
-Pinto Coelho, Lições de Direito Comercial II, 2 fasciculo, p. 9 e 10.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 217.º, N.º 1, 236.º, N.º 1, 237.º E 238.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 53.º, N.º1.
LEI UNIFORME SOBRE LETRAS E LIVRANÇAS (LULL): - ARTIGO 8.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

- DE 16-05-1991, PROCESSO N.º 080549, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 06-12-2001, ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 1/2002, IN DR, I SÉRIE - A, DE 24-01-2002;
- DE 12-10-2017, PROCESSO N.º 1097/14.1TBFUN-A.L1.S1.
Sumário :
I - O pacto de preenchimento subjacente à emissão de uma livrança em branco caracteriza-se por ser o acordo mediante o qual as partes fixam as condições de preenchimento daquela por parte do credor em caso de incumprimento do negócio causal.

II - Apresentando-se a convenção de preenchimento como meramente instrumental em relação à emissão da livrança e tendo os embargantes, por intermédio de procurador, outorgado o pacto de preenchimento na posição de avalistas, seria desprovido de sentido útil que pudessem deixar de assumir essa qualidade na livrança.

III - Constando da procuração que os embargantes conferiam ao subscritor da livrança poderes para assinar, na qualidade de avalistas, uma convenção de preenchimento da livrança a celebrar com o banco, deve essa declaração negocial ser interpretada no sentido de que aqueles deram ao procurador os necessários poderes para os obrigar cambiariamente na posição de avalistas, assinando, em vez deles, o pacto e a livrança.

IV - A aposição da menção de que o aval foi dado por procuração (art. 8.º da LULL) tem em vista, no contexto das relações mediatas, a tutela da confiança de terceiros em face da autonomia, literalidade e abstracção que caracterizam um título cambiário.

V - No domínio das relações imediatas, é, todavia, permitido moderar o formalismo cambiário, pelo que, sendo de concluir que os avalistas conheciam e aceitaram as condições contratuais inseridas no pacto, a falta de indicação expressa de que se trata de um aval por procuração não os desvincula do cumprimento da obrigação cambiária, tanto mais que o exequente comprovou que o aval foi prestado pelo executado na qualidade de procurador.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I. Relatório:

Por apenso à acção executiva para pagamento de quantia certa movida pela Caixa AA contra BB, CC, DD e EE, – os primeiros demandados como subscritores da livrança dada à execução e os segundos na qualidade de avalistas –, deduziram os dois últimos embargos de executado, alegando, em síntese, que não avalizaram a livrança nem conferiram poderes ao executado BB para os representar na assinatura da mesma, apenas o tendo constituído procurador para assinar uma convenção de preenchimento de livrança na posição de avalistas.

Pedem, por isso, a procedência dos embargos com a consequente extinção da execução quanto a si.


A exequente (Caixa AA) contestou, alegando que os embargantes outorgaram procuração, conferindo poderes ao executado BB para assinar, em sua representação e na qualidade de avalistas, tudo o que fosse necessário à celebração da convenção de preenchimento de livrança em branco.


Vislumbrando-se o conhecimento do mérito da causa, as partes foram disso notificadas para se pronunciarem, querendo.


Foi então proferida decisão do seguinte teor:

Pelo exposto, julgo procedente a presente oposição à execução e determino a extinção da execução quanto aos executados embargantes (artigo 732º, nº4, do CPG) …”.


Dessa decisão apelou a exequente, pugnando pela improcedência dos embargos.

O Tribunal da Relação de …, por acórdão de 8 de Junho de 2017, julgou a apelação procedente e, revogando a decisão recorrida, julgou os embargos de executado improcedentes.


Inconformados, recorrem de revista os referidos embargantes.

Da alegação oportunamente apresentada, delimitadora do objecto do recurso, extraem-se, em resumo, como questões essenciais a decidir saber: (i) se a procuração que conferiram continha poderes para os obrigar cambiariamente como avalistas na livrança apresentada à execução e, em caso afirmativo, (ii) se, no domínio das relações imediatas, a falta de menção expressa de que se tratava de aval por procuração e dos nomes dos embargantes na livrança é impeditivo de que a livrança constitua título executivo contra os mesmos.


Contra-alegou a exequente, defendendo a confirmação do julgado.


II. Fundamentos:

De facto:

As instâncias julgaram provados os seguintes factos:

1. A exequente é portadora de um documento com as seguintes inscrições: «local e data de emissão: Porto; 2006-01-02; vencimento: 2014-12-17; importância: 38.710,16€; Valor: Operação Bancária de empréstimo; no seu vencimento pagarei (emos) por esta única via de livrança à FF ou à sua ordem a quantia de trinta e oito mil e setecentos e dez euros e dezassete cêntimos; assinatura(s) do(s) subscritor(es): BB (assinatura legível); nome e morada do(s) subscritor(es): BB, Av. …, nº …, 2º Dto, 4810 - …»; e constando ainda do seu verso: «Dou o meu aval aos subscritores BB (assinatura legível)»

2. A exequente instaurou a execução com fundamento na livrança referida em 1, constante de fls. 10 dos autos principais, cujo conteúdo se considera aqui por reproduzido, alegando no requerimento executivo o seguinte:

«Factos:

1º Preliminarmente dir-se-á que, por escritura pública outorgada no dia 04.04.2011, no Cartório Notarial de … de GG, lavrada de fls. 47 a fls. 49 do Livro n. g 130-B, o "FF, SA” cedeu à ora Exequente o crédito que detém sobre os Executados, bem como todas as garantias e acessórios a eles inerentes, conforme certidão de escritura de cessão de créditos que ora se junta por fotocópia sob o doc. nº 1.

2º A Exequente é dona e legítima portadora de uma livrança do montante de 38.710,16€, vencida em 17/12/2014, subscrita pelos Executados BB e CC e avalizada por DD e EE, que se junta e cujo conteúdo se dá como integralmente reproduzido para todos os efeitos legais (doc. nº 1).

3º A subscritora CC e os avalistas DD e EE outorgaram procurações (que se juntam sob os docs. nºs 2, 3 e 4) a favor do subscritor BB, conferindo-lhe poderes para os representar na assinatura do contrato subjacente e respectiva livrança, pelo que este assina os mesmos em nome próprio e enquanto representante daqueles.

4º A referida livrança foi apresentada a pagamento na data de vencimento e apesar das insistências efectuadas junto dos seus intervenientes, o valor titulado não foi pago então, nem posteriormente.

5º Pelo pagamento da importância titulada pela livrança em apreço são solidariamente responsáveis os subscritores, bem como os seus avalistas (...)

3. A exequente juntou as cópias das procurações constantes de fls. 4, 4-v e 5 dos autos principais, cujo conteúdo se considera aqui por reproduzido, e onde consta o seguinte:

I) « (...) CC (...), casada com BB (...), constitui seu procurador, seu referido marido, natural de França e com ela residente, a quem confere poderes para em nome dela mandante:

a) Assinar, na qualidade de locatária, um contrato de locação financeira a celebrar com o FF, S.A., nos termos e condições que entender convenientes; e

b) Na sequência do referido contrato de locação financeira, assinar uma convenção de preenchimento de livrança em branco, assinando e requerendo o que se torne necessário aos indicados fins.

C…, 22 de Dezembro de 2005

CC».

II) « (...) DD (...), casado (...), constitui seu procurador, BB (...), a quem confere poderes para em seu nome: assinar na qualidade de avalista uma convenção de preenchimento de livrança em branco a celebrar com o FF, S.A., assinando e requerendo tudo o que se tornar necessário aos indicados fins.

C…, 22 de Dezembro de 2005

DD».

III) « (...) EE (...), casada (...), constitui seu procurador, BB (...), a quem confere poderes para em seu nome: assinar na qualidade de avalista uma convenção de preenchimento de livrança em branco a celebrar com o FF, S.A., assinando e requerendo tudo o que se torne necessário aos indicados fins.

C…, 22 de Dezembro de 2005

EE».

4. A exequente juntou aos autos o documento constante de fls. 93 a 95 dos autos principais, cujo conteúdo se considera aqui por reproduzido, com a designação de «Convenção de Preenchimento de Livrança em Branco» e onde consta, além do mais, que: «(...)

Entre:

Primeiros: BB e mulher CC (...).

Segundo: FF, SA. (...).

Terceiro: (avalista) DD, casado com EE (...)

Quarto: (avalista) EE, casada com DD (...)

Pela presente convenção, o aqui primeiro outorgante autoriza o segundo outorgante a preencher a livrança em anexo, em que é subscritor, designadamente no que se refere às datas de vencimento e local de pagamento, pelo valor correspondente aos créditos por financiamento que em cada momento, o segundo outorgante seja titular por força de quaisquer operações bancárias legalmente permitidas, efectuadas com o primeiro outorgante, ou de encargos delas decorrentes, nomeadamente, contratos de locação financeira, até ao montante máximo de EUR 162.577,00.

O segundo outorgante poderá também descontar essa livrança e utilizar o seu produto para cobrança dos seus créditos.

O primeiro outorgante autoriza ainda o segundo a proceder ao débito, na sua conta de Depósitos à Ordem nº 30…1, pelo montante relativo ao pagamento do correspondente Imposto de Selo.

Os terceiros e quartos outorgantes, que intervêm na qualidade de avalistas no referido título, declaram que possuem um perfeito conhecimento do conteúdo das responsabilidades assumidas pelo primeiro outorgante, do seu montante e dos termos da presente convenção, à qual dão o seu acordo, sem excepções ou restrições de tipo algum, autorizando assim e por isso o preenchimento da livrança nos precisos termos exarados.

Porto_LL

Primeiro: BB (assinatura) Segundo: FF

Terceiro: BB (assinatura) Quarto: BB (assinatura)»

5. No dia 2-01-2006, no Cartório Notarial de V… da Notária HH foi reconhecida a assinatura de BB, feita pelo próprio na convenção de preenchimento de livrança referida em 4, por si e na qualidade de procurador de CC, DD e de EE nos termos de fls. 95 dos autos principais, cujo conteúdo se considera aqui por reproduzido.


2. De direito:

A acção executiva de que os presentes embargos constituem apenso teve por base um título de crédito, qualificável como livrança, à luz do disposto no artigo 75º da Lei Uniforme sobre Letras e Livranças, doravante designada por LULL, por conter todos os requisitos formais essenciais ali enunciados.

Constituindo a livrança o título executivo, é pelo seu conteúdo que se determinam o fim e os limites da execução e, bem assim, a legitimidade activa e passiva, posto que a execução tem de ser promovida pela pessoa que no título figure como credor e instaurada contra quem no título tenha a posição de devedor (cfr. artigo 53º nº1 do Código de Processo Civil).

Decorre da facticidade provada que a livrança foi subscrita pelo executado BB, por si e na qualidade de procurador de CC. Mostram ainda os factos provados que foi o mesmo BB quem assinou a livrança no verso sob os dizeres «Dou o meu aval aos subscritores» munido para o efeito de uma procuração outorgada pelos embargantes.

Não obstante, defendem os embargantes que não estão vinculados ao pagamento do título de crédito por não estarem nele obrigados na qualidade de avalistas que lhe é imputada. Segundo estes, não só falta na livrança a referência de que se trata de aval por procuração, requisito formal indispensável para os obrigar nessa qualidade, como também faltavam poderes ao procurador para esse efeito, dado que apenas lhe conferiram poderes para assinar a convenção de preenchimento na posição de avalistas.

O douto acórdão recorrido respondeu desenvolvidamente e com acerto a estas questões, concluindo pela improcedência dos embargos, ao invés do que havia acontecido na 1ª instância.

Nele se escreveu que «as procurações juntas aos autos - das quais constam que os embargantes constituem “…seu procurador, BB (...), a quem conferem poderes para em seu nome: assinar na qualidade de avalistas uma convenção de preenchimento de livrança em branco a celebrar com o FF, S.A., assinando e requerendo tudo o que se tornar necessário aos indicados fins” – conferem poderes ao procurador para em nome deles assinar a livrança na qualidade de avalistas.

Isso mesmo resulta – cremos que de forma clara – da expressão delas constante, no seu final, “…assinando e requerendo tudo o que se tornar necessário aos indicados fins”.

Efectivamente, a procuração é um negócio jurídico unilateral, sendo o seu objecto, em termos amplos, a concessão de poderes de representação (artº 262.º, n.º 1, Cód. Civil); em termos práticos, o seu objecto é a concessão daqueles poderes para algo que se vai realizar (cfr. Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, A Procuração Irrevogável, Almedina, Coimbra, 2002, p. 43).

Sendo um negócio jurídico, está sujeito às regras de interpretação dos negócios jurídicos, nomeadamente ao disposto no art. 236º, nº 1 do CC que preceitua que “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com este”, acrescentando o nº 2 que “sempre que o declarante conheça a vontade real do declarante é de acordo com ela que vale a declaração emitida”. Nos negócios formais, como é o caso, não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso – art. 238º, nº 1 do CC.

Ora, da leitura das referidas procurações resulta, à evidência, que foram dois os núcleos de poderes outorgados ao procurador: 1) assinar na qualidade de avalista uma convenção de preenchimento de livrança em branco a celebrar com o FF, S.A.; 2) assinando e requerendo tudo o que se tornar necessário aos indicados fins – fins esses que só podem ser os de serem avalistas da livrança em branco que o devedor subscreveu a favor do FF».

Questionam os embargantes a aplicação no caso dos princípios interpretativos contidos no artigo 236º do Código Civil, visto a livrança constituir um negócio formal.

No Acórdão Uniformizador de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2002, datado de 06/12/2001, publicado no Diário da República, I Série - A, de 24/01/2002, foi considerado, a propósito da interpretação dos títulos cambiários, que:

«Aos títulos de crédito aplicam-se, [portanto], os princípios da interpretação da declaração negocial estabelecidos nos artigos 236.º a 238.º do CC.

Observe-se de resto, quanto à impressão do destinatário, como se harmoniza com o princípio da aparência jurídica e a tutela da confiança basilares no direito cambiário

(…)

O artigo 217.º, n.º 1, do CC, considera tácita a declaração negocial que se deduz de factos concludentes que, com toda a probabilidade, a revelem.

Há aqui uma inferência a partir dos factos concludentes, que se aplica a actos e negócios jurídicos, tendo em conta as circunstâncias do caso concreto.

Das declarações que constam do título executivo, e das suas circunstâncias, apreciadas na perspectiva do que acontece na “vida dos negócios” e de acordo com a impressão do destinatário (artigo 236.º do CC), afigura-se inequívoco que [o ali signatário – sócio e único gerente da sacadora identificada] assinou a letra na qualidade de representante (gerente) da sociedade». 

Transpondo esta doutrina, que temos por certa, para o caso em análise, temos que subjacente à emissão da livrança em branco existiu um acordo de preenchimento com a finalidade de balizar ou delimitar os termos em que deveria definir-se a obrigação cambiária.

Tal acordo, também designado por pacto de preenchimento, consubstancia o contrato pelo qual as partes na relação jurídica subjacente ou fundamental ajustam as condições de preenchimento da letra ou da livrança para garantia do credor em caso de incumprimento do negócio causal à sua emissão.

Nesse acordo de preenchimento o subscritor da livrança – procurador dos embargantes – declarou autorizar o credor «a preencher a livrança em anexo, designadamente no que se refere às datas de vencimento e local de pagamento, pelo valor correspondente aos créditos por financiamento que em cada momento, o segundo outorgante seja titular por força de quaisquer operações bancárias legalmente permitidas, efectuadas com o primeiro outorgante, ou de encargos delas decorrentes, nomeadamente, contratos de locação financeira, até ao montante máximo de EUR 162.577,00.».

E os embargantes, representados pelo procurador munido de poderes para o efeito, intervindo «na qualidade de avalistas no referido título», declararam possuir «um perfeito conhecimento do conteúdo das responsabilidades assumidas» pelo subscritor da «livrança em anexo» do seu montante e dos termos da convenção, à qual deram o seu acordo, sem excepções ou restrições de tipo algum, «autorizando assim e por isso o preenchimento da livrança nos precisos termos exarados».

A intervenção, por intermédio de procurador, na convenção de preenchimento da livrança que as partes quiseram, deliberada e voluntariamente, deixar incompleta para permitir ao credor o seu ulterior preenchimento sem dependência de qualquer nova manifestação de vontade do devedor, está indissociavelmente ligada à emissão do título cambiário e à assunção neste das correspondentes obrigações.

Outorgar naquela convenção na posição de avalista sem a correspondente assunção dessa qualidade na livrança traduziria a prática de um acto sem sentido ou conteúdo útil, dado que o acordo de preenchimento se apresenta como meramente instrumental da emissão da livrança.

O pacto de preenchimento assinado pelos embargantes, por intermédio do seu procurador, subscritor da livrança anexa ao mesmo, tinha por finalidade única definir os termos em que esse título cambiário viria a ser ulteriormente completado pelo credor, pressupunha a correspondente emissão do título cambiário em branco que lhe estava «anexo» e cujos termos os embargantes declaram conhecer e aceitar enquanto avalistas.

Não restam, pois, dúvidas, tal como se afirmou no acórdão sob censura, que o sentido normativo das declarações dos embargantes contidas na convenção de preenchimento e nas procurações outorgadas, à luz das regras da interpretação preconizadas nos artigos 236º e 238º do Código Civil, aqui aplicáveis, é o de que aqueles conferiram poderes ao subscritor da livrança para os obrigar cambiariamente na posição de avalistas perante o banco, dando-lhe os respectivos poderes para assinarem na vez deles quer a convenção de preenchimento, quer a livrança dada à execução.

Este sentido normativo das declarações dos embargantes encontra, aliás, correspondência no texto da procuração quando nela afirmaram conferir poderes ao subscritor para «assinar na qualidade de avalistas uma convenção de preenchimento de livrança em branco a celebrar com o FF, S.A., assinando e requerendo tudo o que se tornar necessário aos indicados fins”.


Sustentam ainda os embargantes, ora recorrentes, que o aval prestado através da aposição da assinatura no verso da livrança pelo executado BB – munido de poderes para o ato e no lugar destinado aos avalistas -, não os obriga por não ser formalmente válido, dado não conter a menção de que se trata de um aval por procuração.

Citam em abono da sua tese a doutrina do acórdão deste Supremo Tribunal de 16.05.1991 (proc. nº 080549, acessível em www.dgsi.pt/jstj).

Não restam dúvidas de que o aval pode ser prestado por procuração, em face do estatuído no artigo 8º da LULL.

Esta norma admite a aposição de assinatura por procuração nos títulos de crédito, seja nas letras, seja nas livranças (artigo 77º da LULL), salvaguardando, porém, as situações em que a assinatura é aposta por quem não tenha poderes para o efeito, ou, tendo-os, os exceda, casos em que fica vinculado o seu autor, e não o representado.

Não se verificando tal situação no caso presente, posto que, como referimos, existe procuração válida e com poderes para a aposição do aval em nome dos embargantes, também neste particular acolhemos o afirmado no acórdão recorrido quando refere que:

«O que se tem exigido para além disso (para além da existência de poderes de representação) é que o representante aponha a sua assinatura na letra ou livrança e que declare assinar em nome do representado, nomeando a pessoa deste último (cfr. acórdão do STJ de 16-05-1991, in: www.dgsi.pt., - citado na decisão recorrida -, onde vêm citados vários AA que defendem também essa tese: Pinto Coelho, em Lições de Direito Comercial II, 2 fasciculo, paginas 9 e 10, Ferrer Correia, em Lições de Direito Comercial III, 1956, paginas 117, e Gonçalves Dias em Da Letra e da Livrança volume II paginas 445 e volume I/, paginas 273).

E compreende-se que assim seja perante o portador do título, nas relações mediatas, quando o título tenha sido transmitido, por endosso, dado o carácter literal dos títulos de crédito.

Como refere Ferrer Correia (ob. e local citados), “…para que os efeitos da representação se produzam é indispensável que o representante aponha a sua assinatura na letra, como tal, isto é, que ele declare assinar em nome do representado, especificando claramente a pessoa deste último. Doutro modo ficará ele próprio obrigado em pessoa, em vista do princípio da literalidade.”

Neste caso, o portador do título a quem ela foi transmitida (de boa fé), não foi interveniente na relação subjacente – no negócio que esteve na base da subscrição da letra ou da livrança. Por isso, ele só pode accionar os titulares que figuram no título como assinantes/subscritores do título. A essa luz, é evidente que se no lugar dos avalistas constar o nome do subscritor, só esse pode ser demandado (também como avalista), pois não consta do título que apôs a sua assinatura em representação de alguém.

Diferentemente se passam as coisas, cremos, nas relações imediatas em que os demandados são os próprios intervenientes do negócio, como é o caso dos autos.

Como ficou demonstrado nos autos, os embargantes outorgaram procuração ao devedor, dando-lhe poderes para assinar a livrança em seu nome como avalistas da mesma; intervieram no negócio subjacente à própria relação cartular, pelo que esse negócio é-lhes oponível, vinculando-os ao cumprimento, como avalistas da livrança, por força da procuração que outorgaram ao 1º executado.

Por isso é que a exequente, ao dar a livrança à execução, alegou factos e juntou documentos complementares, comprovativos da qualidade em que o 1º executado assinou a livrança, vinculando os 3º e 4º como avalistas».

Na verdade, o avalista, embora responda da mesma maneira que o subscritor (avalizado), não é, por regra, sujeito da relação jurídica fundamental ou subjacente à subscrição da livrança.

No caso que nos ocupa, os sujeitos da relação jurídica causal à emissão da livrança são, inquestionavelmente, os subscritores BB e CC e o exequente, portador imediato do título, por virtude do contrato de locação financeira que celebraram.

Os embargantes, representados por procurador (subscritor da livrança) munido de poderes para o efeito, outorgaram o contrato que consubstancia o pacto de preenchimento como avalistas do título.

Esta intervenção só pode significar que os embargantes/avalistas tomaram conhecimento e aceitaram as cláusulas contratuais ali inseridas respeitantes à convenção de preenchimento directamente conexionada com a garantia consubstanciada no aval prestado na livrança em branco.

Nessa medida tem de considerar-se, como no acórdão recorrido, que a livrança se encontra no domínio das relações imediatas. E neste domínio é permitido moderar o rigor do formalismo cambiário, que é dirigido, fundamentalmente, à protecção de terceiros (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de 12.10.2017 (proc. nº 1097/14.1TBFUN-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt/jstj). 

A falta de expressa indicação na livrança de que se tratava de aval por procuração não desvincula, por conseguinte, os embargantes do cumprimento da obrigação cambiária, posto que a exequente, ao dar a livrança à execução, alegou factos e juntou documentos complementares comprovativos de que o executado BB (subscritor) assinou o aval que lhe foi prestado no verso na qualidade de procurador daqueles.

Só no domínio das relações mediatas faz sentido a exigência formal traduzida na expressa menção no verso do título de que se trata de aval por procuração, tendo em vista a tutela da confiança de terceiros em face das características que revestem o título cambiário, em particular, a sua autonomia, literalidade e abstracção.

Improcedem, consequentemente, as conclusões da alegação dos recorrentes.


III. Decisão:

Termos em que se acorda no Supremo Tribunal de Justiça em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.

Custas pelos recorrentes.


Lisboa, 01 de Março de 2018


Fernanda Isabel Pereira (Relator)

Olindo Geraldes

Maria do Rosário Morgado