Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1301/10.5T4AVR.C1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: MELO LIMA
Descritores: MATÉRIA DE FACTO
ACIDENTE DE TRABALHO
VIOLAÇÃO DE REGRAS DE SEGURANÇA
NEGLIGÊNCIA GROSSEIRA
DESCARACTERIZAÇÃO DE ACIDENTE DE TRABALHO
Data do Acordão: 02/11/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Área Temática:
DIREITO DO TRABALHO - ACIDENTES PROFISSIONAIS.
DIREITO PROCESSUAL CIVL - PROCESSO / INSTRUÇÃO DO PROCESSO - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / AUDIÊNCIA PRÉVIA / SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina:
- Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil “, Anotado, III, p.212.
- Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra – 1982, pp. 268, 270.
- Lebre de Freitas, A ação declarativa comum à luz do código de processo civil de 2013, 3ªEdição, Coimbra Editora, p. 195
-Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora Lda, 1993, p.194.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (NCPC): - ARTIGOS 410.º, 552.º, N.º1, AL. D), 571.º, N.º2, 588.º, N.º6, 596.º, N.º1, 608.º, N.º2, 663.º, N.º2, 674.º, N.º3, 679.º, 682.º.
DECRETO N.º 41 821, DE 11 DE AGOSTO DE 1958 - REGULAMENTO DE SEGURANÇA NO TRABALHO DA CONSTRUÇÃO CIVIL: - ARTIGOS 44.º, 45.º.
LEI Nº 102/2009, DE 10/09: - ARTIGO 17.º, N.º1, ALS. A) E C).
LEI Nº 98/2009, DE 4 DE SETEMBRO, (LAT/2009): - ARTIGOS 14.º, N.º1, AL. B).
PORTARIA Nº 101/96, DE 3-4: - ARTIGO 11.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 09.10.2003, PROC. N.º 03B1816, EM WWW.DGSI.PT;
-DE 14.02.2007, PROCESSO Nº 06S3545, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 26.03.2008, AD, 559º - 1524;
-DE 09.06.2010, PROC. Nº 579/09.1YFLSB, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 22.09.2011, PROC. Nº896/07.5TTVIS.C1.S1, EM WWW.DGSI.PT ;
-DE 07.05.2014, PROC. 39/12.3T4AGD.C1.S1, EM WWW.DGSI.PT .
Sumário :
1. Podem ser objeto de prova testemunhal os factos do mundo exterior como os da vida psíquica; os factos reais como os chamados factos hipotéticos; os factos nus e crus, como os juízos de facto: uns e outros, desde que não sejam subsumíveis e/ou subordináveis a uma qualquer norma ou critério de direito, nem integrem afirmação ou valoração de facto que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objeto da ação. 

2. Consubstancia uma violação das regras de segurança legalmente estabelecidas e concretamente determinadas e garantidas pela entidade empregadora – com a colocação de tábuas de rojo para a realização do trabalho de reparação duma segunda caleira, e a disponibilização de capacete, arnês e cinto de segurança, sendo o arnês ligado à asna do telhado - a deslocação do trabalhador sobre um telhado, de placas de fibrocimento, antigas, fora daquelas tábuas de rojo, e sem o uso do cinto de segurança com arnês, para uma zona onde, por não ser local de passagem nem haver lá qualquer trabalho para executar, não era suposto estar.

3. A “negligência grosseira”, que corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo, deve ser apreciada não em função de um padrão geral, abstrato, de conduta, mas em concreto, em face das condições da própria vítima – segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais.
Decisão Texto Integral:

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. Em processo emergente de acidente de trabalho, (a) AA, (b) BB e (c) CC, sob o patrocínio do Mistério Público, formularam contra (a) Companhia de Seguros DD, SA e (b) EE, Lda, os seguintes pedidos:
· A condenação da 2ª ré a pagar:
a) À A. AA: a pensão anual e vitalícia de € 4.960,09, desde o dia seguinte ao da morte do sinistrado, pensão essa cujo valor passará a coincidir com o salário do sinistrado, após a caducidade da pensão dos co-AA. CC e BB; subsídio por morte, no montante de € 2.766,85; € 3.689,12, a título de despesas de funeral; € 30,00, de indemnização por despesas de transporte.
b) À A. CC: pensão anual e temporária, desde o dia seguinte ao da morte do sinistrado, no valor de € 3.310,97, até perfazer 22 ou 25 anos, respetivamente, enquanto frequentar ensino secundário ou curso equiparado, ou superior, ou se vier a ser atingida por doença que a afete sensivelmente para o trabalho; subsídio por morte, no montante de € 1.388,43.
c) Ao A. BB: pensão anual e temporária, desde o dia seguinte ao da morte do sinistrado, no valor de € 3.310,97, até perfazer 22 ou 25 anos, respetivamente, enquanto frequentar ensino secundário ou curso equiparado, ou superior, ou se vier a ser atingido por doença que o afete sensivelmente para o trabalho; subsídio por morte, no montante de € 1.388,43; € 30,00, de indemnização por despesas de transporte.
d) A todos os AA., uma indemnização nunca inferior a € 60.000,00, por dano da morte, e por danos não patrimoniais, a cada um deles, o montante de € 30.000,00.
e) A todos, juros de mora sobre as referidas prestações, à taxa anual de 4%, desde a data dos respetivos vencimentos, até integral pagamento.
· Subsidiariamente, a condenação da ré seguradora a pagar:
a) À A. AA: pensão anual e vitalícia de € 3.476,70, com início em 26 de novembro de 2010, pensão essa cujo valor passará para € 4.635,60, após a idade de reforma por velhice ou em caso de doença física ou mental que a afete sensivelmente na sua capacidade de trabalho; subsídio por morte, no montante de € 2.766.85; € 3.689,12, a título de subsídio de funeral; € 30,00, de indemnização por despesas de transporte; juros de mora sobre as referidas prestações, à taxa anual de 4%, desde a data dos respetivos vencimentos, até integral pagamento;
b) À A. CC: pensão anual e temporária no valor de € 2.317,80, com início em 26 de novembro de 2010, até perfazer 22 ou 25 anos, enquanto frequentar o ensino secundário ou curso equiparado ou superior, ou se for acometida por doença que a afete sensivelmente para o trabalho; subsídio por morte, no montante de € 1.388,43; juros de mora sobre as referidas prestações, à taxa anual de 4%, desde a data dos respetivos vencimentos, até integral pagamento.
c) Ao A. BB: pensão anual e temporária no valor de € 2.317,80, com início em 26 de novembro de 2010, até perfazer 22 ou 25 anos, enquanto frequentar o ensino secundário ou curso equiparado ou superior, ou se for acometido por doença que o afete sensivelmente para o trabalho; subsídio por morte, no montante de € 1.388,43; € 30,00, de indemnização por despesas de transporte.
Em alternativa, na hipótese de improcederem os anteriores pedidos, a condenação das RR. a pagarem aos AA. as prestações normais previstas na LAT, na medida das respetivas responsabilidades, acrescidas dos juros de mora legais.
Alegaram para tanto, em síntese, que o FF faleceu em 25 de Novembro de 2010, em ... - ..., no estado de casado com a A. AA, deixando os filhos CC (menor de idade) e BB, (estudante, nascido em 27 de abril de 1993). Nesse dia, prestava os seus serviços de serralheiro civil sob as ordens, direção e fiscalização da 2ª R., numa obra de manutenção de duas caleiras e caiu por uma telha, que cedeu, embatendo com o corpo no pavimento do armazém da fábrica, vindo a falecer, em consequência de tal acidente. E que a 2ª R. sabia que a realização dos trabalhos em causa encerrava condições particulares de risco, mas não os avaliou nem acautelou, não tendo adotado as medidas de proteção adequadas, destinadas a obstar ao risco de quedas em altura.

               

2. Contestaram:

2.1 A R. EE, Lda, impugnando a versão dos factos alegada e sustentando que o acidente não resultou de culpa sua, tendo adotado todas as medidas de segurança destinadas a evitar o risco de queda em altura, mas resultou antes do comportamento negligente do próprio sinistrado, não sendo por isso responsável pela reparação do sinistro.

2.2 A R. DD, SA, defendendo que o acidente se deveu a violação de regras de segurança pela R. EE, Lda.

Mais alegou haver manifesto lapso quanto à quantificação de tais pedidos, já que, quanto ao reembolso das despesas de funeral, resulta da lei que a autora AA não tem direito aos € 3.689,85 que reclama, visto que tal é apenas o limite máximo que a esse título poderá ser pago e sendo o seu pagamento devido não a ela, nem a qualquer dos seus filhos, mas antes e tão só a quem provar ter suportado o pagamento de tais despesas. Também o montante que cabe a cada um dos beneficiários, filhos do sinistrado, a título de subsídio por morte, está erradamente computado, pois que é de apenas € 1.383,43 para cada.

Sem prescindir, alegou que, caso a 2ª R. demonstre que garantira toda a preparação e formação ao sinistrado para realizar trabalhos em altura e havia implementado as necessárias medidas de segurança, não lhe cabe, ainda assim, a responsabilidade pela reparação, porque então o acidente só ao próprio sinistrado é imputável, pois ninguém lhe solicitou que circulasse pelo telhado de onde veio a cair, em desobediência às ordens dadas pela 2ª R.

3. Os AA. responderam às contestações das RR, reiterando a versão dos factos alegada na petição.

4. A 1ª R. respondeu à contestação da 2ª R., reafirmando o que já havia dito no respetivo articulado.

5. Prosseguindo o processo os seus regulares termos, veio a ser proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu as RR. dos pedidos.

6. Inconformados, os AA. interpuseram recurso de apelação contra a R. Seguradora, para o Tribunal da Relação de Coimbra.  Aqui, por Acórdão de 15 de maio de 2014, foi deliberado, com um voto de vencido, julgar improcedente a apelação.

7. Irresignados, trazem os AA. recurso de Revista para este Supremo Tribunal de Justiça, rematando as respetivas alegações de recurso com as seguintes conclusões:

7.1 Na aplicação do direito apenas se deve considerar os factos constantes da matéria de facto e não meros juízos, conclusões ou afirmações vagas que ali constem. Assim, no presente caso.

7.2 Deve ser alterado o ponto 32 da matéria de facto, ali ficando a constar apenas o seguinte: «O telhado era composto por placas de fibrocimento». Com efeito,

7.3 O segmento «…já antigas, com vários anos», não permite saber quanto tempo, medido em anos, que as placas tinham: uma placa «antiga», tem quanto tempo (contado desde a produção ou desde a aplicação para formar o telhado?), medido em anos? E uma placa, «com vários anos», tem quantos anos?

7.4 O segmento «…já antigas, com vários anos» traduz uma mera conclusão, e ainda assim de conteúdo vago, que, na ausência de indicação concreta do tempo (medido em anos) de duração das placas, deve ser eliminado.

7.5 O ponto 33, com o enunciado «Mesmo que fossem novas, as placas poderiam não suportar o peso de um homem de normal constituição física», deve ser eliminado, por transportar um vago e impreciso juízo conclusivo, sem suporte fáctico. Com efeito,

7.6 Nada de concreto se refere quanto à resistência das placas, mormente o peso (valor máximo) que suportam, Igualmente não se refere concretamente qual o peso considerado como sendo o de «..um homem de normal constituição física».

7.7 Na verdade, faltam duas grandezas: qual o peso concreto (valor máximo) que as placas novas suportam e qual o peso de um homem de normal constituição física, para depois se poder concluir se as placas suportavam ou não tal peso. Aliás,

7.8 A própria formulação é ambígua: «…poderiam não suportar…», isto é, se bem interpretamos, tanto poderiam suportar, como não suportar! Ora,

7.9 Tal formulação nada de concreto transporta, não sendo «um facto», mas uma mera conclusão ambígua e sem qualquer suporte fáctico. Deve, pois, tal ponto ser eliminado.

7.10 O ponto nº34, ao afirmar que «As placas podiam ceder a qualquer momento, caso alguém fosse diretamente para cima delas», transporta um mero juízo conclusivo, porque não ancorada em factos rigorosos: falta indicar as características das placas (v.g., espessura, dimensões…) e o peso (valor máximo) que suportavam, para depois se poder concluir que cederiam ao peso de uma pessoa com peso superior a esse concreto peso (valor máximo) que suportavam.

7.11 A formulação verbal é também vaga e dá para tudo: «As placas podiam ceder…», ou seja, tanto podiam ceder, como podiam não ceder…».

7.12 Deve, pois, ser eliminado tal ponto, por não consubstanciar um facto mas um mero e vago juízo conclusivo, sem qualquer utilidade operativa para a boa aplicação do direito.
*

7.13 Independentemente da alteração preconizada e ao contrário do deliberado, por maioria, no douto Acórdão impugnado, não ocorre qualquer causa ou fundamento que permita descaracterizar o acidente. Com efeito:

7.14 Dispõe o art.º 14º, nº1, al.b), do mencionado diploma:
«1. O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;»

7.15 Da referida disposição legislativa imediatamente se podem desprender os seguintes elementos essenciais:
a) Comportamento revelador de negligência;
b) A negligência tem de ascender ao patamar de «grosseira»;
c) Tem de haver uma relação de causalidade entre o comportamento consubstanciador de negligência grosseira e o acidente;
d) A existir negligência grosseira, esta tem de ser causa única («exclusiva») da eclosão /produção do acidente.

7.16 Por sua vez, o nº3, do art.º 14º, define a negligência grosseira como sendo o comportamento temerário em alto e elevado grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou os usos da profissão.

7.17 Da matéria de facto apurada não se pode concluir que o trabalhador/sinistrado agiu com negligência grosseira. Com efeito,

7.18 Da descrição dos trabalhos a realizar pelo sinistrado, deriva que este se tinha de movimentar pelo telhado.

7.19 Nos trabalhos sobre o telhado, constituído por placas de fibrocimento, os trabalhadores, devido à sua experiência profissional e confiança que vão ganhando na execução das tarefas laborais, habituação ao perigo próprio de tais trabalhos, tendem a movimentar-se sobre o telhado, colocando os pés sobre a parte das placas que têm imediatamente por debaixo as vigas de suporte (ou seja, colocam os pés na parte da placa que tem contacto físico com a viga de suporte), por não haver risco de estas cederem ao peso.

7.20 No caso concreto, nada permite concluir que a movimentação do trabalhador sinistrado para o local onde ocorreu a queda não tem ligação com as funções laborais que lhe foram atribuídas.

7.21 Com efeito, incumbido um trabalhador de realizar tarefas laborais, o mesmo tem sempre uma autonomia técnica de as realizar, atenta a sua competência e experiência profissional, face ao objetivo/resultado que lhe é fixado pelo empregador.

7.22 No caso concreto, tal autonomia é patente, pois o empregador incumbiu o trabalhador/sinistrado de realizar tarefas laborais, ficando este sozinho para as concretizar, em função do seu saber técnico e experiência.

7.23 A O trabalhador encontrava-se sozinho no telhado, quando o acidente ocorreu.

7.24 Ao movimentar-se sobre o telhado, constituído por placas de fibrocimento, é de considerar que o trabalhador/sinistrado o fez colocando os pés sobre a parte das placas que têm imediatamente por debaixo as vigas de suporte do telhado (isto é, colocando os pés sobre a parte da placa que tem contacto físico direto com a viga, que se encontra por debaixo), ou, pelo menos, não é de excluir essa possibilidade.

7.24 O acidente pode ter acontecido por o trabalhador/sinistrado ter escorregado, ter-se desequilibrado, ter tropeçado ou ter-se desorientado espaço-temporalmente, caindo depois sobre o telhado, cedendo as placas à força do impacto da queda.

7.25 De todo o modo, desconhecendo-se as circunstâncias concretas do acidente, não pode concluir-se que o seu comportamento consubstancia negligência grosseira.

7.26 Sem conceder, mesmo que a sua conduta pudesse – e não pode, como já afirmámos, apenas se admitindo para meros efeitos de raciocínio – ser considerada de grosseiramente negligente, não se evidencia que tal negligência seja causa do acidente ou que seja causa única do acidente, pois este pode ter ocorrido por o trabalhador/sinistrado ter tropeçado, ter-se desequilibrado, ter escorregado ou ter perdido a consciência espaço-temporal.

7.27 De todo o modo, tendo em conta a profissão do sinistrado e atenta a natureza dos trabalhos, sempre será de concluir que o seu comportamento consubstancia ato resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.

7.28 Adiante-se que a descaraterização do acidente constitui matéria de exceção, cujo ónus de prova impendia sobre a seguradora (Art.º 342º, nº2, do C.Civil).

*

7.29 Ora, não se mostram carreados factos que permitam concluir que o acidente se ficou a dever a negligência grosseira e exclusiva do trabalhador/sinistrado, não havendo razões para se concluir que o acidente deve ser descaraterizado nos termos do art.º 14º, nº1, al. b), da LAT/2009.

7.30 E não ocorre também qualquer razão ou fundamento para se concluir que o acidente deve ser descaraterizado nos termos do art.º 14º, nº1, al. a), da LAT/2009.

7.31 Na verdade, não existem dados objetivos que permitam dar como assente a hipótese prevista em tal normativo.

7.32 As regras de segurança previstas na lei são essencialmente dirigidas ao empregador, que as deve implementar e, de todo o modo, no caso concreto não existem quaisquer dados que deixem concluir que o trabalhador tomou a opção ou decisão de não as cumprir.

7.33 E também não se patenteiam quaisquer elementos de facto que permitam concluir que o trabalhador/sinistrado tomou qualquer opção ou decisão de não cumprir as regras de segurança previstas pelo empregador, desconhecendo-se a razão de não estar a ser utilizado o arnês, ligado a um ponto fixo ou a linha da vida, sendo certo que não se provou como, nesse particular, bem se observa na sentença da 1ª instância, que o empregador tenha «…expressamente proibido o sinistrado de circular pela cobertura ou que lhe tenha sido dito que se devia manter apenas sobre as tábuas de rojo…» (vd. Fls. 252).

7.34 De resto, como já acima se acentuou, não se evidenciando as circunstâncias concretas em que ocorreu o acidente, não pode imputar-se ao sinistrado a violação, sem causa justificativa, das condições de segurança, quer emanem estas de lei, quer do empregador.

7.35 Como já salientámos supra, da análise da matéria de facto apresenta-se como possível que o acidente ocorreu por o sinistrado, quando se encontrava com os pés sobre a parte da placa que tinha diretamente por debaixo a viga em que assentava (não havendo, assim, possibilidade ou risco de a placa não suportar o seu peso, pois a parte da placa calcada estava em contacto físico direto com a viga, que suportava todo o peso), se ter desequilibrado, tropeçado ou escorregado, ou ter ocorrido perda da noção espaço-temporal, e, de todo o modo, sempre o seu comportamento consubstancia ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.

7.36 Não é possível estabelecer qualquer relação de causalidade entre o comportamento do sinistrado, mormente entre as regras de segurança e o acidente, desde logo porque se desconhecem as circunstâncias e o modo como o acidente se verificou.

7.37 Não existem, pois, elementos de facto – e o ónus da prova competia à R. Seguradora – nem fundamento legal para descaraterizar o acidente de que o trabalhador/sinistrado foi vítima.

7.38 O douto Acórdão impugnado, ao considerar descaracterizado o acidente e ao recusar aos AA o direito à reparação do acidente, violou, por erro de interpretação e de aplicação, o disposto no art.º 14º, n.º1, al. b) e a) e nº3, e, por via disso, ainda o disposto nos art.ºs 23º, al. b), 47º, nº1, al. e), f), g), 56º, 57º, nº1, al. a), 60º, nº1, al. a), b) e c), 65º e 66º, 71º, todos da LAT/2009 (Lei nº98/2009, de 4/09).

7.39 Donde, dado que não se verifica a descaracterização do acidente, deve a R. Seguradora - «Companhia de Seguros CC, S.A.» - ser responsabilizada pela reparação do acidente, em função do contrato de seguro firmado com a entidade empregadora do sinistrado e o regime de reparação dos acidentes de trabalho, previstos na LAT/2009 (Lei nº 98/2009, de 4/09), como já manifestado pelos AA nos autos, cujos direitos se quantificam pecuniariamente nos seguintes valores, que a «CC, S.A.» deve ser condenada a pagar:
a) À A. AA:
a1) Uma PAV (pensão anual e vitalícia) de € 3.476,70 (€ 11.589,00x30%), com início em 26/11/2010, pensão essa cujo valor subirá para € 4.635,60 (€ 11.589,00x40%) após a idade de reforma por velhice ou em caso de doença física ou mental que afete sensivelmente a sua capacidade de trabalho;
a2) Subsídio por morte, no valor de € 2.766,85 (€ 419,22x1,1x12:2);
a3) Subsídio de funeral, no valor de € 3.689,12 (€ 419,22x1,1x8);
a4) € 30,00, de indemnização por despesas de deslocação/transporte;
a5) Juros de mora sobre as mencionadas prestações, à taxa legal (4% /ano) desde as datas dos respetivos vencimentos e até efetivo e integral pagamento.
b) À A. CC:
b1) PAT (Pensão Anual e Temporária) no valor de € 2.317,80 (€ 11.589,00x20%), com início em 26.11.2010, até atingir 22 ou 25 anos de idade, enquanto frequentar o ensino secundário ou curso equiparado ou superior, ou se for acometida por doença que a afete sensivelmente para o trabalho;
b2) Subsídio por morte, no valor de € 1.383,43 (€ 419,22 x 1,1 x 12:4);
b3) Juros de mora sobre as referidas prestações, à taxa legal (4%/ano), desde a data dos respetivos vencimentos e até efetivo e integral pagamento.
c) Ao A. BB:
c1) PAT (Pensão Anual e Temporária) no valor de € 2.317,80 (€ 11.589,00 x 20%), com início em 26.11.2010, até atingir 22 ou 25 anos de idade, enquanto frequentar o ensino secundário ou curso equiparado ou superior, ou se for acometida por doença que a afete sensivelmente para o trabalho;
c2) Subsídio por morte, no montante de € 1.383,43 (€ 419,22 x 1,1 x 12:4);
c3) € 30,00, por indemnização de despesas de transporte
c4)Juros de mora sobre as referidas prestações, à taxa legal (4%/ano), desde a data do respetivo vencimento e até efetivo e integral pagamento.

8. A R. apresentou contra-alegações, das quais, se bem se interpretam, se retiram os seguintes fundamentos:

8.1 Este não é já o momento de requerer qualquer alteração à matéria de facto, sabido como é que os únicos fundamentos do recurso de revista são os plasmados no art.º 674º do NCPC. De todo o modo,

8.2 Será de manter a facticidade ínsita nos pontos 32, 33, 34 por de factos se tratarem, alguns notórios.

8.3 Não é possível nem sério conjeturar-se sobre algum facto imprevisto que pudesse ter ocorrido e que justificasse o comportamento do sinistrado, assim afastando a descaracterização do acidente de trabalho.

8.4 Ao contrário do invocado pelos Recorrentes, do acervo comprovado – assim, nºs 9, 12, 13 a 17, 20 a 26, 31 a 34 e 36 - retira-se a factualidade que rodeou o acidente dos autos.

8.5 Pari passu, inversamente ao pretendido pelos Recorrentes – a saber: que para ir para o local de reparação da 2ª caleira o sinistrado teria de se deslocar sobre o telhado -, ficou provado que o sinistrado acedeu ao local onde devia trabalhar e onde estavam as tábuas de rojo que se encontravam fixas à 2ª caleira a reparar, deixando o arnês que não chegou a colocar, junto àquela 2ª caleira.

8.6 Exigir à Recorrida a prova de que nenhuma das indicadas hipóteses aventadas pelos Recorrentes se verifica, seria exigir a prova diabólica ou impossível.

8.7 O sinistrado, sem nenhuma razão para tal, agiu com negligência grosseira, numa atuação altamente temerária que não pode, de modo algum, ser justificada pela habitualidade ao perigo, confiança na experiência profissional ou por resultar dos usos da profissão.

8.8 O acidente dos autos tem que se ter como descaracterizado enquanto acidente de trabalho, pois que resultou em exclusivo de um ato temerário, perfeitamente escusado, pois que sem qualquer interesse ou proveito para quem quer que fosse – o sinistrado até se estava a afastar da zona em que deveria trabalhar, caminhando em sentido oposto ao da plataforma de trabalho/tábuas de rojo instaladas e ignorando em absoluto os EPIS alocados à tarefa – cinto de segurança e arnês – que não colocou nem prendeu à asna da cobertura.

8.9 Se a entidade patronal colocou à disposição do trabalhador meios de proteção coletiva (tábuas de rojo ou plataforma de trabalho) e equipamentos de proteção individual (cinto de segurança e arnês que podia e devia prender à asna do telhado), se tais equipamentos foram usados na reparação da 1ª caleira e se foram colocados pelo patrão do sinistrado e pelo próprio junto da 2ª caleira, o seu não uso tem que lhe ser totalmente imputado.

8.10 Como bem se decidiu na 1ª instância, a atuação do sinistrado não só consubstanciou uma temeridade do mais alto grau, uma negligência altamente grosseira como consubstanciou a violação, por sua banda, das regras e determinações de segurança impostas não só por lei como pela sua entidade patronal, violação esta que esteve na génese e foi a causa exclusiva e suficiente do acidente.

8.11 Está em causa matéria – descaraterização nos termos da al. a) do nº1 do Art.º 14º da LAT/2009 – que não foi sequer apreciada pela 2ª instância, no acórdão ora em crise, mas que, nos termos do nº1 do Art.º 636º NCPC (antigo Art. 684º-A CPCivil) expressamente se requer seja apreciada pelo Supremo Tribunal de Justiça, por constituir um fundamento da defesa da recorrida não apreciado em 2ª instância.

8.12 O sinistrado violou normas legais e regulamentares instituídas para evitar acidentes, mormente as consagradas nos arts. 17º, nº1, als. a) e c) da Lei nº 102/2009, de 10/09, 44º e 45º do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção civil e 11º da Portaria nº 101/96, de 3/4.

8.13 Deve ser negada a pretendida Revista.

9. Estando pendente o processo no Tribunal da Relação de Coimbra, o Exmo. Magistrado do Ministério Público requereu, ainda em momento anterior à admissão do Recurso de Revista que havia interposto, a junção de documento, consubstanciado numa certidão do Acórdão proferido no âmbito do Proc. Nº698/10.1T3OBR.

No conhecimento da pretensão assim formulada, foi proferido, pelo ora Relator, despacho nos seguintes termos: «visto a extemporaneidade da junção, maxime visto a manifesta inutilidade do documento de que se requere a junção, não se admite esta, ordenando-se o respetivo desentranhamento e entrega aos Recorrentes, na pessoa do seu Representante Legal».[Fls. 517 a 525]

Notificadas, as partes não formularam qualquer reação.  

10. Delimitação objetiva do recurso.

Sabido que o objeto do recurso, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é delimitado pelas conclusões das alegações do Recorrente (Artigos 635º, nº4 e 639º do CPC/2013), está em causa na presente revista saber:
a. Se o quadro fáctico desenhado na instância recorrida comporta, com referência aos pontos 32º [«O telhado era composto por placas de fibrocimento, já antigas, com vários anos»], 33º [«Mesmo que fossem novas, as placas poderiam não suportar o peso de um homem de normal constituição física»] e 34º [«As placas podiam ceder a qualquer momento, caso alguém fosse diretamente para cima delas»], meros juízos, conclusões ou afirmações vagas que importe expurgar;
b. Se inexiste razão ou fundamento para se concluir que o acidente deve ser descaraterizado;
c. Inexistindo fundamento para a descaraterização, se é de reconhecer os direitos à reparação do acidente, a cargo da R. seguradora

11. Distribuído o projeto pelos Ex.mos Adjuntos, é altura de decidir.

*

II Fundamentação de facto.

As instâncias deram como provados os seguintes factos:          

1. O sinistrado FF (doravante, apenas “sinistrado”) nasceu a 22 de novembro de 1966, em Águeda – cfr. certidão de fls. 50.

2. E faleceu em 25 de novembro de 2010, em ... - ..., no estado de casado – cfr. certidão de fls. 50.

3. Deixando como viúva a ora A., AA, nascida em 16 de novembro de 1967 – cfr. certidões de fls. 41 e 43.

4. Tendo ambos contraído casamento entre si, em 21 de outubro de 1989 – cfr. certidão de fls. 41.

5. Deixou ainda os filhos (aqui AA.) CC, nascida em 23 de dezembro de 2003, e BB, nascido em 27 de abril de 1993.

6. No dia 25 de novembro de 2010, o sinistrado prestava os seus serviços de serralheiro civil, a favor da R. “EE, Ld.ª” (2ª R.), com sede na Travessa … - …, numa obra de manutenção (restauro/reparo) de duas caleiras, na fábrica …, da DD, S.A. (dona da obra), na Zona Industrial de ..., 3770-904 ... - ....

7. Sob as ordens, direção e fiscalização da 2ª R., por força de contrato de trabalho com esta celebrado.

8. Auferindo a retribuição mensal de € 750,00, acrescida dos respetivos subsídios de férias e de Natal, de igual montante e de € 4,50 x 22 dias de subsídio de alimentação, auferido 11 meses por ano, perfazendo a retribuição total anual de € 11.589,00.

9. Os trabalhos que o sinistrado se encontrava a realizar, no dia 25 de novembro de 2010, juntamente com o sócio gerente da 2.ª R., EE, nas instalações da fábrica …, da “DD, S.A.”, consistiam na reparação das emendas de duas caleiras, ao nível do telhado.

10. Aí chegados, o sócio gerente da 2ª R. determinou que o sinistrado procedesse, juntamente com ele, ao acesso ao telhado da fábrica 2, utilizando para o efeito uma plataforma elevatória improvisada, formada por um empilhador, a cujos garfos foi acoplada uma estrutura metálica, tipo caixa, pertencente à dona da obra e manobrada por um funcionário desta.

11. Sendo esse acesso ao telhado efetuado através de uma telha retirada para aceder à caleira, para onde elevariam os equipamentos de trabalho necessários à execução da reparação.

12. Mais determinou o sócio gerente da 2ª R. que no telhado, os dois procederiam à colocação de tábuas de rojo, de cada lado da caleira de recolha de águas pluviais a reparar, formando uma espécie de estrados em madeira, para facilitar a execução dos trabalhos de reparação e para estarem em segurança, enquanto o executavam.

13. A reparação da 1ª caleira foi efectuada durante o período da manhã, antes da interrupção para o almoço.

14. Pelo menos antes de subirem ao telhado, de manhã, para procederem aos trabalhos de reparação da 1ª caleira, o sinistrado e o gerente da 2ª R. estavam equipados com capacete, arnês e cinto de segurança.

15. O arnês seria ligado, através de uma corda ou cabo, à asna do telhado.

16. Tendo o sócio-gerente da 2ª R. e o sinistrado, antes da interrupção para almoço, efetuado a mudança de todo o material utilizado na 1ª caleira (incluindo o arnês e cinto de segurança), para junto da 2ª caleira, que iria ser reparada depois do almoço.

17. O estrado de madeira tinha sido já colocado da parte da manhã, junto à 2ª caleira a reparar.

18. Após o período de descanso para o almoço, o sócio gerente da 2ª R., EE, deu indicações ao sinistrado para prosseguir o trabalho, utilizando a “plataforma elevatória”, para aceder ao telhado.

19. O sinistrado acedeu ao telhado, junto à 2ª caleira a reparar, através da “plataforma elevatória”.

20. O sinistrado deslocou-se em direção ao cume do telhado.

21. A uma distância de cerca de 5 metros da 2ª caleira a reparar.

22. Em sentido contrário às tábuas de rojo, que se encontravam fixas junto à 2ª caleira a reparar.

23. Tendo partido uma telha, que cedeu.

24. O que causou a queda do sinistrado no solo, de uma altura de seis metros, tendo embatido com o corpo no pavimento do armazém da fábrica.

25. A queda ocorreu quando o sinistrado se encontrava sozinho no telhado, numa zona deste onde não era suposto estar, visto que não era local de passagem e não havia lá qualquer trabalho para executar.

26. O sinistrado não chegou a colocar o arnês, que deixou junto à 2ª caleira.

27. Em consequência da queda e embate no solo, o sinistrado sofreu lesões traumáticas cranio-meningo-encefálicas e toraco-abdomino-pélvicas, que lhe determinaram, como consequência direta e necessária, a morte.

28. A 2ª R. sabia que a realização dos trabalhos em causa encerrava condições particulares de risco, para os trabalhadores diretamente envolvidos.

29. Junto às caleiras a reparar, existiam tábuas de rojo, formando uma espécie de estrado de madeira, para movimentação do sinistrado e do sócio-gerente da 2ª R., na zona de trabalho.

30. Na zona onde se encontravam as caleiras a reparar, o telhado tinha cerca de 5 metros de altura ao solo.

31. A zona do telhado de onde o sinistrado caiu distava cerca de 6 metros do solo.

32. O telhado era composto por placas de fibrocimento já antigas, com vários anos.

33. Mesmo que fossem novas, as placas poderiam não suportar o peso de um homem de normal constituição física.

34. As placas podiam ceder a qualquer momento, caso alguém fosse diretamente para cima delas.

35. Não foi colocada rede antiqueda, por debaixo da zona das emendas das caleiras, onde iriam decorrer os trabalhos.

36. Era pelo menos possível prender ou fixar a outra extremidade da corda ou cabo acoplada ao arnês, a um ponto seguro, nomeadamente à asna do telhado.

37. As despesas de funeral do sinistrado foram pagas pela A. AA.

38. Tendo havido trasladação do cadáver do sinistrado da cidade de Aveiro, para a cidade de Águeda.

39. O sinistrado era um homem trabalhador, saudável, bem disposto e comunicativo.

40. A morte do sinistrado causou aos AA. dor profunda, angústia, tristeza e sentimento de perda.

41. Aquando do acidente em discussão, a 2ª R. tinha transferido para a R. Companhia de Seguros CC, S.A. (1ª R.) a responsabilidade pela reparação de acidentes de trabalho sofridos pelo sinistrado, enquanto trabalhador ao seu serviço, com base na totalidade da retribuição por este auferida, através de contrato de seguro titulado pela apólice n.º ….

III CONHECENDO: SUBSUNÇÃO JUSNORMATIVA

1. O quadro fáctico desenhado na instância recorrida comporta, nos pontos 32º, 33º e 34º, meros juízos, conclusões ou afirmações vagas que importe expurgar?

1.1 Alegam os AA. que, na aplicação do direito, apenas devem ser considerados os factos e não meros juízos, conclusões ou afirmações vagas.

Em termos práticos, insurgem-se contra as expressões constantes dos pontos 32º, 33º e 34º do quadro fáctico tido por provado, respetivamente: (i) «O telhado era composto por placas de fibrocimento já antigas, com vários anos», com referência ao segmento «já antigas, com vários anos»; (ii) «Mesmo que fossem novas, as placas poderiam não suportar o peso de um homem de normal constituição física», no seu todo; (iii) «As placas podiam ceder a qualquer momento, caso alguém fosse diretamente para cima delas», igualmente na sua integralidade.

A R. contraria tais asserções.

Invocando, desde logo, a sua extemporaneidade, na ideia de que «não é já o momento de requerer qualquer alteração à matéria de facto, sabido como é que os únicos fundamentos do recurso de revista são os plasmados no artigo 674º do NCPC, pois que manifestamente não nos encontramos – nem os recorrentes o alegam – na hipótese a que se refere o nº3 de tal preceito».

Pondo em causa, de todo o modo, que as expressões em causa não exprimam realidades fácticas ou, mesmo – numa específica referência aos pontos 33º e 34º -, «factos públicos e notórios» que não carecem, sequer, de alegação e prova.   

1.2 Na sua essencialidade, reproduz-se na discussão sob apreço a vexata quaestio matéria de facto/matéria de direito, de modo a definir se, no caso concreto, se mostra violado o princípio estruturante do nosso processo civil relativo à distinção facto/direito.

Das referências normativas quer à exposição, na petição inicial, dos «factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito», quer, na contestação, à impugnação por contradição dos «factos articulados na petição» ou pela alegação de «factos que obstem à apreciação do mérito da ação ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinem a improcedência total ou parcial do pedido» (Arts.552º/1 al. d) e 571º/2, ambos do NCPC) ou mesmo ainda, quando o mesmo legislador estipula, relativamente ao articulado superveniente, que constituem tema da prova «os factos articulados que interessem à decisão da causa» (588º/6 do NCPC), e posto que substituindo a «seleção da matéria de facto», prevista no artº 511º do CPC, na redação conferida pelo DL nº 180/96, de 25/09, pela genérica «identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova» (Artº 596º/1 NCPC), nunca deixou de estar subjacente, no processo civil, o dito princípio estruturante da distinção facto/direito.

Ali, no facto, o preenchimento da fattispecie ínsita no normativo; no direito, a subsunção daquele à mesma previsão normativa.

1.3 Sem necessidade de particulares lucubrações exegéticas, refira-se o ensinamento de Alberto dos Reis no sentido de que a prova “só pode ter por objeto factos positivos, materiais e concretos; tudo o que sejam juízos de valor, induções, conclusões, raciocínios, valorações de factos, é atividade estranha e superior à simples atividade instrutória”. ([1])

Manuel de Andrade, sem deixar de afastar o Direito – ou dizer, juízos de direito – não deixava de considerar como passível de constituir objeto de prova, «Tanto os factos do mundo exterior, como os da vida psíquica», «Tanto os factos reais (….) como os chamados factos hipotéticos (lucros cessantes; vontade hipotética ou conjetural das partes, para efeitos, v.g., de redução ou de conversão de negócios jurídicos, etc)», «Tanto os factos nus e crus (….) como os juízos de facto (….)». ([2])

Nesta mesma linha de entendimento, Lebre de Freitas refere que “na descrição corrente dos factos da vida são utilizados conceitos jurídicos vulgarizados, quer porque o envolvimento jurídico da vida social impregna a linguagem corrente de termos jurídicos, quer porque a própria norma jurídica surge por imposição de relações sociais que lhe preexistem. Por isso, é admissível a utilização pelas partes nos articulados e pelo juiz na decisão de facto, de conceitos jurídicos simples e inequívocos, correntemente utilizados na linguagem vulgar, desde que não incidam sobre o ponto dúbio do litígio.” ([3])

Ainda a este propósito, não se resiste à transcrição do ensinamento de Anselmo de Castro, na Escola de Coimbra:
«Toda a norma pressupõe uma situação da vida que se destina a reger, mas que não define senão tipicamente nos seus caracteres mais gerais.
A aplicação da norma pressupõe, assim, primeiro, a averiguação dos factos concretos, dos acontecimentos realmente ocorridos, que possam enquadrar-se na hipótese legal. Esses factos e a averiguação da sua existência ou não existência constituem, respetivamente, o facto e o juízo de factojuízo histórico dirigido apenas ao ser ou não ser do facto.
E, segundo, um juízo destinado a determinar se os factos em concreto averiguados cabem ou não efetivamente na situação querida pela norma, típica e abstratamente nela descrita pelos seus caracteres gerais – juízo este já jurídico (o chamado juízo de qualificação ou subsunção), visto pressupor necessariamente interpretação da lei, isto é, do âmbito ou alcance da previsão normativa.
Só por este seu diverso conteúdo, facto e direito, juízo de facto e de direito, se distinguem, pois não diferem em estrutura. Para o efeito é indiferente a natureza do facto: são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos. Do conteúdo que deve revestir decidirá apenas a norma legal.
Igualmente indiferente é a via de acesso ao conhecimento do facto, isto é, que a ele possa ou não chegar-se diretamente, ou somente através de regras gerais e abstratas, ou seja, por meio de juízos empíricos (as chamadas regras da experiência). Raros, aliás, são os casos em que o conhecimento do facto dispense esses juízos e possa fazer-se apenas na base de puras perceções.» ([4] )

Na linguagem do Ac. deste S.T.J., de 09.10.2003:
«A meio caminho entre os puros factos e as questões de direito situam-se os juízos de valor sobre matéria de facto, nos quais deverá distinguir-se entre aqueles para cuja formulação se há-de recorrer a simples critérios próprios do bom pai de família, do homo prudens, e aqueles cuja emissão apela essencialmente para a sensibilidade ou intuição do jurista» [Proc. 03B1816/ITIJ/Net]

Destarte, sem deixar de lembrar o assentimento jurisprudencial maioritário relativamente ao uso na fase instrutória e/ou de produção de prova de termos usados quer na linguagem jurídica quer na linguagem comum – ex.g., “emprestar”, “vender”, “prejuízo”, “dar de arrendamento” -, ([5]) não se duvida que uma testemunha possa pronunciar-se, em sede de produção de prova, em termos de formulação de um juízo de facto, dizer, em termos de formulação de um juízo sem subsunção e/ou subordinação a uma qualquer norma ou critério de direito.

1.4 Isto posto.

Nos termos do artigo 682º do NCPC,
«1. Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado.
2. A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no nº3 do artigo 674º.
3. O processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo Tribunal de Justiça entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, ou que ocorrem contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito.»

Com referência ao apontado caso excecional,
«O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.» [674º/3, NCPC]

Primo conspectu, duma leitura perfunctória dos textos transcritos – maxime, por via da referência a que «O erro (…) na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista» ([6]) - poderia parecer correta a afirmação, retirada pela R. recorrida, de que «não é já o momento de requerer qualquer alteração à matéria de facto».

É certo que, fundamentando-se numa formulação crítica sobre o quadro fáctico dado por provado na 1ª Instância e acolhido in integrum no Tribunal da Relação, os Recorrentes, que não suscitaram a este propósito qualquer questão no recurso de apelação, invocam agora – verdadeira questão nova - a violação do antedito princípio estruturante da separação factos/direito.

No Código de Processo Civil em vigor, não reza já a expressão que constava na versão dada pelo DL nº183/2000, de 10-08, no artigo 646º/4: «Têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito...»

Não obstante, tanto não se torna necessário para se entender, como se entende, que a este Supremo Tribunal de Justiça, compete, ex officio e em última instância, separar o facto do direito, suprir eventual violação do princípio da separação e definir, enfim, o direito aplicável ao facto.

Assim, desde logo, por razões intrínsecas ao texto normativo deixado transcrito, «Aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido, o Supremo Tribunal de Justiça aplica definitivamente o regime jurídico que julgue adequado».

A verificação da conformidade jusprocessual do facto, enquanto facto material a subsumir ao direito, cabe, seguramente, logo no primeiro momento do exercício do seu poder-dever de ius dicere.([7])

1.5 Na linha do pensamento que vem de ser exposto, começar-se-ia por dizer com Anselmo de Castro, que «a linha divisória entre facto e direito não tem caráter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes.» ([8])

In casu, deverão ser apagadas, como pretendem os AA., as expressões (i) «O telhado era composto por placas de fibrocimento já antigas, com vários anos», com referência ao segmento «já antigas, com vários anos», (ii) «Mesmo que fossem novas, as placas poderiam não suportar o peso de um homem de normal constituição física», no seu todo, (iii) «As placas podiam ceder a qualquer momento, caso alguém fosse diretamente para cima delas», igualmente na sua integralidade?

Não se acolhe o entendimento dos Recorrentes.

Na verdade, não estão em causa senão factos e juízos de facto relativamente aos quais, em sede de produção de prova, qualquer perito se pode pronunciar ou qualquer testemunha pode depor, socorrendo-se esta, nomeadamente, das regras da experiência comum, do saber comum, sem subsunção e/ou subordinação a uma qualquer norma ou critério de direito.

Dizer «antigas, com vários anos» não traduz mais do que uma realidade fáctica, seja por conhecimento histórico-existencial adquirido, seja por mera perceção e apelo ao saber comum de uma pessoa medianamente dotada ao nível intelectual e/ou com experiência de vida.

São coisas distintas ser uma placa de fibrocimento nova – de construção recente – ou ter já vários anos de existência. Trata-se de uma diferença sobre a qual o perito ou a testemunha, repete-se, podem emitir o correspondente juízo de facto, obviamente sem necessidade de recurso à sensibilidade ou saber normativo.

Do mesmo modo no que concerne às demais citações objectadas.

Deixou-se referido, citando Manuel de Andrade e Anselmo de Castro, que «são factos (….) tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos».

No fundo, como ajustadamente refere a R. recorrida, estão, aqui, em causa factos e/ou juízos de facto que pertencem ao saber comum.

Cuja inserção, no quadro fáctico, se compreende.

Importante era saber o circunstancialismo – e, dentro deste, conhecer o tipo de telhado – em que eram levados a cabo os trabalhos de reparação das duas caleiras. Relevante era, pois, compreender e definir de que material era constituído o telhado tendo em vista aquilatar o inerente maior ou menor risco para a segurança de quem nele fosse chamado a trabalhar.

As expressões utilizadas no acervo fáctico – mesmo com referência aos factos ditos «simplesmente hipotéticos» - não ultrapassam o juízo de facto de legítima formulação por parte de qualquer testemunha, na justa medida em que: (i) não comportam «conceitos jurídicos simples e inequívocos, correntemente utilizados na linguagem vulgar» incidentes sobre o ponto dúbio do litígio; (ii) não são subsumíveis e/ou subordináveis a uma qualquer norma ou critério de direito; (iii) não integram afirmação ou valoração de facto que se insira na análise das questões jurídicas que definem o objeto da ação.

Improcedem, destarte, as conclusões 1ª a 12ª do Recurso.

2. Inexiste razão ou fundamento para se concluir que o acidente deve ser descaraterizado?

2.1 O acidente sob apreciação na presente ação ocorreu em 25 de novembro de 2010, na vigência da Lei nº 98/2009, de 4 de setembro, (LAT/2009), que define o regime jurídico dos acidentes de trabalho e doenças profissionais e que lhe é aplicável.

O substrato normativo mais relevante a ponderar na solução do caso concreto decorre do artigo 14º do referido diploma, onde se dispõe:

                «1. O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou se o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2. Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente dificilmente entendê-la.
3. Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.»

2.2 Os Recorrentes põem em causa quer a solução adotada pelo Tribunal da Relação – que, confirmando a sentença recorrida, conferiu particular realce à vertente da negligência grosseira -, quer a solução adotada pela 1ª Instância, que em pé de igualdade com a negligência grosseira, fundamentou a descaraterização na violação, pelo trabalhador, das regras de segurança.

Na verdade, expressis verbis, no elenco das conclusões da presente Revista, os Recorrentes invocam (i) quer a carência de factos que permitam concluir que o acidente se ficou a dever a negligência grosseira e exclusiva do trabalhador/sinistrado, não havendo, por isso, razões para se concluir que o acidente deve ser descaraterizado nos termos do art.º 14º, nº1, al. b), da LAT/2009; (ii) quer a inexistência de qualquer razão ou fundamento para se concluir que o acidente deve ser descaraterizado nos termos do art.º 14º, nº1, al. a), da LAT/2009, na justa medida em que não existem dados objetivos que permitam dar como assente a hipótese prevista em tal normativo. [Supra I, 7.29, 7.30, 7.31]

No que a esta violação das regras de segurança concerne, justificam que, no caso concreto não existem quaisquer dados que deixem concluir que o trabalhador tomou a opção ou decisão de não cumprir as normas de segurança previstas na lei, como, pari passu, não se patenteiam quaisquer elementos de facto que permitam concluir que o trabalhador/sinistrado tomou qualquer opção ou decisão de não cumprir as regras de segurança previstas pelo empregador: não se evidenciando as circunstâncias concretas em que ocorreu o acidente, não pode imputar-se ao sinistrado a violação, sem causa justificativa, das condições de segurança, quer emanem estas de lei, quer do empregador.

No respeitante à negligência grosseira, os AA., infirmando-a, asseveram que «da descrição dos trabalhos a realizar pelo sinistrado, deriva que este se tinha de movimentar pelo telhado», sendo certo que «nos trabalhos sobre o telhado, constituído por placas de fibrocimento, os trabalhadores, devido à sua experiência profissional e confiança que vão ganhando na execução das tarefas laborais, habituação ao perigo próprio de tais trabalhos, tendem a movimentar-se sobre o telhado, colocando os pés sobre a parte das placas que têm imediatamente por debaixo as vigas de suporte (ou seja, colocam os pés na parte da placa que tem contacto físico com a viga de suporte), por não haver risco de estas cederem ao peso».

No caso concreto, dizem: «nada permite concluir que a movimentação do trabalhador sinistrado para o local onde ocorreu a queda não tem ligação com as funções laborais que lhe foram atribuídas. Com efeito, incumbido um trabalhador de realizar tarefas laborais, o mesmo tem sempre uma autonomia técnica de as realizar, atenta a sua competência e experiência profissional, face ao objetivo/resultado que lhe é fixado pelo empregador», autonomia que têm por patente, «pois o empregador incumbiu o trabalhador/sinistrado de realizar tarefas laborais, ficando este sozinho para as concretizar, em função do seu saber técnico e experiência».

Justificam, então, que «Ao movimentar-se sobre o telhado, constituído por placas de fibrocimento, é de considerar que o trabalhador/sinistrado o fez colocando os pés sobre a parte das placas que têm imediatamente por debaixo as vigas de suporte do telhado (isto é, colocando os pés sobre a parte da placa que tem contacto físico direto com a viga, que se encontra por debaixo), ou, pelo menos, não é de excluir essa possibilidade».

De sorte que, «O acidente pode ter acontecido por o trabalhador/sinistrado ter escorregado, ter-se desequilibrado, ter tropeçado ou ter-se desorientado espaço-temporalmente, caindo depois sobre o telhado, cedendo as placas à força do impacto da queda».

Argumentam, ainda: «desconhecendo-se as circunstâncias concretas do acidente, não pode concluir-se que o seu comportamento consubstancia negligência grosseira.»

2.3 Posição divergente vem assumida pela R. recorrida.

De uma parte, tomando por certo que a atuação do sinistrado consubstanciou a violação, por sua banda, das regras e determinações de segurança impostas por normas legais e regulamentares instituídas para evitar acidentes - mormente as consagradas nos arts. 17º, nº1, als. a) e c) da Lei nº 102/2009, de 10/09, 44º e 45º do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção civil e 11º da Portaria nº 101/96, de 3/4não só por lei  - como consubstanciou a violação do determinado pela entidade patronal, violação que esteve na génese e foi a causa exclusiva e suficiente do acidente.

Outrossim, defluindo do quadro fáctico provado que, sem qualquer interesse ou proveito para quem quer que fosse, o sinistrado afastou-se da zona em que deveria trabalhar, caminhando em sentido oposto ao da plataforma de trabalho/tábuas de rojo instaladas e ignorando em absoluto os EPIS alocados à tarefa (cinto de segurança e arnês) que não colocou nem prendeu à asna da cobertura, então o acidente resultou, em exclusivo, de um ato temerário, escusado, praticado com negligência grosseira, numa atuação altamente temerária que não pode, de modo algum, ser justificada pela habitualidade ao perigo, confiança na experiência profissional ou por resultar dos usos da profissão.

2.4 Deflui do desenho traçado relativamente às posições assumidas pelas partes na presente lide que o thema decidendum na presente instância recursiva se reconduz à caraterização/descaraterização do acidente de trabalho, seja por referência à verificação dos pressupostos da negligência grosseira, seja por referência à violação, pelo trabalhador, das regras de segurança.

2.4.1 Conjugando a atuação negligente com a violação das regras de segurança, o Tribunal da 1ª Instância pronunciou-se nos seguintes termos:
«[d]o mesmo modo que a lei impõe à entidade empregadora a obrigação de assegurar a existência no local de trabalho de meios de segurança adequados a evitar a ocorrência de acidentes por parte dos trabalhadores ao seu serviço, também sobre estes impendem as obrigações de, nomeadamente, “Cumprir as prescrições de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas nas disposições legais e em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, bem como as instruções determinadas com esse fim pelo empregador” e “Utilizar corretamente e de acordo com as instruções transmitidas pelo empregador, máquinas, aparelhos, instrumentos, substâncias perigosas e outros equipamentos e meios postos à sua disposição, designadamente os equipamentos de proteção coletiva e individual, bem como cumprir os procedimentos de trabalho estabelecidos” – cfr. art. 17º n.º 1, als. a) e c), respetivamente, da Lei n.º 102/2009, de 10/09.
Ao não se manter sobre o estrado de madeira que havia sido colocado na zona de trabalho – justamente para funcionar como plataforma de segurança, em cima da qual a reparação seria efetuada, de modo a evitar que os trabalhadores andassem diretamente em cima das telhas/placas de fibrocimento – e ao não fazer uso do cinto de segurança com arnês, ligado (ou a ligar) à asna do telhado, antes caminhando sobre as telhas, em direção ao cume do telhado, sem qualquer razão justificativa para assim proceder e sem qualquer meio de proteção individual ou coletiva apto a acautelar o perigo de queda em altura, o sinistrado agiu de forma manifestamente negligente, violando normas legais e regulamentares instituídas para evitar acidentes como o ocorrido, mormente as consagradas nos citados arts. 17º n.º 1, als. a) e c) da Lei n.º 102/2009, de 10/09, 44º e 45º do Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil e 11º da Portaria n.º 101/96, de 3/4.
Sendo legítimo supor que se o sinistrado se mantivesse em cima do estrado de madeira e tivesse usado o cinto de segurança/arnês, ligado à asna do telhado, o acidente não teria ocorrido ou, pelo menos, seriam minimizadas as consequências dele advenientes, pois mesmo que caísse, não chegaria certamente a embater no solo das instalações fabris.
Como tal, mesmo a entender-se não ter existido a tal negligência grosseira a que alude o art. 14º n.º 1 al. b), é em todo o caso de concluir que na origem do acidente esteve a violação culposa e injustificada, por parte do A., de condições de segurança impostas por lei, cujo acatamento teria evitado a sua ocorrência. Mostrando-se por conseguinte descaracterizado o acidente, pelo menos nos termos do disposto no art. 14º n.º 1 al. a).»

2.4.2 De sua vez, o Tribunal da Relação de Coimbra fundamentou a decisão tomada à luz da seguinte argumentação:
«[p]ara descaracterizar o acidente, com base na negligência grosseira do sinistrado, é preciso provar que o sinistrado atentou contra o mais elementar sentido de prudência - que a sua conduta se apresente como altamente reprovável, indesculpável e injustificada, à luz do mais elementar senso comum. Mas também é preciso provar que o acidente ocorreu exclusivamente por causa dessa negligência grosseira.
Nas alegações do recurso, concede-se que a conduta do sinistrado ao deslocar-se em cima do telhado, sem segurança, numa zona afastada do local em que deveria operar, pode considerar-se negligente pois deveria prever os perigos em que incorria.
Mas entendem os apelantes que os factos provados não são suficientes para descaracterizar o acidente de trabalho “porque não permitem compreender todas as circunstâncias que envolveram o acidente, nomeadamente o motivo da deslocação do sinistrado para o local onde se verificaria a queda e por que razão não tinha o sinistrado o arnês colocado e preso à linha de vida”. E porque não permitem determinar se a voluntariedade da sua conduta e “excluir, por exemplo, que tenha tido uma desatenção, uma doença súbita que o tenha desorientado espaço-temporalmente, etc”.
Compreendendo embora o melindre da questão e o drama dos autores, familiares do sinistrado, não podemos deixar de acompanhar a sentença recorrida, perante a factualidade demonstrada.
Provou-se (factos 32. a 34.) que o telhado era composto por placas de fibrocimento já antigas, com vários anos, e mesmo que fossem novas, as placas poderiam não suportar o peso de um homem de normal constituição física, podendo ceder a qualquer momento, caso alguém fosse diretamente para cima delas. Na normalidade da avaliação destas situações, este estado do telhado poderia ser percepcionado pelo sinistrado, tanto mais que tinha observado os procedimentos de segurança adoptados e colaborado na sua instalação, com a colocação de tábuas de rojo para servir de estrado de segurança na zona dos trabalhos a efetuar (factos 12., 17. e 29.).
Ora, tendo todas as condições de segurança para executar o trabalho que lhe tinha sido destinado pelo empregador (recorde-se que – de acordo com os factos 16. e 17. – anteriormente todo o material antes utilizado na 1ª caleira, incluindo o arnês e cinto de segurança, tinha sido deslocado para junto da 2ª caleira e o estrado de madeira já ali tinha sido já colocado) e depois de ter acedido ao telhado, junto à 2ª caleira a reparar, através da “plataforma elevatória”, o sinistrado deslocou-se em direção ao cume do telhado, a uma distância de cerca de 5 metros da 2ª caleira a reparar e em sentido contrário às tábuas de rojo, que se encontravam fixas junto à 2ª caleira a reparar, deixando o arnês – que não chegou a colocar – junto àquela 2ª caleira.
Nenhuma circunstância justificativa para tal comportamento se pode encontrar nos factos provados. A avaliação de tal conduta não pode deixar, a nosso ver, de a considerar como temerária e mesmo, na medida em que surge como desnecessária e gratuita perante os riscos de queda, como altamente temerária.
Naturalmente que, como se diz no recurso, podem suscitar-se várias hipóteses para que o sinistrado assim tenha agido, designadamente a possibilidade de doença súbita que o tenha desorientado “espaço-temporalmente”, afastando a voluntariedade da conduta ou encontrando uma justificação racional que atenuasse o juízo de negligência.
Simplesmente na apreciação ponderada das condutas humanas, cabe ao julgador a avaliação das mesmas numa perspetiva de normalidade, ancorada na experiência comum, não excluindo hipóteses explicativas que introduzam dúvidas razoáveis, mas afastando o acolhimento de hipóteses altamente especulativas, não apoiadas em indícios bastantes, que transformem as dúvidas razoáveis em dúvidas “militantes”, por sua vez altamente especulativas, dando como sempre incerto o que para o homem médio e prudente não o é.
Os factos provados ou alegados, nenhuns indícios contêm que permitam extrapolar uma explicação de “desorientação acidental” ou “doença súbita”. O sinistrado não conduzia nenhuma máquina perigosa de que pudesse perder o controlo de alguma forma, conduzia-se a si mesmo, tinha antes executado o seu trabalho com toda a normalidade também em cima do telhado, pelo que já o conhecia, acedeu ao telhado pelo meio seguro da plataforma elevatória e afastou-se do local a que assim acedeu e no qual tinha o trabalho que lhe fora expressamente destinado realizar. Na normalidade da avaliação da sua conduta, nada nos conduz a considerar que tenha perdido a consciência ou a razão que até então tinha demonstrado ter em idêntico ambiente.
De forma que temos de considerar a sua conduta como voluntária. Pelo grau de elevada temeridade, deve considerar-se injustificada à luz do senso comum, em inobservância da diligência que só um trabalhador especialmente descuidado e incauto não teria observado.
Nas circunstâncias provadas só o comportamento do sinistrado é anómalo e foi ele que determinou o acidente. Ou seja, o acidente deve considerar-se exclusivamente originado na negligência do sinistrado.»

2.5 Como decidir?

2.5.1 Numa prévia apreciação, importará referir que a enunciação, da parte dos AA., sobre o modo por que haja ocorrido o acidente em causa, cotejada com o quadro fáctico tido por provado nas instâncias recorridas, não prescinde de uma leitura crítica.

Desde logo, a ilação «nada permite concluir que a movimentação do trabalhador sinistrado para o local onde ocorreu a queda não tem ligação com as funções laborais que lhe foram atribuídas», há de, pelo mínimo, ter-se por contrariada pelo teor do facto descrito sob o nº25: «A queda ocorreu quando o sinistrado se encontrava sozinho no telhado, numa zona deste onde não era suposto estar, visto que não era local de passagem e não havia lá qualquer trabalho para executar

De igual passo, não encontra o mínimo eco no quadro fáctico estabelecido nas instâncias, a sugerida verificação de uma situação segundo a qual «nos trabalhos sobre o telhado, constituído por placas de fibrocimento, os trabalhadores, devido à sua experiência profissional e confiança que vão ganhando na execução das tarefas laborais, habituação ao perigo próprio de tais trabalhos, tendem a movimentar-se sobre o telhado, colocando os pés sobre a parte das placas que têm imediatamente por debaixo as vigas de suporte (ou seja, colocam os pés na parte da placa que tem contacto físico com a viga de suporte), por não haver risco de estas cederem ao peso».

Na verdade, da realidade adquirida e reproduzida no acervo fáctico, não ressuma qual fosse, à data do acidente, a «experiência profissional» do sinistrado, qual a eventual «habituação ao perigo próprio de tais trabalhos», ou que, na movimentação sobre o telhado, «colocasse os pés sobre a parte das placas que têm imediatamente por debaixo as vigas de suporte».

Nesta ordem de ideias, por falta de arrimo fáctico mínimo, não se podem acolher, senão como meras sugestões, as afirmações de que (i) «da análise da matéria de facto apresenta-se como possível que o acidente ocorreu por o sinistrado, quando se encontrava com os pés sobre a parte da placa que tinha diretamente por debaixo a viga em que assentava (não havendo, assim, possibilidade ou risco de a placa não suportar o seu peso, pois a parte da placa calcada estava em contacto físico direto com a viga, que suportava todo o peso), se ter desequilibrado, tropeçado ou escorregado, ou ter ocorrido perda da noção espaço-‑temporal», ou de que (ii) «de todo o modo, sempre o seu comportamento consubstancia ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão».

2.5.2 Diferentemente dos traços de sentido hipotético que ficam apontados, a factualidade comprovada dá-nos conhecimento relevante tanto do circunstancialismo que precede o acidente como do circunstancialismo em que o mesmo ocorre.

São factos relevantes na apreciação do acidente ocorrido, no circunstancialismo que o precede: (i) O trabalho a realizar pelo trabalhador FF (serralheiro civil), juntamente com o sócio-gerente da 2ª R., consistia na reparação das emendas de duas caleiras, ao nível dum telhado, onde a altura deste ao solo era de cerca de 5 metros (Supra II, 6, 9 e 30); (ii) O telhado era composto por placas de fibrocimento já antigas, com vários anos, que, caso alguém fosse diretamente para cima delas, podiam ceder a qualquer momento, sabendo a 2ª R. que a realização dos trabalhos em causa encerrava condições particulares de risco para os trabalhadores diretamente envolvidos (Supra II, 32, 34, 28); (iii) No local da reparação a realizar, o sócio gerente da 2ª R. determinou que o FF, com ele, utilizando uma plataforma elevatória, acedesse ao telhado através de uma telha retirada, para onde elevariam os equipamentos de trabalho necessários à execução da reparação (Supra II, 10, 11); (iv) Mais determinou o sócio gerente da 2ª R. que, no telhado, os dois procederiam à colocação de tábuas de rojo, de cada lado da caleira de recolha de águas pluviais a reparar, formando uma espécie de estrados em madeira, para facilitar os trabalhos de reparação e para estarem em segurança, enquanto o executavam (Supra II, 12); (v) Pelo menos antes de subirem ao telhado, de manhã, para procederem aos trabalhos de reparação da 1ª caleira, o FF e o gerente da 2ª R. estavam equipados com capacete, arnês e cinto de segurança, sendo o arnês ligado, através de uma corda ou cabo, à asna do telhado (Supra II, 14, 15); (vi) A reparação da 1ª caleira foi efetuada durante o período da manhã, antes da interrupção para o almoço, tendo o sócio gerente da 2ª R. e o FF, antes daquela interrupção, efetuado a colocação do estrado de madeira, junto à 2ª caleira a reparar, e a mudança de todo o material utilizado na 1ª caleira, incluindo o arnês e cinto de segurança, para junto da 2ª caleira, que iria ser reparada depois do almoço (Supra II, 13, 16, 17).   

Retira-se do mesmo quadro fáctico o seguinte circunstancialismo específico da ocorrência do acidente: (i) Após o período de descanso para o almoço, depois de o sócio gerente da 2ª R. lhe ter dado indicações para prosseguir o trabalho, o FF acedeu ao telhado, junto à 2ª caleira a reparar, utilizando a plataforma elevatória (Supra II, 18, 19); (ii) Uma vez no telhado, o FF, sem colocar o arnês, que deixou junto à 2ª caleira, indo em sentido contrário às tábuas de rojo, que se encontravam fixas junto à 2ª caleira a reparar, deslocou-se em direção do cume do telhado, a uma distância de cerca de 5 metros da 2ª caleira – onde a altura do telhado ao solo era de cerca de 6 metros -, zona onde, de todo o modo, não era suposto estar, visto que não era local de passagem e não havia lá qualquer trabalho para executar (Supra II, 26, 20,21, 22); (iii) Tendo, aí, partido uma telha, que cedeu, o que lhe causou a queda no solo, de uma altura de seis metros, tendo embatido com o corpo no pavimento do armazém da fábrica, sofrendo lesões traumáticas que lhe determinaram, como consequência direta e necessária, a morte. (Supra II, 23, 24, 27).  

2.5.3 Não se torna necessário um esforço de interpretação para extrair dos quadros fácticos deixados desenhados, uma atuação por parte do sinistrado FF que se mostra contrária quer às orientações práticas de segurança estabelecidas pela entidade empregadora (via sócio-gerente), quer, como se refere na decisão proferida em 1ª instância, aos ditames legais e regulamentares, mormente os consagrados no art. 17º n.º 1, als. a) e c) da Lei n.º 102/2009, de 10/09.

Na verdade, ressuma da factualidade adquirida, por um lado, o cumprimento por parte da entidade empregadora - na consideração das concretas circunstâncias de um trabalho em cima de telhado a oferecer perigo pela sua natureza e estado da sua superfície -, relativamente às exigências decorrentes quer do Regulamento de Segurança no Trabalho de Construção Civil [Decreto n.º 41 821, de 11 de Agosto de 1958] ([9]) quer do artigo 11º da Portaria nº101/96 ([10]) - assim pela utilização das tábuas de rojo, assim também pelo recurso às medidas complementares de proteção individual, in casu, pela disponibilização de capacete, arnês e cinto de segurança, sendo o arnês ligado, através de uma corda ou cabo, à asna do telhado. ([11])

Por outro lado, emerge da mesma factualidade, a inobservância, por parte do FF, das obrigações que lhe competia cumprir ([12]), na justa medida em que sem poder desconhecer a natureza frágil do telhado, que se apresentava com placas de fibrocimento, antigas, de anos (logo, frágeis), se decidiu desviar das tábuas de rojo, cerca de 5 metros, seguir na direção do cume (e, daí, com agravamento de risco, pela consequente maior distância ao solo), procedendo em tudo de modo diverso daquele por que havia agido durante a manhã, na reparação da primeira caleira. Vale dizer, sem usar o arnês, que deixou junto à 2ª caleira, o FF foi para onde era suposto não dever ir, visto a deslocação para uma zona «onde não era suposto estar», pois que «não era local de passagem e não havia lá qualquer trabalho para executar». 

Pertinente, pois, a afirmação feita na decisão da 1ª instância:
«Ao não se manter sobre o estrado de madeira que havia sido colocado na zona de trabalho – justamente para funcionar como plataforma de segurança, em cima da qual a reparação seria efectuada, de modo a evitar que os trabalhadores andassem directamente em cima das telhas/placas de fibrocimento – e ao não fazer uso do cinto de segurança com arnês, ligado (ou a ligar) à asna do telhado, antes caminhando sobre as telhas, em direcção ao cume do telhado, sem qualquer razão justificativa para assim proceder e sem qualquer meio de protecção individual ou colectiva apto a acautelar o perigo de queda em altura, o sinistrado agiu de forma manifestamente negligente, violando normas legais e regulamentares instituídas para evitar acidentes como o ocorrido

2.5.4 Será de concluir com igual sentido de descaraterização por referência à apontada negligência grosseira do sinistrado?

Para a verificação desta, repetindo o respetivo fundamento jusnormativo, exige-se a comprovação de um comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.

O Tribunal da Relação de Coimbra teve por verificado tal fundamento, com um voto de vencido.

Da mui douta fundamentação que decorre do acórdão, extraem-se os seguintes passos:
«Nenhuma circunstância justificativa para tal comportamento se pode encontrar nos factos provados. A avaliação de tal conduta não pode deixar, a nosso ver, de a considerar como temerária e mesmo, na medida em que surge como desnecessária e gratuita perante os riscos de queda, como altamente temerária
[……..]
«Os factos provados ou alegados, nenhuns indícios contêm que permitam extrapolar uma explicação de “desorientação acidental” ou “doença súbita”. O sinistrado não conduzia nenhuma máquina perigosa de que pudesse perder o controlo de alguma forma, conduzia-se a si mesmo, tinha antes executado o seu trabalho com toda a normalidade também em cima do telhado, pelo que já o conhecia, acedeu ao telhado pelo meio seguro da plataforma elevatória e afastou-se do local a que assim acedeu e no qual tinha o trabalho que lhe fora expressamente destinado realizar. Na normalidade da avaliação da sua conduta, nada nos conduz a considerar que tenha perdido a consciência ou a razão que até então tinha demonstrado ter em idêntico ambiente.
De forma que temos de considerar a sua conduta como voluntária. Pelo grau de elevada temeridade, deve considerar-se injustificada à luz do senso comum, em inobservância da diligência que só um trabalhador especialmente descuidado e incauto não teria observado.
Nas circunstâncias provadas só o comportamento do sinistrado é anómalo e foi ele que determinou o acidente. Ou seja, o acidente deve considerar-se exclusivamente originado na negligência do sinistrado

Sem prejuízo do reconhecimento da bondade de parte substancial da argumentação formulada, não se acompanha, ainda assim, a ilação retirada quanto à verificação da negligência grosseira.

O punctum saliens em que assenta a divergência tem a ver com o grau de exigibilidade - «alto e relevante» - a respeito da temeridade comportamental.

Havendo a negligência de ter-se por grosseira, não bastará, por óbvio, uma qualquer atuação negligente.

Esta Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça em número significativo de vezes tem sido chamada a pronunciar-se relativamente à enformação prática da negligência grosseira.

Sejam exemplo as seguintes transcrições:


« [p]ara que ocorra negligência grosseira, não basta a culpa leve, como negligência, imprudência, distracção, imprevidência ou comportamentos semelhantes, exigindo-se um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência.
A mera culpa ou negligência traduz-se na violação de um dever objectivo de cuidado, sendo comum distinguir os casos em que o agente prevê a produção do resultado lesivo como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação (representa um puro vício de vontade), daqueles que, por inconsideração, descuido, imperícia ou ineptidão, o agente não concebe a possibilidade do resultado lesivo se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação (representa um vício de representação e de vontade).
No primeiro caso fala-se de negligência consciente, no segundo de negligência inconsciente.
A par das apontadas modalidades de negligência, é tradicional a distinção entre negligência grave, leve e levíssima, em função da intensidade ou grau da ilicitude (a violação do cuidado objectivamente devido) e da culpa (a violação do cuidado que o agente é capaz de prestar segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais).
Neste plano de consideração, a lei acolheu a figura da negligência grosseira que corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objectivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.
Trata-se de uma negligência temerária, configurando uma omissão fortemente indesculpável das precauções ou cautelas mais elementares, que deve ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstracto, de conduta(Ac. STJ de 22.09.2011, Proc. Nº896/07.5TTVIS.C1.S1; consultável em http://www.dgsi.pt/jstj. )

«I. A negligência grosseira que a lei exige para descaracterizar o acidente de trabalho corresponde a culpa grave, pressupondo, para a sua verificação, que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.» (Ac. S.T.J. de 14.02.2007, Processo nº 06S3545; consultável em http://www.dgsi.pt/jstj.)

«II. Correspondendo a “negligência grosseira” à “culpa grave”, a sua verificação pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.
IV. A “negligência grosseira” deve ser apreciada em concreto – conferindo as condições do próprio sinistrado – e não com referência a um padrão abstracto de conduta.»  (Ac. S.T.J. de 09.06.2010, Proc. Nº 579/09.1YFLSB; consultável em http://www.dgsi.pt/jstj.)

No acolhimento do que vem de ser transcrito, entende-se, com referência ao caso sub iudicio, que, sem prejuízo da comprovada violação das regras de segurança, num grau de ilicitude que se afigura elevado, já a factualidade comprovada não consente uma ajustada ponderação quanto à representação mental e/ou medição do ato e suas consequências, por parte do trabalhador sinistrado, o que torna defesa a formulação de um juízo apodítico quanto a uma elevada reprovabilidade/indesculpabilidade e/ou elevado grau de censurabilidade ético-‑jurídica (dizer, culpa) que sobre o trabalhador haja de incidir. 

Vale dizer: se a violação do dever de cuidado deve ser apreciada e/ou medida em concreto, em face das condições da própria vítima – segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais - e não em função de um padrão geral, abstrato, de conduta, não defluindo da factualidade adquirida informação bastante a tal respeito, soçobrará na fundamentação que o deve suportar, o juízo em que se tome o comportamento em grau de culpa elevadamente temerário, altamente reprovável e/ou absolutamente indesculpável.

Por esta razão, não se acompanha a douta decisão recorrida no que tange à negligência grosseira.

2.5.5 Uma palavra, ainda, relativamente ao argumento do nexo de causalidade, aduzido pelos Recorrentes, sob a alegação do desconhecimento da razão por que o FF se deslocou pelo telhado e afastou-se cerca de 5 metros do local onde era suposto levar a cabo o trabalho de que estava incumbido, concluindo os AA., neste sentido, que «Não é possível estabelecer qualquer relação de causalidade entre o comportamento do sinistrado, mormente entre as regras de segurança e o acidente» (Supra I, 7.36).

Não se subscreve tal argumentação.

Sem prejuízo do princípio mutatis mutandis, segue-se, aqui, a fundamentação constante de Acórdão desta Secção, de 07.05.2014, onde se consignou:
«Frequentemente, pouco se sabe acerca da dinâmica dos acidentes de viação, de tal forma que, em muitos casos, apesar de ser possível afirmar a culpa de um dos intervenientes, a escassez dos factos apurados não permite asseverar que a sua conduta tenha sido a única causa do sinistro.
[………..]
Diferentes são as situações em que os factos provados proporcionam uma compreensão essencialmente completa da dinâmica do acidente.
Nalgumas destas, os factos apurados permitem concluir, absolutamente, no sentido da culpa exclusiva do condutor/sinistrado […...]
Noutro conjunto de casos, ainda que o acervo factual não permita uma leitura tão perentória, será (ainda assim) de concluir no mesmo sentido, sempre que, proporcionando os factos uma compreensão bastante da dinâmica do acidente, nada sugira, a par da conduta culposa do sinistrado, a concorrência de qualquer outra causa na produção do acidente (v.g., facto praticado por outro interveniente no acidente ou por terceiro, caso fortuito ou de força maior), ou seja, quando – à luz de critérios de credibilidade racional, razoabilidade e experiência comum – nada permita conjeturar no sentido de tal eventualidade (i.e., quando nenhum motivo concreto/objetivo a torne verosímil).
Com efeito, à semelhança do que se verifica no plano da prova, o tratamento jurídico do quadro factual apurado não pressupõe uma certeza absoluta, lógico-matemática ou apodítica relativamente à sua completude, sendo irrelevante a mera probabilidade de verificação de dimensões factuais que não tenham sido apuradas (maxime, quando as mesmas não são sequer suscitadas no processo).
Sob pena de o Direito falhar clamorosamente na sua função essencial de instrumento de paz social e de realização da justiça, a prova assenta na certeza relativa ou histórico-empírica dos factos, ou seja, noutras palavras, mas com o mesmo alcance: no alto grau de probabilidade de verificação dos factos, suficiente para as necessidades práticas da vida; no grau de certeza que as pessoas mais exigentes da vida reclamariam para dar como verificado determinado facto; na consciência de um elevado grau de probabilidade (convicção), assente no raciocínio lógico do juiz e não em meras impressões.» ([13])

No caso sob apreciação, dir-se-á também, que a par da conduta culposa do sinistrado, nada sugere a concorrência de qualquer outra causa na produção do acidente, sendo irrelevante a mera probabilidade de verificação de dimensões factuais que não foram apuradas, sequer suscitadas em sede própria. Daí, a conclusão retirada quanto à exclusividade daquela culpa.

Improcedem, destarte, as conclusões 13ª a 37ª do Recurso.

3. A terceira questão a conhecer desenhava-se nos seguintes termos: «Inexistindo fundamento para a descaraterização, é de reconhecer os direitos à reparação do acidente, a cargo da R. seguradora?»

Em face da solução conferida à questão imediatamente precedente – que manteve a descaraterização do acidente – fica prejudicado o conhecimento sobre a existência de eventuais direitos à reparação. (Artigos 608º/2, 663º/2 e 679º do NCPC)

IV DECISÃO

Face a todo o exposto, acorda-se em negar a revista e confirmar, com fundamentação diversa, a decisão recorrida.

Sem custas, que delas os Recorrentes estão isentos.

Anexa-se Sumário

Lisboa, 11 de fevereiro de 2015

 

Melo Lima (Relator)

Mário Belo Morgado

Pinto Hespanhol

______________________
[1] CPC ANOTADO, III, 212

[2] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora Lda, 1993, pág.194. [Itálico e negrito do Relator]

[3] A AÇÃO DECLARATIVA COMUM À LUZ DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2013, 3ªEdição, Coimbra Editora, pág. 195

[4] Direito Processual Civil Declaratório, Vol. III, Almedina, Coimbra – 1982; pág. 268
[5] Significativamente, a lei adjetiva civil vigente, conquanto não deixe de fazer incidir a prova sobre os factos alegados, constitutivos, modificativos, impeditivos ou extintivos do direito, refere, com sentido de arejamento, que «A instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova». (Artº 410º NCPC)

[6] No citado Ac. deste S.T.J., de 09.10.2003, diz-se: «Os juízos de valor sobre matéria de facto não devem ser incluídos na base instrutória. Mas, se algum desses juízos for aí indevidamente incluído, a resposta do tribunal ao respetivo quesito não deve ser tida por não escrita, por aplicação do disposto no artigo 646º/4 do CPC, visto não se tratar de verdadeira questão de direito.»
[7] No sentido de que o STJ é competente para distinguir a matéria de facto da matéria de direito e, consequentemente determinar se certa resposta deve ou não ser eliminada: Ac. STJ de 26.03.2008: AD, 559º - 1524 
[8] Ob. cit., pág.  270
[9] Respetivamente:
«No trabalho em cima de telhados que ofereçam perigo pela inclinação, natureza ou estado da sua superfície, ou por efeito de condições atmosféricas, tomar-se-ão medidas especiais de segurança, tais como a utilização de guarda-corpos, plataformas de trabalho, escadas de telhador e tábuas de rojo.
 § 1.º As plataformas terão a largura mínima de 0,40 m e serão suportadas com toda a segurança. As escadas de telhador e as tábuas de rojo serão fixadas solidamente.
 § 2.º Se as soluções indicadas no corpo do artigo não forem praticáveis, os operários utilizarão cintos de segurança providos de cordas que lhes permitam prender-se a um ponto resistente da construção(Artigo 44º)
«Nos telhados de fraca resistência e nos envidraçados usar-se-á das prevenções necessárias para que os trabalhos decorram sem perigo e os operários não se apoiem inadvertidamente sobre pontos frágeis.» (Artigo 45º)

[10] Artigo 11º da Portaria nº101/96, de 3 de abril.

«1 — Sempre que haja risco de quedas em altura, devem ser tomadas medidas de proteção coletiva adequadas e eficazes ou, na impossibilidade destas, de proteção individual, de acordo com a legislação aplicável, nomeadamente o Regulamento de Segurança no Trabalho da Construção Civil.

2 — Quando, por razões técnicas, as medidas de proteção coletiva forem inviáveis ou ineficazes, devem ser adotadas medidas complementares de proteção individual, de acordo com a legislação aplicável.»

[11] Asna: a armação, de madeira ou metálica, que sustenta o telhado.

[12] Artigo 17.º da Lei n.º 102/2009, de 10/09 :
«1 - Constituem obrigações do trabalhador: a) Cumprir as prescrições de segurança e de saúde no trabalho estabelecidas nas disposições legais e em instrumentos de regulamentação coletiva de trabalho, bem como as instruções determinadas com esse fim pelo empregador; b) Zelar pela sua segurança e pela sua saúde, bem como pela segurança e pela saúde das outras pessoas que possam ser afetadas pelas suas ações ou omissões no trabalho, sobretudo quando exerça funções de chefia ou coordenação, em relação aos serviços sob o seu enquadramento hierárquico e técnico; c) Utilizar corretamente e de acordo com as instruções transmitidas pelo empregador, máquinas, aparelhos, instrumentos, substâncias perigosas e outros equipamentos e meios postos à sua disposição, designadamente os equipamentos de proteção coletiva e individual, bem como cumprir os procedimentos de trabalho.» 
[13] Proc. 39/12.3T4AGD.C1.S1; http://www.dgsi.pt/