Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
32/13.9JDLSB.E1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: CONCURSO APARENTE
CONCURSO DE NORMAS
CONCURSO EFETIVO
HOMICÍDIO
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
MEDIDA DA PENA
CONCURSO DE CRIMES
Data do Acordão: 10/30/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO.
Doutrina: - Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 20072
- Figueiredo Dias, Unidade e pluralidade de crimes «où sont les neiges dántan?», Ars Ivdicandi — Estudos em homenagem ao Professor Doutor António Castanheira Neves, Coimbra, Coimbra Editora, vol. III, 2008
- Roxin, Claus, As restrições ético-sociais ao direito de legítima defesa, Problemas fundamentais de direito penal, Lisboa: Vega, 1986, p. 197 e ss
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português — As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa: Aequitas/Ed. Notícias, 1993
- Helena Moniz, Falsificação de documentos e burla: unidade ou pluralidade de sentidos autónomos de ilicitude?, RPCC, 2011 (n.º 2), p. 325 e ss.
- Artur Vargues, Comentário das Leis Penas Extravagantes, vol. I, org. Paulo Pinto de Albuquerque/José Branco, Lisboa: UCP, 2010
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ, DE 31 DE MARÇO DE 2011, NO PROCESSO N.º 361/10.3GBLLE
- ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/95, DE 7 DE JUNHO (DR, I SÉRIE-A, DE 06.07.1995
- PROCESSO N.º 361/10.3GBLLE, RELATOR MANUEL BRAZ, CONSULTÁVEL AQUI HTTP://WWW.DGSI.PT/JSTJ.NSF/954F0CE6AD9DD8B980256B5F003FA814/77DE29905C952C5680257868004EE9E5?OPENDOCUMENT
- ACÓRDÃO STJ, DE 31 DE MARÇO DE 2011, NO PROCESSO N.º 361/10.3GBLLE
Sumário :

I — Nestes autos apenas poderemos proceder à análise da qualificação jurídica na parte respeitante ao concurso de crimes entre o crime de detenção de arma proibida e o crime de homicídio agravado pelo uso de arma, pois quanto à imputação do crime de detenção de arma proibida e sua punição o acórdão já transitou em julgado.
II — No sentido da admissibilidade do conhecimento oficioso no respeitante à qualificação jurídica já se pronunciou este tribunal em acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/95, de 7 de junho (DR, I série-A, de 06.07.1995, p. 4298).
III — No caso dos autos o recorrente foi condenado por crime de homicídio, nos termos do art. 131.º, do CP — e, tanto integra este crime aquele que realiza condutas lesivas da vida através de arma de fogo, ou de qualquer outra arma ou meio, e quer se trate de arma legalizada ou não, arma permitida ou proibida.
IV — Mesmo aquele que aquando da prática do crime utilize arma (aparente ou oculta) ainda que detenha autorização para a sua detenção e utilização, ainda assim a pena do crime que tiver cometido é agravada, se o porte ou uso da arma não for elemento do tipo de crime que tiver praticado.
O legislador quis, com a agravação prevista naquele art. 86.º, n.º 3, citado, afirmar que há uma ilicitude agravada aquando da prática de um qualquer crime em que se utilize uma arma (no sentido abrangido pela Lei n.º 5/2006 — cf. art. 2.º, n.º 1).
V — Figueiredo Dias começa por estabelecer uma distinção, diríamos radical, entre aquilo que designa como unidade de normas ou de leis e concurso de crimes. Abandonando os critérios baseados na unidade e pluralidade de tipos de crimes violados e o de unidade e pluralidade de acções praticadas pelo agente, como critérios possíveis de distinção entre a unidade e pluralidade de crimes, avança com um novo critério — o critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude jurídico-penal do comportamento global. A unidade ou pluralidade não será mais uma unidade ou pluralidade de crimes, mas de factos puníveis.
VI — Assim se deverá distinguir entre os casos do concurso efectivo, próprio ou puro (previsto no art. 30.º, n.º 1 do CP) — recondutível a “uma pluralidade sentidos sociais autónomos dos ilícitos-típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis” (Figueiredo Dias) — e os casos de concurso aparente, impuro ou impróprio (também integrado no âmbito do art. 30.º, n.º 1 do CP) — caracterizado pelo facto de o comportamento ser “dominado por um único sentido autónomo de ilicitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados” (Figueiredo Dias).
VII — Fazem, pois, parte do âmbito do concurso de crimes o concurso efectivo, caracterizado por uma “pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global”, revelando o comportamento uma “pluralidade de sentidos sociais de ilicitude que, segundo o mandamento da esgotante apreciação contido na proibição jurídico-constitucional da dupla valoração, devem ser integralmente valorados para efeito de punição” (Figueiredo Dias). Estes casos serão punidos segundo o regime previsto no art. 77.º do CP.
VIII — Coisa diferente ocorre no então designado “concurso aparente” em que, apesar de se entender que ao comportamento se aplica uma pluralidade de normas típicas, apesar disto aquela presunção de pluralidade de sentidos do ilícito autónomos é elidida, “porque os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem, de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social” (Figueiredo Dias).
IX — A unidade de sentido de ilicitude autónoma é dada pelo facto de, apesar de o comportamento integrar diversos tipos, haver no comportamento global um sentido de ilicitude dominante e fundamental. A determinação do sentido de ilicitude absolutamente dominante é aferida segundo diversos critérios — o critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito global-final, o critério do crime instrumental ou crime-meio, o critério da unidade de desígnio criminoso, o critério da conexão espacio-temporal das realizações típicas, e o critério dos diferentes estádios de evolução ou de intensidade da realização global.
X — Ou seja, o concurso aparente em Figueiredo Dias é um concurso de ilícitos que em função da situação concreta se podem sobrepor (total ou parcialmente) ou não. Diferentemente daquilo que era entendido como concurso aparente em Eduardo Correia, que consistia, na verdade, num concurso de normas, pelo que a simples análise abstrata dos tipos legais de crime em conflito nos permitia chegar a uma conclusão, independentemente das concretas circunstâncias do caso.
XI — Da matéria de facto provada não podemos concluir que o recorrente, para atingir o seu objetivo, previamente delineado, tenha decidido deter e transportar a arma proibida, ou que possamos concluir que a detenção da arma proibida constituía apenas o meio de que se estava a servir para praticar o crime que veio a consumar, ou que se possa englobar no desígnio de cometer o homicídio a detenção de arma proibida.
XII — Consideramos que o crime de detenção de arma proibida praticado pelo recorrente não está em concurso aparente com o crime de homicídio simples.
XIII — O arguido não foi punido pelo crime de homicídio simples, mas pelo crime de homicídio agravado pelo uso de arma, ao abrigo do art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006. E também aqui não se pode concluir pela inadmissibilidade do concurso de crimes. Trata-se da punição de condutas distintas — enquanto que a agravação prevista no art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, pune de forma mais grave uma conduta com uma maior ilicitude sempre que o agente usa na prática do crime uma arma, independentemente de a arma ser proibida ou não, ser legal ou não; no crime de detenção de arma proibida são punidos todos aqueles que detém arma fora das condições legais e independentemente de a arma ser ou não usada na prática do crime.
XIV — O crime praticado atendendo ao bem jurídico lesado, a vida, e à forma como foi praticado – a curta distância da vítima e com diversos tiros, após ter sofrido agressões físicas sem qualquer reação, a demonstrar algum controlo que não usou aquando empunhou a arma e disparou — aumentam consideravelmente as exigências de prevenção geral positiva ou de proteção de bens jurídicos. As suas características pessoais demonstram uma menor exigência em termos de prevenção especial, o que permite justificar que a pena concreta esteja longe do máximo da moldura abstrata (que é de 21 anos e 4 meses). Assim, tendo em conta as condições pessoais do agente e o seu comportamento no seio onde está inserido a pena concreta deverá aproximar-se do mínimo necessário à proteção dos bens jurídicos.
XV — Analisando globalmente os factos, as fortes exigências de prevenção geral e as mais modestas exigências de prevenção geral, e não esquecendo o percurso criminal do arguido, mas ainda a indiciar uma pluriocasionalidade, e sem conseguirmos dizer que o crime de atentado contra o bem jurídico mais valioso constitua uma característica da sua personalidade, e sem que se possa concluir por uma propensão para a prática destes crimes; porém, o modo de execução e os meios excessivos empregados impõem-nos que seja estabelecida uma pena ligeiramente acima do mínimo da moldura.







Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:


I

Relatório


1. Nos presentes autos de processo comum, com intervenção do tribunal coletivo, mediante acórdão de 07.11.2013, proferido pelo Tribunal Judicial da Camarca de Nisa, foi condenado, como autor (material) o arguido AA, pela prática de

- um crime de homicídio simples, previsto e punido pelo art. 131.º, do Código Penal (CP), e agravado por força do art. 86.º, n.º 1, al. c) e n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro Com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 59/2007, de 4 de setembro, n.º 17/2009, de 6 de maio, n.º 26/2010, de 30 de agosto, n.º 12/2001, de 27 de abril e n.º 50/2013, de 24 de julho., na pena de prisão de 15 (quinze) anos e 6 (seis) meses, e

- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido no art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, na pena de 18 (dezoito) meses de prisão.

- em cúmulo jurídico, na pena única conjunta de 16 (dezasseis) anos e 3 (três) meses de prisão.

2. Inconformado com a decisão proferida, o arguido interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora que, a 22.07.2014, decidiu “negar provimento ao recurso, mantendo, na íntegra, a decisão recorrida”.

3. É desta última decisão que agora o arguido vem recorrer para este Supremo Tribunal (ao abrigo dos arts. 432.º, do Código de Processo Penal (CPP), apresentando as seguintes conclusões:

«1. O douto acórdão recorrido fez errada aplicação do direito ao autonomizar o crime de detenção de arma proibida p.p.pelo artigo 86°, número 1, alínea c) da Lei 5/2006, 23 Fev. em conjugação com a circunstância agravante do número 3 do mesmo preceito;

2. A utilização de arma ilegal constituindo circunstância agravante por força do número 3 do citado precito não pode dar lugar à condenação por novo crime (detenção de arma ilegal) p.p.Artigo 86°, n° 1 Lei 5/2003, 23 Fev. porquanto não se trata de um concurso efectivo de crimes, mas outrossim de um concurso aparente ( homicídio e detenção de arma ilegal);

3. Pelo que o Arguido deve ser absolvido do crime de detenção de arma proibida p.p.artigo 86°, n° 1 alínea c) que o condenou na pena de 18 meses de prisão;

4. A pena aplicada de 15 (quinze anos) e 6 (seis) meses de prisão é excessiva e desproporcional face à matéria de facto efectivamente dada como provada em sede de audiência de discussão e julgamento e à moldura penal concretamente aplicável, em violação do disposto no Artigo 18° da C.R.P.;

5. A pena aplicada ao Arguido pela prática do crime de homicídio desconsidera factores favoráveis como sejam, a boa inserção do Arguido, a conduta e comportamento ao logo do processo, a ausência de intenção de matar e o pedido de desculpas formulado à família da vitima, para ao invés dar especial relevância, com prejuízo para o Arguido, os antecedentes criminais registados, o recurso a arma de fogo e à necessidade de prevenção geral sentida no seio da comunidade;

6. Pelo que o douto acórdão deve ser, nesta parte, revogado e substituído por outro que tenha em devida conta as circunstâncias atenuantes supra referidas em conformidade com o disposto nos Artigos 71° e 40° número 2 do C.P., alterando-se necessária e consequentemente a medida da pena aplicada, aproximando-a do limite mínimo (agravado de 1/3) face à moldura penal concretamente aplicável, em conformidade com o principio da proporcionalidade p.p. Artigo 18°C.R.P.

Termos em que e nos mais de Direito que V. Ex.as. muito doutamente suprirão, face ao exposto, deve o douto acórdão, ora Recorrido ser revogado, absolvendo-se consequentemente o Recorrente da pratica do crime de detenção de arma proibida p.p. pelo Artigo 86º, n° 1 alínea c) da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 18 meses de prisão; Mais deve a medida concreta da pena aplicada ao arguido pela prática de um crime de homicídio p.p. Artigo 131º do Código Penal, agravada por força do disposto no n° 3 do Artigo 86° da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro, ser revogada e substituída por outra que sanando os vícios identificados e aproximando-se dos limites mínimos concretamente aplicáveis se mostre justa e adequada, assim fazendo V.Exas. a devida e esperada

Justiça!»

3. A Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação de Évora apresentou resposta ao recurso interposto pelo arguido, tendo formulado as seguintes conclusões:

«1.º - Douto Acórdão deste Tribunal da Relação de Évora de 22 de Abril de 2014 decidiu negar provimento ao recurso interposto pelo arguido

2.º - Deste Acórdão o Recorrente/Arguido novamente interpôs Recursos, desta feita para esse Alto Supremo Tribunal de Justiça, sendo o mesmo admitido.

3.º - Entende o Recorrente que não devia autonomizar-se o crime de detenção de arma proibida p.p. pelo artigo 86°, número 1, alínea c) da Lei 5/2006, 23 Fev. em conjugação com a circunstância agravante do número 3 do mesmo preceito, porém,

4.º - Nos crimes cometidos com arma de fogo, a circunstância modificativa agravante prevista no n° 3 do art° 86° da Lei n° 5/2006 de 23/02 (com as alterações da Lei 17/2009, de 6.05) opera ope legis, agravando de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr a agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.

5.º - Atendendo ao n° 4 do mesmo preceito, esta agravação ocorre, quer o agente seja ou não punido pelo crime de detenção de arma proibida, pelo que

6.º - No caso vertente, o arguido foi bem condenado pela prática de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131° do Código Penal, agravado por força do disposto no artigo 86°, n° 1, ai c) e n° 3 da Lei n° 5/2006, de 23/02, na redação que lhe foi conferida pela Lei n° 12/2011, de 27/04, em concurso efectivo com um crime de detenção de arma proibida, artigo 86°, n° 1, al. c) e n° 3 da Lei n° 5/2006, de 23/02, na redação que lhe foi conferida pela Lei n° 12/2011, de 27/04.

7.º - Considerando os factos provados, não podemos deixar de concluir: Nenhuma censura nos merece, pois, a pena aplicada pelo crime de homicídio.

8.º - O douto Acórdão recorrido não merece censura, pelo que deve ser confirmado uma vez que não desrespeitou qualquer preceito legal.»

4. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, a Senhora Procuradora-Geral-Adjunta, usando a faculdade prevista no n.º 1 do art. 416.º do CPP, colocou o visto acompanhado do seguinte “nada a acrescentar ao entendimento expresso pelo Ministério Público a fls. 659 e ss”.

5. Notificado, o arguido nada disse.

6. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.


II

Fundamentação


A. Matéria de facto provada:

1. Matéria de facto dada como provada:

1-No dia 15 de Janeiro de 2013, cerca das 19h30, o arguido AA dirigia-se à residência da sua avó, sita na rua ..., em ...., quando, no cruzamento desta rua com a rua ...., se cruzou com BB que então vivia em comunhão de cama, mesa e habitação com CC, na dita rua de....

2- O arguido e CC mantiveram uma relação de namoro há dois anos, na sequência da qual nasceu em 22 de dezembro de 2011, DD, tendo a paternidade relativamente à menor sido averbada no seu assento de nascimento em 26 de abril do corrente ano de 2013.

3- No momento em que o arguido se cruzou com BB, iniciaram uma discussão, de conteúdo que não logrou ser totalmente apurado, mas em cujo decurso foi aflorada a questão da paternidade de DD.

4- No decurso da discussão, BB agrediu fisicamente o ora arguido, empurrando-o e desferindo-lhe murros sobre o seu corpo, nomeadamente, na zona da face.

5- Então, o arguido, quando se encontrava entre 1 a 2m de BB, empunhou uma pistola de calibre 6.35mm, com as inscrições “STAR trade mark” “B.Echeverria – Eibar – España – 712764”, classe B1, propriedade de EE, e efetuou sete disparos na direção daquele, atingindo-o, com quatro projéteis, na região cervical lateral à esquerda, na face lateral da região terço média da coxa esquerda, na face posterior junto ao joelho direito e na região glútea do lado direito, após o que abandonou o local.

6- Como consequência direta e necessária da conduta do arguido, veio BB a falecer pelas 21h45 no Hospital ...., em..., para onde foi transportado em virtude dos ferimentos sofridos.

7- A morte do referido BB deveu-se a traumatismo cervical por arma de fogo provocado por um dos projéteis da arma disparada pelo arguido, e que em concreto foi disparado da esquerda para a direita e com uma ligeira inclinação de cima para baixo, que penetrou a face lateral esquerda do pescoço, atravessou os tecidos moles imediatamente atrás da parede torácica e perfurou a porção inicial da traqueia imediatamente abaixo da epiglote com consequente entrada de sangue para a árvore respiratória, vindo a alojar-se nos músculos peitorais direitos.

8- O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a BB, tendo perfeito conhecimento e consciência de que ao disparar uma arma de fogo à sobredita distância e direcionada às zonas do corpo atingidas, nomeadamente ao pescoço - que aloja vasos sanguíneos essenciais à vida – conseguia alcançar tal objetivo.

9- Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, tinha o arguido na sua posse, além da acima aludida arma de fogo, dezassete munições de calibre 6.35mm.

10- O arguido tinha na sua posse a arma e as munições acima referidas sem que para tal estivesse autorizado, não se coibindo de as manter na sua posse mesmo sabendo que tal não lhe era permitido por lei.

11- O arguido agiu em todas as circunstâncias descritas sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

12- O arguido prestou serviço militar, onde aprendeu a manusear armas de fogo,

13- AA nasceu em ... e é o segundo de três filhos de um casal de progenitores de condição socioeconómica e cultural favorável. Os pais sempre desenvolveram atividades profissionais estáveis e regulares; o pai após ter sido professor, transitou para chefe de serviços de administração escolar em ...; a mãe é empregada de escritório na Santa Casa da Misericórdia, na mesma localidade. O pai presentemente já se encontra aposentado, sendo doente oncológico.

14- O processo de socialização de AA ocorre em família aparentemente estruturada, organizada tradicionalmente e integrada socialmente, mas com um relacionamento intrafamiliar ocasionalmente conflituoso, devido ao excessivo consumo de bebidas alcoólicas por parte do progenitor, que sofria de stress pós traumático de guerra.

15- O arguido iniciou a frequência escolar na idade adequada e após uma retenção, concluiu o 9º ano com quinze anos.

16- Seguidamente ingressou no ensino técnico profissional numa escola em ..., que lhe iria conceder a equivalência ao 12º ano de escolaridade, que não concluiu e abandonou. Na altura, vivenciou um período sem regras e sem controlo tendo ocorrido o nascimento do seu primeiro filho.

17- Após cumprimento do serviço militar, constituiu relação em união de facto com a companheira e foi viver para ... tendo iniciado atividade laboral como armador de ferro numa empresa de construção civil e obras públicas.

18- A relação desestruturou-se e o arguido regressou ao agregado de origem.

19- Seguidamente veio a concluir um curso de formação profissional de eletricista no Instituto de Emprego e Formação Profissional de ..., que lhe permitiu ingressar novamente no mercado de trabalho na zona de Lisboa. Nesta localidade estabeleceu uma nova relação em união de facto durante nove anos e da qual possui uma filha. Esta relação terminou devido à toxicodependência do arguido.

20- AA manteve posteriormente outros relacionamentos afetivos pouco estáveis, tendencialmente funcionais e ligados ao submundo da droga.

21- O seu percurso laboral caracteriza-se por alguma regularidade, embora sem consistência, tendo ainda passado por uma experiência de atividade por conta própria com a companheira, quando regressaram a ... com a filha.

22- AA iniciou o consumo de estupefacientes precocemente (16 anos), com "haxixe", vindo a efetuar uma escalada no consumo deste tipo de substâncias, passando mais tarde a consumir heroína e cocaína, que causaram alguma dependência e alterações significativas no seu percurso de vida. Desde 2009 que é acompanhado pelo antigo CRI de ..., mas com deficiente adesão ao tratamento, onde lhe era administrada terapêutica de substituição (metadona). Ainda ingressou numa comunidade terapêutica em Abrantes, que veio a abandonar.

23- É portador do HIV mas está clinicamente controlado.

24- À data dos factos em discussão, AA encontrava-se num processo de desorganização pessoal.

25- Residia com uma companheira (...) em ..., numa habitação arrendada. Possuía uma situação económica precária, apoiado economicamente pelos progenitores e recebendo ambos apoio logístico do Centro de Acolhimento dos Sem Abrigo de ....

26- Estava desempregado e inserido no Programa do Rendimento Social de Inserção com um subsídio de € 189,00. Tanto o arguido como a companheira estavam a frequentar um Curso de Formação Profissional em ....

27- Aquando da prisão o arguido já tinha regressado novamente ao agregado de origem, onde se refugiou durante dois ou três dias.

28- Os progenitores estão bem integrados socialmente e vivem em casa própria localizada no perímetro urbano da vila de ..., com boas condições de habitabilidade e conforto. Possuem uma situação económica estável e suficiente para responder às necessidades.

29- AA revela algumas competências pessoais, nomeadamente, capacidade empática, com reconhecimento do outro, valorizando a aceitação social e a construção de uma imagem social positiva, que no entanto, se encontram limitadas pela sua toxicodependência. Mostra-se capaz para definir um projeto de vida e de estruturar objetivos.

30- Em termos de rotinas ou ocupação de tempos livres não lhe são conhecidas tarefas estruturadas.

31- AA está a ser acompanhado pelo antigo CRI de ....

32- No meio comunitário de origem, apesar de conotado como toxicodependente e com o grupo de pares com idêntica problemática, possui uma imagem social que não lhe é desfavorável, sendo avaliado como um indivíduo educado, afável e disponível.

33- No decurso da prisão preventiva, AA tem tido conduta adequada, respeitando as normas institucionais e recebe regularmente visitas dos familiares.

34- Está ocupado em atividades (ginástica) e disponível para ações de valorização pessoal.

35- O arguido tem antecedentes criminais:

- No processo nº 75/01.5TBNIS, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., por decisão proferida em 10 de janeiro de 2002, transitada em julgado em 25 de Janeiro de 2002, foi condenado por um crime de desobediência, p. e p. pelo art. 348º, do Código Penal, praticado em 15 de agosto de 2000, na pena de 85 dias de multa, à taxa diária de € 4,99, já extinta por cumprimento.

- No processo nº 14/04.1GBNIS, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., por decisão proferida em 3 de novembro de 2005, transitada em julgado em 18 de novembro de 2005, foi condenado por um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo art. 143º, nº 1, do Código Penal, praticado em 23 de Março de 2004, na pena de 110 dias de multa, à taxa diária de € 3,00, posteriormente convertida em 73 dias de prisão subsidiária, já extinta por cumprimento.

- No processo nº 11/11.0GBBNIS, do Tribunal Judicial da Comarca de ...., por decisão proferida em 12 de maio de 2011, transitada em julgado em 13 de junho de 2011, foi condenado por um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º, nº 1, do Código Penal, praticado em 2 de maio de 2011, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de € 5,00 e na pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados, pelo período de 3 meses e 15 dias, tendo a pena principal sido substituída por 90 horas de trabalho e encontrando-se já extinta.

- No processo nº 175/09.3GCFVN, do Tribunal Judicial da Comarca de ..., por decisão proferida em 25 de novembro de 2011, transitada em julgado em 2 de fevereiro de 2012, foi condenado por um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº 1 e 204º, nº 2, al. e), do Código Penal, praticado em 9 de setembro de 2009, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa por idêntico período de tempo, com regime de prova. »

2. Matéria de facto dada como não provada:

«A) Que no dia 15 de Janeiro de 2013, cerca das 19h30, o arguido AA se dirigisse à residência de CC.

B) Que tenha sido o arguido a iniciar a discussão mencionada em 3).

C) Que depois dos acontecimentos descritos em 5), o arguido tenha apontado a arma à cabeça do dito BB e que só não tenha disparado por ter sido impedido por FF.

D) Que o arguido tenha logrado matar BB, apenas motivado pela dúvida sobre quem era o verdadeiro progenitor da menor DD.

E) Que o arguido tenha praticado caça desportiva com o seu progenitor.»

3. A motivação da decisão de facto foi a seguinte:

«O tribunal fundou a sua convicção com base na análise crítica e conjugada da prova produzida e/ou analisada em audiência e julgamento, nos termos que de seguida se concretizam.

O arguido confessou que manteve uma relação de namoro com CC, a qual situou no tempo, tendo reconhecido que a questão da paternidade da filha de ambos (DD) só foi apurada em consequência de perícia biológica, porquanto, como afirmou, teve dúvidas em relação à paternidade, motivadas pelo comportamento da dita CC – envolvimento desta com outros indivíduos do sexo masculino.

A paternidade de DD foi averbada no seu assento de nascimento já depois da ocorrência dos factos em discussão, conforme decorre do documento de fls. 322-324, assim tendo resultado como provada a factualidade descrita na segunda parte do ponto nº 2.

O arguido confessou, ainda, que sabia que CC residia na rua de ... e que vivia então com outro indivíduo, que declarou não conhecer pessoalmente.

AA e CC reconheceram ter-se encontrado duas vezes após a cessação da sua relação de namoro, nomeadamente, quando CC o procurou para lhe dar a conhecer a criança, encontros que segundo um e outro, não ocorreram na casa de CC, local aonde o arguido, a crer nas suas declarações e também nas de CC, nunca se deslocou, pelo menos após a cessação do namoro.

Nenhuma das testemunhas inquiridas e nomeadamente, as que residiam próximo de CC - FF e GG -, presenciaram qualquer deslocação do arguido a casa de CC em data anterior aos factos.

Não foi trazida à discussão qualquer situação suscetível de evidenciar uma razão para o arguido, na data em discussão, procurar CC na sua residência. O arguido negou a intenção de ali se deslocar, justificando a sua presença no local mencionado em 1), com a visita que se preparava para fazer à avó, que também residia na rua de ..., facto este (residência da avó do arguido), confirmado pelas testemunhas CC, FF e GG. Estas testemunhas, e também HH, revelaram, por seu turno, desconhecer o motivo pelo qual o arguido se encontrava no circunstancialismo de tempo mencionado em 1), no cruzamento das ruas ali identificadas. Deste modo, perante a prova produzida e na ausência de elementos indiciários que analisados à luz das regras da experiência nos permitissem concluir, com a necessária segurança, que o arguido pretendia dirigir-se à casa de CC, resultou como não provada a factualidade descrita sob a alínea, A), ficando, no entanto, demonstrado, tendo em consideração as declarações espontâneas do arguido, que este, na data da ocorrência dos factos se encontrava no cruzamento das referidas artérias porque se dirigia a casa da avó, com o fim de a visitar Este facto foi trazido à discussão pela própria defesa, motivo pelo qual não é necessário acionar o mecanismo a que se reporta o nº 1, do art. 358º, do Código de Processo Penal (cf. nº 2 do mesmo preceito legal)..

O arguido declarou, ainda, que no local mencionado na acusação se cruzou com o HH, que cumprimentou e com quem permaneceu algum tempo a falar, facto este confirmado pela testemunha HH , cujo depoimento, espontâneo, desinteressado e manifestamente isento, mereceu a credibilidade do tribunal.

Esta testemunha referiu, ainda, que enquanto falava com o arguido, apareceu junto deles o BB, que se dirigiu àquele, dizendo que queria falar com ele, após o que entraram em conversação um com o outro, em tom de discussão (elevavam frequentemente a voz enquanto falavam, denotando estarem “picados”), não tendo a testemunha logrado perceber o motivo da discussão que travaram (afastaram-se então ligeiramente de si).

Este testemunho retirou credibilidade às declarações do arguido, quando afirmou que foi agredido por BB, com murros e pontapés, logo que ele se abeirou de si.

Por seu turno, ponderando ainda o mesmo testemunho de HH e porque nenhuma das outras testemunhas inquiridas presenciou o início da discussão, também não ficou demonstrado que tenha sido o ora arguido a iniciá-la, como vinha descrito no despacho acusatório.

As testemunhas FF, CC e GG, que morando perto do local onde se encontravam o arguido e BB e que tendo ouvido barulho e gritos acudiram ao local, também confirmaram que um e outro discutiam. FF e GG disseram não se ter apercebido do teor exato e global da discussão, mas CC esclareceu que no decurso da mesma fizeram alusão à menor DD, tendo o arguido então dito que a mesma era sua filha.

A prova produzida não logrou, assim, revelar o teor da discussão travada entre o arguido e a vítima, na sua plenitude. No entanto, apoiados nas declarações de CC e tendo presente que à data se mostrava controvertida a questão da paternidade da menor DD, assunto de inegável interesse quer para o arguido, quer para BB, dúvidas não temos que um e outro discutiram sobre tal questão, muito embora não se possa afirmar que esse tenha sido o único ponto da discórdia que conduziu ao envolvimento entre ambos.

Ao longo da produção de prova em audiência discutiu-se, inclusivamente, como foi possível surgir este envolvimento do arguido com BB quando, aparentemente, não se conheciam pessoalmente. Efetivamente, e como já dissemos, o arguido declarou que não conhecia o BB. Por seu turno, CC declarou que em sua convicção, o seu companheiro – BB – também não conhecia o arguido e as testemunhas inquiridas em audiência revelaram não ter qualquer conhecimento sobre esta situação, ou seja, revelaram não estar na posse de quaisquer elementos que lhes permitissem afirmar que o arguido e a vítima se conheciam pessoalmente.

Não obstante, apoiados nas declarações de CC e do próprio arguido, e analisando-as à luz das regras da experiência da vida, dúvidas não existem que BB e o arguido sabiam da existência um do outro. Acresce que o arguido, e como declarou em audiência, tinha vindo passar uns dias a casa dos pais em Nisa, não sendo despiciendo considerar que BB tenha tido conhecimento dessa situação, considerando as caraterísticas da localidade de ... (vila de densidade populacional não muito elevada), onde o arguido é conhecido – assim como a sua família (como decorre do relatório social e como foi confirmado pela inquirição das testemunhas de acusação) - e que deparando-se com alguém com quem não se cruzava habitualmente na sua zona de residência tenha não só suspeitado tratar-se do arguido (sabia inclusivamente que a avó dele residia na rua ...), como também, que o mesmo se encontrasse no local por causa da sua companheira CC (considerando o diferendo que opunha um e outro relativamente à menor DD). Esta nossa convicção, quanto ao conhecimento que BB tinha quanto à presença do arguido em ... é sustentada, inclusivamente, pelo testemunho de II, amigo do arguido e que declarou que o BB o abordou no próprio dia dos acontecimentos, perguntando-lhe se conhecia o AA, porque lhe queria dar umas facadas, tendo a testemunha declarado, inclusivamente, ter avisado o ora arguido sobre o teor desta conversação.

Perante o exposto, e não obstante não se poder afirmar que a vítima e o arguido se conhecessem pessoalmente, compreende-se que no circunstancialismo referenciado suspeitassem das respetivas identidades, assim se compreendendo a sequência dos respetivos comportamentos.

Como decorre do que já se deixou dito, não ficou demonstrado que o arguido tenha sido agredido por BB no exato momento em que foi por ele abordado. No entanto, provou-se que BB empurrou o arguido e desferiu-lhe socos sobre o seu corpo, nomeadamente na zona da cara, porquanto estes acontecimentos foram presenciados pelas testemunhas FF, GG e HH , que os relataram em audiência, com objetividade e espontaneidade, de forma a não suscitar qualquer dúvida ao tribunal sobre a sua veracidade.

O arguido disse, ainda, que enquanto estava a ser agredido por BB, apareceu a testemunha FF que dirigindo-se àquele e visando-o a si, arguido, disse “mata esse tipo”, após o que BB, com a mão esquerda, tirou do bolso uma faca, com a qual lhe desferiu um golpe na cara.

A dita intervenção de FF – no sentido do alegado incentivo à violência contra o arguido - não foi confirmada por qualquer das testemunhas presentes no local, nomeadamente por HH , sendo que o testemunho de GG, que além de espontâneo foi notoriamente desinteressado, corroborou o depoimento de FF e de CC, quanto à natureza da intervenção daquele no desenrolar dos acontecimentos: GG e CC referiram que o mesmo procurou intervir junto do arguido e da vítima, visando por cobro à briga que se desenvolvia entre eles. A credibilidade que nos mereceram estes testemunhos, surge reforçada pela ausência de motivo para que FF tivesse assumido o comportamento concretamente descrito pelo arguido, porquanto e pese embora viva maritalmente com uma tia da CC, resultou do seu depoimento que não existe entre eles uma relação de grande proximidade e afinidade.

As referidas testemunhas – FF, JJ, GG e HH – foram perentórias ao afirmar que não viram qualquer faca nas mãos de BB, sendo que todos eles e principalmente FF e GG estiveram muito próximos dum e doutro. O arguido disse, inclusivamente, que a GG se aproximou do BB depois deste o ter agredido e num momento em que ele, arguido, já sangrava da face, procurando incentivá-lo (ao BB), a cessar a agressão, o que foi confirmado por aquela testemunha.

Após o cometimento dos factos a que infra nos reportaremos, foi encontrada no local, no chão da rua, uma navalha, que se encontrava fechada – cf. fls. 162 -.

Em audiência não se apurou qualquer facto ou elemento suscetível de indiciar, sequer, que após a verificação dos acontecimentos, alguém se tivesse aproximado dela e a tivesse fechado. Efetivamente, após a GNR ter chegado ao local – o que aconteceu pouco tempo após os incidentes, como foi mencionado pelas testemunhas, nomeadamente por GG – foi isolada a área, não sendo crível que alguém, que denotasse preocupação em adulterar provas, tivesse fechado a navalha, ao invés de a retirar do local, fazendo-a desaparecer.

A testemunha CC foi confrontada em audiência com a fotografia de tal objeto – cf. fls. 185 – e declarou que a dita faca pertencia ao seu companheiro BB, mas reiterou que não a viu na sua mão no circunstancialismo de tempo, modo e lugar em causa.

Tal navalha foi objeto de perícia lofoscópica, tendo-se apurado que a mesma não apresentava vestígios com valor identificativo.

Não existe referência a quaisquer outros vestígios na dita navalha, nomeadamente vestígios hemáticos.

O ora arguido apresentava efetivamente várias lesões no corpo e também na face, da qual sangrava após ter sido perpetrada a agressão por BB, como confirmou a testemunha GG. No entanto, e como esclareceu o próprio arguido em audiência, dois dias antes dos acontecimentos em discussão, foi brutalmente agredido por vários indivíduos, em Portalegre, agressão da qual lhe sobrevieram diversas lesões, como o comprovam não só os relatórios hospitalares de fls. 439-441, como as imagens de fls. 53, que revelam lesões em estado de cicatrização, inexistindo elementos clínicos nos autos que evidenciem que o arguido apresentava lesões na face compatíveis com ferida produzida com uma navalha na data dos acontecimentos que aqui se discutem (o referido sangramento pode ter sido causado diretamente pelos murros que o arguido sofreu na zona da face ou podem aqueles ter provocado o agravamento de lesões já existentes, ocasionando o sangramento).

Decorre do exposto que a prova produzida não permite corroborar, minimamente, o uso de qualquer navalha por parte de BB, nos termos descritos pelo arguido.

Aliás, as suas declarações quando analisadas à luz das regras da experiência da vida, permitem-nos reforçar aquela convicção. O arguido declarou que enquanto perdurou a agressão perpetrada por BB e mesmo enquanto este usou a navalha, não esboçou qualquer reação, não tendo tirado sequer as mãos dos bolsos do casaco que então vestia (GG e HH confrmaram que o arguido manteve as mãos nos bolsos enquanto foi agredido), justificando aquele seu comportamento com a debilidade física em que se encontrava em consequência da agressão que fora vítima dois dias antes destes acontecimentos.

Ora, o ato de defesa perante uma agressão iminente ou em execução é um ato reflexo, não sendo crível que alguém não se procure defender, nem que seja colocando as mãos à frente da zona que está a ser alvo de agressão, procurando assim evitá-la ou minorar os seus efeitos, principalmente quando está em iminência uma agressão com recurso a um objeto perigoso, como uma navalha, sendo que o estado físico do arguido – ainda que doloroso – não o impedia de assim agir.

Deste modo, as declarações do arguido não nos mereceram qualquer credibilidade, resultando também da prova testemunhal já apontada que em resposta à agressão de que foi alvo, o arguido retirou dum dos bolsos do casaco, a arma de fogo apreendida nos autos, que empunhou e disparou na direção da vítima.

O arguido confessou a posse da arma e dos projéteis identificados na acusação, cujas características foram apuradas com base no resultado do exame pericial de fls. 215-223.

O arguido confessou que tal arma não lhe pertence e descreveu a traços largos, o modo como tal arma adveio à sua posse, sendo que nesse tocante o seu depoimento não foi totalmente consentâneo com o testemunho de Jorge Guerra, desconhecendo-se a este propósito quem fala verdade, sendo que tal questão não é essencial para a apreciação dos factos em discussão.

O arguido confessou que não é possuidor de licença ou autorização para deter qualquer arma, facto corroborado pelo teor da informação prestada pela Polícia de Segurança Pública – Comando Distrital de Portalegre -, a fls. 329 dos autos e manifestou ter conhecimento sobre o carácter proibido da detenção e porte da dita arma e das munições nas circunstâncias descritas nos autos.

O arguido justificou a posse da arma carregada no circunstancialismo de tempo, modo e lugar já mencionados, na necessidade que sentia em se defender face às agressões de que fora alvo em Portalegre e à perseguição que ali lhe era movida por indivíduos que alegou desconhecer e que, para além das agressões físicas, tinham irrompido pela sua habitação, praticando atos de destruição (facto este a que aludiu a testemunha LL, vizinha do arguido e da sua namorada em ..., e que teve conhecimento dos ditos acontecimentos, nomeadamente dos que ocorreram na residência daqueles, por os ter presenciado parcialmente).

Tendo por base as próprias declarações do arguido não existia, porém, qualquer relação entre os acontecimentos ocorridos em Portalegre e a vítima BB, tendo aquele declarado, inclusivamente, que se tinha refugiado em ..., em casa dos pais, para se esconder de quem lhe queria fazer mal em ....

Por outro lado, ponderando a configuração do local; o modo como se iniciou o relacionamento conflituoso entre a vítima e o arguido; as circunstâncias em que decorreu a agressão perpetrada por aquele contra este último, nomeadamente, na presença das pessoas que já se deixaram identificadas e que, inclusivamente durante o conflito lograram chegar junto dum e doutro, procurando que lhe pusessem termo (GG e FF relataram como o tentaram fazer); dúvidas não temos que o arguido teve possibilidade de fugir, não colhendo como justificação para o não ter feito a sua debilidade física, posto que após os disparos que efetuou não teve qualquer dificuldade em abandonar o local, não sendo crível que não o tivesse feito rapidamente, posto que como declarou espontaneamente, teve receio da reação dos populares, quer dos que ali se encontravam, quer dos que ali chegariam necessária e rapidamente, considerando a quantidade de pessoas residentes nas proximidades.

Como resulta dos testemunhos produzidos em audiência, o arguido, respondendo à agressão de que foi vítima, retirou do bolso a arma, que empunhou e disparou na direção do agressor BB.

O arguido acabou por confessar esta realidade. Confessou, ainda, que todos os disparos feitos com aquela arma foram da sua autoria.

Nestes termos, e tendo em consideração os vestígios deixados no local, nomeadamente, as cápsulas de deflagração que ali foram encontradas (cf. relatório de exame pericial de fls. 159-175), apuraram-se, com segurança, o número de disparos realizados pelo arguido.

AA confessou que se encontrava a cerca de 1,5 metros de BB – seguramente a menos de 2 metros -.

Disse que apontou e disparou a arma na direção das pernas daquele, com a intenção de o atingir, determinando-o, assim, a por termo à agressão contra si (arguido) perpetrada.

O arguido negou perentoriamente ter apontado a arma na direção de qualquer outra parte do corpo de BB e negou perentoriamente a intenção de o matar.

Declarou, ainda, que disparou os sete projéteis de seguida e que a vítima só tombou ao chão após o último disparo.

Justificou o número de disparos com a circunstância de BB ter continuado a avançar na sua direção, para o agredir, mesmo depois de ter efetuado os primeiros disparos, acabando por referir que houve um hiato de tempo, embora muito curto entre os dois primeiros disparos e os restantes cinco e que entre uns e outros ainda se movimentou, à volta da vítima, acompanhando o movimento corporal dela.

As declarações do arguido sobre esta situação em concreto revelaram algumas imprecisões e contradições.

Os depoimentos das testemunhas FF e de GG também apontam para dois momentos distintos na concretização dos disparos, com um intervalo muito curto entre uma e outra situação: um primeiro momento, em que o arguido efetua dois disparos; um segundo momento, em que o mesmo concretiza os restantes.

De acordo com o testemunho de FF, após os dois primeiros disparos, BB tombou ao chão e os restantes foram produzidos pelo arguido depois daquele estar deitado no solo; CC disse que depois de BB ter caído ao chão, não ouviu mais tiros; GG declarou, por seu turno, que ainda ouviu disparos já depois da vítima estar caída no chão; a testemunha HH referiu que após o primeiro disparou fugiu, como medo, tendo ouvido o segundo disparo já em situação de fuga, não se tendo apercebido de como foram efetuados os disparos subsequentes.

Foi referido por todos – pelo arguido e pelas testemunhas – que os acontecimentos ocorreram num espaço de tempo muito curto, sendo por isso natural que surjam pequenas divergências na descrição factual como as que se deixaram apontadas.

Porém, analisando crítica e conjugadamente as declarações do arguido e das testemunhas e independentemente do arguido ter disparado ou não sobre a vítima, depois da sua queda ao solo – não se logrou provar qualquer dessas situações – podemos concluir com total segurança, face à localização das lesões sofridas por BB, nomeadamente, aquela que lhe causou a morte (vide relatório de autópsia junto aos autos), que o arguido ao efetuar os disparou visou outras zonas do corpo, que não as pernas da vítima. Deste modo, ou manteve a arma apontada abaixo da cintura da vítima e, para o ter atingido no pescoço, BB já teria que estar caído no solo, porventura em consequência de ter sido atingido por qualquer dos outros projéteis ou, então, e tendo por certa a versão do arguido, qual seja, que BB só tombou ao chão depois do último disparo, o arguido teve de apontar a arma para outras partes do corpo da vítima, nomeadamente, para a zona do seu pescoço, considerando a lesão ali produzida e que veio a revelar-se fatal.

O arguido revelou conhecer a sensibilidade da zona corporal atingida e o perigo decorrente da lesão dos vasos sanguíneos ali alojados, nomeadamente, do perigo para a vida.

Assim, alicerçados nas regras da experiência e ponderando o circunstancialismo que rodeou a agressão e que se deixou descrito; a distância a que o arguido se encontrava da vítima; o número de disparos efetuados e a zona do corpo visada e atingida; dúvidas não temos que AA teve intenção de matar, comportamento que confessou saber ilícito e proibido.

Como deixámos dito em momento oportuno, não foi possível apurar em toda a sua plenitude, as razões do envolvimento verbal do arguido e da vítima e embora no decurso da discussão tenha sido feita alusão à questão da paternidade da menor DD, não se logrou apurar, com a segurança devida e necessária, que o arguido tenha matado BB, movido pelo propósito mencionado na acusação e, deste modo, resultou como não provado o facto descrito em D).

O relatório de autópsia junto aos autos (fls. 290-202) prova de forma clara e inequívoca que BB faleceu como consequência direta e necessária da lesão provocada pela penetração dum projétil na face lateral esquerda do pescoço, nos demais termos ali mencionados.

A dinâmica dos acontecimentos relatada pelas testemunhas e pelo próprio arguido não permitiu ter como demonstrada a factualidade que se deixou descrita em C). Efetivamente, a este propósito, FF não revelou espontaneidade no seu depoimento – limitou-se a confirmar o facto que lhe foi expressamente mencionado -, não tendo as demais testemunhas feito alusão expressa à factualidade em causa, admitindo-se, no entanto, face a todo o circunstancialismo descrito, que depois de BB ter tombado ao solo, o ora arguido tenha mantido, ainda que por escassos momentos (o arguido abandonou prontamente o local) a arma empunhada e direcionada para o local onde aquele se encontrava, mas sem a direcionar em particular para qualquer outra zona do seu corpo, com a intenção de efetuar novo disparo, porquanto para além de nenhuma das testemunhas ter relatado qualquer facto suscetível de sustentar tal conclusão, o arguido apercebeu-se necessariamente do estado em que se encontrava a vítima e das consequências, desejadas, da conduta que acabava de empreender.

O arguido confessou ter cumprido o serviço militar, no decurso do qual aprendeu a manusear armas de fogo (ainda que de forma não muito aprofundada).

O facto descrito em E) resultou como não provado por ausência de prova.

No que tange aos aspetos relacionados com o modo de vida, a condição social e económica do arguido, o tribunal teve em consideração o relatório social elaborado pelos serviços de reinserção social, cujo teor foi integralmente corroborado pelas testemunhas que apresentou e que foram inquiridas em audiência.

Os antecedentes criminais do arguido estão documentados no certificado de registo criminal que lhe diz respeito.

Não foram atendidos factos de natureza conclusiva e/ou conceitos de direito e/ou considerações doutra natureza sem interesse para a discussão. »

B. Matéria de direito

1. Da qualificação jurídica dos factos

1.1. O recorrente entendeu que não se devia ter procedido a uma autonomização do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2206, de 23 de fevereiro: considerando que apesar de o arguido ter sido acusado pelo crime de homicídio qualificado, ao abrigo do art. 132.º, n.º 1, e n.º 2, al. e) [“ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil”], do CP, foi depois, quer pela 1.ª instância, quer pelo Tribunal da Relação considerado que o arguido apenas devia ser punido pelo crime de homicídio simples; assim, continua o recorrente, ainda que à agravação, prevista no art. 86.º, n.º 3, seja ”indiferente que o Arguido se encontre numa situação de legalidade ou ilegalidade em relação à arma do crime, uma vez que em qualquer das situações sempre será o homicídio agravado” (cf. motivação do recurso) , certo é que o arguido entende que o seu comportamento não deveria ter sido subsumido aos dois ilícitos distintos — crime de homicídio e crime de detenção de arma proibida—, pois “entendendo, como entendeu o douto tribunal recorrido que a intenção do Arguido foi a de consumar o homicídio, a relação entre a arma e o homicídio é a de que esgota o uso da arma na prática do crime” (idem): assim não se devia ter autonomizado aquele crime de detenção de arma proibida, devendo o arguido ter sido absolvido (em defesa deste entendimento invoca o acórdão deste Tribunal, de 31 de março de 2011, no processo n.º 361/10.3GBLLE).

Ora, ainda que a qualificação jurídica dos factos possa ser do conhecimento oficioso, o certo é que nestes autos esta questão foi suscitada pelo recorrente. Porém, entende-se que, por se tratar de um crime cuja condenação foi em 18 meses de prisão, punição confirmada pelo Tribunal da Relação de Évora, não cabe aqui a sua análise. Na verdade, já houve trânsito em julgado relativamente a esta parte da decisão dado ser inadmissível o recurso nos termos do art. 432.,º e 400.º, n.º 1, al. f), ambos do CPP, uma vez que foi confirmada pelo Tribunal da Relação e a pena aplicada é inferior a 8 anos de prisão.

Por isso, nestes autos apenas poderemos proceder à análise da qualificação jurídica na parte respeitante ao concurso de crimes entre o crime de detenção de arma proibida e o crime de homicídio agravado pelo uso de arma, pois quanto à imputação do crime de detenção de arma proibida e sua punição o acórdão já transitou em julgado.

No sentido da admissibilidade do conhecimento oficioso no respeitante à qualificação jurídica já se pronunciou este tribunal em acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/95, de 7 de junho (DR, I série-A, de 06.07.1995, p. 4298).

Questionando-se sobre se “o Supremo Tribunal de Justiça poderá ou não alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal dos factos recolhidos na instância recorrida e sobre os quais esta erigiu a decisão que, uma vez proferida, subiu em recurso à instância superior” (acórdão cit., p. 4298-9), entendeu que o que “está em debate é a admissibilidade ou não da qualificação jurídica dos factos feita na instância em caso de recurso, quando a mesma qualificação não esteja em debate, ou seja, não constitua objecto de impugnação” (acórdão cit., p. 4299), e concluiu, e fixou jurisprudência, no sentido de que

“O tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efetuada pelo tribunal recorrido, mesmo que para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus”.

Por isto, entendemos que este Supremo Tribunal pode analisar, e eventualmente alterar, a qualificação jurídica dada aos factos provados, ainda que sempre com respeito pelo princípio da proibição da reformatio in pejus, no respeitante ao concurso de crimes.

Vejamos.

1.2. A Lei n.º 5/2006, de 23.02 (com as alterações entretanto introduzidas — Lei n.º 59/2007, de 04.09, Lei n.º 17/2009, de 06.05, Lei n.º 26/2010, de 30.08, Lei n.º 12/2011, de 27.04 e Lei n.º 50/2013, de 24.07) pune no art. 86.º a detenção de arma proibida, assim como a prática de crime com utilização de arma.

Nos termos do n.º 3 “As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.”, as penas dos crimes praticados (com armas) são agravadas de um terço nos seus limites mínimos e máximos das respetivas molduras penais, “excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma”.
E, nos termos no art. 86.º, n.º 4, da Lei n.º 5/2006, entende-se que “Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente.” Ou seja, a partir do n.º 4 do art. 86.º verificamos que a agravação prevista no número anterior (n.º 3) ocorrerá sempre que não haja agravação para o crime em função do uso e porte de arma, e a agravação aqui prevista (na Lei n.º 5/2006) ocorrerá, quer se trate de uso e porte de arma proibida ou quer se trate de arma não proibida.
Ora, no caso dos autos o recorrente foi condenado por crime de homicídio, nos termos do art. 131.º, do CP — e, tanto integra este crime aquele que realiza condutas lesivas da vida através de arma de fogo, ou de qualquer outra arma ou meio, e quer se trate de arma legalizada ou não, arma permitida ou proibida. Ou seja, mesmo aquele que aquando da prática do crime utilize arma (aparente ou oculta) ainda que detenha autorização para a sua detenção e utilização, ainda assim a pena do crime que tiver cometido é agravada, se o porte ou uso da arma não for elemento do tipo de crime que tiver praticado.
O legislador quis, com a agravação prevista naquele art. 86.º, n.º 3, citado, afirmar que há uma ilicitude agravada aquando da prática de um qualquer crime em que se utilize uma arma (no sentido abrangido pela Lei n.º 5/2006 — cf. art. 2.º, n.º 1).
Teremos que analisar se o agente deve ser punido em concurso (efetivo) de crimes ou se, pelo contrário, existirá uma situação de concurso aparente de crime (ainda que não uma situação de concurso de normas) entre o crime de detenção de arma proibida e o crime de homicídio agravado pelo uso de arma.
O recorrente foi punido pelo crime de detenção de arma proibida, previsto no art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, punível com pena de prisão de 1 a 5 anos, ou pena de multa até 600 dias. Ou seja, para além daquela agravação, agravação da ilicitude do crime de homicídio, ainda acresce uma outra ilicitude decorrente da detenção e transporte de arma sem autorização e fora das condições legais. Trata-se de um outro crime, um crime de perigo abstrato, em que os bens jurídicos “protegidos pela norma são primacialmente a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, mas também a vida, a integridade física e bens patrimoniais dos membros da comunidade, face aos riscos sérios que derivam da livre (ou seja, sem controlo) circulação e detenção, uso e porte de armas (...) proibidas”(Artur Vargues, Comentário das Leis Penas Extravagantes, vol. I, org. Paulo Pinto de Albuquerque/José Branco, Lisboa: UCP, 2010, p. 240).
O recorrente entende que devia ter sido absolvido do crime de detenção de arma proibida, por considerar que está em concurso aparente com o crime de homicídio agravado pelo uso de arma, e para fundamentar a sua pretensão o recorrente trouxe para a discussão um acórdão deste Tribunal — processo n.º 361/10.3GBLLE, relator Manuel Braz, consultável aqui http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/77de29905c952c5680257868004ee9e5?OpenDocument) — onde se entendeu que existiria um caso de concurso aparente, no sentido apresentado por Figueiredo Dias, entre um ilícito dominante — o do homicídio (simples) — e um ilícito dominado — o da detenção de arma proibida.
Vejamos então o que se entende por concurso aparente em Figueiredo Dias Vamos utilizar o texto que escrevemos em Falsificação de documentos e burla: unidade ou pluralidade de sentidos autónomos de ilicitude?, RPCC, 2011 (n.º 2), p. 325 e ss.:
«Figueiredo Dias começa por estabelecer uma distinção, diríamos radical, entre aquilo que designa como unidade de normas ou de leis e concurso de crimes. Abandonando os critérios baseados na unidade e pluralidade de tipos de crimes violados e o de unidade e pluralidade de acções praticadas pelo agente, como critérios possíveis de distinção entre a unidade e pluralidade de crimes, avança com um novo critério — o critério da unidade ou pluralidade de sentidos sociais de ilicitude jurídico-penal do comportamento global Direito Penal – Parte Geral Tomo I, Coimbra: Coimbra Editora, 20072, 41/ § 26 e ss.. A unidade ou pluralidade não será mais uma unidade ou pluralidade de crimes, mas de factos puníveis. Assim, é a “unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica, existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal, que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de factos puníveis e, nesta acepção, de crimes” Figueiredo Dias, Direito Penal I, 41/ § 26.. E assim se deverá distinguir entre os casos do concurso efectivo, próprio ou puro (previsto no art. 30.º, n.º 1 do CP) — recondutível a “uma pluralidade sentidos sociais autónomos dos ilícitos-típicos cometidos e, deste ponto de vista, a uma pluralidade de factos puníveis” Figueiredo Dias, Direito Penal I, 41/ § 30. — e os casos de concurso aparente, impuro ou impróprio (também integrado no âmbito do art. 30.º, n.º 1 do CP) — caracterizado pelo facto de o comportamento ser “dominado por um único sentido autónomo de ilicitude, que a ele corresponde uma predominante e fundamental unidade de sentido dos concretos ilícitos-típicos praticados” Figueiredo Dias, Direito Penal I, 41/ § 30.. Logo esclarecendo que a forma de punição prevista no art. 77.º apenas será aplicável aos casos de concurso efectivo. Mas convém desde já notar que este concurso aparente pouco tem do “velho” concurso aparente, embora possamos dizer, de forma talvez demasiado simplista, que esta figura abarca os casos tradicionalmente integrados no “velho” concurso aparente por consumpção. Por seu turno, tudo o que correspondia ao caso de concurso aparente por especialidade ou por subsidiaridade é agora integrado na “concorrência de normas”, problema já não de concurso de crimes, mas a resolver no âmbito da interpretação da norma.
Assim, de forma breve, podemos caracterizar a “concorrência de normas” como abrangendo aqueles casos em que “um dos tipos (lex specialis) integra todos os elementos de um outro tipo (lex generalis) e só dele se distingue porque contém um qualquer elemento adicional” Figueiredo Dias, Direito Penal I, 42/ § 5. — designado como uma concorrência de normas por especialidade — e os casos em que “um tipo legal de crime deva ser aplicado somente de forma auxiliar ou subsidiária”, havendo uma relação de interferência ou de sobreposição entre os tipos em concorrência Figueiredo Dias, Direito Penal I, 42/ § 11; e distingue ainda entre uma subsidiariedade expressa e uma subsidiariedade implícita — ob. cit., 42/ § 12 e ss e § 15 e ss.. Fora destes casos de concorrência de normas estarão os casos até aqui integrados naquilo que era designado por concurso aparente por consumpção. Este engloba os casos em que “o conteúdo de um ilícito-típico inclui em regra o de outro facto, de tal modo que, em perspectiva jurídico-normativa, a condenação pelo ilícito-típico mais grave exprime já de forma bastante o desvalor de todo o comportamento: Lex consumens derogat legi consuntæ” Figueiredo Dias, Direito Penal I, 42/ § 18.. Este não será então um caso de unidade de leis, mas sim de “pluralidade de normas concretamente aplicáveis” Figueiredo Dias, Direito Penal I, 42/ § 20. que originam um problema de concurso de crimes. E acaba por concluir que a “ideia que preside à categoria da consumpção é, na sua essência, aquela que dissemos dever presidir ao concurso aparente, impróprio ou impuro de factos puníveis” Figueiredo Dias, Direito Penal I, 42/ § 20..
Fazem, pois, parte do âmbito do concurso de crimes o concurso efectivo, caracterizado por uma “pluralidade de normas típicas concretamente aplicáveis ao comportamento global”, revelando o comportamento uma “pluralidade de sentidos sociais de ilicitude que, segundo o mandamento da esgotante apreciação contido na proibição jurídico-constitucional da dupla valoração, devem ser integralmente valorados para efeito de punição” Figueiredo Dias, Direito Penal I, 43/ § 3 e ss.. Estes casos serão punidos segundo o regime previsto no art. 77.º do CP.
Coisa diferente ocorre no então designado “concurso aparente” em que, apesar de se entender que ao comportamento se aplica uma pluralidade de normas típicas, apesar disto aquela presunção de pluralidade de sentidos do ilícito autónomos é elidida, “porque os sentidos singulares de ilicitude típica presentes no comportamento global se conexionam, se intercessionam ou parcialmente se cobrem, de forma tal que, em definitivo, se deve concluir que aquele comportamento é dominado por um único sentido de desvalor jurídico-social” Figueiredo Dias, Direito Penal I, 43/ § 11., por um sentido predominante, de modo que a punição segundo as regras do art. 77.º é tida como inaceitável. No âmbito desta nova figura do concurso aparente de Figueiredo Dias, integram-se todos aqueles casos “em que, apesar de o comportamento global ser subsumível a uma pluralidade de tipos legais concretamente aplicáveis, todavia deva concluir-se pela unidade do sentido social de ilicitude do facto punível” Figueiredo Dias, Direito Penal I, 42/ § 2 (itálico do Autor).. Resta saber se os casos tradicionalmente designados de concurso ideal são caracterizados por uma unidade de sentido de ilicitude ou por uma pluralidade; pensamos que casos haverá em que aquela unidade de sentido de ilicitude ocorre, afastando o concurso efectivo (como aquele caso em que o agente lesa a integridade física de alguém de modo a atingir a morte, sendo evidente neste caso a dominância de um único sentido de desvalor do ilícito), embora em outros se não possa afirmar a existência daquela unidade (como aquele caso em que o agente com uma só acção mata e lesa a integridade física de duas vítimas distintas). A unidade de sentido de ilicitude autónoma é dada pelo facto de, apesar de o comportamento integrar diversos tipos, haver no comportamento global um sentido de ilicitude dominante e fundamental. A determinação do sentido de ilicitude absolutamente dominante é aferida segundo diversos critérios Figueiredo Dias, Direito Penal I, 43/ § 17 e ss. — o critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito global-final, o critério do crime instrumental ou crime-meio, o critério da unidade de desígnio criminoso, o critério da conexão espacio-temporal das realizações típicas, e o critério dos diferentes estádios de evolução ou de intensidade da realização global Neste último critério integram-se os casos em que a relação de subsidiariedade deva ser negada (e por isso afastada a concorrência de normas) e, pelo contrário, deva ser afirmada a pluralidade de sentidos de ilícito – o que sucederá entre, por exemplo, a tentativa de um crime qualificado que já inclui a consumação do crime fundamental; ou ainda os casos entre os crimes de perigo abstracto, concreto e crime de dano, nomeadamente quando a relação de subsidiariedade está afastada em virtude de cada um dos tipos proteger diferentes bens jurídicos – “também nestas hipóteses, determinada a pluralidade de normas incriminadoras concretamente aplicáveis, o sentido dominante do ilícito deve ser conferido ao comportamento global, ao menos em regra, pelo bem jurídico que sofre a forma mais intensiva de agressão” (Figueiredo Dias, Direito Penal I, 43/ § 30; cf. também sobre todos estes critérios Figueiredo Dias, Unidade e pluralidade de crimes «où sont les neiges dántan?», Ars Ivdicandi — Estudos em homenagem ao Professor Doutor António Castanheira Neves, Coimbra, Coimbra Editora, vol. III, 2008, p. 691-5).. Ora, quando naquelas situações que habitualmente se integravam no concurso ideal se possa dizer que existe um único sentido de ilicitude autónomo e prevalecente, então estaremos também perante um caso de concurso aparente, na concepção actual de Figueiredo Dias Afirmando que poderão ser integrados também nesta figura os casos de “factos posteriores co-punidos” e os “factos tipicamente acompanhantes” — Figueiredo Dias, Direito Penal I, 43/ § 18..
Mas os casos de concurso aparente não podem ser punidos por um qualquer sistema de soma, pois isso constituiria uma violação do princípio do ne bis in idem Figueiredo Dias, Direito Penal I, 43/ § 55.. Assim, a punição será determinada dentro da moldura do singular ilícito-típico dominante e, dentro desta, é determinada a medida concreta da pena (os crimes “dominados” constituirão factores agravantes da medida da pena — na parte em que não participem da tipicidade do ilícito dominante, sob pena de violação do princípio do ne bis in idem e do princípio da proibição da dupla valoração); se, no entanto, o mínimo da moldura penal do crime “dominado” for superior ao mínimo da moldura do crime “dominante”, aquele mínimo funcionará como limite. E com isto a moldura penal na base da qual será determinada a pena concreta irá corresponder ao sentido dominante do desvalor do ilícito.»
Ou seja, o concurso aparente em Figueiredo Dias é um concurso de ilícitos que em função da situação concreta se podem sobrepor (total ou parcialmente) ou não. Diferentemente daquilo que era entendido como concurso aparente em Eduardo Correia, que consistia, na verdade, num concurso de normas, pelo que a simples análise abstrata dos tipos legais de crime em conflito nos permitia chegar a uma conclusão, independentemente das concretas circunstâncias do caso.

Na verdade, em Figueiredo Dias, apenas em função da situação concreta poderemos saber se o ilícito dominado constitui ou não uma conduta que se integre numa “unidade do sucesso ou acontecimento” (Figueiredo Dias) em que o agente se serve de “métodos, processos ou meios já em si mesmo puníveis”, ou se integre numa “unidade de desígnio criminoso”, ou se temos uma conexão espácio-temporal entre as realizações típicas, tudo de molde a permitir obter a conclusão de que o objetivo primacial do agente era a realização do ilícito dominante, e o ilícito dominado aparece como um ilícito secundário na análise global da ilicitude do comportamento concreto.

Ora, no acórdão citado pelo recorrente verifica-se que “o arguido limitou-se a utilizar a arma para realizar o homicídio” (acórdão citado), e foi dado como provado que “o arguido, movido pela revolta, dirigiu-se ao anexo onde habitava e saiu transportando uma espingarda. (...) Então, empunhou a espingarda na direcção do irmão e efectuou dois disparos na sua direcção, atingindo-o na cabeça, quando este se encontrava ao lado de sua mulher e mãe” (idem). Pelos factos provados, e tal como se concluiu naquele acórdão deste tribunal, a utilização da arma circunscreveu-se ao momento em que cometeu o crime de homicídio, sendo claramente o meio de que se serviu o arguido para cometer o seu desígnio.

Diferente é o caso destes autos.

Na realidade, provou-se que não só o recorrente não foi buscar a arma para disparar contra a vítima, pois já a trazia consigo, como não foi provado que o recorrente apenas trouxesse a arma consigo com o único objetivo de disparar contra a vítima caso a encontrasse. Ou seja, da matéria de facto provada não podemos concluir que o recorrente, para atingir o seu objetivo, previamente delineado, tenha decidido deter e transportar a arma proibida, ou que possamos concluir que a detenção da arma proibida constituía apenas o meio de que se estava a servir para praticar o crime que veio a consumar, ou que se possa englobar no desígnio de cometer o homicídio a detenção de arma proibida; pelo contrário, provou-se que tinha ido para Nisa para se resguardar de adicionais agressões de que tinha anteriormente sido vítima em Portalegre (“o arguido justificou a posse da arma carregada (...) na necessidade que sentia em se defender face às agressões de que fora alvo em Portalegre e à perseguição que ali lhe era movida por indivíduos que alegou desconhecer” — acórdão recorrido, p. 17), e naquele dia apenas se encontrava no local onde veio a matar o ofendido porque se dirigia a casa da avó (facto provado 1), que residia na mesma rua, e parou a falar com outro amigo (cf. fundamentação da matéria de facto, p. 11 do acórdão recorrido). Não fosse o ofendido ter aparecido e teria o recorrente prosseguido o seu caminho detendo a arma proibida com que tinha saído de casa. Pelo que consideramos que o crime de detenção de arma proibida praticado pelo recorrente não está em concurso aparente com o crime de homicídio simples. Porém, o arguido não foi punido pelo crime de homicídio simples, mas pelo crime de homicídio agravado pelo uso de arma, ao abrigo do art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006. E também aqui não se pode concluir pela inadmissibilidade do concurso de crimes. Trata-se da punição de condutas distintas — enquanto que a agravação prevista no art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, pune de forma mais grave uma conduta com uma maior ilicitude sempre que o agente usa na prática do crime uma arma, independentemente de a arma ser proibida ou não, ser legal ou não; no crime de detenção de arma proibida são punidos todos aqueles que detém arma fora das condições legais e independentemente de a arma ser ou não usada na prática do crime. Aliás, a própria epígrafe do artigo pretende de forma clara distinguir os dois crimes: um é o de “detenção de arma proibida” e outro o “crime cometido com arma”. Assim sendo, não há qualquer justaposição ou interceção entre as condutas punidas por ambos os tipos. Pelo que, apesar de já ter havido trânsito em julgado relativamente à condenação mo crime de detenção de arma proibida, nos termos do art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006, e portanto já não ser possível discutir esta questão, ainda assim consideramos ser juridicamente acertada a condenação em concurso efetivo de crimes.

2. Da medida da pena

2.1. O recorrente veio condenado na pena (parcelar) de prisão de 15 anos e 6 meses, pela prática do crime de homicídio, previsto no art. 131.º, do CP, e agravado pelo art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, e na pena (parcelar) de prisão de 18 meses, pelo crime de detenção de arma proibida, previsto no art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 5/2006; e na pena única conjunta de 16 anos e 3 meses.

Entende o recorrente que não só a pena do homicídio é excessiva e desajustada, pois não teve em consideração fatores como a boa inserção social do arguido, a sua colaboração ao longo do processo, a ausência da intenção de matar e o pedido de desculpas à família da vítima, como também a pena relativa ao crime de detenção de arma proibida é excessiva, bastante acima do mínimo legal e sem que se tenha considerado a hipótese de aplicação da pena de multa (pena em alternativa à pena de prisão, prevista no tipo legal de crime). Considera ainda o recorrente que é também relevante “o reconhecimento da culpa e o pedido de desculpas (...), bem como o facto de ter reconhecido em tribunal, ainda que tal não tivesse sido devidamente atendido, que em momento algum quis matar a vítima, tendo sempre disparado para os membros inferiores numa tentativa de travar a agressão que de que vítima” (cf. motivação do recurso).

Porém, apesar de na motivação do recurso apresentada o recorrente alegar que a pena relativa ao crime de detenção de arma proibida “é excessiva e desproporcional”, o certo é que não mais refere este ponto nas conclusões. Ora, sabemos que o âmbito do recurso é delimitado pela conclusões, de harmonia com o disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPP; e mesmo que assim não fosse, já houve trânsito em julgado relativamente a esta parte da decisão dado ser inadmissível o recurso nos termos do art. 432.,º e 400.º, n.º 1, al. f), ambos do CPP. Pelo que não nos pronunciaremos sobre a pena parcelar atribuída ao crime de detenção de arma proibida.

Ora, a determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela do bem jurídico em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade da pessoa humana do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena dever-se-á ter em conta todas as circunstâncias que depuseram a favor ou contra o arguido, nomeadamente, os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenha sido em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração).

Acresce que o nosso sistema de reações criminais é claramente caracterizado por uma preferência pelas penas não privativas da liberdade ─ cf. art. 70.º do CP ─ devendo o tribunal dar primazia a estas quanto se afigurem bastantes para que sejam cumpridas, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.

Assim, de acordo com as exigências de prevenção geral de integração (da norma) e de prevenção especial de socialização, tendo como limite a culpa, procederemos a uma análise da pena atribuída a AA pela prática do crime de homicídio simples, previsto no art. 131º, do CP, agravada pelo disposto no art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006.

Assim sendo, a moldura abstrata pela prática deste crime de homicídio ilicitamente agravado é de 10 anos e 8 meses (agravação de 1/3 da pena de 8 anos) a 21 anos e 4 meses (agravação de 1/3 da pena de 16 anos). O arguido vem condenado na pena de 15 anos e 6 meses.

AA afirma que atuou numa “tentativa de travar a agressão de que era vítima por parte do ofendido”. Entendemos que o tribunal não salientou estes elementos, pois os factos não poderiam ser integrados na legítima defesa. Na verdade, a partir da fundamentação da matéria de facto provada sabemos que “o arguido declarou que enquanto perdurou a agressão perpetrada por BB (...) não esboçou qualquer reação, não tendo tirado sequer as mãos dos bolsos do casaco que então vestia (GG e HH confirmaram que o arguido manteve as mãos nos bolsos enquanto foi agredido justificando aquele seu comportamento com a debilidade física em que se encontrava em consequência da agressão que fora vítima dois dias antes destes acontecimentos” (cf. acórdão recorrido, p. 16, itálico nosso; a agressão de que fora vítima dois dias antes não tinha sido realizada pelo ofendido destes autos). Ora, ainda que se não possa considerar que a fuga seja um meio de defesa imposto pela nossa ordem jurídica Neste sentido, Figueiredo Dias, Direito Penal I, 15/ § 23“Esta [fuga] pode constituir em certos casos um meio idóneo para evitar a agressão (...). Todavia, não deve ser imposta como meio de defesa”., foi provado que no decurso da discussão BB agrediu fisicamente o arguido e, então, o arguido efetuou 7 disparos; além disto, está também provado que os disparos foram realizados a uma curta distância (facto provado 5), em dois momentos distintos, mas muito próximos temporalmente (cf. motivação da matéria de facto, acórdão recorrido, p. 21), o tiro fatal foi dirigido para o pescoço, com uma “ligeira inclinação de cima para baixo” (facto provado 7) e deste modo “ou manteve a arma apontada abaixo da cintura da vítima e, para o ter atingido no pescoço, BB já teria que estar caído no solo, porventura em consequência de ter sido atingido por qualquer dos outros projéteis ou, então, e tendo por certa a versão do arguido, qual seja, que BB só tombou ao chão depois do último disparo, o arguido teve de apontar a arma para outras partes do corpo da vítima, nomeadamente, para a zona do seu pescoço, considerando a lesão ali produzida e que veio a revelar-se fatal.” (cf. motivação da matéria de facto, acórdão recorrido, p. 21) — tudo a permitir concluir por uma clara ação excessiva de defesa, não só pelos meios excessivos, como pela crassa desproporção entre a agressão e a defesa atenta a imagem global dos factos, a não determinar uma exclusão da ilicitude, mas antes um claro abuso do direito de legítima defesa Cf. Figueiredo Dias, Direito Penal I, 15/ § 35 e ss., ou numa outra conceção, uma ultrapassagem dos limites ético-sociais à legítima defesa Assim, Roxin, Claus, As restrições ético-sociais ao direito de legítima defesa, Problemas fundamentais de direito penal, Lisboa: Vega, 1986, p. 197 e ss. Factos que não nos permitem qualquer atenuação da pena (como pretende o recorrente) a partir de uma ideia de que terá atuado “numa tentativa de travar a agressão”.

AA vem de uma “família aparentemente estruturada, organizada tradicionalmente e integrada socialmente” (facto provado 14), estudou até ao equivalente ao 12.º ano (facto provado 16), cumpriu serviço militar, tendo tido algumas atividades laborais (factos provados 17 e 19) num “percurso laboral [caracterizado] por alguma regularidade, embora sem consistência” (facto provado 21); iniciou na juventude o consumo de estupefacientes (facto provado 22), prosseguindo terapêutica de substituição (idem). Porém, “à data dos factos em discussão, AA encontrava-se num processo de desorganização pessoal” (facto provado 24), estava desempregado, mas a frequentar um curso de formação profissional (facto provado 26), e mantinha uma relação estável (facto provado 25). No entanto, “revela algumas competências pessoais, nomeadamente, capacidade empática, com reconhecimento do outro, valorizando a aceitação social e a construção de uma imagem social positiva” (facto provado 29); e apesar de “conotado como toxicodependente” (facto provado 32), “possui uma imagem social que não lhe é desfavorável, sendo avaliado como um indivíduo educado, afável e disponível” (idem). Possui antecedentes criminais por crime de desobediência, crime de ofensa à integridade física simples, crime de condução em estado de embriaguez e crime de furto qualificado (facto provado 35).

Verificamos, pois, que o crime praticado atendendo ao bem jurídico lesado, a vida, e à forma como foi praticado – a curta distância da vítima e com diversos tiros, após ter sofrido agressões físicas sem qualquer reação, a demonstrar algum controlo que não usou aquando empunhou a arma e disparou — aumentam consideravelmente as exigências de prevenção geral positiva ou de proteção de bens jurídicos. As suas características pessoais demonstram uma menor exigência em termos de prevenção especial, o que permite justificar que a pena concreta esteja longe do máximo da moldura abstrata (que é de 21 anos e 4 meses). Assim, tendo em conta as condições pessoais do agente e o seu comportamento no seio onde está inserido a pena concreta deverá aproximar-se do mínimo necessário à proteção dos bens jurídicos.

Todavia, percebe-se que o arguido agiu apenas depois de ter sido agredido fisicamente e depois de “no decurso [da discussão] ter sido aflorada a questão da paternidade de DD” (facto provado 3); porém, foi dado como não provado “que o arguido tenha logrado matar BB, apenas motivado pela dúvida sobre quem era o verdadeiro progenitor da menor DD” (facto não provado D), e resultou expressamente da motivação da matéria de facto que numa fase inicial, e enquanto o arguido foi agredido com os murros, não teve qualquer reação (cf. motivação da matéria de facto, acórdão recorrido, p. 16); também se considerou, como já se referiu na mesma motivação (cf. acórdão recorrido, p. 20) que o arguido, ao ter atingido fatalmente o ofendido com um tiro no pescoço, tal ocorreu ou porque o arguido apontou a arma para aquela zona do corpo, ou porque o ofendido já se encontrava no chão após os primeiros disparos. Ora, todo este circunstancialismo, e ainda o facto de não ter sido provado que “o arguido tenha logrado matar BB, apenas motivado pela dúvida sobre quem era o verdadeiro progenitor da menor DD” (facto não provado D), e tendo sido provado expressamente o dolo direto (facto provado 8 — “O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a BB, tendo perfeito conhecimento e consciência de que ao disparar uma arma de fogo à sobredita distância e direcionada às zonas do corpo atingidas, nomeadamente ao pescoço - que aloja vasos sanguíneos essenciais à vida — conseguia alcançar tal objetivo.” — e facto provado 11 — “O arguido agiu em todas as circunstâncias descritas sempre livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.”) não podemos deixar de afirmar o dolo do tipo do crime de homicídio. Por seu turno, a culpa enquanto atitude, espelhada no facto, na imagem global do facto, contrária ou indiferente à violação do dever ser jurídico penal e à violação de um importante bem jurídico como a vida humana, constitui o “ter que responder pelas qualidades juridicamente desvaliosas da personalidade que fundamentam um facto ilícito-típico e nele se exprimem” Figueiredo Dias, Direito Penal I, 19/ § 23. . Assim, em função do caso concreto entendemos que o facto espelha uma atitude contra um bem jurídico fundamental, porém num situação muito particular. Assim, deveremos ter em conta que o arguido agiu no contexto de uma discussão onde se terá abordado o tema sensível do reconhecimento da paternidade da menor, agiu após ter sido agredido com murros, portanto num contexto limitador da sua liberdade de autodeterminação para uma reação conforme o direito, ou seja, a sua atuação não correspondeu a uma decisão totalmente livre de constrangimentos emocionais, mas uma decisão fortemente influenciada pelas ofensas de que tinha sido vítima, e portanto a exigir uma diminuição da pena em função desta diminuição da culpa.

E é também a situação concreta em que o arguido agiu que nos deixa concluir que as necessidades de prevenção geral positiva permitem-nos estabelecer uma pena próxima do mínimo necessário à proteção do bem jurídico, a justificar, portanto, uma pena mais próxima do limite mínimo de 10 anos e 8 meses.

Pelo que, apesar do alto grau de ilicitude do facto e da gravidade das suas consequências, se justifica em atenção ao contexto em que toda a conduta do agente decorreu, que a pena se situe pouco acima daquele mínimo. Assim, consideramos como adequada a pena de 12 (doze) anos de prisão.

4. Da pena única conjunta

A determinação da medida da pena, em sede de concurso de crimes, apresenta especificidades relativamente aos critérios gerais do art. 71.º do CP.

Nos casos de concurso de crimes, a determinação da pena única conjunta tem que obedecer aos critérios específicos determinados no art. 77.º do Código Penal. A partir dos critérios especificados é determinada a pena única conjunta, com base no princípio do cúmulo jurídico. Assim, após a determinação das penas parcelares que cabem a cada um dos crimes que integram o concurso, é construída a moldura do concurso, tendo como limite mínimo a pena parcelar mais alta atribuída aos crimes que integram o concurso, e o limite máximo a soma das penas, sem todavia exceder os 25 anos de pena de prisão (de harmonia com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP).

A partir desta moldura é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1 do CP, "são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a partir dos factos praticados deve proceder-se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique" Figueiredo Dias, Direito Penal Português — As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa: Aequitas/Ed. Notícias, 1993, § 421 (p. 291).. Na avaliação da personalidade ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime, ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever-se-á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade; exigências, porém, limitadas pelas imposições derivadas de finalidades de prevenção geral de integração (ou positiva).

Assim, tendo em conta a gravidade do ilícito global e a personalidade do arguido AA cumpre analisar criticamente a pena única que lhes foi atribuída.

De acordo com o estipulado no art. 77.º, n.º 2, do CP, a moldura do concurso dos crimes em referência tem o limite mínimo de 12 anos de pena de prisão (pena parcelar mais elevada dos crimes em concurso), e como limite máximo a pena de 13 anos e 6 meses de prisão (soma aritmética de todas as penas parcelares em que o arguido foi condenado: uma pena de prisão de 12 anos e outra pena de prisão de 18 meses).

Analisando globalmente os factos, as fortes exigências de prevenção geral e as mais modestas exigências de prevenção geral, e não esquecendo o percurso criminal do arguido, mas ainda a indiciar uma pluriocasionalidade, e sem conseguirmos dizer que o crime de atentado contra o bem jurídico mais valioso constitua uma característica da sua personalidade, e sem que se possa concluir por uma propensão para a prática destes crimes; porém, o modo de execução e os meios excessivos empregados impõem-nos que seja estabelecida uma pena ligeiramente acima do mínimo da moldura. Pelo que consideramos que a pena adequada deverá ser de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses.


III

Conclusão


Nos termos acima expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Conceder provimento parcial ao recurso interposto por AA,

- fixando a pena de prisão de 12 (doze) anos, pelo crime de homicídio, nos termos do art. 131.º, do CP, agravado pelo disposto no art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro,

- mas determinando que a pena única conjunta, pelo crime supra referido e pelo crime de detenção de arma proibida, previsto no art. 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, cuja condenação foi em 18 (dezoito) meses de prisão, seja pena de prisão de 12 (doze) anos e 6 (seis) meses.

Porque o recurso obteve provimento parcial não são devidas custas, de harmonia com o disposto no art. 513.º, n.º 1 do CPP.

Supremo Tribunal de Justiça, 30 de outubro de 2014

Os Juízes Conselheiros,

(Helena Moniz)

(Rodrigues da Costa)