Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
361/10.3GBLLE
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: HOMICÍDIO
AGRAVANTE
ARMA DE FOGO
CAÇADEIRA
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO APARENTE
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PARENTESCO
PENA ACESSÓRIA
INTERDIÇÃO DE DETENÇÃO
USO E PORTE DE ARMA
Data do Acordão: 03/31/2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática: DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO
DIREITO PROCESSUAL PENAL
Doutrina: - Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, páginas 79 a 82, 989, 1015 e 1017.
Legislação Nacional: CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 120.º, NºS2, ALÍNEA D), E 3, ALÍNEA A), 160.º, 361.º, Nº2, 369.º, 370.º, 403.º, Nº3, 424.º, Nº3.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, NºS1 E 2, 71.º, 131.º, 132.º, Nº2 ALÍNEA H).
LEI Nº 5/2006, DE 23/02, NA REDACÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI Nº 17/2009, DE 06/05: - ARTIGOS 2.º, Nº1, ALÍNEAS P), Q) , S) E J), 3.º, Nº6, ALÍNEA C), 8.º, Nº2, ALÍNEA A), 86.º, NºS1, ALÍNEA C), 3 E 4.
Sumário :

I - No presente recurso questiona-se a agravação prevista no n.º 3 do art. 86.º da Lei 5/2006, de 23-02, em relação à pena do crime de homicídio, sendo certo que a agravação ali estabelecida só não terá lugar quando «o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».
II - O uso ou porte de arma não é elemento do crime de homicídio, cujo tipo legal fundamental é o previsto no art. 131.º do CP; pode ser um factor de agravação, mas só o será se, para além de preencher um dos exemplos-padrão «meio particularmente perigoso» ou «prática de um crime de perigo comum» da al. h) do n.º 2 do art. 132.º, revelar «especial censurabilidade ou perversidade». Enquanto que a agravação do n.º 3 do art. 86.º, encontrando fundamento num maior grau de ilicitude, tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, a do art. 132.º só operará se o uso de arma ocorrer em circunstâncias reveladoras de uma especial maior culpa. Além, para haver agravação, basta o uso de arma no cometimento do crime, aqui não.
III - O n.º 3 do art. 86.º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respectivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada. A agravação do art. 86.º, n.º 3, não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de accionar efectivamente essa outra agravação. Ora, o uso de arma não é elemento do crime de homicídio, e, no caso, não levou ao preenchimento do tipo qualificado do art.132.º, pelo que não há fundamento para afastar a agravação do art. 86.º, n.º 3.
IV - Outra questão é a de saber se o arguido cometeu efectivamente o crime de detenção de arma proibida: por morte do pai do arguido e da vítima não se procedeu à partilha dos bens existentes, sendo um desses bens uma casa de habitação, com anexos, num dos quais residia o recorrente. A espingarda caçadeira em causa pertencera ao pai do arguido, estava registada em nome da mãe e na altura encontrava-se nesse anexo. Não se sabe a que título ali se encontrava, quem a colocara ali e desde quando ali se encontrava. Sabe-se apenas que a foi buscar para disparar sobre o irmão. Não se pode assim ter como assente que a arma era detida pelo arguido. Este acto, único conhecido do recorrente em relação à arma, configura simples uso: o arguido limitou-se a utilizar a arma para realizar o homicídio.
V - Essa conduta do recorrente, não possuindo ele a necessária licença de uso e porte, preenche o tipo objectivo do crime do art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei 5/2006: a espingarda em causa é uma «arma de fogo longa» (als. p), q) e s) do n.º 1 do art. 2.º); é uma arma de «tiro a tiro» [al. aj)]; é uma arma de cano de «alma lisa», sendo pois, uma arma da classe D: «São armas da classe D: As armas de fogo longas de tiro a tiro de cano de alma lisa» [art. 3.º, n.º 6, al. c)].
VI - E, não obstante o homicídio ser agravado em função da utilização da espingarda, ao abrigo do art. 86.º, n.º 3, não é valorada nessa agravação a situação de proibição em que o recorrente se encontrava em relação à arma, por falta da licença de uso e porte. Isso porque à agravação é indiferente que o agente esteja numa situação de legalidade ou de ilegalidade em relação à arma: a agravação teria lugar mesmo que o recorrente tivesse licença de uso e porte.
VII - Mas, apesar de o comportamento global do arguido ser subsumível a dois tipos legais – homicídio e uso de arma proibida –, não deve concluir-se por um concurso efectivo de crimes, mas antes aparente.
VIII - Com efeito, o arguido foi ao interior do anexo, pegou na espingarda, não possuindo a necessária licença de uso e porte, trouxe-a para o exterior, apontou-a à vítima e disparou sobre ela, matando-a. A conexão existente entre a conduta do arguido em relação à arma e o homicídio, esgotando-se aquela na prática deste, faz aparecer, no comportamento global, o sentido de ilícito do homicídio absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da utilização da arma proibida, havendo desde logo «unidade de sentido social do acontecimento ilícito global», pois o que o recorrente pretendeu foi matar o irmão, não sendo o uso de arma proibida mais que o processo de que se serviu para atingir o resultado almejado – cf. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2.ª Edição, págs. 989, 1015 e 1017.
IX - Não é, pois, correcta a decisão recorrida no ponto em que autonomizou como crime do art. 86.º, n.º 1, al. c), da Lei 5/2006, o uso da arma, devendo o arguido ser absolvido da acusação nessa parte. A utilização de arma proibida relevará apenas na determinação da pena concreta do crime de homicídio.
X - Para determinar a medida da pena do crime de homicídio (punível, em função daquela agravação, com pena de prisão de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses), e tendo em conta:
- o dolo, que não se afasta muito do que é normal neste tipo de crime quando cometido com dolo directo; é certo que a circunstância de o arguido ter que ir buscar a arma ao anexo onde ela se encontrava, por implicar a possibilidade de reflectir sobre o acto que se propunha levar a cabo, durante os momentos que esse movimento levou a ser executado, e o facto de ter feito um segundo disparo, depois de com o primeiro haver atingido a vítima em termos de lhe provocar a morte, são reveladores de uma vontade bem vincada de levar a cabo a conduta projectada, mas esse efeito de expansão do dolo é em alguma medida contrabalançado com o menor discernimento implicado, por um lado, no estado de revolta em que se encontrava, motivado pelas dificuldades que o ofendido estava a colocar à manutenção da sua residência no anexo, e, por outro, em alguma instabilidade emocional derivada da doença de que sofre que, conhecida há pouco tempo, impunha então baixa médica e tratamento de quimioterapia;
- o grau considerável de ilicitude, visto que, para além de se encontrar numa situação de ilegalidade em relação à espingarda, esta, sendo embora um instrumento normal para matar, dentro dos meios normais, é dos mais perigosos, pela sua elevada capacidade letal e por tornar muito difícil a defesa;
- a censura acrescida que deve ser dirigida à conduta do arguido, na parte do homicídio, por não se ter deixado sensibilizar pelos contra-motivos éticos relacionados com os laços de parentesco próximo com a vítima, de quem era irmão;
- que as necessidades de prevenção geral são assinaláveis;
- que, em sede de prevenção especial, relevam positivamente a ausência de antecedentes criminais e o facto de o recorrente estar socialmente inserido e, negativamente, a facilidade com que tomou a decisão de matar e a executou, deixando-se penetrar por uma revolta injustificada, relativa à herança,
entende-se adequada a pena de 14 anos de prisão [em vez da de 17 anos imposta em 1.ª instância].
XI -A decisão recorrida fixou a sanção acessória de detenção, uso e porte de armas em paralelismo com a pena do homicídio, fazendo coincidir a medida de ambas. Assim, a redução da medida da pena aplicada em 1.ª instância pelo crime de homicídio para 14 anos de prisão deve ser acompanhada de igual redução da medida da pena acessória.


Decisão Texto Integral:



Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

No 2º juízo criminal da comarca de ..., em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, foi proferido acórdão que condenou o arguido AA
a) pela prática de um crime de homicídio p. e p. pelas disposições combinadas dos artºs 131º e 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, na pena de 17 anos de prisão;
b) pela prática de um crime de detenção ilegal de arma p. e p. pelo artº 86º, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão; e
c) em cúmulo jurídico daquelas duas penas, na pena única de 17 anos e 10 meses de prisão.
Foi ainda aplicada ao arguido a sanção acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas pelo período de 17 anos.


O arguido interpôs recurso directo para este Supremo Tribunal, concluindo assim a sua motivação:
«I – Vem o presente recurso da douta decisão proferida nestes autos, que condenou o Recorrente.
II – A discordância do Recorrente tem a ver com a medida concreta da pena e a sua aplicação.
III – A pena aplicada (17 anos e 10 meses de prisão) é uma pena demasiado severa para os factos em apreço e face ao que se passou na audiência discussão e julgamento.
IV – O Tribunal “a quo” para a determinação da medida da pena e a aplicação daquela pena concreta de (17 anos e 10 meses de prisão), considerou no seu ponto 5, (fls. 17 da decisão), que “Tendo em conta a legitimação do nosso direito penal a partir da ideia de necessidade social, com expressa consagração constitucional, e cuja função é a tutela de bens jurídicos, a aplicação de qualquer pena só ganha sentido se estruturada e aplicada em termos preventivos “, e mais à frente conclui: “Em casos como este, em que, relativamente a alguns dos crimes em causa, há alternativa entre a pena de prisão ou multa, de acordo com o art. 70º do Código Penal, o Tribunal deve dar prevalência à pena de multa, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição — especiais e gerais “.
V – Ora, com o devido respeito por opinião contrária, afigura-se ao recorrente também aqui que a medida da pena única de (17 anos e 10 meses de prisão), ora aplicada é inquestionavelmente exagerada.
VI – Com efeito, o Tribunal “a quo” para aplicar aquela pena única de prisão, apesar de desqualificar o crime mais grave, (homicídio), por não se mostrarem “provados factos que possam levar à qualificação“, (fls. 13 da decisão), deu especial relevância aos factores agravativos relacionados com a prática do crime, (detenção ilegal de arma), dadas as (elevadas exigências de prevenção especial, situação de perigo e grau de culpa), sem atender – entre outros – à ausência de antecedentes criminais do aqui Recorrente.
VII – Nem tão pouco, considerou os factores atenuantes de especial importância, como sejam o da confissão parcial por parte do Recorrente, os sentimentos manifestados pelo recorrente no cometimento do crime e os motivos que o determinaram, as condições pessoais do Recorrente e a sua situação económica, e ainda a sua conduta anterior aos factos e posterior à prática destes, tendo demonstrado profundo arrependimento público, principalmente aos seus familiares.
VIII – Por outro lado, por diversas vezes durante o julgamento, o recorrente admitiu os factos mais relevantes para a descoberta da verdade.
IX – O Recorrente durante o julgamento admitiu os seus erros, demonstrando claro arrependimento através da confissão, pedindo perdão aos seus familiares, (mãe, cunhada e sobrinho), pelos actos cometidos.
X – Também foi com base nesses factos, admitidos pelo Recorrente, que o Tribunal “a quo” deu como provada parte da acusação como se pode ver a fls. 3 a 7 da decisão, em que o próprio Tribunal “a quo” refere que tais factos “... não merecem qualquer controvérsia em julgamento“.
XI – Contudo, sublinhe-se, o Tribunal “a quo” refere “Que o arguido disparou a arma em direcção ao irmão (...) O próprio o admitiu (embora tentando apresentar uma outra versão) “(fls. 10 da decisão).
XII – Mais, confirmou a espingarda de caça, de canos de alma lisa e cumprimento de 71 cm, com o número de série 7017, “...era pertença de seu falecido pai e estava registada em nome de sua mãe, I...C...” (fls. 6 da decisão).
XIII – Pela leitura da decisão se vê que o Recorrente é oriundo de um meio familiar de humildes condições, sem passado delituoso, onde lhe foram incutidas regras adequadas de convivência social (fls. 7 e 8 da decisão).
XIV – Aliás, o Tribunal “a quo” no ponto 1.15 da sua douta decisão (a fls. 6), refere que após o Recorrente ter cometido os crimes de que foi condenado, “...dirigiu-se ao posto territorial da Guarda Nacional Republicana de ..., onde se entregou“, não dando em nosso entender, qualquer relevo a este facto que milita a favor do Recorrente na fundamentação da decisão/condenação, pois entende o Recorrente que o Tribunal “a quo“ tinha que considerar essa sua actuação em seu benefício aquando da aplicação da medida concreta da pena, e não o fez.
XV – Violando assim o artigo 71º do Código Penal.
XVI – Dada a elevada idade do Recorrente, a doença grave de que padece e a circunstância de ser ainda o único sustento da família, o Tribunal “a quo” não solicitou uma perícia sobre a sua personalidade, apesar de se observar no relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, fls. 432, que, “Apesar de o arguido ser descrito como pessoa calma e responsável, parece apresentar alguma instabilidade emocional, que poderá estar ligada à sua actual situação de saúde e de que teve conhecimento pouco tempo antes da sua detenção “.
XVII – Violando assim os artigos 369°, n° 1, e 370°, n° 1, ambos do Código Processo Penal.
XVIII – Não sendo possível averiguar em concreto, qual o seu estado clínico e psicológico.
XIX – Atendendo que, poderia ser tido em consideração para a escolha da medida concreta da pena, podendo até consagrar uma diminuição da pena aplicada ao Recorrente, que não se concretizou.
XX – Sendo aplicada ao Recorrente (l7anos e 10 meses de prisão) por excessivamente gravosa.
XXI – Também por aqui, o Tribunal “a quo” violou o artigo 71° do Código Penal.
XXII – O Tribunal “a quo” não considerou ainda, para a medida concreta da pena, o facto de o Recorrente ter a seu cargo ainda duas filhas de 18 e 12 anos de idade, que estão a estudar, e devia tê-lo considerado.
XXIII – O facto de o Recorrente, apesar da sua elevada idade, estar actualmente ainda no activo e a trabalhar, como única forma de obter um rendimento mensal para garantir o único sustento da sua família, devia ter beneficiado de uma redução na medida concreta da pena, e não beneficiou.
XXIV – Também por aqui o Tribunal “a quo” violou o artigo 71° do Código Penal.
XXV – Por outro lado, e face aos factos e ao direito apurados no julgamento, a pena de prisão aplicada ao recorrente (17 anos e 10 meses) peca, por si só, por excessivamente gravosa, ultrapassando a medida da culpa.
XXVI – Pelo que foi violado o n° 2 do artigo 40° do CP.
Ao condenar o Arguido, ora Recorrente, atenta a moldura penal respectiva, o douto Tribunal de 1ª Instância não considerou, designadamente, o disposto do artigo 71° e n° 2 do artigo 40°, ambos do Código Penal e artigo 369°, n° 1, e artigo 370° n° 1, ambos do Código Processo Penal, pelo que foram violados estes mesmos preceitos legais.
Não devia o ora Recorrente ter sido condenado em pena tão elevada, podendo e devendo este Supremo Tribunal de Justiça, determinar a revogação do douto Acórdão ora posto em crise, na parte da aplicação da medida da pena, por outro, que tenha em consideração as circunstâncias atenuantes supra referidas, aplicando ao recorrente uma pena de prisão nunca superior a 10 anos».

Respondendo, o MP junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência do recurso.
No Supremo Tribunal de Justiça, a senhora procuradora-geral-adjunta emitiu parecer no sentido de que o homicídio não deve sofrer a agravação a que alude o nº 3 do artº 86º da Lei nº 5/2006, reduzindo-se, em consequência, a respectiva pena para 12 anos de prisão.
Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP.
Não foi requerida a realização de audiência.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.



Foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
1. O arguido AA era irmão de BB (nascido a 27.04.1945), sendo ambos filhos de J...C...de S... e de I...A...C....
2. O pai de ambos faleceu, sendo que I...C... e os filhos não procederam às partilhas dos bens, nomeadamente, não partilharam o imóvel sito na ..., o qual é composto por uma habitação principal (moradia) e diversos anexos.
3. I...C... ficou a residir na moradia sita na ..., e também o arguido ali passou a residir, ocupando um anexo desse imóvel, o qual é composto por uma sala e dois quartos; noutro anexo contíguo e com entrada a partir do exterior há uma casa de banho e um compartimento que funciona como cozinha.
4. O arguido partilhava anexo em que residia com as suas duas filhas, uma com 10 anos e outra com 18 anos de idade, ambas estudantes, as quais tinha a seu cargo.
5. O arguido padece de doença cancerígena num pulmão, pelo que se encontrava a fazer sessões de quimioterapia no Hospital Distrital de Faro.
6. Por sua vez, BB vivia com M...da C...M...V...S..., sua esposa, em ....
7. Após a morte do pai, o arguido e restante família não chegaram a consenso quanto à forma de partilhar a herança daquele, envolvendo-se em discussões, uma vez que BB pretendia vender o imóvel, posição com a qual o arguido não concordava, dizendo não ter onde morar.
8. No dia 11 de Abril de 2010, pelas 14H00, BB, acompanhado de M...da C...M...V...S..., sua esposa, deslocou-se à referida propriedade sita na ....
9. Uma vez aí, BBe o arguido envolveram-se em discussão, ainda por causa das partilhas, tendo este dito que a casa era sua e aquele para lhe mostrar a escritura e que iria cortar a luz.
10. Após, o arguido abandonou o local, no seu veículo automóvel.
11. Após ter regressado, por volta das 18 horas, como BB e sua mulher ainda ali se encontrassem, o arguido, movido pela revolta, dirigiu-se ao anexo onde habitava e saiu transportando uma espingarda.
12. Trata-se de espingarda caçadeira, de calibre 12 (para cartucho de caça), de marca e modelo não referenciáveis, com o número de série 7017, de tiro unitário múltiplo, com dois gatilhos (primeiro gatilho com o peso de 4,20 kg e o segundo gatilho com o peso 3,11 Kg), dois canos sobrepostos, com 710 mm, basculantes, de alma lisa, com fita de refrigeração no cano superior, câmara com 70 mm, extractor automático (com a basculamento dos canos) comum a ambas as câmaras e alimentação manual por introdução dos cartuxos nas câmaras, ponto de mira fixo, carcaça metálica e coronha e fuste em madeira e com 1 150 mm de comprimento total, sem qualquer deficiência de funcionamento que afecte a realização de disparos em ambos os canos.
13. Então, empunhou a espingarda na direcção do irmão e efectuou dois disparos na sua direcção, atingindo-o na cabeça, quando este se encontrava ao lado de sua mulher e mãe.
14. Como consequência directa e necessária dos referidos disparos, BB sofreu hemorragia periférica na face à direita e em maior número no couro cabeludo, zona posterior do pavilhão auricular direito e hematoma do olho direito com várias feridas algo semelhantes, de bordos esfacelados e anfractuosos na zona supracilar direita e infra-orbital direita, com sinais hemorrágicos e cianose facial ligeira, mais intensa em ambos os pavilhões auriculares e lábio, lesões que foram causa directa da sua morte.
15. De seguida, após ter guardado a espingarda no seu quarto, o arguido dirigiu-se ao posto territorial da Guarda Nacional Republicana de ..., onde se entregou.
16. O arguido não possuía licença para uso e porte de arma, sendo que a referida arma era pertença de seu falecido pai e estava registada em nome de sua mãe, I...C....
17. Agiu o arguido com o propósito de tirar a vida ao seu irmão BB.
18. O arguido conhecia as características da referida espingarda e a sua idoneidade para causar ferimentos profundos e mortais, sabendo, igualmente, que não lhe era permitida a detenção e utilização da arma sem a respectiva licença, mas quis praticar tais factos.
19. Agiu sempre de modo deliberado, livre e consciente, bem conhecendo a censurabilidade das suas condutas.
20. Chamado o INEM ao local, foi verificado o óbito de BB pelas 18H51.
21. BB foi transportado para o Hospital Distrital de Faro, onde foi declarada a sua morte pelas 0H20.
22. BB apercebeu-se que ia morrer, ao ver o arguido apontar-lhe a espingarda e ao aperceber-se dos disparos contra si.
23. BB era um bom marido e um bom pai e um amparo para sua esposa.
24. M...da C...M...V...de S... ficou assustada e com medo com a morte, que presenciou, de seu marido, passando a ter medo de residir na moradia do casal e passou a residir num quarto arrendado dentro da cidade de ....
25. M...da C...M...V...de S... e B... de S... tiveram grande desgosto, dor e angústia pela morte de seu marido e pai, respectivamente, ainda sofrendo com esse facto e com as circunstâncias que a rodearam.
26. M...da C...M...V...de S... e B... de S... despenderam € 7.570,78 com o funeral de BB.
27. O arguido AA é original de um meio familiar de humilde condição que lhe terá proporcionado um apoio adequado e transmitido regras adequadas de convivência social.
28. Frequentou a escola até aos 11 anos, tendo concluído a 4ª classe.
29. Exerceu sempre a profissão de motorista, primeiro para uma empresa privada de camionagem e depois para Câmara Municipal de ..., onde trabalha desde 1995, como motorista, com um vencimento líquido de cerca de 500 Euros, sendo descrito como um trabalhador assíduo e sem quaisquer problemas disciplinares.
30. Nunca contraiu casamento, mas tem duas filhas, de um relacionamento que findou há cerca de 10 anos e parece ter sido agora retomado, mostrando um adequado interesse pelas filhas, tendo-as integrado no seu agregado.
31. Após a sua detenção, a sua filha Leide Sousa passou durante algum tempo a residir sozinha na habitação, tendo a irmã Darleide Sousa, permanecido institucionalizada por intervenção da CPCJ.
32. A filha mais velha residia com o pai há cerca de 7 anos, enquanto a mais nova apenas integrou o agregado cerca de Abril do corrente ano. A relação intra-familiar é descrita como equilibrada, não sendo referido qualquer conflito.
33. Com a chegada a Portugal da mãe das filhas do arguido, esta passou a permanecer na casa, o que ainda se verifica, tendo a filha mais nova regressado a casa.
34. AA encontrava-se de baixa médica desde cerca do princípio do corrente ano.
35. Não foi referida rejeição no meio residencial por parte dos vizinhos.
36. Apesar de o arguido ser descrito como pessoa calma e responsável, parece apresentar alguma instabilidade emocional, que poderá estar ligada à sua situação de saúde, de que teve conhecimento pouco tempo antes da sua detenção.
37. No certificado do registo criminal do arguido nada consta».

E foi dado como não provado que (transcrição)
«-o pai de AA e BB tenha falecido em 1998;
-o arguido AA e a vítima BB nunca foram muito próximos, já que não viveram juntos desde a infância, uma vez que BB foi residir com os pais para Cascais, quando tinha cerca de três anos, enquanto o arguido ficou a morar no Algarve, com a avó, até aos 12 anos e que nessa sequência desenvolveram desde cedo uma relação pouco amistosa;
-o arguido tenha concordado com a venda da casa em que vivia;
-no dia dos factos, BB tenha dito que a decisão da venda da casa era irreversível;
-o arguido tenha proferido a expressão “Então quer dizer que amanhã isto vai estar tudo às escuras” e, enquanto disparava, tenha proferido qualquer expressão verbal;
-BB fosse pessoa saudável;
-BB tenha falecido às OH2Om;
-BB teve grande sofrimento com as lesões descritas no relatório de autópsia».


Conhecendo:
1. O recorrente começa por dizer que a sua discordância se refere «à medida concreta da pena e à sua aplicação», percebendo-se, pela sua argumentação, que tem em vista a pena única, cuja medida refere repetidamente, classificando-a como excessiva, e as penas parcelares, não só porque alega, no nº 11 da sua motivação, circunstâncias relativas a cada um dos crimes, que, na sua perspectiva, lhe serão favoráveis («tendo em conta que, quer relativamente ao crime de homicídio, quer no que concerne ao crime de detenção ilegal de arma, o ora recorrente não tem antecedentes criminais neste ou noutros crimes, tendo o mesmo confessado que não possuía licença para a utilização da arma que detinha, a qual era pertença de sua mãe»), mas também porque diz que o tribunal devia ter solicitado uma perícia sobre a sua personalidade, perícia essa que podia conduzir a «uma diminuição da pena aplicada». Esta omissão em seu entender violaria o disposto nos artºs 369º e 370º do CPP.

2. O arguido não retira consequências da alegação de que o tribunal recorrido devia ter diligenciado pela realização de uma perícia sobre a sua personalidade. E os artigos 369º e 370º do CPP são alheios a essa questão. Enquanto este dispõe exclusivamente sobre a possibilidade de o tribunal solicitar «a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, ou a respectiva actualização», aquele, no que se refere à perícia sobre a personalidade do arguido, trata apenas da sua leitura na fase da deliberação e votação, sendo estranho à sua realização. Sobre esta rege o artº 160º do mesmo código.
Esta perícia podia ter lugar até ao encerramento da discussão, previsto no artº 361º, nº 2, pelo que a sua não realização, se fosse essencial para a descoberta da verdade, configuraria a nulidade prevista no artº 120º, nº 2, alínea d) [«a omissão posterior de diligências que pudessem reputar-se essenciais para a descoberta da verdade»], que, para poder ser conhecida, tinha de ser arguida perante o tribunal recorrido até ao encerramento da discussão, nos termos do nº 3, alínea a), deste último preceito.
Não o tendo sido, se existiu, sanou-se.

3. Antes de entrar na apreciação da questão da medida das penas ou da pena, tem de ser definida a qualificação jurídica dos factos, que é de conhecimento oficioso, como resulta directamente do artº 424º, nº 3, do CPP. Desde logo, há que decidir se é de censurar a decisão recorrida no ponto em que fez accionar, em relação à pena do homicídio, a agravação prevista no nº 3 do artº 86º da Lei nº 5/2006, como pretende a senhora procuradora-geral-adjunta junto deste Supremo Tribunal, em cujo parecer se pode ler:
«A norma do nº 3 do artigo 86º da Lei nº 5/2006, de 23/02, na redacção introduzida pela Lei nº 17/2009, de 06/05, é uma norma geral.
Sempre que outro regime não esteja especialmente previsto, as penas aplicáveis aos crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo.
Ora, para o crime de homicídio, a lei prevê um regime especial de agravação quando aquele tenha sido cometido com utilização de meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de um crime de perigo comum.
Daí que a norma geral constante do artigo 86º, nº 3, da referida lei tenha sempre de ceder face ao regime especial previsto pelo Código Penal para o crime de homicídio.
Com o argumento de que se afastou justificadamente a aplicação do artigo 132º do Código Penal, por considerar-se que, no caso concreto, os factos cometidos não eram integradores da cláusula da especial censurabilidade concretizada na alínea h) do nº 2 do artigo 132º do CP, não pode “recuperar-se” o regime geral previsto apenas para os crimes relativamente aos quais a própria lei não pretendeu um regime especial de punição».
É o seguinte o texto do nº 3 do artº 86º:
«As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravados de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».
E, em complemento, estabelece-se no nº 4:
«Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do nº 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente».
Como se diz no nº 3, a agravação aí prevista só não terá lugar quando «o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma».
O uso ou porte de arma não é elemento do crime de homicídio, cujo tipo legal fundamental é o previsto no artº 131º do CP. Pode ser um factor de agravação, mas só o será se, para além de preencher um dos exemplos-padrão «meio particularmente perigoso» ou «prática de um crime de perigo comum» da alínea h) do nº 2 do artº 132º, revelar «especial censurabilidade ou perversidade». Enquanto a agravação do nº 3 do artº 86º, encontrando fundamento num maior grau de ilicitude, tem sempre lugar se o crime for cometido com arma, a do artº 132º só operará se o uso de arma ocorrer em circunstâncias reveladoras de uma especial maior culpa. Além, para haver agravação, basta o uso de arma no cometimento do crime; aqui não.
O nº 3 do artº 86º só afasta a agravação nele prevista nos casos em que o uso ou porte de arma seja elemento do respectivo tipo de crime ou dê lugar, por outra via, a uma agravação mais elevada. A agravação do artº 86º, nº 3, não é arredada ante a mera possibilidade de haver outra agravação, mas apenas se for de accionar efectivamente essa outra agravação. Ora, o uso de arma não é elemento do crime de homicídio, como se disse, e, no caso, não levou ao preenchimento do tipo qualificado do artº 132º.
Não há, assim, fundamento para afastar a agravação daquele artº 86º, nº 3.

4. Questão que deve ser posta nesta sede é a de saber se o arguido cometeu efectivamente o crime de detenção de arma proibida.
Por morte do pai do arguido e da vítima não se procedeu à partilha dos bens existentes. Um desses bens era a casa de habitação onde residia a mãe, casa essa que tinha anexos, num dos quais residia o recorrente. A espingarda caçadeira em causa pertencera ao pai do arguido, estava registada em nome da mãe e na altura encontrava-se no anexo que servia de habitação ao recorrente. Não se sabe a que título ali se encontrava, quem a colocara ali e desde quando ali se encontrava. Sabe-se apenas que a foi ali buscar para disparar sobre o irmão. Não se pode assim ter como assente que arma era detida pelo arguido. Este acto, único conhecido do recorrente em relação à arma, configura simples uso: arguido limitou-se a utilizar a arma para realizar o homicídio.
Essa conduta do recorrente, não possuindo ele a necessária licença de uso e porte, preenche o tipo objectivo do crime do artº 86º, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006. Na verdade, a espingarda em causa é uma «arma de fogo longa», como se vê das alíneas p), q) e s) do nº 1 do artº 2º desse diploma, por ter cano de 71 cm (facto nº 12); é uma arma de «tiro a tiro», na caracterização da alínea aj), visto não ter depósito nem carregador, sendo alimentada manualmente (facto nº 12); e é uma arma de cano de «alma lisa» (facto 12). Trata-se, pois, nos termos do artº 3º, nº 6, alínea c), de uma arma da classe D: «São armas da classe D: As armas de fogo longas de tiro a tiro de cano de alma lisa». E, conforme o disposto no artº 8º, nº 2, alínea a): «A aquisição, a detenção, o uso e o porte de armas da classe D podem ser autorizados: Aos titulares de licença de uso e porte de arma das classes C ou D».
E, não obstante o homicídio ser agravado em função da utilização da espingarda, ao abrigo do falado artº 86º, nº 3, não é valorada nessa agravação a situação de proibição em que o recorrente se encontrava em relação à arma, por falta da licença de uso e porte. Isso porque à agravação é indiferente que o agente esteja numa situação de legalidade ou de ilegalidade em relação à arma: a agravação teria lugar mesmo que o recorrente tivesse licença de uso e porte.
Mas, apesar de o comportamento global do arguido ser subsumível a dois tipos legais – homicídio e uso de arma proibida –, não deve concluir-se por um concurso efectivo de crimes, mas antes aparente.
Vão nesse sentido os ensinamentos de Figueiredo Dias, que, depois de ter como assente que «é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica» existente no comportamento global do agente «que decide em definitivo da unidade ou pluralidade de (…) de crimes», considera:
«A ideia central que preside à categoria do concurso aparente deve pois ser, repete-se, a de que situações da vida existem em que, preenchendo o comportamento global mais que um tipo legal concretamente aplicável, se verifica entre os sentidos de ilícito coexistentes uma conexão objectiva e/ou objectiva tal que deixa aparecer um daqueles sentidos de ilícito como absolutamente dominante, preponderante, ou principal, e hoc sensu autónomo, enquanto o restante ou os restantes surgem, também a uma consideração jurídico-social segundo o sentido, como dominados, subsidiários ou dependentes; a um ponto tal que a submissão do caso à incidência das regras de punição do concurso de crimes (…) seria desproporcionada, político-criminalmente desajustada e, ao menos em grande parte das hipóteses, inconstitucional. A referida dominância de um dos sentidos dos ilícitos singulares pode ocorrer em função de diversos pontos de vista: seja, em primeiro lugar e decisivamente, em função da unidade de sentido social do acontecimento ilícito global; seja em função da unidade de desígnio criminoso; seja em função da estreita conexão situacional, nomeadamente espácio-temporal, intercedente entre diversas realizações típicas singulares homogéneas; seja porque certos ilícitos singulares se apresentam como meros estádios de evolução ou de intensidade da realização típica global» (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, páginas 989 e 1015).
Como se viu, o arguido foi ao interior do anexo que lhe servia de habitação, pegou na espingarda, que ali se encontrava, não possuindo a necessária licença de uso e porte, trouxe-a para o exterior, apontou-a à vítima e disparou sobre ela, matando-a. A conexão existente entre a conduta do arguido em relação à arma e o homicídio, esgotando-se aquela na prática deste, faz aparecer, no comportamento global, o sentido de ilícito do homicídio absolutamente dominante e subsidiário o sentido de ilícito da utilização da arma proibida, havendo desde logo «unidade de sentido social do acontecimento ilícito global», pois o que o recorrente pretendeu foi matar o irmão, não sendo o uso de arma proibida mais que o processo de que se serviu para atingir o resultado almejado.
O autor citado aponta mesmo como exemplo de concurso aparente um caso como este: «Circunstâncias como, p. ex., a de se utilizar arma proibida (…) constituem condutas que concorrem com a de homicídio, em princípio, sob a forma de concurso aparente» (ob. cit., página 1017).
Não é, pois, correcta a decisão recorrida no ponto em que autonomizou como crime do artº 86º, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006, o uso da arma, devendo o arguido ser absolvido da acusação nessa parte.
A utilização de arma proibida relevará apenas na determinação da pena concreta do homicídio.
Não implicando esta alteração da qualificação jurídica dos factos necessidade de defesa, não há que accionar a notificação a que alude o referido artº 424º, nº 3, última parte.

5. Resta analisar a questão da medida da pena do crime de homicídio, punível, em função daquela agravação, com pena de prisão de 10 anos e 8 meses a 21 anos e 4 meses.
A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita, de acordo com o disposto no artº 71º do CP, em função da culpa e das exigências de prevenção, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, circunstâncias essas de que ali se faz uma enumeração exemplificativa e podem relevar pela via da culpa ou da prevenção.
À questão de saber de que modo e em que termos actuam a culpa e a prevenção responde o artº 40º, ao estabelecer, no nº 1, que «a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e, no nº 2, que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».
Assim, a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, de reinserção do agente na comunidade. À culpa cabe a função de estabelecer um limite que não pode ser ultrapassado.
Na lição de Figueiredo Dias, a aplicação de uma pena visa acima de tudo o “restabelecimento da paz jurídica abalada pelo crime”. Uma tal finalidade identifica-se com a ideia da “prevenção geral positiva ou de integração” e dá “conteúdo ao princípio da necessidade da pena que o art. 18º, nº 2, da CRP consagra de forma paradigmática”.
Há uma “medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar”, mas que não fornece ao juiz um quantum exacto de pena, pois “abaixo desse ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem perda da sua função primordial”.
Dentro desta moldura de prevenção geral, ou seja, “entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico)” actuam considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a medida da pena. A medida da “necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial”, mas, se o agente não se «revelar carente de socialização», tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em «conferir à pena uma função de suficiente advertência» (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2007, páginas 79 a 82).
O dolo, no caso, não se afasta muito do que é normal neste tipo de crime quando cometido com dolo directo. É certo que a circunstância de o arguido ter que ir buscar a arma ao anexo onde ela se encontrava, por implicar a possibilidade de reflectir sobre o acto que se propunha levar a cabo, durante os momentos que esse movimento levou a ser executado, e o facto de ter feito um segundo disparo, depois de com o primeiro haver atingido a vítima em termos de lhe provocar a morte, são reveladores de uma vontade bem vincada de levar a cabo a conduta projectada, mas esse efeito de expansão do dolo é em alguma medida contrabalançado com o menor discernimento implicado, por um lado, no estado de revolta em que se encontrava, motivado pelas dificuldades que o ofendido estava a colocar à manutenção da sua residência no anexo, e, por outro, em alguma instabilidade emocional derivada da doença de que sofre – cancro do pulmão –, que, conhecida há pouco tempo, impunha então baixa médica e tratamento de quimioterapia.
O grau de ilicitude é considerável, visto que, para além de se encontrar numa situação de ilegalidade em relação à espingarda, esta, sendo embora um instrumento normal para matar, dentro dos meios normais, é dos mais perigosos, pela sua elevada capacidade letal e por tornar muito difícil a defesa, sendo caso de dizer que uso da arma colocou o recorrente em grande superioridade de meios sobre a vítima.
Considerando estes dados e a censura acrescida que deve ser dirigida à conduta do arguido, na parte do homicídio, por não se ter deixado sensibilizar pelos contra-motivos éticos relacionados com os laços de parentesco próximo com a vítima, de quem era irmão, deve concluir-se por culpa superior à média, ainda que não muito elevada.
As necessidades de prevenção geral são assinaláveis, em face do já descrito modo de execução do facto, cuja gravidade é ligeiramente contrabalançada pela ausência de antecedentes criminais por parte do arguido e pelo seu estado emotivo.
Em sede de prevenção especial, relevam positivamente a ausência de antecedentes criminais e o facto de o recorrente estar socialmente inserido. E negativamente a facilidade com que tomou a decisão de matar e a executou, deixando-se penetrar por uma revolta injustificada, pois as dificuldades que a vítima estava a colocar à sua permanência no anexo onde residia, pertencente à herança em que ambos eram interessados, diziam respeito ao futuro, tendo por isso oportunidade de, no local próprio, fazer valer as razões que porventura lhe assistissem.
Ponderando estes dados, entende-se adequada a pena de 14 anos de prisão.

6. A medida máxima aplicável da pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas está fixada por referência ao limite superior da moldura penal do crime cometido com arma, no caso, o crime de homicídio. E a decisão recorrida fixou a sanção acessória em paralelismo com a pena do homicídio, fazendo coincidir a medida de ambas. Assim, a redução da medida da pena aplicada em 1ª instância pelo crime de homicídio para 14 anos de prisão deve ser acompanhada de igual redução da medida da pena acessória. A isso não é obstáculo o facto de o recurso não abranger esta sanção, como decorre do disposto no artº 403º, nº 3, do CPP.



Decisão:
Em face do exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, no provimento parcial do recurso, em alterar a decisão recorrida do seguinte modo:
a) absolvem o arguido da acusação relativamente ao crime p. e p. pelo artº 86º, nº 1, alínea c), da Lei nº 5/2006;
b) fixam em 14 (catorze) anos de prisão a pena do crime homicídio, p. e p. pelas disposições combinadas dos artºs 131º do CP e 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006; e
c) em 14 (catorze) anos a medida da pena acessória de interdição de detenção, uso e porte de armas.
Sem custas, uma vez que não houve decaimento total – artº 513º, nº 1, do CPP, na redacção dada pelo DL nº 34/2008, de 26 de Fevereiro.


Lisboa, 31 de Março

Manuel Braz (Relator)
Santos Carvalho