Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1610/20.5T8STR.E1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: TIBÉRIO NUNES DA SILVA
Descritores: FALTA DE CITAÇÃO
PROCURAÇÃO
ADVOGADO
NULIDADE
SANAÇÃO
CONSULTA DO PROCESSO
PRAZO DE ARGUIÇÃO
PODERES DA RELAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ATO INÚTIL
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
DUPLA CONFORME
Data do Acordão: 05/24/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Considera-se sanada a nulidade de falta de citação, nos termos do artigo 189º do CPC, quando o réu intervier no processo sem arguir logo essa falta.

II. A junção de uma procuração a advogado pressupõe o conhecimento do processo e configura-se como uma intervenção bastante para desencadear o ónus de arguição da falta de citação.

III. O art. 163º, nº2, do CPC faculta a consulta do processo antes da constituição do mandato judicial.

IV. A falta de citação pode ser arguida em qualquer altura do processo,  diferentemente do que se passa com a nulidade de citação, sujeita ao prazo (não aplicável à falta de citação) previsto no art. 191º, nº2, do CPC.

V. O exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto só se justifica quando recaia sobre matéria com relevância para a decisão da causa.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:




I


VALOR PRIME – FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO ABERTO – anteriormente designado “Finipredial – Fundo de Investimento Imobiliário Aberto” –, representado por Montepio Valor – Sociedade Gestora de Fundos de Investimento, S.A. intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra PANTERA NEGRA – SOCIEDADE DE TRANSPORTES, LDA., pedindo que:

a) Se reconheça a resolução do contrato de arrendamento celebrado em 22-12-2009, entre a Autora e a Ré, com fundamento no incumprimento da obrigação de pagamento das rendas, resolução essa operada por comunicação datada de 29-05-2014;

Ou, subsidiariamente:

b) Se declare a resolução do contrato de arrendamento com fundamento no incumprimento da obrigação de pagamento das rendas desde Outubro de 2011;

c) Se declare a resolução do contrato de arrendamento com fundamento no não uso do locado por mais de um ano e a cedência do locado ilícita e inválida perante o Autor, nos termos do disposto no artigo 1083.º, n.º 2, alíneas d) e e), do Código Civil;

E, em qualquer caso:

d) Se decrete o despejo imediato da ré do locado, condenando-a a restituir o locado ao autor, livre e desocupado de pessoas e bens;

E, ainda, em qualquer caso,

e) Se condene a ré a pagar ao autor uma sanção pecuniária compulsória, no valor que o Tribunal entender fixar, o qual não deverá ser inferior a €100,00, por cada dia de atraso no cumprimento da sentença que venha a ser proferida nos presentes autos, em conformidade com o disposto no artigo 829.ºA, n.º 1, do Código Civil.


Alega o A. para o efeito e em síntese, que:

É dono de um prédio urbano sito em ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...69, que, por contrato outorgado em 22-12-2009, deu de arrendamento à Ré, para fins não habitacionais, tendo a arrendatária deixado de cumprir pontualmente a obrigação de pagamento das rendas acordadas.

Além disso, a Ré cedeu, ilicitamente, a terceiros, o locado, tendo deixado de fazer uso deste.

A 13-07-2020, foi enviada carta registada, com aviso de recepção, para citação da Ré, dirigida ao local da respectiva sede.

A carta enviada veio devolvida com a menção “mudou-se”.

Em 17-07-2020, foi consultada a certidão permanente de registo comercial respeitante à Ré.

Em 20-07-2020, foi enviada nova carta registada, com aviso de receção, para citação da Ré, também dirigida ao local da respectiva sede.

No a.r., devolvido, fez-se constar, em 22-07-2020, em menção aposta pelo distribuidor do serviço postal, que no dia 22-07-2020, pelas 11h06 «Na impossibilidade de Entrega, depositei no Receptáculo Postal Domiciliário da morada indicada a CITAÇÃO a ela referente».

 Não foi apresentada contestação.


Foi, em 08-09-2020, proferido o seguinte despacho:

«A ré, citada regularmente, não contestou.

Dispõe o art.º 567.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, que “se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor”.

Assim, cumpra o disposto no art.º 567.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.»


Por despacho de 09-09-2020, foi decidido o seguinte:

«Ao abrigo do disposto no art.º 246.º, do Código de Processo Civil, julgo a ré validamente citada.»


Por sentença de 10-11-2020, a ação foi julgada parcialmente procedente, concluindo-se do seguinte modo:

«Em face do exposto, julgo parcialmente procedente, por parcialmente provada, a presente ação e, em consequência, decido:

a) Julgar válida a resolução extra-judicial do contrato de arrendamento não habitacional celebrado entre Finipredial – Fundo de Investimento Imobiliário Aberto, atualmente, Valor Prime – Fundo de Investimento Imobiliário Aberto, ora autora, e a ré Pantera Negra, relativo ao prédio urbano denominado ..., composto de casa de ..., armazém (1.125m2), armazém (1.191m2) e logradouro (8.884m2), sito na freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...69, da referida freguesia, e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...74....

b) Condenar a ré PANTERA NEGRA a entregar tal imóvel à autora VALOR PRIME – FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO ABERTO livre e devoluto de pessoas e bens.

c) Absolver a ré PANTERA NEGRA do pedido de pagamento de à autora da sanção pecuniária compulsória peticionada.»


Foi efectuada a notificação da sentença (com certificação Citius elaborada em 10-11-2020).

Em 23-11-2020, a Ré requereu a junção aos autos de procuração forense pela mesma outorgada a favor de dois Senhores Advogados.

Em 09-12-2020, a Ré interpôs recurso da sentença.

No Tribunal da Relação ..., foi proferido acórdão, no qual se julgou improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

Inconformada, a Ré, recorreu para este Supremo Tribunal, concluindo as suas alegações pela seguinte forma:

«1) A Recorrente entende que a circunstância de a nulidade processual ter sido unicamente invocada em recurso da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância perante o Tribunal da Relação ... e apenas decidida por este Tribunal da Relação, afasta a dupla conforme, porque o acórdão impugnado não incidiu sobre uma decisão interlocutória e porque as questões que se suscitaram pela Recorrente foram julgadas pela primeira vez na instância de apelação na Relação, pelo que a Recorrente entende ser admissível recurso de revista, ao abrigo do disposto no art.º 671.º, nº 1 e no art.º 674.º do CPC;

2) A Recorrente não foi citada para a ação declarativa, ficando consequentemente impossibilitada de contestar e dessa forma exercer o contraditório nessa ação;

3) E como a destinatária da citação, a Ré/Recorrente não chegou a ter conhecimento do ato, por facto que não lhe era imputável e não tendo sido cumprido o formalismo legal da citação por depósito postal, é nulo todo o processado que considerou que a Ré foi regularmente citada;

4) Assim sendo, a Recorrente podia arguir a nulidade nas alegações de recurso após ter tido conhecimento da sentença através do seu mandatário dentro do prazo de 30 dias após ter tomado conhecimento pois este era o prazo para a Ré deduzir contestação à ação;

5) A nulidade da citação existe quando não hajam sido observadas, na sua realização, as formalidades prescritas na lei, conforme dispõe o art.º 191.º do CPC;

6) É por isso nulo tudo o que foi processado depois da petição inicial, conforme dispõe a alínea a) do artigo 187º do CPC, ao que acresce que o tribunal da 1ª instância não referiu qual o documento em que se baseou para atestar a citação da Ré/recorrente, não especificando assim os fundamentos de facto em que se baseia para considerar efetuada a citação da recorrente,

7) A decisão do tribunal da 1ª instância, ao considerar realizada a citação da Ré recorrente, viola o artigo 20.º da CRP, assim como o acórdão ao considerar sanada a nulidade igualmente viola tal norma constitucional;

8) Isto porque, nos termos do disposto no artigo 191.°, n° 2, do CPC, a arguição da nulidade da citação deve ser efectuada no prazo da contestação pois pode invocar a nulidade de todo o processado, como excepção dilatória prevista na al. b) do art.º 577.º do CPC;

9) Entendemos é esta a interpretação que deve ser feita pois só esta salvaguarda o princípio de acesso ao direito e aos tribunais consagrado no artigo 20.° da Constituição da República Portuguesa, sob pena de negar-se a aplicação do normativo do art.° 191º, n.° 2, do CPC quando interpretado no sentido de considerar sanada a nulidade da citação no prazo para apresentar a reclamação e não dentro do prazo da contestação;

10) O prazo para a arguição da nulidade é o que tiver sido indicado para a contestação (art.º 191.º, n.º 2 do CPC), que no caso, era de 30 dias, nos termos do art.º 569.º do CPC;

11) O acórdão recorrido entendeu que a Ré/recorrente apenas podia reclamar da nulidade no prazo de 10 dias, mas a recorrente discorda de tal entendimento,

12) A Recorrente tinha o prazo para a arguição da nulidade de 30 dias, porque a nulidade (falta) da citação (nulidade principal) deve ser arguida com a primeira intervenção no processo, em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada;

13) A recorrente juntou aos autos procuração forense em 23/11/2020, apenas o seu mandatário poder consultar o processo eletrónico, isto porque não tendo sido a Ré citada, desconhecia por completo o que constava da ação judicial, tendo a Ré vindo posteriormente, em 09/12/2020, em recurso interposto da sentença e dentro do prazo de 30 dias, invocar a nulidade da citação da Ré/recorrente e a nulidade de decisão, daí decorrente;

14) A mera junção de procuração forense aos autos através do Citius não serve para se poder considerar que a Ré foi citada da ação nessa data e pela sanação da nulidade;

15) A recorrente invoca igualmente neste recurso de revista, o disposto no artigo 674.º, n.º 1, alínea c), do CPC, com o fundamento das nulidades previstas nas alíneas b) a e) do artigo 615.º do CPC, pois,

16) Nas alegações e conclusões do recurso, a recorrente impugnou a matéria de facto, indicando os concretos aspectos da matéria de facto que considera incorretamente julgados na decisão recorrida, nomeadamente que o Tribunal da 1ª instância não poderia, nem deveria ter concluído como concluiu, pois a própria Autora no art.º 37º da p.i. fez constar que a Ré não desocupou voluntariamente o locado, usando e fruindo do mesmo até à presente data, logo, resulta manifesto que se a Ré usa e frui do locado até ao presente, não pode a Ré, ao mesmo tempo, não usar o locado há mais de um ano, pelo que não deveria ter concluído como concluiu, por excesso de pronúncia, e tendo a recorrente recorrido sobre essa parte da sentença nas suas alegações de recurso, deveria o acórdão da Relação ter-se pronunciado sobre o mérito do recurso;

17) A Relação ... não apreciou a prova documental que foi junta com as alegações de recurso da Recorrente;

18) O douto acórdão recorrido ao deixar de se pronunciar sobre a questão de que deveria conhecer, ofendeu o disposto no art.º 608.º, nº 2 do CPC e, tendo o acórdão incorrido na violação daquela norma é o mesmo nulo, nos termos do art.º 615.º, 1, al. d) e do art.º 666.º do CPC;

19) É admissível revista excecional, quando se mostrem presentes os três requisitos do art.º 672.º, n.º 1 do CPC, o que sucede no presente caso;

20) Existe contradição substancial direta, quanto à mesma concreta questão de direito e no domínio da mesma legislação, entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento que se indica, que é o Acórdão do Tribunal da Relação ... proferido em 23/01/2020 no processo nº 17/19.1T8PVL.G1;

21) Isto porque no Acórdão do Tribunal da Relação ... proferido em 23/01/2020 se decidiu que:“I- O acesso à tramitação electrónica dos processos implica a junção de uma procuração forense, que constitui, em si mesma, o pressuposto de qualquer intervenção nos autos. II- Encontrando-se o processo sujeito a tramitação electrónica, não pode considerar-se que a mera junção de procuração forense a mandatário judicial é suficiente para fazer pressupor o conhecimento do processo, nos termos e para os efeitos do disposto pelo art. 189º do Código de Processo Civil.”;

22) Está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, porquanto a contraditoriedade de duas correntes jurisprudenciais com entendimentos opostos sobre a questão jurídica em causa gera insanável e insuportável incerteza jurídica;

23) Não foi ainda proferido acórdão de uniformização de jurisprudência, quanto à questão em causa;

24) A questão cuja apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito reporta-se ao entendimento de que a junção da procuração não é suficiente para pôr termo à revelia absoluta, nem meio idóneo de tomar conhecimento do processo, de modo a presumir-se que logo aí o réu prescindiu, conscientemente, de arguir a falta de citação, é de concluir que não ficou então sanada a eventual nulidade da citação e nessa medida, é tempestiva a arguição pela ré/apelante da sua falta de citação para a ação, dentro do prazo da contestação da ré;

25) Deve assim ser proferida decisão de verificação dos pressupostos do n.º 1 do art.º 672.º do CPC, seguindo os autos os normais trâmites de uniformização de jurisprudência;

26) Deve ser uniformizada a jurisprudência no sentido do acórdão-fundamento.

Termos em que deve ser admitido e julgado procedente o presente recurso de revista, revogando-se as decisões das duas instâncias.»


Contra-alegou o Recorrido, defendendo a inadmissibilidade da revista e pugnando, de qualquer modo, pela sua improcedência.


*


Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões de quem recorre, para além do que for de conhecimento oficioso, assumem-se como questões a tratar as de saber se, diversamente do decidido, se deve entender que a Recorrente poderia arguir a nulidade resultante da falta de citação em 30 dias, devendo, por isso, considerar-se sanada essa nulidade, tendo em atenção a data em que interpôs o recurso, e se devem os autos voltar ao Tribunal da Relação para a apreciação de questão ( “impugnação da decisão de facto”) de que deveria conhecer.



II


Nas instâncias, deram-se por provados os seguintes factos:

«1. A autora é dona e legítima proprietária do prédio urbano denominado ..., composto de casa de ..., armazém (1.125m2), armazém (1.191m2) e logradouro (8.884m2), sito na freguesia e concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...69, da referida freguesia, e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...74..., aquisição registada sob a Ap. ...90 de 2009/12/28.

2. No dia 22 de dezembro de 2009, a autora deu de arrendamento à ré o imóvel identificado em 1., mediante celebração de um "Contrato de Arrendamento para Fins Não Habitacionais Com Prazo Certo".

3. O contrato foi celebrado pelo prazo de 7 anos, renovado automaticamente por iguais períodos de 3 anos.

4. Foi convencionada a renda mensal inicial de € 7 500,00, atualizável anualmente, a qual deveria ser paga até ao 8.º dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que disser respeito.

5. A partir de fevereiro de 2010, a ré deixou de cumprir pontualmente a sua obrigação de pagamento das rendas, encontrando-se, em dívida, em setembro de 2010, pela ré à autora a quantia de € 60 000,00 (sessenta mil euros), correspondente às rendas de março a outubro de 2010, cada uma no montante de € 7 500,00 (sete mil e quinhentos euros).

6. Em 02 de setembro de 2010, foi emitida a Nota de Débito n.º 575/2010, no valor de € 22 500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros), correspondente à indemnização referente a 50% do valor em dívida relativo aos meses de março de 2010 a agosto de 2010, elevando o valor em dívida pela ré à autora ao montante de € 82 500,00 (oitenta e dois mil e quinhentos euros).

7. A ré não liquidou nas datas dos respetivos vencimentos as rendas respeitantes aos meses de novembro e dezembro de 2010, cada uma no montante de € 7 500,00 (sete mil e quinhentos euros), pelo que o valor em dívida pela ré à autora, em novembro de 2010, ascendia a € 97 500,00 (noventa e sete mil e quinhentos euros).

8. Em 11 de novembro de 2010, foi emitida a Nota de Débito n.º 743/2010, no valor de € 15 000,00 (quinze mil euros), correspondente à indemnização referente a 50% do valor em dívida relativo aos meses de setembro de 2010 a dezembro de 2010, perfazendo o valor em dívida pela ré à autora, após emissão daquela Nota, o montante de € 112 500,00 (cento e doze mil e quinhentos euros).

9. Em 25 de novembro de 2010, foi acionada garantia bancária no valor de € 90 000,00 (noventa mil euros), tendo o valor em dívida pela ré à autora sido reduzido ao montante de € 22 500,00 (vinte e dois mil e quinhentos euros).

10. A ré, porém não tendo pagou a renda referente a janeiro de 2011, no valor de € 7 500,00 (sete mil e quinhentos euros).

11. Em 02 de dezembro de 2010, foi emitida a Nota de Débito n.º 786/2010, no valor de € 3 750,00 (três mil setecentos e cinquenta euros), correspondente à indemnização referente a 50% do valor em dívida relativo ao mês de janeiro de 2011, ascendendo, assim, o valor em dívida pela ré à autora, após emissão daquela Nota, a € 33 750,00 (trinta e três mil setecentos e cinquenta euros).

12. Vencidas as rendas respeitantes a fevereiro, março e abril de 2011, cada uma no valor de € 7 500,00 (sete mil e quinhentos euros), a ré apenas entregou à autora, em 01 de abril de 2011, o valor de € 7 500,00, tendo liquidado com esse montante a renda de janeiro de 2011, permanecendo em dívida a quantia de € 52 500,00 (cinquenta e dois mil e quinhentos euros).

13.Vencidas as rendas respeitantes a maio, junho, julho e agosto de 2011, a ré apenas entregou à autora, em 13 de julho de 2011, a quantia de € 7 500,00 (sete mil e quinhentos euros).

14. Em 11 de fevereiro de 2013, a ré procedeu ao pagamento à autora da quantia de € 45 000,00 (quarenta e cinco mil euros), tendo liquidado parcialmente a quantia em dívida, ficando em falta ½ da renda de maio de 2011 e as rendas subsequentes já vencidas àquela data.

15. A ré não procedeu ao pagamento, na data do respetivo vencimento, da totalidade da renda de maio de 2011 e de todas as rendas vencidas desde junho de 2011, nem o fez nos oito dias seguintes após o início da mora, nem posteriormente, não obstante ter sido interpelada para o efeito.

16. Em 14 de janeiro de 2014, a autora requereu a notificação judicial avulsa da ré, destinada a comunicar-lhe a cessação do contrato de arrendamento por resolução com fundamento na falta de pagamento das rendas.

17. E a comunicar-lhe que devia pagar o valor das rendas vencidas e não pagas referentes aos meses de maio de 2011 a fevereiro de 2014, na quantia total de € 255 630,18, acrescida de juros que se vencerem à taxa legal sobre cada renda vencida, assim como o valor das rendas vincendas até à entrega do locado.

18. O requerimento foi distribuído ao Tribunal da Comarca ..., AA, Juízo de Média Instância Cível, ... Secção, sob o n.º 1108/14.... e mas a notificação da requerida, ora ré, em 20 de fevereiro de 2014, na sua sede sita no Parque Industrial ... – BB - ..., Estrada ..., em ..., resultou negativa.

19. Da mesma forma, resultou negativa a notificação da requerida, ora ré, realizada na morada do locado – Estrada ..., ..., em 31 de março de 2014.

20. Nesta sequência, a autora no dia 29 de maio de 2014, comunicou à ré a resolução do contrato de arrendamento através de carta registada com aviso de receção.

21. Em 08 de abril de 2016, a autora requereu, no Balcão Nacional de Arrendamento, procedimento especial de despejo contra a ré, requerendo a desocupação do locado, com fundamento na resolução do contrato pelo senhorio.

22. O requerimento de despejo foi objeto de recusa por não terem sido entregues os documentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 15.º da Lei n.º 6/2006 e omitir o lugar da notificação da requerida.

23. A requerente, ora autora, apresentou novo requerimento de despejo no Balcão Nacional de Arrendamento, suprindo as deficiências do anterior.

24. Realizadas as diligências de notificação, não tendo a requerida, ora ré, deduzido oposição foi o requerimento de despejo convertido em título para desocupação do locado.

25. Em 30 de janeiro de 2017, foi junto pela Senhora Agente de Execução, auto de diligência, no qual dá nota que no dia 27 de janeiro de 2017, se dirigiu à morada do locado, e afixou os editais/notificações “(…) para que a requerida respeite e reconheça o direito do requerente no âmbito do procedimento especial de despejo supra identificado, bem como para, no prazo de 30 dias, remover todos os bens móveis, sob pena de estes serem considerados abandonados (art.º 15.º K aditamento Lei n.º 6/2006)”.

26. Por requerimento datado de 03 de fevereiro de 2017, a requerida, ora ré, deduziu, ao abrigo do disposto no artigo 15.º–P da Lei n.º 6/2006, impugnação ao título de desocupação do locado.

27. Em 30 de novembro de 2017, foi proferida sentença, pelo Juízo Local Cível ..., no âmbito do processo n.º 374/17…, que julgou procedente o incidente de impugnação do título de desocupação e declarou nulo o procedimento a partir do requerimento inicial por não ter sido efetuada a notificação à requerida, ora ré, nos termos do artigo 15.º -D da Lei n.º 6/2006.

28. A autora não logrou, assim, obter o título de desocupação do locado, apesar de validamente resolvido o contrato de arrendamento.

29. A ré não desocupou voluntariamente o locado, usando e fruindo do mesmo até à presente data, não obstante persistir no incumprimento do pagamento das rendas.

30. A autora propôs contra a ré uma ação executiva, na qual reclamava as rendas em dívida entre maio de 2011 e agosto de 2014 – Processo n.º 906/14.... – Juízo de Execução ... – Juiz ....

31. Foram deduzidos Embargos de Executado pela ré, tendo, nessa sede, sido julgada parcialmente procedente a exceção perentória de pagamento parcial.

32. Na sequência da referida sentença, a autora veio liquidar as rendas vencidas e não pagas ali reclamadas no montante de € 269 880,54 (duzentos e sessenta e nove mil oitocentos e oitenta euros e cinquenta e quatro cêntimos), correspondentes às rendas de outubro de 2011 a agosto de 2014.

33. Conforme resulta da sentença proferida na ação executiva n.º 906/14…, a ré não procedeu ao pagamento da renda referente ao mês de outubro de 2011 e à totalidade das rendas que se venceram subsequentemente até à presente data.

34. No âmbito do procedimento especial de despejo, a sociedade “FILESTORAGE – ARQUIVOS, LDA.”, requereu a suspensão da desocupação do locado com fundamento em contrato de cedência de espaço comercial, celebrado em 01 de março de 2007, com a arrendatária “Pantera Negra”, então proprietária do prédio, tendo por objeto espaço de armazenagem situado no prédio arrendado.

35. Declarando «ocupar, pois, legitimamente desde 01/03/2007, um espaço de armazenagem sito no prédio locado e ser a única legítima proprietária da carga que lá se encontra dentro do seu espaço».

36. Acrescenta, ainda, ser detentora, por cedência da ré, de uma casa para o guarda sita no prédio locado, pretendendo ver reconhecido o subarrendamento não autorizado da anterior proprietária e atual arrendatária “Pantera Negra” a seu favor porque se considera ratificado pela senhoria, a ora autora.

37. O referido subarrendamento a favor da sociedade “FILESTORAGE – ARQUIVOS, LDA.” não foi autorizado pela autora na qualidade de senhoria, nem sequer lhe foi notificado ou comunicado.

38. A autora apenas teve conhecimento do referido subarrendamento com o requerimento de suspensão de desocupação do locado apresentado pela “FILESTORAGE – ARQUIVOS, LDA.”, em 06 de fevereiro de 2017.

39. A autora não ratificou o dito subarrendamento ou reconheceu a “FILESTORAGE – ARQUIVOS, LDA.” como subarrendatária.

40. No âmbito do procedimento especial de despejo, a sociedade “JOURNEYCONCEPT – UNIPESSOAL, LDA.”, requereu a suspensão da desocupação do locado com fundamento em “Contrato de prestação de serviços de armazenagem com reserva de espaço e/ou depósito em ambiente natural”, celebrado em 10 de julho de 2012, com a arrendatária “Pantera Negra”, tendo por objeto os espaços correspondentes ao ... e ao ... arrendado, declarando «ocupar, pois, legitimamente desde 10/07/2012, dois espaços de armazenagem no prédio locado e ser a única legítima proprietária da carga que lá se encontra dentro dos seus espaços».

41. Acrescenta, ainda, que, para além dos espaços nos armazéns, detém no prédio locado quase uma centena de animais, pretendendo ver reconhecido o subarrendamento não autorizado da anterior proprietária e atual arrendatária “Pantera Negra” a seu favor porque se considera ratificado pela senhoria, a ora autora.

 42. O referido subarrendamento a favor da sociedade “JOURNEYCONCEPT – UNIPESSOAL, LDA.” jamais foi autorizado pela autora na qualidade de senhoria, nem sequer lhe foi notificado ou comunicado.

43. A autora apenas teve conhecimento do referido subarrendamento com o requerimento de suspensão de desocupação do locado apresentado pela “JOURNEYCONCEPT – UNIPESSOAL, LDA.”, em 06 de fevereiro de 2017.

44. A autora não ratificou o dito subarrendamento ou reconheceu a “JOURNEYCONCEPT – UNIPESSOAL, LDA.” como subarrendatária.

45. A ré ainda não restituiu o imóvel à autora.»



III


III.1.

A R. interpôs recurso de revista “normal”, defendendo não haver dupla conforme, já que, no acórdão recorrido, se apreciou a questão da falta de citação suscitada, pela primeira vez, nas alegações de recurso e conhecida pelo Tribunal da Relação. Subsidiariamente, invocou, para efeitos de revista excepcional, contradição do acórdão recorrido com o da Relação de Guimarães de 23-01-2020, Proc. 17/19.1T8PVL.G1, publicado em www.dgsi.pt.

O Recorrido, nas suas contra-alegações, defendeu ser inadmissível o recurso de revista, já que, diversamente da Recorrente, entende haver dupla conforme, visto que o Tribunal de 1.ª Instância apreciou a regularidade da citação da Ré, tendo, por despacho sob a referência ...14, julgado a Ré validamente citada; em sede de sentença, apreciando a validade da instância, decidiu pela inexistência de nulidades e, por despacho sob a referência ...60, apreciou a nulidade arguida pela Ré, ora Recorrente, nas suas alegações de recurso, considerando sanada a nulidade e tendo a Relação confirmado o decidido nesse despacho.

Cumpre apreciar.

A Recorrente invocou nas alegações de recurso, pela primeira vez nos autos (não tendo deduzido requerimento autónomo, nem no momento da sua primeira intervenção no processo, consubstanciada na junção de uma procuração, nem entre essa junção e a apresentação do recurso de apelação), a questão da falta de citação.

É verdade que a 1ª Instância, aquando do despacho de admissão do recurso, se pronunciou, por referência ao invocado nas alegações da apelação, sobre a questão da falta de citação, considerando-a sanada. Mas o acórdão recorrido, tendo em atenção o facto de o problema ter sido suscitado por via de recurso e não de reclamação autónoma, o que fez não foi confirmar aquele despacho, como refere a Recorrida, mas conhecer da questão que lhe foi dirigida directamente, ponderando-se, designadamente, o seguinte:

«No caso presente, consta dos despachos de 08-09-2020 e de 09-09-2020 que a ré foi validamente citada, não podendo considerar-se que a sentença proferida absorva os efeitos da nulidade ora invocada, por falta de citação da ré, embora a verificação do vício afete necessariamente a sentença, bem como o demais processado posterior à petição inicial. Assim sendo, não se vislumbra, nem tal é invocado pela apelante, que a causa de nulidade processual suscitada resulte da sentença proferida pela 1.ª instância ou, melhor, se corporize na decisão recorrida, nem que só com a notificação desta se tenha manifestado.

Nesta conformidade, deveria a nulidade processual decorrente da falta de citação ter sido invocada autonomamente, através de reclamação, e não no âmbito do recurso interposto da sentença final.

No entanto, considerando que se trata de nulidade de conhecimento oficioso, da qual deve o tribunal conhecer logo que dela se aperceba, podendo suscitá-la em qualquer estado do processo, enquanto não deva considerar-se sanada, cumpre apreciar se ocorreu o suprimento da nulidade decorrente da falta de citação.»


Não se olvidará que estamos perante o recurso da sentença proferida nos autos, que foi confirmada. Mas nela não se conheceu do problema da falta de citação. Daí que, por necessário reporte à decisão recorrida, não estejamos perante dupla conforme (art. 671º, nº 3, do CPC).

Além disso, relativamente à rejeição da impugnação da decisão de facto, contra a qual se rebela a Recorrente, considerando haver omissão de pronúncia, tem-se entendido que, estando em causa o modo como a Relação exerce os poderes que lhe competem no conhecimento dessa impugnação, também não se verifica dupla conforme, pois trata-se de decisão ex novo da Relação. Vejam-se, a propósito, os Acs. do STJ de 17-12-2019, Proc. 363/07.7TVPRT-D.P2.S1, Rel. Maria da Graça Trigo; de 18-01-2020, Proc. 701/19.0T8EVR.E1.S1, Rel. Maria João Vaz Tomé, e de 18-01-2022, Proc. 243/18.0T8PFR.P1.S1, Rel. Maria Clara Sotto Mayor, publicados em www.dgsi.pt.

Sendo assim, é admissível a revista “normal”.


III.2.

A Recorrente refere que não foi citada para a presente ação declarativa, tendo ficado impossibilitada de contestar e, dessa forma, de exercer o contraditório.

Acrescenta que:

- Como destinatária da citação, não chegou a ter conhecimento do acto, por facto que não lhe é imputável e, não tendo sido cumprido o formalismo legal da citação por depósito postal, é nulo todo o processado que considerou que a Ré foi regularmente citada.

- Assim sendo, podia arguir a nulidade nas alegações de recurso após ter tido conhecimento da sentença, dentro do prazo de 30 dias, pois era o prazo para a Ré deduzir contestação à acção, estribando-se nos arts. 191º, nº 2 e 569º do CPC.


Vejamos.

A Ré/Apelante, conforme resulta do relatório acima feito, após ter sido proferida a sentença e ter-se procedido à notificação dessa sentença (certificação Citius de 10-11-2020), veio ao processo, em 23-11-2020, juntar procuração, outorgada a dois Senhores Advogados, referindo, no requerimento então apresentado, que vinha juntar aos autos procuração a favor do advogado signatário, a fim de poder consultar os autos.

A Ré interpôs recurso de apelação, em 09-12-2020, invocando, nas alegações respectivas, a falta de citação. A primeira conclusão é deste teor:

«1) A Ré, ora Apelante, não foi citada para este processo».

O Tribunal a quo considerou, a esse propósito, entre o mais, o seguinte:

«No caso presente, extrai-se da tramitação exposta no relatório supra que a ré requereu, em 23-11-2020, a junção aos autos de procuração forense que outorgou a favor de dois advogados, designadamente do Sr. Advogado subscritor do requerimento em causa, não tendo então arguido a falta da sua citação. Apenas nas alegações do recurso da sentença, que interpôs em 09-12-2020, suscitou a ré a falta de citação, pugnando pela revogação da decisão recorrida e respetiva substituição por decisão que declare nulo todo o processado desde os despachos de 08-09-2020 e 09-08-2020.

Dúvidas não há de que a junção de procuração outorgada pela ré a advogados configura um ato de intervenção no processo, o qual pressupõe que a ré tem conhecimento da existência dos autos, sendo certo que tal intervenção não foi acompanhada pela invocação da falta da sua citação, pelo que cumpre aferir se deverá considerar-se sanada a nulidade em causa.

Impondo o artigo 189.º ao réu que intervier no processo o ónus de arguir logo a falta da sua citação, da interpretação literal do preceito decorre que, não tendo a ré invocado a falta da sua citação aquando da junção aos autos da procuração forense, incumpriu tal ónus, em consequência do que é de considerar sanado o vício.

Alguma jurisprudência recente tem defendido uma interpretação atualista do artigo 189.º, face à tramitação eletrónica do processo, por se entender que resulta da Portaria n.º 280/2013, de 26-08, que a junção da procuração é condição de acesso ao processo eletrónico e que tal acesso é que permitirá ao réu tomar conhecimento da respetiva tramitação, bem como da eventual falta da sua citação, o que impede se considerem reunidas condições que permitam a arguição do vício em simultâneo com a junção da procuração, conforme decorre da interpretação literal do mencionado preceito.

Neste sentido, a título exemplificativo, pode citar-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-11-2020 (relator: Raimundo Queirós), proferido na revista n.º 2087/17.8T8OAZ-A.P1.S1 - 6.ª Secção, de cujo sumário (publicado em www.stj.pt) se extrai o seguinte: I - A nulidade decorrente da falta de citação deve ser arguida no próprio acto que constitua a sua primeira intervenção no processo, sob pena de sanação nos termos do art. 189.º do CPC. II - A intervenção do réu no processo, relevante para os fins do art. 189.º do CPC, pressupõe o conhecimento, ou a possibilidade de conhecimento, da pendência do processo, bastando para tal a junção de procuração a mandatário judicial, pois tal acto permite presumir que o réu conhece o processo e prescindiu conscientemente de arguir a falta de citação. III - No caso dos autos, com a junção da procuração e acesso electrónico aos autos o executado tomou conhecimento de que ainda não tinha sido citado, assim como passou a ter conhecimento de todos os elementos do processo. IV - Defendemos uma interpretação actualista do art. 189.º do CPC face à tramitação electrónica do processo. Com efeito, resulta da Portaria 280/2013 de 26-08 que a junção da procuração é condição de acesso ao processo electrónico. De modo que a expressão “logo” prevista no art. 189.º do CPC não pode ser simultânea a essa junção. (…).

No mesmo sentido, cf. entre outros, os acórdãos desta Relação de 03-11-2016 (relator: Tomé de Carvalho), proferido no processo n.º 1573/10.5TBLLE-C.E1, e de 22-10-2020 (relator: Manuel Bargado), proferido no processo n.º 926/19.8T8STB.E1, os acórdãos da Relação de Lisboa de 06-07-2017 (relator: António Santos), proferido no processo n.º 21296/12.0YYLSBA.L1-6, e de 05-11-2019 (relatora: Maria da Conceição Saavedra), proferido no processo n.º 66733/05.5YYLSB-C.L1-7, os acórdãos da Relação de Guimarães de 29-06-2017 (relator: Jorge Teixeira), proferido no processo n.º 1762/16.9T8VNF-I.G1, e de 23-01-2020 (relatora: Fernanda Proença Fernandes), proferido no processo n.º 17/19,1T8PVL.G1, e o acórdão da Relação de Coimbra de 24-04-2018 (relator: Isaías Pádua), proferido no processo n.º 608 /10.6TBSRT-B.C1, todos publicados em www.dgsi.pt.

Porém, no caso presente, a tomada de posição quanto à aludida questão não assume relevo autónomo, dado que, ainda que se conclua que a nulidade não ficou sanada em virtude da não arguição imediata da falta da citação aquando da junção pela ré da procuração forense, sempre haverá que considerar suprida a nulidade por falta da respetiva arguição no prazo geral de 10 dias previsto no artigo 149.º, n.º 1, do CPC, contado desde a junção aos autos de tal procuração.

Tendo a junção da procuração aos autos ocorrido a 23-11-2020, data a partir da qual passou a ré a ter acesso eletrónico ao processo, através dos mandatários judiciais que constituiu, o prazo de 10 dias, fixado no mencionado artigo 149.º, n.º 1, terminou a 03-12-2020, sem que tenha a nulidade sido invocada pela ré, que a suscitou pela primeira vez nas alegações do recurso que interpôs da sentença a 09-12-2020.

Nesta conformidade, cumpre considerar sanada a nulidade decorrente da falta de citação da ré, o que impede o conhecimento oficioso da matéria, pelo que não se procederá à respetiva apreciação.»


Dispõe o art. 189º do CPC:

«Se o réu ou o Ministério Público intervier no processo sem arguir logo a falta da sua citação, considera-se sanada a nulidade.»


A tese expressa no acórdão é a de que a junção de procuração outorgada pela Ré configura um acto de intervenção no processo, o qual pressupõe que a Ré tinha já conhecimento da existência dos autos. Daí que devesse logo arguir a falta da sua citação.

É essa a posição de Miguel Teixeira de Sousa, citado no acórdão, que vem expressa em “CPC ONLINE”, Livro II, p. 11[1]:

«2 (a) A falta de citação fica sanada se o réu ou o MP intervier no processo e não arguir logo essa falta (TC 698/98; RL 23/3/2021 (8284/16)). A sanação opera com eficácia ex tunc. (b) O regime  compreende-se: se o réu ou o MP intervém no processo é porque, qualquer que tenha sido a anomalia que tenha ocorrido no acto da citação, tem conhecimento do processo. Note-se que não é a intervenção no processo que cessa o vício; o que cessa o vício é a intervenção no processo e a não arguição imediata da falta de citação.

3 (a) A intervenção no processo ocorre quando o réu ou o MP pratica algum acto no processo. (b) O acto praticado pode ser a junção pelo réu de procuração a advogado (RE 6/10/2016 (455/13)). Esta junção é suficiente para onerar a parte com a arguição da falta de citação (dif. RP 9/1/2020 (2087/17)), dado que seria estranho que o réu que sabe que houve falta de citação e que, ainda assim, escolhe praticar um acto no processo não tivesse o ónus de invocar "logo" essa falta de citação.»


Na verdade, a junção de uma procuração aos autos pressupõe o conhecimento da existência do processo, por parte de alguém que (pelo menos, na sua perspectiva) sabe que não foi citado, tratando-se, pois, de uma intervenção capaz de desencadear o ónus de arguir (“logo”), a falta de citação, sob pena de sanação do vício.

Lebre de Freitas e Isabel Alexandre referem que «[a]o intervir, o réu ou o Ministério Público tem, ou pode logo ter, pleno conhecimento do processado, pelo que, optando pela não arguição da falta, não pode deixar de se presumir juris et de jure que dela não quer, porque não precisa, prevalecer-se» (Código de Processo Civil Anotado, vol. 1º, 4ª edição, Almedina, Coimbra, 2021, p. 390).

Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa anotam que se o réu (ou o Ministério Público) «tiver intervenção no processo sem invocar imediatamente o vício, a nulidade considera-se suprida. Para este efeito, “arguir logo a falta” significa fazê-lo na primeira intervenção processual» (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, Coimbra, 2018, p. 228).

Tem vindo a desenvolver-se uma interpretação actualista, que foi adoptada no Ac. do STJ de 24-11-2020 (Rel. Raimundo Queirós), Proc. 2087/17.8T8OAZ-A.P1.S1, no sentido de que,  face à tramitação electrónica, resultando da Portaria 280/2013, de 26-08, que a junção da procuração é condição de acesso ao processo electrónico, não pode a expressão “logo”, prevista no art. 189.º do CPC, significar simultaneidade com essa junção.

Nesta interpretação se inscreve o Ac. da Rel. de Guimarães de 23/01/2020, invocado pela Recorrente.

No Ac. da Relação de Coimbra de 16-03-2021, Rel. Moreira do Carmo, Proc. 163/20.9T8CBR.C1, publicado em www.dgsi.pt, concluiu-se, em sentido diverso dessa interpretação, que:

«i) Considera-se sanada a falta de citação, nos termos do artigo 189º do NCPC, quando o réu intervier no processo sem arguir logo aquela falta, entendendo-se por intervenção no processo a prática de acto judicial útil, suscetível de pôr termo à revelia do réu;

ii) - A junção ao processo de procuração a advogado, sem logo arguir aquela omissão, constitui uma intervenção relevante que faz pressupor o conhecimento do mesmo, permitindo presumir-se que o réu abdicou conscientemente de arguir a falta de citação;

iii) A tramitação eletrónica do processo não interfere com as 2 anteriores conclusões».


Chama-se, neste aresto, a atenção para a existência de um processo físico (art. 28º da Portaria nº 280/2013, de 26-08) e para o que se dispõe, relativamente à consulta de processos por advogados e solicitadores,  no art. 27º da mesma Portaria:

«1 - A consulta de processos por parte de advogados e solicitadores é efetuada:

a) Relativamente à informação processual, incluindo as peças e os documentos, existentes em suporte eletrónico, através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, com base no número identificador do processo; ou

b) Junto da secretaria.

2 - O acesso ao sistema informático de suporte à atividade dos tribunais para efeitos de consulta de processos requer o prévio registo dos advogados e solicitadores, nos termos do n.º 2 do artigo 5.º

3 - À consulta eletrónica de processos aplicam-se as restrições de acesso e consulta legalmente previstas.

4 - A consulta por advogados e solicitadores de processos nos quais não exerçam o mandato judicial é solicitada à secretaria, que disponibiliza o processo por um período de 10 dias para consulta na área reservada do mandatário no sistema informático de suporte à atividade dos tribunais.»


E preceitua o art. 5º da mesma Portaria que:

«1 - A apresentação de peças processuais e documentos por transmissão eletrónica de dados por mandatários judiciais é efetuada através do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais, no endereço eletrónico https://citius.tribunaisnet.mj.pt, de acordo com os procedimentos e instruções aí constantes.

2 - O registo e a gestão de acessos ao sistema informático referido no número anterior por advogados, advogados estagiários e solicitadores são efetuados pela entidade responsável pela gestão de acessos ao sistema informático, com base na informação transmitida, respetivamente, pela Ordem dos Advogados e pela Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, respeitante à validade e às vicissitudes da inscrição junto dessas associações públicas profissionais.


Por outro lado, prescreve o art. 163º, nº2, do CPC:

«2 - A publicidade do processo implica o direito de exame e consulta do processo por via eletrónica, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, e na secretaria, bem como o de obtenção de cópias ou certidões de quaisquer peças nele incorporadas, pelas partes, por qualquer pessoa capaz de exercer o mandato judicial ou por quem nisso revele interesse atendível.»

Observa-se, no último acórdão citado, que:

«Ora, conjugando este último preceito, com os concretizadores arts. 27º, nº 1, a), 2 e 4 e 5º, nº 2, acima indicados, pode concluir-se que: qualquer advogado pode consultar electronicamente um processo, através do acesso ao sistema informático de suporte à atividade dos tribunais; desde que previamente registado pela entidade responsável pela gestão de acessos ao sistema informático, com base na informação transmitida, pela Ordem dos Advogados, a quem são entregues os elementos secretos que permitem o acesso à área reservada do sistema informático de suporte à atividade dos tribunais; o mesmo acesso é permitido a advogados ainda não mandatados mas que possam exercer o mandato judicial.

O que significa que um advogado ainda não mandatado judicialmente, mas capaz para tanto, pode consultar o processo e a respectiva informação processual (por ex: p.i., citação, despacho do art. 567º, nº 1, do NCPC, etc.). Não sendo, por isso, necessário, ao invés do que se afirma em tal aresto da Rel. Évora[2], juntar previamente aos autos procuração para consultar o processo. Aliás, o que é comum, é que os Srs. advogados, mesmo antes de aceitarem a procuração, ouçam a versão dos seus clientes, confiram os elementos que estes tenham à sua disposição e, após, consultem o processo para análise.»

Lebre de Freitas e Isabel Alexandre destacam, em anotação ao art. 163º do CPC, esse direito de acesso ao processo «por qualquer pessoa capaz de exercer o mandato judicial (art. 40-2), não obstante não tenha sido constituído mandatário, e por quem revele interesse atendível» (op. cit., p. 345).

Parece, assim, sustentada a afirmação constante do acórdão que se acaba de citar no sentido de que não é necessária a junção prévia de procuração ao processo para a consulta deste.

Assinale-se que, in casu, o requerimento de junção da procuração se seguiu à notificação da sentença (certificação Citius de 10-11-2020), nos termos do art. 249º, nº1, do CPC, através de carta dirigida à sede da R. (a mesma que consta da procuração junta), que não se vê que tenha sido devolvida.

Entende-se, tal como se ponderou no acórdão recorrido, que a R., no momento em que juntou a procuração aos autos, estava em condições de invocar a falta de citação.

No mesmo sentido se pronunciou o Ac. da Rel. de Évora de 06-10-2016 (Rel. Paulo Amaral), Proc. 455/13.3TBALR-A.E1, publicado em www.dgsi.pt (um dos acórdãos citados por Teixeira de Sousa), referindo, precisamente que «para ter conhecimento do processo, o Ilustre Mandatário não necessitava de procuração, face ao disposto no art.º 163.º, n.º 2, Cód. Proc. Civil».

Mesmo admitindo-se que à R. não se impusesse arguir logo a falta de citação, devendo beneficiar de prazo para o efeito, tal prazo não poderia ir além dos 10 dias (prazo geral), não sendo aplicável à falta de citação o prazo previsto no art. 191º, nº2, do CPC, que diz respeito à nulidade da citação, ou seja, não tinha a R. direito ao prazo de 30 dias, como é por ela defendido, neste prazo estribando a tempestividade da sua arguição.

Não se estando perante citação edital ou numa situação em que não tenha sido indicado prazo para defesa, casos – estes sim – em que a nulidade (à semelhança da falta de citação) poderia ser arguida aquando da primeira intervenção no processo (2ª parte do nº 2 do art. 191º), não se pode pretender restaurar um prazo já há muito decorrido. Esse prazo, que, na versão do DL 329-A/95, de 12-12, era de cinco dias (o prazo geral, na altura), a contar da citação, foi alargado pelo DL 180/96, mas isso não significa, a não ser nas duas situações excepcionais mencionadas, que possa o vício da nulidade ser esgrimido em qualquer altura do processo.

Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (ibid., p. 393) dão nota da evolução registada nesse aspecto:

«Mantinha o DL 329-A/95, de 12 de dezembro, intacta a norma do n.° 2, que, não fixando o prazo para a arguição da nulidade, mas apenas o seu terminus a quo (a citação), remetia implicitamente para o prazo geral de cinco dias — isto não obstante a crítica de Lebre de Freitas, Revisão cit., p. 434, que já vinha de trás (Falta e nulidade de citação Prazo para a arguição da nulidade de citação, O Direito, 1996, I-II, ps. 270 a 273; na sua republicação em Estudos cit., I: ps. 109 a 113) e tinha agora por si a razão suplementar da diminuição de garantias decorrente da supressão da distinção entre formalida­des essenciais e formalidades não essenciais. O mesmo decreto-lei mantinha intocado o texto do art. 202 do CPC de 1961, do qual resultava que a nulidade da citação nunca era de conhecimento oficioso.

O DL 180/96 veio corrigir o preceito, ao estabelecer, no n.° 2, um novo prazo para a arguição da nulidade: o indicado para a contestação, coincidente ou não com o estabelecido na lei. Por outro lado, estabeleceu-se então que, quando a nulidade se registasse em ato de citação edital ou quando não tivesse sido indicado prazo para a defesa (constituindo ou não esta omissão a própria nulidade invocada: cf. art. 227-2), o interessado poderia arguir o vício quando da sua primeira intervenção no processo –  regime este coincidente com o da arguição da falta de citação (art. 189).»


Não é, como se disse, aplicável o prazo do art. 191º, nº 2, 1ª parte, à falta de citação e, de qualquer modo, esse prazo (atinente à nulidade da citação) – o indicado para a contestação – já havia decorrido, levando a que, em consequência, se considerassem confessados os factos articulados pela Autora.

Não assistindo razão à Recorrente, é de manter o decidido pelo Tribunal a quo quanto à matéria da citação.

Esta conclusão não representa a violação de algum princípio constitucional, maxime à luz do que vem plasmado no art. 20º da CRP, já que a Recorrente, ao intervir nos autos, teve oportunidade de arguir a falta de citação, sendo certo que a lei impõe altura para o efeito, em nome, desde logo, da estabilidade processual.

Conforme referem Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, em anotação ao art. 189º do CPC (op. cit., p. 390):

«A exigência de imediata arguição da nulidade evita processados posteriores que o interesse da defesa, confrontado com o do autor e com o interesse geral, não justificaria que viessem a ser anulados.»


A Recorrente diz que a Relação ... não apreciou a prova documental que foi junta com as alegações de recurso da Recorrente. Ora, trata-se de prova documental respeitante a reclamações apresentadas junto dos CTT, que se prendem com a problemática da citação. Tendo o Tribunal da Relação considerado sanada a falta de citação, pelas razões expostas, não tinha de proceder a mais apreciações sobre a matéria (designadamente com a análise desses elementos documentais).


III.3.

Refere a Recorrente que, nas alegações e conclusões do recurso, impugnou a matéria de facto, indicando os concretos aspectos da matéria de facto que considera incorretamente julgados na decisão recorrida, nomeadamente que o Tribunal da 1ª instância não poderia, nem deveria ter concluído como concluiu, pois a própria Autora no art.º 37º da p.i. fez constar que a Ré não desocupou voluntariamente o locado, usando e fruindo do mesmo até à presente data, logo, resulta manifesto que se a Ré usa e frui do locado até ao presente, não pode a Ré, ao mesmo tempo, não usar o locado há mais de um ano, pelo que não deveria ter concluído como concluiu, por excesso de pronúncia, e tendo a recorrente recorrido sobre essa parte da sentença nas suas alegações de recurso, deveria o acórdão da Relação ter-se pronunciado sobre o mérito do recurso.

Conclui ainda que:

O douto acórdão recorrido ao deixar de se pronunciar sobre a questão de que deveria conhecer, ofendeu o disposto no art.º 608.º, nº 2 do CPC e, tendo o acórdão incorrido na violação daquela norma é o mesmo nulo, nos termos do art.º 615.º, 1, al. d) e do art.º 666.º do CPC.


O Tribunal da Relação relativamente à impugnação da decisão de facto, ponderou, no acórdão recorrido, o seguinte:

«A recorrente põe em causa a decisão sobre a matéria de facto constante da sentença, sustentando que o facto que indica não pode ser considerado provado, pelos motivos que expõe.

No entanto, além da nulidade a que respeita o ponto 2.2.1., a apelante não suscita qualquer outra questão de direito, não indicando, sequer, a solução que defende para o litígio na hipótese de proceder a impugnação da decisão de facto.

Considerando que a apelante não retira nenhuma consequência jurídica da alteração da matéria de facto que pretende, não esclarecendo de que forma daí resultaria uma diversa aplicação do direito ao caso concreto, verifica-se que a reapreciação dessa decisão configura a prática de ato inútil e, como tal, ilícito, nos termos do artigo 130.º do CPC.

Neste sentido, entendeu-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-02-2015 (relator: Gregório Silva Jesus), proferido na revista n.º 422/2001.L1.S1 - 1.ª Secção (cujo sumário se encontra publicado em www.stj.pt), que a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto visa corrigir erros de julgamento que facultem ao impugnante a modificação daquela, de modo a obter, por essa via, um efeito juridicamente útil, pelo que se o facto a que se dirige a impugnação for irrelevante para a decisão a proferir, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade processuais [art. 2.º, n.º 1 e art. 130.º, ambos do NCPC (2013)], a atividade de reapreciação do seu julgamento.

Tendo-se concluído que a reapreciação da decisão proferida quanto ao ponto de facto impugnado pela apelante configura a prática de ato inútil e, como tal, proibido pelo artigo 130.º do CPC, cumpre rejeitar a impugnação da decisão relativa à matéria de facto».


Considerou-se, ainda, face ao resultado almejado pela Recorrente com o recurso, o seguinte:

«Analisando tal pedido, verifica-se que não é peticionada qualquer modificação da decisão recorrida, a apreciar na hipótese de improcedência do pedido de anulação do processado.

Dispõe o artigo 639.º, n.º 1, do CPC, que o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão, esclarecendo o n.º 2 do preceito as indicações que deverão constar das conclusões, nos casos em que o recurso versa sobre matéria de direito.

Explicam António Santos Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (ob. cit., p. 767-768) que “conforme ocorre com o pedido formulado na petição inicial, as conclusões devem corresponder à identificação clara e rigorosa daquilo que o recorrente pretende obter do tribunal superior, em contraposição com aquilo que foi decidido pelo tribunal a quo”, acrescentando que deve ser incluído, na parte final, o resultado procurado.

No caso presente, limita-se a recorrente a pedir a anulação do processado, por efeito da nulidade emergente da falta da sua citação, não peticionando, ainda que subsidiariamente, qualquer alteração da decisão.»


Vejamos.

No recurso de apelação, no corpo das alegações, a Recorrente referiu:

«O Apelante pretende igualmente recorrer da decisão quanto aos pontos da matéria de facto dados por provados porque entende que existiu erro de julgamento quanto aos pontos de facto provados porque existiu excesso de pronúncia, incluindo factos que não foram alegados na p.i, nem constam dos documentos juntos aos autos.»


As conclusões da apelação, no que tange a esta matéria, foram do seguinte teor:

«14) Existiu excesso de pronúncia pois que se fez constar da sentença que “A acrescer, temos que concluir, face às datas em que as sociedades “FILESTORAGE – ARQUIVOS, LDA. e “JOURNEYCONCEPT – UNIPESSOAL, LDA.” ocupam o prédio locado, a ré não usa o locado há mais de um ano.

15) Ora, o Tribunal a quo não poderia, nem deveria ter concluído como concluiu, pois concluiu mal!

16) A própria Autora alegou no art.º 37º da p.i. que a Ré não desocupou voluntariamente o locado, usando e fruindo do mesmo até à presente data, logo, usa o locado até ao presente!

17) A Autora todos os anos vistoria o locado, tendo-se deslocado ao locado no dia 30 de Setembro de 2020, pelo que é manifesto que a Ré nunca deixou de usar o locado.»


Nas contra-alegações também da apelação, a A. opôs-se a essa invocação, referindo que:

«14. A questão da resolução do contrato de arrendamento pelo não uso do imóvel pela arrendatária por mais de um ano foi submetida pela Autora à apreciação do Tribunal.

15. A Autora alegou matéria factual no capítulo 1.6 da Petição Inicial[3], a qual integrou o elenco dos factos provados, e que suporta a conclusão do Tribunal de que a Ré não usa o prédio locado há mais de ano.

16. Considerando a factualidade dada como provada nos pontos 34) a 44) da Sentença, é mera conclusão lógica que a Ré não usa o locado há mais de ano. O que não contende com a alegação da Autora constante do artigo 37.º da PI de que a Ré não desocupou voluntariamente o locado, estando a fruir do mesmo por via de um subarrendamento a terceiro não autorizado pela Autora enquanto senhoria.»


Entendeu a Relação não conhecer desta matéria, por dela não retirar a recorrente quaisquer consequências em termos de direito, já que o resultado final expresso nas suas alegações foi tão-só o da anulação do processado (ou seja, o decorrente da falta de citação), não peticionando, ainda que subsidiariamente, qualquer alteração da decisão.


No Ac. do STJ de 14-03-2019, Rel. Maria do Rosário Morgado, Proc. nº 8765/16.16.1T8LSB.L1.S2, em www.dgsi.pt, considerou-se que:

«De harmonia com o princípio da limitação a que estão submetidos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto da 1ª instância só se justifica se recair sobre factos com indiscutível relevância para a decisão da causa, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente (cf. art. 130º, do CPC).

Por conseguinte, se os factos cujo julgamento é impugnado não forem susceptíveis de influenciar decisivamente a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação da decisão proferida pela 1ª instância, no plano dos factos.

O direito à impugnação da decisão de facto previsto no art. 640º, do CPC assume, pois, claramente, um caráter instrumental face à decisão sobre o fundo da causa.

Tem sido esta, aliás, a orientação da jurisprudência deste Supremo Tribunal, podendo, a título de exemplo, citar-se os acórdãos do STJ de 17.5.2017, proc. nº 4111/13.4TBBRG.S1, disponível em www.dgsi.pt e de 11.2.2015, proc. nº 422/2001.L1.S1.»

Veja-se, ainda, no mesmo sentido, o Ac. do STJ de 09-02-2021, Rel. Maria João Vaz Tomé, Proc.26069/18.3T8PRT.P1.S1, em www.dgsi.pt.


Verifica-se que, na verdade, a Recorrente não retira consequências jurídicas, sobretudo de uma alegada contradição fáctica atinente ao uso/não uso do locado (por se dizer, por um lado, que a ré não usa o locado há mais de um ano e, por outro, que a Ré não desocupou voluntariamente o locado, usando e fruindo do mesmo até à presente data), ao que a A. respondeu, como se viu, referindo que a matéria alegada e provada, que suporta a conclusão do Tribunal de que a Ré não usa o prédio locado há mais de ano, não contende com a alegação da Autora, constante do artigo 37.º da PI, de que a Ré não desocupou voluntariamente o locado,  pois que o vem fruindo por via de um subarrendamento a terceiro, não autorizado pela Autora enquanto senhoria.

Continuou a Recorrente sem esclarecer, na revista, de modo a pôr em causa a posição assumida pela Relação, que alcance poderia ter o conhecimento dessa matéria relativamente ao resultado pretendido no recurso.

Neste conspecto, há que ter em conta o que se exarou na sentença quanto ao preenchimento dos fundamentos de despejo:

«Nesta linha de raciocínio, e face ao comportamento da ré, que não pagou as rendas do contrato, que subarrendou o locado, que tem sido praticamente impossível notificá-la de qualquer ato processual e não processual, atendendo, ainda, que a autora o poderia ter arrendado, verifica-se, em nosso entender, um comportamento ilícito e censurável da ré que fundamenta a resolução do contrato de arrendamento celebrado.

A autora resolveu extra - judicialmente o contrato de arrendamento, resolução que foi julgada judicialmente válida no âmbito do processo n.º 374/17...., que correu termos pelo Juízo Local Cível ..., e que este tribunal tem de aceitar sob pena de violação da autoridade do caso julgado.

Pelo que, se reconhece legalmente resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre a autora e a ré e será decretado o despejo do locado e a sua entrega à autora, livre e desocupado de pessoas e bens. E, sendo assim, é inútil a apreciação dos fundamentos invocados pela autora para invocar a resolução do contrato de arrendamento com base nas alíneas d) e) do n.º 2, do art.º 1 083.º, do Código Civil


Não se vê que, em concreto, ainda que subsidiariamente, tenha a decisão aqui contida sido questionada no recurso.

Entende-se, assim, que não há razões (por não se ver susceptibilidade de a pretendida apreciação influenciar a decisão sobre o fundo da causa e nem isso foi minimamente explicitado pelo Recorrente) para se devolver os autos ao Tribunal da Relação, não se configurando, ademais, alguma das situações previstas no art. 682º, nº3, do CPC, em que tal seria permitido, sendo de precisar que uma eventual ampliação da matéria de facto não pode ter como base factos que não tenham sido alegados no momento adequado para o efeito – que não é, naturalmente, o das alegações de recurso –, nem se vê qua haja alguma contradição na decisão da matéria de facto (a aparente contradição aduzida pela Recorrente mostra-se, desde logo, esclarecida pela aludida resposta do Recorrido) que inviabilize a decisão jurídica do pleito, sempre sem olvidar os limites do objecto do recurso, tendo em conta as alegações da Recorrente.

É, pelo exposto, de manter o que foi decidido pelo Tribunal da Relação.


*

Sumário (da responsabilidade do relator)



1. Considera-se sanada a nulidade de falta de citação, nos termos do artigo 189º do CPC, quando o réu intervier no processo sem arguir logo essa falta.

2. A junção de uma procuração a advogado pressupõe o conhecimento do processo e configura-se como uma intervenção bastante para desencadear o ónus de arguição da falta de citação.

3. O art. 163º, nº2, do CPC faculta a consulta do processo antes da constituição do mandato judicial.

4. A falta de citação pode ser arguida em qualquer altura do processo,  diferentemente do que se passa com a nulidade de citação, sujeita ao prazo (não aplicável à falta de citação) previsto no art. 191º, nº2, do CPC.

5. O exercício dos poderes de controlo da Relação sobre a decisão da matéria de facto só se justifica quando recaia sobre matéria com relevância para a decisão da causa.



IV


Pelo que se deixou exposto, nega-se provimento à revista, confirmando-se o acórdão recorrido.


- Custas pela Recorrente.


*



Lisboa, 24-05-2022


Tibério Nunes da Silva (relator)

Nuno Ataíde das Neves

Maria dos Prazeres Pizarro Beleza

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[1] https://drive.google.com/file/d/1SZjPAHTYYo1vXXUtQxeVtnbEvZ2NeGjF/view
[2] Refere-se ao Ac. Rel. Ev. de 03-11-2016, Proc. 1573/10.5TBLLE-C.E1, Rel. Tomé de Carvalho, publicado em www.dgsi.pt.
[3] O capítulo 1.6. da petição é do seguinte teor:
«1.6. Da resolução fundada no não uso do locado por mais de um ano

69º
O prédio locado pela Autora à Ré é composto de casa de R/Chão, armazém (1.125m2), armazém (1.191m2) e logradouro (8.884m2).
70º
Conforme se demonstrou, o referido prédio foi subarrendado pela Ré às sociedades “FILESTORAGE – ARQUIVOS, LDA.” e “JOURNEYCONCEPT – UNIPESSOAL, LDA.”.
71º
Encontrando-se, na sua totalidade, cedido às subarrendatárias, respectivamente desde 01/03/2007 e 10/07/2012.
72º
Donde resulta não ser o prédio locado usado pela arrendatária, ora Ré, há mais de um ano.
73º
O que, nos termos do artigo 1083.º, n.º 2, alínea d), do CC, constitui fundamento da resolução do contrato de arrendamento sub iudice.
74º
Requerendo-se a resolução do contrato de arrendamento em apreço com fundamento no não uso do locado pela Ré por mais de um ano, decretando-se o despejo imediato da Ré do locado, condenando-a a restituir o locado à Autora livre e desocupado de pessoas e bens.»