Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
| Processo: |
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| Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO (CÍVEL) | ||
| Relator: | JOÃO BERNARDO | ||
| Descritores: | DOMÍNIO PÚBLICO MARÍTIMO DIREITO DE PROPRIEDADE MARGENS PROCESSO ADMINISTRATIVO CONDIÇÃO DE PROCEDIBILIDADE INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO ÁGUAS NULIDADE DE ACÓRDÃO FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO REGIÃO AUTÓNOMA | ||
| Data do Acordão: | 06/04/2020 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Privacidade: | 1 | ||
| Meio Processual: | REVISTA | ||
| Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA | ||
| Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
| Sumário : | I - A nulidade por falta de fundamentação só ocorre quando esta, na vertente factual ou na vertente jurídica, inexista. II - Respeitando já ao mérito e não à forma a deficiência de qualquer daquelas. III - No caso de ações em que se pede o reconhecimento da propriedade ou da posse sobre terrenos contíguos ao mar, não há que levar a cabo, previamente, o procedimento administrativo previsto no art. 17.º da Lei n.º 54/2005, de 15-11. IV - Reportando-se as autoras à abrangência de margens do mar, não pode a condenação respeitar também aos leitos. V - A junção de plantas topográficas por parte daquelas não significa que sejam acolhidos pelo tribunal os dados nelas constantes de fixação da linha que delimita o leito do mar. VI - Só alcançada esta se podem contar os 50 metros previstos na lei como de largura da margem não alcantilada. VII - Não constando dos factos a referência à linha delimitadora do leito nem a referência pormenorizada aos eventuais alcantis, verifica-se insuficiência factual. | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. GALOMAR - Sociedade de Empreendimentos Hoteleiros, Lda." e LUCULLMAR - Sociedade Hoteleira e Turismo, SA. intentaram contra: O ESTADO PORTUGUÊS e A REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA; A presente ação declarativa em processo comum. Alegam, em síntese, que: A autora Galomar é proprietária de um conjunto de prédios que identifica, situados na …, freguesia da …, concelho da …, na Ilha da Madeira; Cujas aquisições a favor dela se encontram devidamente registadas na Conservatória do Registo Predial da …; Tais prédios, abrangendo embora a margem do mar, eram propriedade particular antes de 31.12.1864, pelo que beneficia da elisão da presunção de dominialidade do Estado ou da Região Autónoma, nos termos do artigo 15.º, n.º2 da Lei n.º54/2005, de 15.11. A autora Lucullumar é proprietária de um conjunto de prédios que também identifica, localizados no Sítio …, freguesia do …, concelho de …, na Ilha da Madeira; Cujas aquisições a seu favor estão registadas na Conservatória do Registo Predial de …; Tais prédios, abrangendo embora a margem do mar, eram propriedade particular antes de 31.12.1864, pelo que beneficia da mesma elisão de presunção. Pretendem, em conclusão, que se “reconheça a sua propriedade sobre aquelas parcelas de margens das águas do mar…” Para na parte do pedido propriamente se referirem à propriedade sobre “as seguintes parcelas de leitos ou margens das águas do mar”. 2. O Estado Português não contestou. 3. Contestou a Região Autónoma da Madeira. No que agora importa, aceitou os factos comprovados por documentos, alegou desconhecer outros e sustentou dever a ação ser decidida em função da prova produzida. 4. Após tramitação que agora não importa precisar, foi admitida a intervenção principal provocada, pelo lado passivo, do Ministério Público. 5. Que deduziu contestação, no essencial impugnando muitos dos factos carreados pelas autoras. 6. No prosseguimento da tramitação, foi proferido saneador-sentença no qual se decidiu nos seguintes termos: “Face ao exposto, julga-se a presente ação parcialmente procedente por provada e, consequentemente: a) Reconhece-se a propriedade da autora Galomar – Sociedade de Empreendimentos Hoteleiros, Lda. sobre as parcelas de margens ou leitos das águas do mar inseridas no prédio urbano, sito em …, com a área total de 10500 m2, composto de terreno para construção, a confrontar norte com herdeiros de AA, sul com …, nascente: … e poente com herdeiros de BB, omisso na matriz, e descrito na Conservatória do Registo Predial da …, freguesia da … sob o n.º 267/19970115; b) Reconhece-se a propriedade da autora Lucculumar – Sociedade Hoteleira e Turismo, SA. sobre as parcelas de margens ou leitos das águas do mar inseridas nos prédios: - urbano, sito no …, com a área total de 1368 m2, constituído por três blocos, um residencial, outro comercial e outro por um restaurante, sendo que o bloco residencial consta de 3 pisos (rés do chão e 2 andares), o bloco comercial consta de cave, rés-do-chão e primeiro andar e o restaurante consta de cave e rés-do-chão, inscrito na matriz sob o artigo 2456, e descrito na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia do … sob o n.º 1697/19950525; - urbano, sito no …, com a área total de 1700 m2, constituído por 3 prédios urbanos (1.º constituído por 15 apartamentos, distribuídos em pavimentos situados a diversas cotas; o 2.º constituído por 1 piso; o 3.º constituído por 1 piso, inscrito na matriz sob os artigos 4739, 2899 e 2898, e descrito na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia …, sob o n.º 1698/19950525; c) uma unidade habitacional habitacional tipo T1, localizada a nascente do um prédio urbano, sito no …, com a área total de 1515 m2, composto por duas unidades habitacionais com logradouro de 1.329,50m2, a confrontar a norte com Estrada, a sul com …., a leste com CC e a oeste com Empresa de Turismo Reis Magos, Lda., inscrito na matriz sob o artigo 5653, e descrito na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia …, sob o n.º 4133/20031211-B; c) Absolvem-se os réus do demais peticionado.” 7. Apelou o Ministério Público, mas sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação confirmou a decisão. 8. Fê-lo por maioria e daí a inexistência do bloqueio recursório relativo constante do artigo 671.º, n.º3 do Código de Processo Civil, conforme despacho proferido pelo ora relator. 9. Ainda inconformado, pede o M.ºP.º revista. Conclui as alegações do seguinte modo: I - O douto Acórdão recorrido confirmou integralmente o Despacho saneador-sentença que considerou provada a factualidade descrita em 11 e 12 dos factos provados e reconheceu a propriedade das Autoras quanto às parcelas em causa, descritas em í destas alegações (enquadramento). II - E reconheceu a propriedade das Autoras sobre parcelas de margens ou leitos das águas do mar, inseridos nos prédios urbanos. II - Não obstante, as autoras não recorreram ao procedimento administrativo a que alude o art.° 17.° da Lei 54/2005 de 15/11 em articulação com o disposto no Decreto-Lei 353/07 de 16/10 e não juntaram com a p.i. um levantamento topográfico rigoroso apto a determinar as actuais linhas da máxima preia-mar de águas vivas equinociais e linha limite da margem nos locais em litígio com os critérios estabelecidos no art.° 10.º n.° 2 da Lei 54/2005 de 15/11 e nem tão pouco foi ordenada nos autos a realização de perícia com vista a estabelecer tais limites. III - O levantamento topográfico com os critérios estabelecidos nos art.°s 10.° n.° 2, 11.° n.° 2, 6 e 7 da Lei 54/2005 de 15/11 e ponto V da ai a) do Anexo II da portaria 1931/2010 de 10/9, ou realização de perícia permitiria delimitar o domínio público marítimo relativamente ao leito e margens do mar que confina com os terrenos que as Autoras reivindicam, definir as parcelas dos prédios que se situam no domínio público marítimo e os que se situam junto à crista de uma arriba alcantilada ou que compreendam a mesma. IV - O domínio público marítimo pertence ao Estado - art.° 4.° da Lei n.° 54/2005 de 15/11, mercê da importância e afectação pública das águas que devem situar-se fora do comércio jurídico privado, sendo inalienáveis, impenhoráveis e imprescritíveis. V - E compreende entre outros, as margens das águas exteriores e interiores sujeitas à influência das marés - art.° 3.° al. e) da Lei 54/2005 de 15/11, entendendo-se por leito o terreno coberto pelas águas quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades, sendo a margem a faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que delimita o leito das águas - (art.0 11 n.° 1) que quando referente a águas do mar ou águas navegáveis sujeitos à jurisdição dos órgãos locais da Direcção-Geral de Autoridade Marítima ou das Autoridades Portuárias, tem a largura de 50 metros - (art.º 11 n.° 2). O leito das águas do mar, bem como as demais águas sujeito à influência das marés é limitado pela Unha de máxima preia-mar de águas vivas equinociais - (art.° 10.° n.° 3). Esta linha é definida para cada local, em função do espraiamento das vagas em condições médias de agitação do mar no primeiro caso e, em condições de cheias médias no segundo. VI - Nos autos, para além de ter havido impugnação de factualidade da PI, foi impugnada a exactidão de reprodução mecânica dos documentos juntos com a PI e não houve acordo dos intervenientes relativamente a toda a matéria controvertida. VII - O douto Acórdão recorrido ao confirmar na totalidade do Despacho saneador sentença que considerou provada a factualidade assente em 11 e 12, reconhecendo a propriedade das autoras sobre as parcelas de margens ou leitos das águas do mar inseridas em prédios urbanos descritos em I destas alegações, sem os elementos de prova referidos em III, não referenciou os motivos por que dispensava qualquer outro elemento de prova, designadamente o referido levantamento topográfico, nem tão pouco o motivo por que considerava provada a factualidade respeitante aos pontos 11 e 12 dos factos provados, referindo tão só que não era exigível às Autoras fazerem outro tipo de prova. VIII - Considera o Recorrente que atento o pedido e causa de pedir, atentas as normas imperativas respeitantes ao domínio público marítimo, o que foi alegado pelo Recorrente no recurso de apelação se impunha na motivação de facto e de direito, a descrição dos motivos por que se considerou suficiente a prova contida nos autos e os motivos por que se devia dispensar a referida delimitação das parcelas. IX - Não o tendo feito, afigura-se salvo o devido respeito que o douto Acórdão recorrido incorreu na nulidade a que alude o art.° 615.° n.° 1 b) do CP. Civil, nulidade que aqui se invoca para todos os efeitos. Quando assim se não entenda: X - Posto que o art.° 674.° n.° 3 do CP. Civil consagre que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, afigura-se que no caso se consubstancia a 2.ª parte da previsão do citado normativo, ou seja as normas legais em causa impunham que tivesse sido feita certa espécie de prova, que se dispensou, o levantamento topográfico ou uma perícia tendente a definir os limites do domínio marítimo e prédios, o que se afigura primacial. XI — Consta da factualidade provada em 11 e 12 o seguinte: “11. - No prédio referido em 1.c) uma faixa de terreno é contigua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas ou à crista do alcantil, numa largura de 50 metros ". "12 - Uma faixa de terreno que abrange todos os prédios referidos em 6. É contígua ou sobranceira á linha que limita o leito das águas ou à crista do alcantil, numa largura de 50 metros" XII- Sem que previamente tivesse sido delimitado o domínio público marítimo relativamente ao leito e margens do mar que confina com os terrenos que as Autoras reivindicam, definidas as parcelas dos prédios que se situam no domínio público marítimo e os que se situam junto à crista de uma arriba alcantilada ou que compreendam a mesma, matérias que se impõe dilucidar. XIII - Em conformidade com o já alegado pelo Ministério Público, atentas as regras do ónus de prova, o que foi impugnado nos autos, a ausência de acordo sobre matéria controvertida nos autos, a documentação junta pelas Autoras e os critérios da Lei 54/2005 de 15/11 em articulação com o Decreto-Lei 353/07 de 16/10, não devia o douto Acórdão recorrido ter confirmado a factualidade vertida em 11 e 12, face à insuficiência de prova, ao invés devia ter ordenado que os autos baixassem à 1.ª instância para apuramento das matérias referidas. XIV - O douto Acórdão considerando que os autos forneciam todos os elementos para uma decisão de mérito, atribuindo a propriedade das parcelas de terreno às Autoras, sem dilucidar a matéria acima referida incorreu com tal decisão em erro de interpretação e de aplicação das disposições legais previstas no art° 84.° da Constituição da República Portuguesa, art.° 202.° n.° 2 do C.Civil, art.°s 10.°, 11.°, n.° 1, 3 e 6 e 15.° n.°s 2 e 3 da Lei 54/2005 de 15/11 quando como já referido pelo Ministério Público no recurso de apelação, reconheceu a propriedade privada às Atoras sobre parcelas integrando as águas do mar sem a definição acima referida a linha máxima da preia-mar de águas vivas equinociais e até mesmo reconheceu a propriedade privada para além dessa linha. XV - E como se referiu na contestação do Ministério Público "está em causa a defesa de interesses colectivos subjacentes à titularidade dos recursos dominiais já que a procedência da acção poderá levar a que as populações permaneçam livre e gratuitamente em parcelas de terreno do domínio público que apresentam a natureza de praia ou de margens do mar, com manifesto prejuízo para o exercício colectivo dos direitos à qualidade de vida, à saúde, ao lazer e ao ambiente, constitucionalmente garantidos XV[1] - E defende-se que só após tal definição se podia concluir se estavam preenchidos os pressupostos legais do reconhecimento do direito de propriedade às Autores à luz do art.º 15.° n.°2 da Lei 54/2005 de 15/11. XVI - Pelo que se deve declarar a nulidade do douto Acórdão nos termos já referidos ou, assim não se entendendo que seja revogado e substituído por outro que determine seja apurada a matéria em falta, tal como se propugna. 10. Contra-alegaram as autoras concluindo, quanto ao mérito recursório, como segue: … N) Defende o Recorrente que não constam do Acórdão os fundamentos de facto e de direito por que seria de dispensar o levantamento topográfico, nem os motivos da confirmação dos factos provados em 11.º e 12.º [das alegações de recurso] e bem assim os motivos por que os elementos de prova eram bastantes para comprovar a titularidade: nas palavras do Recorrente, ao omitir a resposta a esses argumentos do recurso, o Acórdão padeça da nulidade que alude o artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do CPC. O) Ora, a verdade é que o Tribunal a quo estava suficientemente elucidado sobre as razões levantadas no recurso e sobre a forma que tinha para lhes dar resposta, como se retira da página 13 do Acórdão: “Ora, lidos os documentos apresentados pelas Autoras e que atrás estão devidamente referenciados2, que são fidedignos e credíveis (…) não é exigível nem pode ser imposto às Autoras que prestem outro tipo de prova para ensaiar demonstrar a veracidade da factualidade descrita nos pontos 11 e 12 do elenco dos factos declarados provados nesta acção”. P) Assim, o Tribunal da Relação apreciou os documentos apresentados pelas Autoras para provar que eram proprietárias de “uma faixa de terreno é contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas ou à crista do alcantil, numa largura de 50 metros” e entendeu que os mesmos demonstravam essa alegação de forma suficiente. Q) Ao dizer que os documentos são “fidedignos e credíveis” fica evidente que a Relação não sufraga a tese do Recorrente de que os documentos, para demonstrarem a propriedade, têm de respeitar os critérios estabelecidos nos artigos 10.º, n.º 2, e 11.º, n.ºs 2, 6 e 7 da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, e no ponto V da alínea a) do Anexo II da Portaria n.º 1931/2010, de 20 de setembro. R) Sendo pois evidente que não se verificou qualquer nulidade, muito menos por os fundamentos estarem em oposição com a decisão ou por ocorrer alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. S) Com efeito, nada no Acórdão permitiria ao Recorrente depreender que o sentido da decisão ia ser um e, surpreendentemente, tomou outro caminho. T) Finalmente, o Recorrente vem impugnar os factos dados por provados nos pontos 11 e 12, com fundamento na falta/insuficiência de prova; em concreto, invoca que não constam nos autos levantamentos topográficos do terreno que incluíssem as linhas máximas de praia- mar de águas vivas equinociais e linha limite de margem – o que não corresponde à verdade. U) Apesar de o n.º 2 do artigo 15.º da Lei n.º 54/2005, de 15 de novembro, apenas estabelecer que o para obter o reconhecimento da propriedade das parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer áreas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864, as Autoras juntaram ao processo plantas topográficas, após convite de aperfeiçoamento, com todos elementos que a Recorrente pretende ver juntos ao processo. Estando referenciadas, inclusive, as plantas topográficas (com uma escala de 1:500) e plantas de localização (com escala de 1:25000) relativas ao prédio em, apreço… (estando nesses) mapas devidamente assinaladas a linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais (LMPMAVE), o limite da margem e a linha limite da propriedade…(estando também nos mesmos) expressamente assinaladas as áreas afetas ao domínio público marítimo – cf.Página 11 do Acórdão. V) Aos autos foram juntos dois documentos que constituem plantas topográficas, com uma escala de 1/500. W) Nas referidas plantas estão devidamente assinaladas a linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais (LMPMAVE), o limite da margem e a linha limite da propriedade – ademais, estão assinaladas as áreas afetas ao domínio público marítimo. X) Conjugando os documentos juntos com a petição inicial com os que foram juntos com o aperfeiçoamento de 7 de setembro de 2015, o Tribunal a quo dispunha de dados mais que suficientes para, como fez, proferir saneador-sentença sem necessidade de produção de prova adicional, o que, bem, veio a ser confirmado pelo Tribunal a quo. Y) Como resulta da resposta à impugnação da matéria de facto, não é verdade que não estivessem processualmente definidas quais as áreas dos prédios que as Autoras se arrogavam proprietárias e que se situam nas margens das águas do mar; assim, julgando improcedente aquela parte do recurso, necessariamente improcede a questão de direito dada a sua indiscutível ligação à impugnação de facto. Z) O que o Recorrente pretendia era trazer para o processo judicial o procedimento administrativo de delimitação quando é evidente em face da letra da lei (desde logo o previsto no Decreto-Lei n.º 353/2007) e, claro, da sua ratio, que são processos distintos e que não se confundem. AA) A jurisprudência tem entendido que neste caso são admitidos todos os meios de prova, com exceção da confissão, podendo, por isso, o tribunal socorrer-se da prova testemunhal, pericial, inspeção ao local, por presunções judiciais pautando a sua apreciação por um critério de menor exigibilidade (cf., por exemplo, Acórdão da Relação do Porto, de 4 de dezembro de 2017). BB) Por isso, não se verifica qualquer erro de interpretação e de aplicação do disposto no artigo 84.º da CRP e no artigo 202.º do CC, conjugados com os artigos 10.º, 11.º, n.ºs 1, 3 e 6, 15.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 54/2005. CC) Termos em que o recurso de revista apresentado pelo Ministério Público deve ser julgado totalmente improcedente. 11. Ante as conclusões das alegações as questões que se nos deparam consistem em saber se: O Acórdão recorrido é nulo por falta de fundamentação; Se impunha o recurso prévio ao procedimento administrativo a que alude o artigo 17.º da Lei n.º 54/2005, de 15.11 em articulação com o disposto no Decreto-Lei n.º 353/07, de 16.10; Se impunha a junção de levantamento topográfico rigoroso, apto a determinar as atuais linhas de máxima preia-mar de águas vivas equinociais e a linha limite da margem nos locais em litígio, com os critérios estabelecidos no artigo 10.º n.º2 da referida lei; Havia, anteriormente à decisão da causa, que ser ordenada a realização de perícia com vista a estabelecer tais limites; Só com estes elementos de prova ou qualquer deles se poderiam alcançar os factos provados nos n.ºs 11 e 12 do elenco que se vai transcrever; Não podendo, havia que ser determinada a baixa dos autos à 1.ª instância. 12. Na 1.ª instância “dos documentos carreados para os autos e dos factos admitidos por acordo” entendeu-se resultar provado que: 1. Na Conservatória do Registo Predial da …, freguesia da …, encontram-se descritos: a) Sob o n.º 296/19970526, um prédio urbano, sito em …, com a área total de 522 m2, composto de terreno para construção, a confrontar a norte com Estrada Distrital, sul com DD e outros, nascente com EE e outros e a poente com FF, omisso na matriz, e aí inscrita, com a Ap. 1 de 1997/05/26, aquisição a favor da autora Galomar – Sociedade de Empreendimentos Hoteleiros, Lda., por compra (cfr. documento de fls. 30); b) Sob o n.º 65/19910228, um prédio urbano, sito em …, com a área total de 1175 m2, composto de terreno para construção, a confrontar norte com GG e outros, sul com herdeiros de HH, nascente com ribeira, II e outros e poente com EE; omisso na matriz, e aí inscrita, com a Ap. 2 de 1997/05/26, aquisição a favor da autora Galomar – Sociedade de Empreendimentos Hoteleiros, Lda., por compra (cfr. documento de fls. 31); c) Sob o n.º 267/19970115, um prédio urbano, sito em …, com a área total de 10500 m2, composto de terreno para construção, a confrontar norte com herdeiros de AA, sul com …, nascente: Ribeira … e poente com herdeiros de BB, omisso na matriz, e aí inscrita, com a Ap. 7 de 1997/01/15, aquisição a favor da autora Galomar – Sociedade de Empreendimentos Hoteleiros, Lda., por compra (cfr. documento de fls. 33); d) Sob o n.º 51/19900810, um prédio urbano, sito em …, com a área total de 500 m2, composto de terreno para construção, a confrontar a norte com FF, Sul com …, nascente com JJ e poente com KK, omisso na matriz, e aí inscrita, com a Ap. 2 de 1997/06/26, aquisição a favor da autora Galomar – Sociedade de Empreendimentos Hoteleiros, Lda., por compra (cfr. documento de fls. 35); e) Sob o n.º 289/19970616, um prédio urbano, sito em …, com a área total de 500 m2, composto de terreno para construção, a confrontar a norte com herdeiros de LL, sul com herdeiros de MM, nascente e poente com FF, omisso na matriz, e aí inscrita, com a Ap. 5 de 1997/09/03, aquisição a favor da autora Galomar – Sociedade de Empreendimentos Hoteleiros, Lda., por compra (cfr. documento de fls. 36); f) Sob o n.º 298/19970626, um prédio urbano, sito em …, com a área total de 400 m2, composto de terreno para construção, a confrontar a norte com herdeiros de NN, sul com herdeiros de OO, nascente com PP e poente com FF, omisso na matriz, e aí inscrita, com a Ap. 1 de 1997/06/26, aquisição a favor da autora Galomar – Sociedade de Empreendimentos Hoteleiros, Lda., por compra (cfr. documento de fls. 37); 2. Os prédios escritos em 1. têm as seguintes cadernetas prediais urbanas (as alíneas correspondem aos prédios referidos nas alíneas correspondentes do ponto 1.): a) Artigo matricial n.º 528, inscrito no ano de 1997 (cfr. documento de fls. 53; b) Artigo matricial n.º 529, inscrito no ano de 1997 (cfr. documento de fls. 55; c) Artigo matricial n.º 531, inscrito no ano de 1997 (cfr. documento de fls. 57); d) Artigo matricial n.º 535, inscrito no ano de 1997 (cfr. documento de fls. 59); e) Artigo matricial n.º 536, inscrito no ano de 1997 (cfr. documento de fls. 61); f) Artigo matricial n.º 537, inscrito no ano de 1997 (cfr. documento de fls. 63); 3. Por escritura lavrada em 30 de Março de 1864, QQ e mulher fizeram hipoteca à Confraria … de três porções de terra no Sítio …, a primeira confinante a norte com RR, a sul com a praia, a leste com SS oeste com o reverendo TT, a segunda confinante a norte e a sul com UU e outros, a leste com a ribeira e a oeste com RR e a terceira a norte com os herdeiros do morgado VV, a sul com XX, a leste com ZZ e a oeste com AAA (cfr. documento de fls. 65 a 72). 4. Numa escritura de dívida de QQ e mulher a BBB, morador nos … na freguesia …, com a data de 30 de Abril de 1861, o primeiro hipotecou, além, do mais: um “pedaço de terra” com benfeitorias e água na … que confrontava a norte com os herdeiros de CCC e outros, a sul com a Praia, a leste com UU e a oeste com TT; “outra propriedade de terra” na dita …, com benfeitorias e água, que confrontava a norte com a vereda de …, a sul com UU, a leste com a Ribeira e a oeste com os proprietários (cfr. documento de fls. a 81). 5. No mesmo dia 30 de Abril de 1861, DDD e mulher venderam a QQ uma porção de benfeitorias no sítio de … e na …, na freguesia da …, sobre terra do Reverendo Padre TT, composta de paredes, cana doce, um palheiro e árvores de fruto, as quais confrontavam a norte com o caminho de Concelho, a sul com o Calhau e o Caminho do Concelho, leste com o comprador e outros e a oeste com EEE e o mesmo caminho do Concelho. Os vendedores acrescentaram que compraram o prédio a FFF (cfr. documento de fls. 82 e 82). 6. Na Conservatória do Registo Predial de …, freguesia …, encontram-se descritos: a) Sob o n.º 1697/19950525, um prédio urbano, sito no …, com a área total de 1368 m2, constituído por três blocos, um residencial, outro comercial e outro por um restaurante, sendo que o bloco residencial consta de 3 pisos (rés do chão e 2 andares), o bloco comercial consta de cave, rés-do-chão e primeiro andar e o restaurante consta de cave e rés-do-chão, inscrito na matriz sob o artigo 2456, e aí inscrita, com a Ap. 8 de 1988/08/16, aquisição a favor da autora Lucullumar – Sociedade Hoteleira e Turismo, SA, por compra (cfr. documento de fls. 137); b) Sob o n.º 1698/19950525, um prédio urbano, sito no …, com a área total de 1700 m2, constituído por 3 prédios urbanos (1.º constituído por 15 apartamentos, distribuídos em pavimentos situados a diversas cotas; o 2.º constituído por 1 piso; o 3.º constituído por 1 piso, inscrito na matriz sob os artigos 4739, 2899 e 2898, e aí inscrita, com a Ap. 1 de 1987/10/23, aquisição a favor da autora Lucullumar – Sociedade Hoteleira e Turismo, SA, por compra (cfr. documento de fls. 141); c) Sob o n.º 4133/20031211-B, uma unidade habitacional habitacional tipo T1, localizada a nascente do um prédio urbano, sito no …, com a área total de 1515 m2, composto por duas unidades habitacionais com logradouro de 1.329,50m2, a confrontar a norte com Estrada, a sul com …, a leste com CC e a oeste com Empresa de Turismo Reis Magos, Lda., inscrito na matriz sob o artigo 5653, e aí inscrita, com a Ap. 4 de 2004/03/31, aquisição a favor da autora Lucullumar – Sociedade Hoteleira e Turismo, SA, por compra (cfr. documento de fls. 147); 7. Os prédios descritos 10. têm as seguintes cadernetas prediais urbanas (as alíneas correspondem aos prédios referidos nas alíneas correspondentes do artigo anterior): a) Artigo matricial n.º 2456, inscrito no ano de 1986, a confrontar a norte com estrada, sul com …, Nascente com terreno de piscina Rudolf Ratzel e poente com Ingrid Graf (cfr. documento de fls. 148); b) Artigos matriciais n.ºs 4739 e 2899, inscritos nos anos de 2002 e 1986, respectivamente, o primeiro a confrontar a norte com estrada, sul com proprietária, nascente com vereda e proprietária e poente com proprietária, e o segundo a confrontar a norte com proprietário, sul com …, nascente com Vereda e Empresa dos Reis Magos e poente com CC (cfr. documento de fls. 150 e 152); c) Artigo matricial n.º 5653, inscrito no ano de 2000, a confrontar a norte com …, nascente Lucullumar – sociedade Hoteleira turismo, SA e a poente com GGG (cfr. documento de fls. 171). 8. Por escritura lavrada em 13 de Agosto de 1862, HHH e mulher venderam a III, ambos moradores …, benfeitorias rústicas no Sítio … da sobredita freguesia (cfr. documento de fls. 160). 9. Por escritura, datada de 7 de Julho de 1859, JJJ vendeu a KKK, ambos moradores …, uma porção de terra no sítio da … da referida freguesia que confrontava a norte com o Caminho do Concelho, a Sul com a …, a Leste com LLL e a Oeste com o morgado MMM (cfr. documento de fls. 429 verso). 10. No sítio do … existe uma Vereda que se dirige até a um Cais (cfr. documento de fls.104). 11. No prédio referido em 1. c) uma faixa de terreno é contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas ou à crista do alcantil, numa largura de 50 metros. 12. Uma faixa de terreno que abrange todos os prédios referidos em 6. é contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas ou à crista do alcantil, numa largura de 50 metros. A Relação acolheu esta recolha factual. 13. Nos termos do n.º1 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa, as decisões dos tribunais “que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.” De acordo com o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 55/85 de 23.05.85, são os seguintes os objetivos processuais da necessidade de fundamentação exigida pelo nº 1 do art.º 205º da Constituição: Imposição ao juiz de um momento de verificação e controlo critico da lógica da decisão: Permissão às partes do recurso da decisão com perfeito conhecimento da situação; Colocação do tribunal de recurso em posição de exprimir, em termos mais seguros um juízo concordante ou divergente. Qualquer destas vertentes é sonegada se faltar por completo a fundamentação, quer de facto ou de direito. Como é sonegada, parcialmente, se tal se verificar relativamente a parte autónoma de decisão. Nestes casos verifica-se a nulidade, total ou parcial, prevista na alínea b) do n.º1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil. Mas se a fundamentação – quer na vertente factual, quer de apreciação jurídica – existir, já não se pode falar de nulidade. A disposição constitucional ao remeter para a “lei” deixa um campo de liberdade particularmente vasto, não impondo que a fundamentação seja completa e/ou adequada. Assim, se escapa aos limites formais, entrando-se antes na apreciação do mérito. Ou seja, decidindo-se, não se o juiz levou a cabo ato formalmente correto, mas se a parte tem ou não razão. O que vimos referindo corresponde ao entendimento plasmado de modo constante e uniforme pela jurisprudência, nomeadamente deste Tribunal (cfr-se, muito exemplificativamente, em www.dgsi.pt, o texto do Acórdão de 4.6.2019, processo n.º64/15.2T8PRG-C.S1). 14. O recorrente situa a sua argumentação acerca da nulidade em dois pontos: Não fundamentação das razões pelas quais “seria de dispensar o levantamento topográfico”; Não indicação dos “motivos da confirmação dos factos provados em 11.º e 12.º” - artigo 20.º das alegações). Escreveu, a dado passo, a Relação: “Ora, lidos os documentos apresentados pelas Autoras e que atrás estão devidamente referenciados, que são fidedignos e credíveis, tendo em linha de conta os adequados critérios de exigibilidade que ética e socialmente e de modo proporcionado, podem ser impostos a todos aqueles que interagem no comércio jurídico [logo, às Autoras], à luz dos princípios inerentes a uma ética da responsabilidade (sendo que este é um valor estruturante essencial que deve pautar, sempre e em todos os momentos, não apenas a prática social quotidiana mas sobremaneira a actuação de todos os que têm intervenção num qualquer processo judicial), entende este Tribunal Superior, em plena concordância com a Mma Juíza a quo, que não é exigível nem pode ser imposto às Autoras que prestem outro tipo de prova para ensaiar demonstrar a veracidade da factualidade descrita nos pontos 11 e 12 do elenco dos factos declarados provados nesta acção. De facto, este Tribunal Superior sufraga e confirma o julgamento operado em 1.ª instância e, portanto, considera também que aqueles documentos supra mencionados são suficientes para provar a verificação desses factos aqui em referência.” Está aqui uma resposta fundamentante relativamente àqueles pontos, de sorte que temos como afastada a mencionada nulidade. 15. O artigo 17.º da Lei n.º 54/2005, de 15.11 dispõe o seguinte: Delimitação 1 - A delimitação do domínio público hídrico é o procedimento administrativo pelo qual são fixados os limites dos leitos e das margens dominiais confinantes com terrenos de outra natureza. 2 - A delimitação a que se refere o número anterior compete ao Estado, que a ela procede oficiosamente, quando necessário, ou a requerimento dos interessados. 3… 4… 5 … 7 - A delimitação a que se proceder por via administrativa não preclude a competência dos tribunais comuns para decidir da propriedade ou posse dos leitos e margens ou suas parcelas. 8 - Se, porém, o interessado pretender arguir o acto de delimitação de quaisquer vícios próprios deste que se não traduzam numa questão de propriedade ou posse, deve instaurar a respectiva acção especial de anulação. Emerge daqui – logo atenta a epígrafe – uma distinção entre: Delimitação do domínio público hídrico; Declaração de propriedade ou de posse dos leitos e margens ou suas parcelas. Além está o procedimento administrativo; Aqui a competência dos tribunais, no caso, os comuns. 16. Esta dicotomia não é, contudo, estanque. A pretender-se a delimitação pode pretender-se implicitamente a declaração de que a propriedade ou a posse se estende até determinado ponto. E ao pretender-se a declaração de propriedade ou de posse pode-se pretender, corolariamente, a definição da linha até onde elas alcançam. Nestes casos, mantém-se, a nosso ver, o que vale para os casos de pretensão exclusiva. Onde se pretender primacialmente a fixação duma linha delimitadora, impõe-se o procedimento administrativo. Quando se pretender a declaração de propriedade ou de posse de prédio e só corolariamente a definição da linha que o limita, na parte confinante “com o mar”, então temos o recurso à ação nos tribunais comuns. Em parte alguma se estabelece que a declaração de propriedade ou de posse, mesmo que abrangente da definição delimitadora dos prédios, pressupõe prévio procedimento administrativo. Pelo contrário, a lei ao referir que “não preclude” – n.º7 do preceito – é clara a autonomizar totalmente o recurso à via judicial. Autonomia que emerge também do n.º 8, ao ressalvar as ações de propriedade ou de posse. No presente caso, como já referimos em 1. as autoras pretendem que se “reconheça a sua propriedade sobre aquelas parcelas de margens…”. Não só não tinham previamente que lançar mão do procedimento administrativo, como ele não cabia face a tal pretensão. 17. Quanto à junção das plantas topográficas, há que distinguir: A própria junção; O conteúdo probatório – ou mesmo esclarecedor –, quanto aos limites dos prédios, que delas possam resultar. Aquela foi observada, estando tais plantas a folhas 261, 262, 265 e 266. Não há qualquer vício por aqui. 18. Mais delicada é a questão da invocada míngua de prova ou mesmo de esclarecimento. a) Para a abordagem desta questão, atentemos nas seguintes disposições da dita Lei n.º 54/2005: Artigo 10.º Noção de leito; seus limites 1 - Entende-se por leito o terreno coberto pelas águas quando não influenciadas por cheias extraordinárias, inundações ou tempestades. No leito compreendem-se os mouchões, lodeiros e areais nele formados por deposição aluvial. 2 - O leito das águas do mar, bem como das demais águas sujeitas à influência das marés, é limitado pela linha da máxima preia-mar de águas vivas equinociais. Essa linha é definida, para cada local, em função do espraiamento das vagas em condições médias de agitação do mar, no primeiro caso, e em condições de cheias médias, no segundo. 3… Artigo 11.º Noção de margem; sua largura 1 - Entende-se por margem uma faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas. 2 - A margem das águas do mar, bem como a das águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição dos órgãos locais da Direção-Geral da Autoridade Marítima ou das autoridades portuárias, tem a largura de 50 m. 3… 4… 5… - Quando tiver natureza de praia em extensão superior à estabelecida nos números anteriores, a margem estende-se até onde o terreno apresentar tal natureza. Portanto o leito é o terreno coberto pelas águas, nos termos referidos, enquanto a margem é a faixa de terreno – no caso de 50 m – contígua ou sobranceira à linha que limita o leito. A cobertura das águas varia e na noção de leito inclui-se, não só o terreno que a cada instante está coberto de água, como aquele que é coberto nos termos do n.º2 do artigo 10.º. Só findo este se inicia a margem. Daqui resulta que “leito” e “margem” são realidades diferentes. Como, aliás, resulta da linguagem vulgar. 19. A respeito de ambas, no entanto, vale a presunção a favor da dominialidade do Estado. Que também a respeito de ambas, pode ser, segundo o artigo 15.º, n.º2 daquela lei elidida[2], ao dispor que: 2 - Quem pretenda obter o reconhecimento da sua propriedade sobre parcelas de leitos ou margens das águas do mar ou de quaisquer águas navegáveis ou flutuáveis deve provar documentalmente que tais terrenos eram, por título legítimo, objeto de propriedade particular ou comum antes de 31 de dezembro de 1864 ou, se se tratar de arribas alcantiladas, antes de 22 de março de 1868. 20. Esta disposição inclui leitos e margens, mas, como é evidente, não os faz equivaler ou coincidir. Trata-se antes duma relação de alternatividade, ainda que uma linha delimitadora possa assentar numa parte no leito e noutra na margem. O que não pode é a mesma linha, nos mesmos pontos, assentar nas duas. Quem vier a tribunal, terá de precisar se pretende a declaração de propriedade sobre margens, sobre leitos ou sobre ambos. Até porque a elisão quanto aos leitos pode ser discutida face, além do mais, ao n.º2 do artigo 2.º da Convenção de Montego Bay, de 10.11.1982, aprovada pela Resolução da Assembleia da República n.º 60-B/97 e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º67-A/97. 21. A posição das autoras começa por ser algo ambígua. No artigo 3.º da p.i. referem-se “à sua propriedade…de prédios que estão localizados sobre leitos ou margens da águas do mar” depois referem-se como confrontantes o “Calhau do Mar” e a “praia”, seguindo-se nos artigos 63.º e 64.º a alusão apenas a “margem” ou “margens” o mesmo se passando, em estilo de conclusão, no artigo 69.º, para na redação dos pedidos incluírem “a propriedade sobre as seguintes parcelas de leitos ou margens”. A indefinição dos limites foi objeto de despacho determinando a correção, lavrado a folhas 247. Corresponderam as autoras a folhas 252, aludindo, com toda a clareza, a “parcelas de margens das águas do mar” (artigos 7.º e 12.º). Está excluído, pois, que as pretensões das autoras encerrem a ideia de que a linha demarcadora dos prédios se situe, em toda ou qualquer parte da sua extensão, no leito do mar. Não pode, portanto, subsistir a dimensão da condenação proferida enquanto inclui os “leitos das águas”. Que, aliás, não tem suporte factual, mormente nos pontos 11.º e 12.º do elenco factual. 22. Mas, se das posições assumidas pelas autoras se conclui que não pretendem “situar-se” no leito do mar, também se conclui que pretendem que as linhas demarcadoras dos prédios cheguem ao limite deste mesmo leito (com inclusão, portanto, totalmente, das margens). Juntaram as plantas topográficas, precisando com os demais elementos que também juntaram em alegação subsequente, onde pretendem que tais linhas sejam situadas. Todavia, o ora recorrente impugnou a colocação destas. Se atentarmos, por exemplo, nas fotografias juntas pelo Ministério Público com a contestação vemos diferenças substanciais. Assim, a folhas 401 verso, temos as linhas, vermelha correspondente ao limite do leito do mar e amarela correspondente ao limite da margem, em traçados que não coincidem com os da planta topográfica das autoras de folhas 262. Outra não coincidência se inferindo do cotejo da 1.ª fotografia de folhas 400 verso com a planta topográfica de folhas 261. Em todo este quadro – com mais relevância atentas as discrepâncias – os factos constantes dos pontos 11 e 12 do elenco factual vertido supra são insuficientes. Alude-se a faixa de terreno contígua ou sobranceira à linha que limita o leito das águas ou à crista do alcantil, numa largura de 50 metros. Esta largura é clara, mas fica-se sem se saber em que pontos se começam a contar os 50 metros. No caso da crista do alcantil – artigo 11.º, n.º 6 da dita lei – , pode a morfologia dar (ou não dar, consoante o tipo de crista e isso também devia constar pormenorizadamente dos factos) a resposta, mas relativamente ao leito do mar, há que traçar com toda a precisão, facilitada pelos métodos modernos, aqueles pontos dos limites do leitos do mar, considerando sempre o texto atinente que transcrevemos em 18. Dirimir, nomeadamente, as discrepâncias entre a ou as linhas assumidas pelo Ministério Público nos documentos que juntou com a contestação e as queridas pelas autoras. Tudo isto só sendo possível com o prosseguimento dos autos e inerente produção de prova, em ordem a resultar da decisão a fixação clara dos limites prediais. 23. Face ao exposto: Revoga-se o saneador sentença, determinando-se o prosseguimento dos autos, tendo em conta o que ficou dito em 21 e 22. Custas pelas autoras. João Bernardo (Relator) Abrantes Geraldes Tomé Gomes Nos termos do artigo 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13.03, aditado pelo DL n.º 20/2020, de 1.05, declaro que o presente Acórdão tem o voto de conformidade dos restantes juízes que compõem este colectivo. O relator __________
[1] Há dois n.ºs XV [2] Vejam-se, em www.dgsi.pt, os textos dos Acórdãos deste Tribunal de 4-06-2013, p. 6584/06.2TBVNG.P1.S e de 5.6.218, processo n.º 1339/16.9T8FAR.E1.S1 |