Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | FERNANDO SAMÕES | ||
Descritores: | DIREITO DE PREFERÊNCIA ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO PRÉDIO INDIVISO PROPRIEDADE HORIZONTAL CONSTITUCIONALIDADE PRINCÍPIO DA IGUALDADE DIREITO DE HABITAÇÃO | ||
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Data do Acordão: | 03/09/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I. O art.º 1091.º, n.º 1, al. a), do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27/2, não atribui o direito de preferência legal ao arrendatário de parte específica de prédio urbano indiviso ou não constituído em propriedade horizontal. II. Esta interpretação não viola os princípios constitucionais da igualdade e de acesso à habitação própria, consagrados, respectivamente, nos art.ºs 13.º, n.º 1, e 65.º, n.ºs 1 e 3, ambos da Constituição. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça – 1.ª Secção[2]: I. Relatório AA e BB intentaram, em 18/4/2018, a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Seguradoras Unidas, S.A., (1.ª ré) e Quadrantábilis Unipessoal, Lda. (2.ª ré), todos melhor identificados nos autos, pedindo que as rés sejam condenadas a reconhecer o direito de preferência da autora na compra da totalidade dos prédios identificados no artigo 1.º da petição inicial e, subsidiariamente, na compra do prédio identificado em 9 pelo preço que, proporcionalmente, lhe for atribuído. Para tanto, alegaram, em resumo, que: A 1.ª ré vendeu à 2.ª ré, mediante escritura pública outorgada em 16/ 11/2017, pelo preço global de 1.150.000,00 €, os 15 prédios urbanos identificados no art.º 1.º da petição inicial; A autora é arrendatária habitacional do rés-do-chão direito do 9.º prédio ali identificado, vendido pelo preço de 130.000,00 €, tendo sucedido no arrendamento por morte da sua mãe, ocorrida em 2009; Porém, a autora não foi notificada para preferir na sobredita alienação, nem teve oportuno conhecimento dos elementos essenciais daquele negócio. As rés contestaram por excepção e por impugnação, concluindo pela improcedência da acção. A autora respondeu à matéria das excepções. O autor desistiu da instância, a qual foi aceite pelas rés e devidamente homologada. A autora desistiu do pedido formulado a título principal, desistência essa que também foi homologada, prosseguindo os autos para apreciação do pedido subsidiário que alterou e cuja alteração foi admitida passando a ser o seguinte: a) serem as rés condenadas a reconhecer o direito de preferência da Autora na compra do prédio urbano melhor identificado na alínea x) do art.º 1.º da p.i. pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído mas que se liquida em 130 mil euros ordenando-se a substituição da 2.ª ré na titularidade e posse do aludido prédio com o consequente cancelamento do registo a favor da 2.ª Ré. Realizada a audiência prévia, foi proferido saneador-sentença, onde se julgou a acção improcedente, com a consequente absolvição das rés do pedido. Inconformada, a autora recorreu para o Tribunal da Relação......, que, por acórdão de 18/6/2020, aprovado por unanimidade, julgou a apelação improcedente, confirmando a sentença recorrida. Ainda irresignada, a autora interpôs recurso de revista excepcional, a qual foi admitida pela Formação, por douto acórdão de 26 de Janeiro de 2021, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 672.º do CPC. A autora/recorrente apresentou as respectivas alegações com as conclusões que aqui se transcrevem, na parte que pode relevar para a matéria ainda em causa: “… 3. Na esteira do defendido no Acórdão-fundamento, também a Recorrente entende que o douto Acórdão recorrido enferma de erro no julgamento de direito na medida em que, atento o regime jurídico vigente, deveria ter sido reconhecido à Recorrente o direito de preferência na compra e venda do prédio urbano no qual se encontra integrado o locado, não obstante o mesmo estar constituído em regime de propriedade total. 4. De facto, nos termos da Lei aplicável á data da outorga da escritura de compra e venda em discussão, seriam três os pressupostos para o exercício do direito legal de preferência em questão: (i) a qualidade de arrendatária da A.; (ii) a duração dessa qualidade por período superior a três anos; e (iii) a celebração do contrato de compra e venda do local arrendado. 5. A verificação dos dois primeiros pressupostos está atestada pelos factos provados (Factos sob as alíneas F a Q), sendo certo que o arrendamento, nos termos dos Factos Provados sob as alíneas F a H, vigora desde data anterior ao nascimento da aqui Recorrente. 6. Relativamente ao terceiro pressuposto, ficou igualmente provada a celebração de um contrato de compra e venda que teve como objecto, entre outros, o rés-do-chão direito arrendado à Recorrente. 7. Posto isto, recorda-se que a Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto, reconheceu, pela primeira vez, o direito de preferência do arrendatário para habitação nos casos de compra e venda ou dação em cumprimento do imóvel arrendado, na decorrência das alterações políticas e ideológicas que se seguiram ao 25 de Abril de 1974, que culminaram na aprovação da Constituição da República Portuguesa de 1976. 8. A respeito do direito de preferência, a Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto, no seu artigo 1.º, n.º 2, fazia referência a «fracção autónoma de imóvel urbano». 9. A Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto, foi, entretanto, revogada pelo artigo 3.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 de Outubro, que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano (RAU) e que aludia, no artigo 47.º, n.º 1, a «prédio urbano ou de sua fracção autónoma» e a «local arrendado». 10. A redacção do artigo 47.º, n.ºs 1 e 2, do RAU, motivou divergências doutrinárias e jurisprudenciais, relativamente ao reconhecimento do direito de preferência exercido por arrendatário de uma parcela de imóvel não constituído em regime de propriedade horizontal, surgindo, em confronto, a teoria expansionista, mais abrangente, e a teoria do local, mais restritiva, quanto ao objecto do direito de preferência. 11. Não obstante, o entendimento maioritariamente acolhido na doutrina e na jurisprudência era o inerente à teoria expansionista, que defendia, em súmula, que, não tendo sido constituída a propriedade horizontal, ao arrendatário assistia o direito de preferência na venda da totalidade do imóvel em que o locado se integrava, uma vez que a parcela locada, mas não autónoma, não poderia ser objecto de venda; se a propriedade horizontal estivesse constituída, o direito de preferência limitar-se-ia à fracção respectiva. 12. A teoria expansionista tinha, assim, sustentação no princípio constitucional referente ao acesso a habitação própria, consagrado no artigo 65.º da C.R.P. 13. Significa isto que, não obstante a inclusão no RAU da expressão «local arrendado», o arrendatário de parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal podia, mesmo assim, exercer o seu direito relativamente à totalidade do imóvel, 14. Entretanto, com a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, que aprovou o NRAU, foi alterado este regime, que passou a ser objecto de regulação no artigo 1091.º do Código Civil, cujo n.º 1, alínea a), e que passou a fazer alusão a «local arrendado». 15. Ou seja, com a nova redacção do artigo 1091.º do Código Civil, eliminou-se a referência ao «prédio urbano» ou a «fracção autónoma», bem como a possibilidade de licitação entre dois ou mais locatários preferentes. 16. Face à nova redacção, houve doutrina e jurisprudência que entenderam que a sobredita norma passou a restringir o direito de preferência do arrendatário ao local arrendado, pelo que, estando o fogo em prédio não constituído em regime de propriedade horizontal, o arrendatário deixaria de poder exercer preferência em relação à totalidade do prédio. 17. Todavia, este não era um entendimento unânime e isento de controvérsia, bem pelo contrário. 18. É que a Lei 6/2006 de 27 de Fevereiro continuou, tal como a anterior redacção, a falar em “local arrendado”, sendo certo que em parte alguma daquele diploma legal se refere que se restringia o direito de preferência do arrendatário aos casos de prédio constituído em propriedade horizontal, pelo que se continua a aplicar a jurisprudência do douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Janeiro de 2012, supra citado. 19. Por isso, apesar da teoria do local ter-se tornado a tese maioritária com a entrada em vigor da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, a teoria expansionista continuou a ter defensores, tanto na jurisprudência como na doutrina. 20. Seguindo esta linha de pensamento, temos o sobredito Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 07-12-2017, aqui apresentado como acórdão-fundamento. 21. Ademais, já em 2011, JORGE HENRIQUE DA CRUZ PINTO FURTADO, questionando-se sobre o direito de preferência a arrendatário de unidade de um prédio urbano indiviso, concluiu, em situações como a do caso concreto, a preferência caberá, indistintamente, a cada um dos arrendatários, não apenas relativamente à sua unidade locada, embora a lei a reporte expressamente ao “local arrendado”, mas a todo o prédio (Cfr. JORGE HENRIQUE DA CRUZ PINTO FURTADO, Manual do Arrendamento Urbano, Vol. II, 5.ª Ed. actual., Almedina, 2011, pp. 816-819). 22. Note-se que as próprias RR./Recorridas consideraram que a teoria expansionista era a aplicável ao presente caso, tanto mais que a 1.ª R./Recorrida, mesmo sabendo que o 2.º A., BB, era arrendatário de um imóvel não constituído em propriedade horizontal, enviou-lhe a carta junta à P.I. como doc. n.º 23, datada de 28 de Setembro de 2017, assim como enviaram a outro inquilino a carta referida na alínea R dos factos provados, e, em ambos os casos, a dar-lhes preferência na venda de imóveis que não se limitavam ao imóvel que lhes estava locado, o que demonstra que o facto dos imóveis não estarem em propriedade horizontal não constituía fundamento para as RR./Recorridas não darem aos inquilinos a preferência na venda. 23. Deste modo ao negarem posteriormente o direito de preferência que a ora Recorrente exerce através da presente acção as RR/Recorridas estão a incorrer em venire contra factum proprium e em claro abuso de direito. 24. Em suma, atenta a referida doutrina e jurisprudência, e não obstante ser aplicável in casu o artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, deveria o Tribunal a quo ter reconhecido à aqui Recorrente o direito de preferir sobre a totalidade do prédio urbano no qual está inserido o local arrendado, apesar de o prédio em questão se encontrar em regime de propriedade total, assim se cumprindo o princípio constitucional do acesso à habitação própria. 25. É, para nós, clara a intenção do Legislador em vincar o direito de preferência do arrendatário, para habitação, de fracção autónoma ou de parte de imóvel que não esteja em propriedade horizontal, especialmente nos casos em que o senhorio pretenda vender a totalidade do imóvel e não apenas o arrendado. 26. Realmente, não tendo a norma constitucional que garante o acesso à habitação própria sido alterada, a alteração legislativa verificada, com a entrada em vigor da Lei n.º 64/2018, de 29 de Outubro, esta apenas pode ser interpretada como um reconhecimento, por via legislativa, do alargamento do direito de preferência a arrendatários de unidades prediais autónomas, de modo a mitigar a teoria do local que, entretanto, tinha sido adoptada, de forma maioritária, na doutrina e na jurisprudência. 27. Considera-se, por isso, que a Lei n.º 64/2018, de 29 de Outubro, tem natureza interpretativa, pelo que, nos termos do n.º 1 do artigo 13.º do Código Civil, o referido diploma, em particular a nova redacção do artigo 1091.º do Código Civil, abrange a situação dos autos, ainda que a escritura de compra e venda do local arrendado tenha ocorrido em data anterior à entrada em vigor do sobredito diploma legal. 28. Justamente, a Lei n.º 64/2018, de 29 de Outubro, pretendeu pôr termo à patente diversidade de decisões sobre o exercício do direito de preferência por arrendatário de fracção ou divisão de prédio urbano constituído em regime de propriedade total. 29. Por conseguinte, ainda que, como princípio geral, vigore na codificação substantiva civil nacional o princípio da não retroactividade (artigo 12.º, n.º 1, do Código Civil), tal não é extensível às normas interpretativas (artigo 13.º, n.º 1, do Código Civil), pelo que o espírito da Lei n.º 64/2018, de 29 de Outubro, que reconhece o direito de preferência a arrendatário de fracção não autonomizada, deverá aplicar-se igualmente ao caso vertente, ainda que a compra e venda tenha tido lugar em data anterior à entrada em vigor do referido diploma. 30. Sendo certo que o direito de preferência dos arrendatários tem de se definir pelo objecto do seu direito (de arrendamento) e não pelo objecto do direito (de propriedade) do senhorio. 31. Não existem, ademais, razões materiais que justifiquem a diferença evidente de tratamento entre arrendatários de fracções autónomas e de partes de prédios não constituídos em propriedade horizontal, diferença que, assim assumida, viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13.º da C.R.P. 32. Refira-se ainda que, atento o objecto social da 2.ª R./Recorrida – adquirente no negócio controvertido –, o negócio em discussão nos autos nada mais visa do que promover a especulação imobiliária naquela zona ............. e, mais dia, menos dia, proceder ao despejo da aqui Recorrente! 33. Em conformidade, e com o merecido respeito, deveria o Tribunal a quo ter concluído que a Recorrente tem direito a preferir na aquisição do “Prédio 9”, ainda que o locado se cinja ao rés-do-chão direito do mesmo, ou seja, a uma unidade independente, mas sem autonomia jurídica. 34. Entende-se, por isso, que qualquer interpretação contrária à ora defendida está inevitavelmente ferida de inconstitucionalidade, porquanto viola, de forma gritante, o princípio constitucional de acesso à habitação própria e, bem assim, o princípio constitucional da igualdade, consagrados nos artigos 65.º e 13.º da C.R.P., respectivamente, uma vez que estar-se-á a admitir, sem fundamento legal ou constitucional atendível, a diferenciação entre arrendatários de unidades prediais autónomas e arrendatários de fracções autónomas. 35. Ademais, estar-se-á a desproteger os arrendatários de unidades prediais autónomas, os quais, precisamente por isso, necessitam de mais de estabilidade jurídica que os arrendatários de fracção autonóma. 36. Em suma, os sobreditos princípios constitucionais apenas estarão salvaguardados se in casu se reconhecer à Recorrente o direito a preferir na compra e venda do “Prédio 9”. 37. Ademais, contrariamente à 2.ª R./Recorrida, que, com o negócios dos autos, visa uma finalidade puramente especulativa, a Recorrente apenas pretende adquirir a totalidade do “Prédio 9” porque os termos da presente acção assim o exigiram e porque a Recorrente necessita de uma casa onde residir, sendo certo que, desde que nasceu, a Recorrente apenas conheceu aquela casa, onde sempre residiu e que constitui, até à presente data, o seu Lar e, agora, também do seu filho menor. 38. Com efeito, na pendência da presente acção de preferência, o 2.º A. veio desistir da instância, forçando a aqui Recorrente a redefinir o pedido e a adquirir a totalidade do “Prédio 9”, e já não apenas uma quota-ideal do mesmo, em regime de compropriedade, como inicialmente admitido na Petição Inicial. 39. Por conseguinte, não há, nem nunca houve, da parte da aqui Recorrente, qualquer intenção especulativa no negócio em causa, sendo que a Recorrente apenas pretende adquirir a totalidade do “Prédio 9”, porquanto a tal foi obrigada quando, na pendência da presente acção, o 2.º A. desistiu da instância e renunciou, por essa via, ao direito de preferência que ao mesmo assistia sobre o mencionado imóvel. 40. Consequentemente, carece a decisão em crise de ser substituída por douto Acórdão que, em condene as RR./Recorridas a reconhecer à Recorrente o direito a preferir na compra do “Prédio 9”, pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído, mas que se liquida em € 130.000,00, ordenando-se a substituição da 2.ª R./Recorrida na titularidade e posse do aludido prédio, com o consequente cancelamento do registo a favor da 2.ª R./Recorrida. O douto Acórdão sob censura violou, entre outros, os seguintes preceitos legais: Artigos 13.º e 65.º da C.R.P.; Artigos 13.º, n.º 1, 334º e 1091.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil. Nestes termos e nos mais de Direito, deverá o Magnânime Supremo Tribunal de Justiça dar provimento ao presente recurso, e, por via dele, revogar o Acórdão recorrido por douto Acórdão favorável in totum às alegações da Recorrente, nos termos acima melhor aduzidos, Fazendo-se, assim, a habitual e necessária JUSTIÇA!” As rés contra-alegaram pugnando pela confirmação do julgado.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir o mérito do presente recurso. A questão fundamental que cumpre agora conhecer, tendo em consideração o douto acórdão da Formação que admitiu o recurso de revista excepcional, o qual delimita os poderes cognitivos desta conferência julgadora, consiste em saber “se, em face do disposto no artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, ao arrendatário habitacional de apenas uma parte não autonomizada de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal assiste o direito de preferência legal quer em relação a essa parcela quer em relação à totalidade do mesmo prédio.” Com efeito, tem vindo a entender-se, neste Supremo Tribunal de Justiça, que, nos casos de admissão excepcional da revista, “(…) os poderes cognitivos da conferência julgadora circunscrevem-se às questões suscitadas no recurso relativamente às quais foi, em antecedente acórdão da formação de apreciação preliminar, decidido que se verificavam um ou alguns dos pressupostos específicos que, para aquele efeito, são enunciados no n.º 1 do artigo 672.º do Cód. Proc. Civil. É que, se assim não fosse, afrontar-se-ia o cariz restritivo da admissibilidade da revista subjacente à instituição da dupla conforme e contornar-se-ia o respectivo regime legal. Consequentemente, o objecto do recurso, assim delimitado, não abarca quaisquer outras questões que, cumulativa e paralelamente, hajam sido enunciadas na revista e contornar-se-ia o respectivo regime legal. (…)”[3]. Nessa conformidade e não tendo sido reconhecida a verificação de qualquer um dos pressupostos de que depende a admissibilidade da revista excepcional, quanto à questão do abuso de direito, suscitada nas conclusões 22.ª e 23.ª, há que considerar que tal questão está excluída do âmbito da revista, atento o cariz definitivo daquele aresto (n.º 1 do art.º 620.º e n.º 4 do art.º 672.º, ambos do Código de Processo Civil). Relembre-se que a revista excepcional estribou-se exclusivamente na oposição de jurisprudência relativamente à questão enunciada supra, mais precisamente contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento (o acórdão da Relação de Guimarães de 7/12/2017, processo n.º 1130/15.0T8VNF-F.G1) e só como tal foi a mesma admitida. Impõe-se, em consonância, enjeitar o conhecimento desse segmento do objecto da revista [alínea b) do n.º 1 do art.º 652.º e n.º 1 do art.º 655.º, ambos do Código de Processo Civil]. Mas o mesmo já não sucede relativamente à inconstitucionalidade, também suscitada na revista, porquanto esta questão, embora não tenha sido abordada pela Formação, ela apenas se coloca depois de solucionada a primeira, ou seja, depois de definido o alcance do citado art.º 1091.º, n.º 1, al. a) e apenas se a interpretação que lhe vier a ser dada for desfavorável ao entendimento sustentado pela recorrente. Por isso, neste caso, também será apreciada e decidida a questão da inconstitucionalidade. II. Fundamentação 1. De facto No acórdão recorrido, foram reproduzidos os seguintes factos dados como provados pela 1.ª instância: A - Em 1973, a sociedade mútua de seguros “Mútua dos Navios Bacalhoeiros”, com sede na Rua do Ferragial, nº 33, 1º, em Lisboa, era proprietária dos seguintes prédios: i. “Prédio 1” – prédio urbano situado na Rua ...... (......) M-B/.. e M-B/.., ....-... ..................., concelho ......, registado na Conservatória do Registo Predial ...... sob o n.º .....74, da freguesia ..................., e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo .... da matriz predial da freguesia ..................., tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ...., de .. de Setembro de 1950, pela Câmara Municipal .....; ii. “Prédio 2” – prédio urbano situado na Rua ...... (.....) M-B/.. e M-B/.., ....-... ..................., concelho de ......, registado na Conservatória do Registo Predial ...... sob o n.º ....76, da freguesia ..................., e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo ... da matriz predial da freguesia ................., tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ...., de .. de Setembro de 1950, pela Câmara Municipal .....; iii. “Prédio 3” – prédio urbano situado na Rua ...... (.....) M-B/.. e M-B/.., ....-... ..................., concelho de ......, registado na Conservatória do Registo Predial de ...... sob o n.º ….71, da freguesia da ..................., e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo ... da matriz predial da freguesia da ..................., tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ...., de .. de Setembro de 1950, pela Câmara Municipal ......; iv. “Prédio 4” – prédio urbano situado na Rua ...... (.....) M-B/.. e M-B/.., ....-... ..................., concelho ......, registado na Conservatória do Registo Predial ...... sob o n.º ....73, da freguesia da ..................., e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo ... da matriz predial da freguesia ..................., tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ...., de .. de Setembro de 1950, pela Câmara Municipal......; v. “Prédio 5” – prédio urbano situado na Rua ...... (.....) M-B/.. e M-B/.., ....-... ..................., concelho de ......, registado na Conservatória do Registo Predial de ...... sob o n.º ....75., da freguesia da ..................., e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo ... da matriz predial da freguesia da ..................., tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ...., de .. de Setembro de 1950, pela Câmara Municipal......; vi. “Prédio 6” – prédio urbano situado na Rua ...... (.....) n.º .. e n.º .., ....-.... ..................., concelho ......, registado na Conservatória do Registo Predial ...... sob o n.º ....70, da freguesia da ..................., e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo ... da matriz predial da freguesia ..................., tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ..., de .. de Julho de 1951, pela Câmara Municipal ......; vii. “Prédio 7” – prédio urbano situado na Rua ...... (.....) n.º .. e n.º .., ....-... ..................., concelho ......, registado na Conservatória do Registo Predial de ...... sob o n.º ....69, da freguesia ..................., e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo ... da matriz predial da freguesia ..................., tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ..., de .. de Julho de 1951, pela Câmara Municipal ......; viii. “Prédio 8” – prédio urbano situado no Bairro do .........., Rua ...... (I) n.º .. e n.º .., ....-... ..................., concelho ......, registado na Conservatória do Registo Predial ...... sob o n.º …...80, da freguesia ..................., e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo ... da matriz predial da freguesia ............, tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ..., de .. de Setembro de 1953, pela Câmara Municipal d.....; ix. “Prédio 9” – prédio urbano situado no Bairro do .........., Rua ...... (I), n.º .. e n.º .., ....-... ..................., concelho ......, registado na Conservatória do Registo Predial ...... sob o n.º …79, da freguesia .................., e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo ... da matriz predial da freguesia ..................., tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ..., de .. de Setembro de 1953, pela Câmara Municipal ......; x. “Prédio 10” – prédio urbano situado no Bairro do .........., Rua ...... (I), n.º .. e n.º .., ....-... ..................., concelho ......, registado na Conservatória do Registo Predial de ...... sob o n.º ...78, da freguesia da ..................., e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo ... da matriz predial da freguesia da ..................., tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ..., de .. de Setembro de 1952, pela Câmara Municipal de ......; xi. “Prédio 11” – prédio urbano situado no Bairro do .........., Rua .., ....-... ..................., concelho ......, registado na Conservatória do Registo Predial de ...... sob o n.º ....72, da freguesia ..................., e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo ... da matriz predial da freguesia ..................., tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ...., de .. de Setembro de 1953, pela Câmara Municipal ......; xii. “Prédio 12” – prédio urbano situado no Bairro do .........., Rua .., n.º .. e .., ....-... ..................., concelho ......, registado na Conservatória do Registo Predial ...... sob o n.º ....83, da freguesia ......... e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo ... da matriz predial da freguesia ..................., tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ..., de .. de Setembro de 1953, pela Câmara Municipal ......; xiii. “Prédio 13” – prédio urbano situado no Bairro do .........., Rua .., n.º .. e .., ....-... ..................., concelho ......, registado na Conservatória do Registo Predial ...... sob o n.º ....77, da freguesia ..................., e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo ... da matriz predial da freguesia ..................., tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ..., de .. de Setembro de 1953, pela Câmara Municipal de ......; xiv. “Prédio 14” – prédio urbano situado na Rua .., ....-... ..................., concelho ....., registado na Conservatória do Registo Predial ...... sob o n.º ....82, da freguesia .................., e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo ... da matriz predial da freguesia ..................., tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ..., de .. de Outubro de 1995, pela Câmara Municipal ......; xv. “Prédio 15” – prédio urbano situado na Rua .., e Rua ....................., n.º .., ....-... ..................., concelho ......, registado na Conservatória do Registo Predial ...... sob o n.º ....81, da freguesia .................., e inscrito junto da Autoridade Tributária Portuguesa sob o Artigo ... da matriz predial da freguesia ..................., tendo sido emitida Licença de Utilização n.º ...., de .. de Dezembro de 1953, pela Câmara Municipal ....... B - Em 1991, a “Mútua dos Navio Bacalhoeiros” transformou-se em sociedade anónima, alterando a sua denominação para “Oceânica, Companhia de Seguros, S.A.”. C - Em 1999, a “Oceânica, Companhia de Seguros, S.A.” foi incorporada, por fusão, na “Companhia de Seguros Açoreana, S.A.” D - Em 30 de Dezembro de 2016, a “Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A.” incorporou, por fusão, entre outras, a “Companhia de Seguros Açoreana, S.A.” e alterou a sua denominação para “Seguradoras Unidas, S.A.. E - A partir de 30 de Dezembro de 2016 a Ré Seguradoras Unidas, S.A. passou a ser a legítima proprietária dos imóveis a que alude a alínea A). F - Por contrato de arrendamento celebrado em data que a Autora AA não consegue precisar, mas anterior ao seu nascimento, ocorrido em 19 de Maio de 1973, a “Mútua dos Navios Bacalhoeiros” deu de arrendamento aos seus pais, CC e DD, que aceitaram, o rés-do-chão direito, com entrada pelo número 26, do prédio urbano melhor identificado na alínea ix da alínea A). G - Os pais da Autora AA fixaram no locado a sua residência habitual, constituindo aí a sua casa de morada de família. H - O locado foi a única residência que a Autora AA conheceu, tendo aí sido criada e, ela própria, constituído família. I - Quando os pais da Autora AA se divorciaram o arrendamento referido na alínea F) transmitiu-se para DD, mãe da Autora AA. J - Em .. de Janeiro de 2009 faleceu DD, no estado de viúva. L - À data do óbito da mãe da Autora AA, a posição de senhoria no contrato de arrendamento em apreço era assumida pela “Companhia de Seguros Açoreana, S.A.”. M - Por carta datada de 07 de Abril de 2009, a Autora AA comunicou à “Companhia de Seguros Açoreana, S.A.” o seguinte: “(…) Ref: Arrendamento. Transmissão por Morte. Ex.mos. Senhores, Na qualidade de filha da arrendatária DD, venho comunicar que a minha mãe faleceu no passado dia 11 de Janeiro de 2009, conforme Assento de Óbito que anexo. Dado que vivi com a minha mãe, desde que nasci, portanto há 35 anos, assiste-me o direito de ver concentrado a meu favor o arrendamento em causa. Como tal, agradeço que o recibo referente à renda a pagar no mês de Junho que se vence em 1 de Maio de 2009, seja já emitido em meu nome. Sem outro assunto, de momento, subscrevo-me apresentando os meus cumprimentos. (….)”, tudo conforme documento junto a folhas 30 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. N - A carta a que alude a alínea M) foi recebida pela “Companhia de Seguros Açoreana, S.A.” em 09 de Abril de 2009. O - A “Companhia de Seguros Açoreana, S.A.” não remeteu qualquer resposta à carta a que alude a alínea M) remetida pela Autora AA. P - Desde então a Autora AA tem procedido ao pagamento, pontual e integral, da renda mensal devida pelo arrendamento, tendo a “Companhia de Seguros Açoreana, S.A.” sempre recebido a renda e emitido o respectivo recibo embora continuando a fazer constar o nome da falecida mãe da Autora AA. Q - Por procedimento de actualização extraordinária de renda iniciado no final de 2013, a renda mensal devida pelo arrendamento do locado passou a ser, a partir de 01 de Fevereiro de 2014, no montante de €348,69. R – Em Setembro de 2017, a Autora AA teve conhecimento que a Ré Seguradoras Unidas, S.A., estava a enviar missivas aos arrendatários dos prédios a que alude a alínea A) a comunicar-lhes que pretendia vender à Ré Quadrantábilis Unipessoal, Lda os prédios identificados na alínea A), tudo conforme documento junto a folhas 40 a 42 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. S - A Ré Seguradoras Unidas, S.A. não enviou nenhuma carta à Autora AA. T – A Autora AA enviou à Ré Seguradoras Unidas, S.A. uma carta, datada de 09 de Outubro de 2017, junta a folhas 43 verso dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, comunicando-lhe que: “(…) Assunto: Exercício do Direito de Preferência do ‘’Prédio 9’’- nº .. e .. Exmos Senhores, Face ao teor da vossa notificação de 28 de Setembro passado, na qualidade de arrendatária do prédio urbano sito na Rua ............., nº .., freguesia ..............., Concelho ......, registado na Conservatória do Registo Predial ...... sob o nº .....79 e inscrito junto da Autoridade tributária Portuguesa sob o artigo: ... da matriz predial da freguesia da ............... do qual V.Exas são senhorios e proprietários, VENHO, em cumprimento do disposto do nº 2 do artº 416 ex vi alínea a) do nº 1 do artº 1091, ambos do Código Civil, Exercer o Direito de Preferência que me é conferido no que concerne à venda do imóvel supra identificado nas condições que devem ainda ser expostas e apresentadas por V.Exas. Face ao exposto, Solicita e Requer a V.Exas que se dignem informar as condições respeitantes para a venda do identificado “Prédio 9” nº .. e .., visto serem estes possuidores de caderneta predial independente em relação aos outros restantes prédios identificados de 1 a 15, pelo que, salvo o devido respeito, apenas os nº .. e .. são unos e indivisíveis para efeitos de direito de preferência. Aguardo assim as vossas prezadas noticias. (…)”. U – Em resposta à carta a que alude a alínea T), a Ré Seguradoras Unidas, S.A. remeteu à Autora AA a carta junta a folhas 44 verso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, comunicando-lhe o seguinte: “(…) Lisboa, 13 de Outubro de 2017. Assunto: Direito legal de preferência conferido ao arrendatário do Prédio 9 – nºs .. e .. Exmo. Senhora, Vimos, por este meio, em resposta à sua carta datada de 9 de Outubro de 2017 (recebida a 11/10) informar V. Exa., que os contratos de arrendamento celebrados se encontram em nome de BB (relativamente ao numero ..) e DD (relativamente ao número ..), pelo que não reconhecemos a V. Exa., qualquer legitimidade relativamente ao pedido efectuado. No entanto, ainda que V. Exa., tivesse algum direito legal de preferência, que como referimos não tem, as condições da projetada venda são as indicadas nas nossas cartas de 14 e 28 de Setembro de 2017, sendo condição essencial do negócio a compra e venda da totalidade dos prédios indicados naquela nossa carta, visto que o comprador apenas está interessado na compra do conjunto dos prédios, e o vendedor na venda do conjunto. Consequentemente, o negócio é uno e indivisível para efeito de exercício do vosso direito de preferência, só podendo ocorrer nos exatos termos e condições acordados entre a vendedora e o comprador. Estamos à disposição para o que entender por conveniente. Os nossos melhores cumprimentos. (…).” V – A carta a que alude a alínea U) foi recepcionada pela Autora em 24 de Outubro de 2017. X – Em resposta à carta constante da alínea U) a Autora remeteu à Ré Seguradoras Unidas, S.A. a carta junta a folhas 45 e 45 verso dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, onde consta: “(…) ........, 30 de Outubro de 2017 Assunto: Excercio do Direito de Preferência do “Prédio ...11 -nº .. e ... Exmos Senhores, Insisto, no que diz respeito à venda do identificado “Prédio 9” nº .. e .., e visto serem estes possuidores de caderneta predial independente em relação aos outros restantes prédios identificados de 1 a 15, pelo que, salvo o devido respeito, apenas os nº .. e .. são unos e indivisíveis para efeitos de direito de preferência. Pelo que, Face ao teor da vossa notificação de 18 de Outubro passado, na qualidade de arrendatária do prédio urbano sito na Rua ............., nº .., freguesia da ..............., Concelho de ...... registado na Conservatória do Registo Predial de ...... sob o nº ....79 e inscrito junto da Autoridade tributária Portuguesa sob o artigo: ... da matriz predial da freguesia .............. do qual V.Exas são senhorios e proprietários, VENHO, em cumprimento do disposto do nº 2 do art° 416 ex vi alínea a) do nº 1 do artº 1091, ambos do Código Civil, EXERCER O DIREITO DE PREFERÊNCIA que me é conferido no que concerne à venda do imóvel supra identificado, nas condições que devem ainda ser expostas e apresentadas por V.Exas. Por outro lado, Aproveito igualmente para responder à vossa comunicação datada de 13 Outubro de 2017 e sobre a qual tenho a dizer o seguinte; Os senhores bem sabem a minha mãe, DD, faleceu no dia 11/01/2009. Nessa altura enviei uma carta registada com aviso de receção, a V. Exas. a informar do falecimento e a comprová-lo com a respetiva certidão de óbito, entre outra documentação complementar. Da mesma, não obtive resposta pelo que, considerei sempre o vosso silêncio como um legitimo assentimento tácito. Até porque, os vales de pagamento da renda que sempre vos enderecei iam no meu nome. Para além do referido, devo ainda relembrar o processo de atualização extraordinária da renda, que inclusive estive nas vossas instalações pessoalmente para a apresentar as minhas razões. Porquanto, é caricato que os senhores venham agora quase 9 anos depois dizerem que não me reconhecem qualquer legitimidade enquanto arrendatária. Talvez por isso tenham sempre emitido os recibos em nome da minha mãe, pessoa que sabiam já ter falecido como já demonstrei, sei-o agora, com notória reserva mental. De resto, tal “falta de legitimidade” nunca constituiu qualquer óbice a minha manutenção no locado, de cujo qual, de resto sempre liquidei a tempo e horas as respetivas rendas. Pelo que, virem agora dizer que não reconhecem a minha qualidade de arrendatária é mero oportunismo de circunstância, de quem a todo o custo quer fazer um negócio, mesmo que isso coloque em causa uma vida inteira. Ademais, devo recordar que estou nesta casa desde o dia em que nasci, há 44 anos e sempre foram ali feitas todas as benfeitorias sobretudo as necessárias, uma vez que o senhorio nunca se dignou a fazer qualquer obra. Deste modo, não pretendo conformar-me com a vossa posição, advertindo desde já que tenciono acionar todos os meios legais à minha disposição para impugnar a venda que agora indevidamente anunciam. Mais, não tenciono sair do locado, sem ser devidamente indemnizada. Face ao exposto, Solicita e Requer a V.Exas que se dignem informar as condições respeitantes para venda do identificado “Prédio 9” nº .. e .., visto serem estes possuidores de caderneta predial independente em relação aos outros restantes prédios identificados de 1 a 15, pelo que, salvo o devido respeito, apenas os nº .. e .. são unos e indivisíveis para efeitos de direito de preferência. (…)”. Z- Por carta datada de 09 de Novembro de 2017, junta a folhas 47 dos autos e cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, a Ré Seguradoras Unidas, S.A. comunicou à Autora o seguinte: “(…) Lisboa, 09 de Novembro de 2017 Assunto: Direito legal de preferência conferido ao arrendatário do Prédio 9 - n.ºs .. e .. Exma. Senhora, Vimos, por este meio, em resposta à sua carta datada de 30 de Outubro de 2017 (recebida a 2/11 ), informar V. Exa., que os contratos de arrendamento celebrados se encontram em nome de BB (relativamente ao número ..) e DD (relativamente ao número ..), tendo sido constatado que houve uma comunicação do óbito da arrendatária Senhora DD. Apesar das Seguradoras Unidas não terem consentido na transmissão do arrendamento referido, e sem prejuízo das medidas a tomar nesse sentido, reiteramos que as condições da projectada venda as indicadas na nossa carta de 14 de Setembro de 2017 que se mantêm em vigor, salvo quanto à da escritura que foi adiada até 16 de Novembro de 2017. Assim, é condição essencial do negócio, a compra e venda da totalidade dos prédios indicados naquela nossa carta, visto que o comprador apenas está interessado na compra do conjunto dos e o vendedor na venda do conjunto. Importa ainda referir, que apesar do contrato de arrendamento ter como objecto apenas o número .. Rua ............., conforme resulta da caderneta predial e da correspondente certidão predial, o prédio não se encontra registado em propriedade horizontal, o que confirma que o prédio em causa é efectivamente inseparável. Estamos à disposição para o que entender por conveniente. Os nossos melhores cumprimentos. (…)”. AA – Do documento junto a folhas 56 a 59 verso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais consta: “COMPRA E VENDA No dia dezasseis de Novembro de dois mil e dezassete, na Avenida ................, número ..., em ......, perante mim EE, Notária com Cartório Notarial sito na Rua ......., número .., rés-do-chão A, em ......, compareceram como outorgantes: PRIMEIRO FF, (…); e GG (…) que outorgam na qualidade de procuradores, em representação da sociedade comercial anónima SEGURADORAS UNIDAS, S.A. (…). SEGUNDO HH, casado, (…) que outorga na qualidade de gerente, em representação da sociedade comercial unipessoal por quotas com firma QUADRANTÁBILIS UNIPESSOAL, LDA., (…), doravante também designada abreviadamente por “COMPRADORA”. (…) PELOS PRIMEIROS OUTORGANTES, NA INVOCADA QUALIDADE, DITO: Que em nome da SU que representam, e reservando para até o integral pagamento do preço, nos termos do artigo 409º do Código Civil, pela presente escritura e pelo preço global de 1.150.000,00 (um milhão cento e cinquenta mil euros), VENDEM à sociedade COMPRADORA, representada pelo segundo Outorgante, todos os imóveis melhor descritos e identificados no documento complementar UM à presente escritura (adiante abreviadamente e conjunto designados por “Imóveis”, documento esse elaborado nos termos do número 1 do artigo 64.º do Código do Notariado, e pelos preços parciais aí igualmente indicados. (…) - Que os Imóveis são vendidos livres de ónus, encargos, limitações e responsabilidades, com excepção dos indicados no documento complementar dois. (…) - Que mantém-se, para a COMPRADORA, todos os direitos e obrigações que para a SU decorram dos contratos de arrendamento celebrados relativamente aos Imóveis objeto deste contrato. - Que as rendas processadas e não cobradas na totalidade além da data prevista de transmissão dos IMÓVEIS, totalizam o valor de quatro mil cento e onze euros e oitenta e seis cêntimos, cujo valor será entregue na data juntamente com a relação de dividas atualizada. - Que as rendas recebidas pela COMPRADORA referentes ao período anterior à transmissão dos IMÓVEIS, deverão ser pagas à SU, no prazo máximo de dez dias corridos após a data da sua recepção. (…) - Que são ainda transmitidos à sociedade COMPRADORA, pelo preço de um euro, que a SU declara já ter recebido, os créditos melhor identificados no Anexo Um à presente escritura, respeitantes aos contratos de arrendamento incidentes sobre os IMÓVEIS. - Que para a sociedade COMPRADORA que representa, aceita a presente venda nos termos exarados, bem como a transmissão dos créditos constantes do documento anexo, e declara que destina os imóveis ora adquiridos a revenda. (…) PELOS OUTORGANTES, NAS INVOCADAS QUALIDADES, FOI AINDA DITO: - Que os Imóveis objeto da presente compra e venda, os ónus, encargos, e responsabilidades referidos neste contrato, bem como os valores patrimoniais e preços individuais pelos quais cada um dos Imóveis é transmitido, se encontram melhor identificados no documento complementar UM à presente escritura, que dela faz parte integrante para todos os efeitos legais. - Que a presente compra e venda é feita em conjunto (abrangendo a totalidade dos imóveis identificados no documento complementar UM) e pelo preço global atrás indicado, não sendo separável sem prejuízo para o vendedor, sendo que os preços indicados para cada um desses imóveis no documento complementar UM são atribuídos apenas para efeitos de cumprimento das normas notariais, contabilísticas e fiscais. - Que o facto de a compra e venda ser feita em conjunto (abrangendo a totalidade dos imóveis identificados no documento complementar UM) e por preço global foi determinante para a formação da vontade das partes para a celebração da presente escritura. (…) - Que conhecem e inteiramente aceitam o conteúdo dos referidos documentos complementares UM e DOIS à presente escritura, pelo que se dispensa a sua leitura. (…).” BB – Do documento junto a folhas 60 a 67 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais consta: “DOCUMENTO COMPLEIIENTAR UM, ELABORADO NOS TERMOS DO NÚMERO 1 DO ARTIGO 64º DO CÓDIGO DO NOTARIADO, QUE INSTRUI ESCRITURA LAVRADA A FOLHAS 50 DO LIVRO DE NOTAS ÚMERO SETENTA E NOVE-A DO CARTÓRIO NOTARIAL DE ...... DE EE. Imóveis transmitidos pela escritura pública de compra e venda, pelos preços parciais abaixo indicados: (…) 11. Pelo preço de cento e trinta mil euros, o prédio urbano sito no Bairro do .........., Rua ...... (I), números .. e ..1 na freguesia de ..............., concelho de ......, descrito na Segunda Conservatória do Predial de ...... sob o número mil novecentos e setenta e nove, da referida freguesia, com a aquisição registada a favor da sociedade SEGURADORAS UNIDAS, S.A. pela inscrição correspondente à apresentação 1 de 1952 06 14 (com averbamento de transmissão por transferência de património correspondente à Apresentação 603 de 2017 04 10), inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ..., da mesma freguesia com o valor patrimonial de €125.530,00; (…).” CC – Do documento junto a folhas 68 a 71 dos autos, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais consta: “DOCUMENTO COMPLEMENTAR DOIS, ELABORADO NOS TERMOS DO ARTIGO 64.º DO CÓDIGO DO NOTARIADO, QUE INSTRUI A ESCRITURA LAVRADA A FOLHAS 50 DO LIVRO DE NOTAS NÚMERO 79-A DO CARTÓRIO NOTARIAL DE EE SITO EM ....... (…) Prédio .. a) Contrato de arrendamento celebrado em 14 de Julho de 1975 com BB, casado, residente na Av. ................, nr. .., (atualmente Rua .............), na qualidade de arrendatário e II e JJ, na qualidade de fiadores. b) Contrato de arrendamento, celebrado em 21 de Julho de 1975, com CC, casado, residente na Rua ..........................., n.º .., ..................., na qualidade de arrendatário, e BB e KK, como fiadores, indicados pela Comissão de Moradores, quanto ao n.º .. da Avenida ........................... (atualmente Rua .............), sendo a atual arrendatária AA. (…)”. DD – Por carta datada de 13 de Dezembro de 2017, junta a folhas 77 a 77 verso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, as Rés comunicaram à Autora o seguinte: “(…) Assunto: Venda dos prédios urbanos registados na Conservatória do Registo Predial de ...... sob os números .... a .... da freguesia da ..............., concelho de ...... - comunicação de novo Senhorio e indicação da forma de pagamento Exmos. Senhores, Vimos pela presente informar V /Ex.ª de que por escritura pública de compra e venda celebrada em 16 de Novembro de 2017 no Cartório Notarial de EE, os prédios urbanos acima referidos e melhor identificados na carta enviada a V /Ex..ª pela sociedade Seguradoras Unidas, S.A. com data de 28 de Setembro de 2017, foram adquiridos pela sociedade Quadrantábilis Unipessoal, Lda, com sede no Edifício Atlas II, Av. José Gomes Ferreira, 11-63, Algés. A mudança do titular dos prédios urbanos significa que a nova Senhoria do arrendamento passou a ser a sociedade Quadrantábilis Unipessoal, Lda, assumindo esta, consequentemente, todos os direitos e obrigações emergentes da qualidade de senhoria nos temos do artigo 1057.º do Código transmitidos a seu favor, bem como a(s) garantia(s) associada(s), relativos aos mesmos prédios urbanos. Assim, a partir desta data, as rendas e quaisquer outros encargos cujo pagamento seja da responsabilidade de V /Ex.ª relativos ao prédio de que é arrendatário deverão ser pagos à sociedade Quadrantábilis Unipessoal, Lda (…).” EE – Na 2ª Conservatória do Registo Predial de ...... sob o nº ..../20091029 encontra-se registado o prédio urbano sito no Bairro do .........., Rua ...... (..), nºs .. e .., com a área total de 607m2, com a área coberta de 145m2 e descoberta de 462m2, inscrito na matriz sob o artigo ... e é composto por rés-do-chão – habitação e logradouro, tudo conforme certidão junta a folhas 78, 129 e 129 verso, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais. FF – Da caderneta Predial Urbana junta a folhas 130, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, consta que o prédio a que alude a alínea EE) encontra-se inscrito na matriz sob o artigo ..., em propriedade total sem andares nem Div. e é composto de rés do chão esquerdo e direito, para habitação de dois inquilinos. 2. De direito 2.1. Do alcance do direito de preferência legal conferido ao arrendatário pelo art.º 1091.º, n.º 1, al. a), do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27/2 A enunciação desta questão decidenda já tem como assente a aplicação da Lei n.º 6/2006, de 27/2, que aprovou o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), por ser o vigente na data da celebração do contrato de compra e venda em que a autora/recorrente fundamenta o alegado direito de preferência, que ocorreu em 16/11/2017. E assim é efectivamente. Com efeito, conforme entendimento unânime da jurisprudência deste Supremo Tribunal, de que se dá nota no acórdão de 21/1/2016, proferido na revista n.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1[4], “a lei reguladora do direito de preferência é a vigente na data em que se concretizou o acto de alienação, por o direito legal de preferência não passar de uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário, que só a prática do negócio translativo da propriedade, sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, o transforma em direito potestativo.” O art.º 1091.º, n.º 1, al. a), do Código Civil, aditado pela Lei n.º n.º 6/ 2006, de 27/2, com inserção na subsecção VI, epigrafados esta de direito de preferência e aquele de regra geral, aplicável ao caso dos autos por força da disposição transitória constante do art.º 59.º, n.º 1, da mesma Lei, no que aqui releva, prescreve o seguinte: “1 – O arrendatário tem direito de preferência: a) – Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos; 2 - (…) 3 - (…) 4 – É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º e 418.º e 1410.º.” Por sua vez, o art.º 417.º do mesmo Código, sob a epígrafe venda da coisa juntamente com outras, no seu n.º 1, preceitua que: “Se o obrigado quiser vender a coisa juntamente com outra ou outras, por um preço global, pode o direito ser exercido em relação àquela pelo preço que proporcionalmente lhe for atribuído, sendo lícito, porém, ao obrigado exigir que a preferência abranja todas as restantes, se estas não forem separáveis sem prejuízo apreciável.” São conhecidas as diferentes configurações e a controvérsia doutrinal e jurisprudencial de que têm sido objecto, acerca do direito de preferência pelo arrendatário de parte de imóvel não constituído em propriedade horizontal, que nos dispensamos de analisar aqui, tanto mais que está em causa apenas o alcance do direito de preferência conferido pelo art.º 1091.º, n.º 1, al. a), acabado de citar e transcrever parcialmente. Não obstante, importa realçar que, a partir deste normativo, como dá nota o acórdão da Formação, “a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem-se desenvolvido no sentido perfilhado no acórdão recorrido, como se alcança dos seguintes acórdãos: de 21/01/2016, proferido no processo n.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1; de 24/05/2018, no processo n.º 1832/15.0T8GMR.G1.S2; de 18/10/2018, no processo n.º 3131/16.1T8LSB.L1,S1; de 26/02/2019, proferido no processo n.º 9/13.4TBFAF.G1.S1; e de 11/07/2019, proferido no processo n.º 3818/17T8VNF.G1.S2”[5]. Neste último aresto pode ler-se: “… Do cotejo entre o artigo 47.º do RAU e o artigo 1091.º do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, resulta que, por um lado, deixou de figurar a locução arrendatário de prédio urbano ou de sua fracção autónoma, passando a constar da previsão normativa apenas: na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos; por outro lado, foi eliminado o n.º 2 do artigo 47.º do RAU em que se estabelecia o mecanismo de licitação entre dois ou mais arrendatários preferentes. Não se afigura que uma tal alteração do texto legal se possa reconduzir a um mero capricho linguístico, impondo-se antes descortinar, com apelo aos cânones hermenêuticos, a sua razão de ser. Ora, desde logo, em sede do processo legislativo que conduziu à aprovação do NRAU, como se dá conta, a dado passo, no acórdão do STJ de 18/10/2018, proferido no processo n.º 3131/16.1T8LSB. L1.S1, constata-se o seguinte: “O NRAU teve como precedente legislativo mais imediato a Proposta de Lei n.º 140/IX (“Ante-projecto de decreto-lei autorizado que aprova o regime dos novos arrendamentos urbanos”, no DAR, II Série A, n.º 5/IX/3, suplemento de 30-09-04), o qual continha um preceito que pretendia eliminar pura e simplesmente o direito de preferência dos arrendatários na alienação dos prédios arrendados. Nos termos do anexo a essa Proposta de Lei, o art. 1096.º do CC passaria a ter a seguinte redação: “nos arrendamentos urbanos regidos pela presente secção, nenhuma das partes tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do direito da outra, salvo preceito expresso em contrário”, objetivo que, segundo a justificação, corresponderia a “uma velha aspiração destinada a libertar a riqueza imobiliária, permitindo a transparência requerida pela efetividade de um mercado”. E, no mesmo aresto, é convocado o entendimento de Menezes Cordeiro, impulsionador dessa projetada reforma, expresso em artigo sob o título A modernização do Direito Português do arrendamento urbano, publicado in O Direito n.º 136, II-III, pp. 235-253 (251), segundo o qual: “(…) muito importante é o desaparecimento da apertada teia de preferências, antes existente – art.º 1096.º. Desde o período liberal, são pacíficos os inconvenientes dos gravames que recaem sobre a propriedade. Meros sobrecustos não produtivos, as preferências exprimiam-se por abundante litigiosidade, complicando os negócios e entravando a livre circulação da propriedade.” Na própria “Exposição de Motivo da Proposta de Lei” de que emergiu o NRAU, reconhece-se que “o mercado de arrendamento continua paralisado, não se tendo concretizado as muitas expectativas depositadas nas sucessivas leis” e considera-se desejável a “dinamização do mercado de arrendamento”. Assim, mostra-se claro o desiderato legislativo de agilizar o mercado imobiliário, em particular o habitacional, numa linha de superação dos seus principais constrangimentos, em que esteve pelo menos presente o vetor do direito de preferência legal conferido aos arrendatários urbanos, tido como gravame para uma pretendida circulação, mais livre e transparente, dos bens nesse mercado. Nessa linha, Januário Gomes afirma (in Vida Judiciária, n.º 108, 2007, p. 9) que: “(…) num quadro de desvinculação do regime de arrendamento, a manutenção de direitos de preferência na venda não faz muito sentido”. Será, pois, o sobredito contexto legislativo que nos ajudará a compreender o alcance da alteração operada pela redação dada ao artigo 1091.º do CC pela Lei n.º 6/2006. Como é sobejamente reconhecido, os direitos de preferência legais na compra ou na dação em cumprimento atribuídos aos arrendatários urbanos têm por função económica-social facultar a estes o acesso, conforme os casos, à habitação própria ou aos espaços próprios para atividades comerciais e industriais ou para profissão liberal, pondo termo aos respetivos arrendamentos. Desse modo, proporciona-se aos arrendatários, que já beneficiam de um direito de gozo mais ou menos prolongado sobre o bem, a aquisição da sua propriedade plena, prevenindo-se, do mesmo passo, potenciais conflitos entre senhorio e inquilino. Porém, importa não esquecer que tais direitos representam uma limitação à liberdade contratual consagrada no artigo 405.º do CC, em especial quanto aos senhorios/proprietários - nomeadamente na escolha da contraparte -, limitação essa cujos contornos se encontram salvaguardados na tipicidade legal a que aqueles direitos estão sujeitos. Nessa medida, a interpretação dos pressupostos típicos desses direitos deve conter-se no perímetro da sua função económico-social e na sua fronteira limitativa dos demais interesses em jogo. Sucede que a facti species configurada na alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, como pressuposto típico do direito de preferência atribuído ao arrendatário urbano, traduz-se na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos. Ora a compra e venda e dação em cumprimento só são legalmente possíveis sobre bens juridicamente individualizados (princípio da especialidade dos direitos reais) e não sobre parcelas específicas de bens indivisos. Assim, para que o “local arrendado” possa ser objeto de compra e venda ou de dação em cumprimento deverá ser dotado dessa individualidade jurídica, o que significa que um “local arrendado” sem tal individuação não poderá ser legalmente, enquanto tal, objeto de compra e venda ou de dação em cumprimento. É certo que o artigo 47.º, n.º 1, do RAU também continha, na sua previsão, a locução na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado, mas antecedida pela referência a arrendatário de prédio urbano ou de sua fracção autónoma. Foi, pois, na conjugação desses dois segmentos que se encontrou base literal, tida por suficiente, para se entender que a compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado compreendia tanto os casos em que o arrendamento incidisse sobre todo o prédio ou fração autónoma dele, como aqueles em que recaísse apenas sobre uma parte indivisa, reconhecendo-se, nesta última hipótese, o direito de preferência do arrendatário sobre a totalidade do prédio em venda ou em dação em cumprimento. Ou seja: a condição de “arrendatário de prédio urbano” compreenderia tanto os casos em que o arrendamento incidisse sobre todo o prédio como aqueles em que recaísse apenas sobre parte de prédio indiviso e, nesta hipótese, não podendo a compra e venda ou a dação em cumprimento realizar-se isoladamente sobre o “local arrendado”, só restava a solução de permitir que o arrendatário exercesse a preferência sobre a totalidade do prédio. Essa interpretação lata de “arrendatário de prédio urbano”, além de ser apoiada numa teleologia também ampla do direito de preferência a favor dos arrendatários urbanos, era sustentada num argumento de ordem sistemática extraído do disposto no artigo 47.º, n.º 2, do RAU, no qual se previa o mecanismo da licitação entre arrendatários preferentes do mesmo prédio, o que só tinha sentido quando existissem vários arrendamentos sobre partes de prédio indiviso. Todavia, uma interpretação tão alargada não deixava de merecer ponderosas objeções, na medida em que projetava o direito de preferência dos arrendatários de partes de prédio indiviso muito para além do domínio do objeto locado, para mais com embaraços na livre negociação do bem no mercado imobiliário. Tais objeções estão bem patentes na crítica de Oliveira Ascensão[6], quando, a esse propósito, afirma que a preferência “não tem por fim propiciar a expansão do direito para além do seu objecto”. Por sua vez, Menezes Cordeiro[7] considera que: “(…) transformar o inquilino de um fogo em dono do prédio (só) porque este não estava em propriedade horizontal, é uma operação de todo fora do objetivo legal, que apenas visaria lucrativos negócios imobiliários.” Na mesma linha, José Pedro Carneiro Cadete[8] considera que: “(…) a extensão do objeto da preferência a todo o prédio indiviso levantava vários problemas, nomeadamente nos casos em que existia mais do que um arrendatário de parte daquele. Por outro lado, extrapolava o objetivo da preferência no arrendamento, na medida em que não se limitava a conceder ao arrendatário a propriedade da sua habitação, mas sim de todo um prédio, o que não se revela no seu interesse.” Seja como for, o que parece certo é que o legislador de 2006, conhecedor, como é suposto, de toda essa problemática, não manteve a redação do artigo 47.º, n.º 1, do RAU e eliminou ainda o respetivo n.º 2, elementos estes em que se estribava a sobredita posição maioritária (até então, acrescentamos nós). Se fosse sua intenção consagrar uma tal solução seria de esperar que, no mínimo, a clarificasse, bastando para tanto atribuir o direito de preferência a arrendatário de prédio urbano, de fração autónoma ou de parte dele ainda que não autonomizada. Todavia, não só não o fez, como ainda centrou a previsão do artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, claramente, na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos, sendo que tais negócios só podem ser validamente realizados sobre esse local quando o mesmo seja dotado da necessária individuação jurídica. Por outro lado, a eliminação do mecanismo de licitação entre vários arrendatários preferentes do mesmo prédio, que se encontrava dantes prevista no n.º 2 do artigo 47.º do RAU, parece só poder significar a não extensão da preferência aos casos em que existam vários arrendatários sobre partes do mesmo prédio indiviso. Nem a favor da tese da Recorrente procede o disposto no artigo 417.º, n.º 1, do CC, para que remete o n.º 4 do artigo 1091.º do mesmo Código, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27/2, uma vez que aquele normativo não tem aplicação nos casos em que o objeto do negócio recaia apenas sobre um único prédio, como bem se refere no recente acórdão do STJ, de 26/02/2019, proferido no processo n.º 9/13.4TBFAF.G1.S1[9]. Perante isso, para se continuar a sustentar a sobredita tese maioritária, em face do artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, teria de se recorrer quase exclusivamente ao elemento teleológico respeitante à finalidade do direito de preferência ali consagrado. Ora, independentemente das objeções acima assinaladas, constata-se que, como já foi referido, o legislador de 2006 equacionou as preferências legais dos arrendatários urbanos como constrangimentos à livre e transparente circulação de bens no mercado imobiliário, a ponto de conjeturar a sua própria supressão. É certo que o não fez, mas não é menos certo que reduziu o alcance dessas preferências ao alargar de um para três anos a duração do arrendamento como pressuposto típico de constituição do direito de preferência legal do arrendatário urbano. Tudo isto aponta no sentido de que o legislador de 2006 não projetou aquele direito de preferência legal para uma finalidade de acesso a habitação própria ou a espaços para atividades comerciais, industriais ou de profissão liberal com uma abrangência tão ampla como a que vinha sendo considerada pela referida orientação maioritária. De resto, as reservas sobre o alcance da função económico-social das preferências legais do arrendatário urbano encontram-se, de certo modo, indiciadas no facto de, no decurso do processo legislativo que culminou na aprovação do NRAU, se ter reconhecido que o mercado de arrendamento continuava paralisado sem concretização das muitas expetativas depositadas nas sucessivas leis e de se ter perspetivado tais preferências como constrangimentos à pretendida dinamização do mercado imobiliário, em particular o habitacional. Note-se que já, aquando da aprovação da Lei n.º 63/77, se considerara que a atribuição do direito de preferência ao arrendatário habitacional só contribuiria em grau reduzido para a política de acesso à habitação própria. Nesse contexto, afigura-se incoerente, senão mesmo contraditório, considerar que o legislador de 2006 tenha querido manter a orientação até então maioritária de atribuir aos arrendatários urbanos um direito de preferência que extravasasse o objeto locado, como ocorre nos casos de arrendamento de parte de um prédio indiviso. Nem uma tal solução se mostra sequer eficaz numa ótica social de acesso a habitação própria, já que, por via de regra, os arrendatários, nessas condições, raramente dispõem de recursos financeiros para a compra da totalidade do prédio, o que reconduziria tal solução à satisfação de casos pontuais com o inconveniente de perturbar o próprio mercado habitacional. No entanto, com estas considerações não se pretende, de modo algum, tomar posição sobre matéria da exclusiva competência do poder legislativo, mas simplesmente vincar que a convocação que importa fazer em sede do elemento teleológico subjacente ao artigo 1095.º[10], n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, não pode ser feita nos termos e com a latitude que vinha sendo feita pela orientação maioritária no quadro do RAU e da legislação precedente. Nessa linha, há que interpretar a tipicidade daquela disposição normativa, à luz dos critérios constantes do artigo 9.º do CC, nos termos mais condizentes com o presumido pensamento legislativo que lhe está subjacente. Assim, pelo recorte dado ao referido normativo, divergente do dantes configurado no artigo 47.º, n.º 1, do RAU, face à eliminação do n.º 2 deste artigo e atento o propósito do legislador de 2006, mormente quanto ao moderado relevo por ele dado à função económico-social das preferência legais do arrendatário urbano, afigura-se mais correto interpretar o pressuposto típico configurado na alínea a) do n.º 1, do artigo 1091.º do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, no sentido de só atribuir o direito de preferência ao arrendatário urbano nos casos em que exista coincidência entre o objeto material do arrendamento e o da compra e venda ou dação em cumprimento[11], afastando assim do âmbito da sua aplicação os casos, como o dos autos, em que o arrendamento só incide sobre parte de prédio urbano indiviso ou não constituído em propriedade horizontal. Militam ainda a favor deste entendimento duas medidas legislativas mais recentemente adotadas. A primeira delas foi a Lei n.º 42/2017, de 14-06, que veio prover sobre a tutela das chamadas lojas históricas, a maior parte delas instaladas em edifícios não constituídos em regime de propriedade horizontal, situados em grandes centros urbanos. Dispõe o artigo 7.º, n.º 3, dessa Lei o seguinte: “Os arrendatários de imóvel em que esteja situado estabelecimento ou entidades reconhecidos como de interesse histórico e cultural ou social gozam de direito de preferência nas transmissões onerosas de imóveis, ou partes de imóveis, nos quais se encontram instalados, nos termos da legislação em vigor.” Nessa conformidade, atribui-se especificamente o direito de preferência legal aos arrendatários daqueles espaços na transmissão onerosa a terceiros mesmo quando o arrendamento incida sobre parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, com o que se procurou evitar que, por via indireta dessa alienação, se provocasse a extinção de atividades de valor histórico, cultural ou social que interessa preservar. Como se refere no acima citado acórdão do STJ de 18/10/2018, proferido no processo n.º 3131/16.1T8LSB. L1.S1: «Deste modo [se] contrabalançou os efeitos que o incremento de negócios imobiliários (que em alguns casos atinge proporções de uma verdadeira “bolha imobiliária.” A outra medida foi a adotada na Lei n.º 64/2018, de 29/10, em vigor desde 30/10/2018, que veio dar nova redação ao artigo 1091.º do CC, consagrando, no que aqui releva, o seguinte: “1 – O arrendatário tem direito de preferência: a) – Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos, sem prejuízo do previsto nos números seguintes; 2 – (…) 3 – (…) 4 – (…) 5 – (…) 6 – (…) 7 - (…) 8 – No caso de contrato de arrendamento para fins habitacionais relativo a parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, o arrendatário tem direito de preferência nos mesmos termos previstos para o arrendatário de fração autónoma, a exercer nas seguintes condições: a) – O direito é relativo à quota-parte do prédio correspondente à permilagem do locado pelo valor proporcional dessa quota-parte face ao valor total da transmissão; b) – (…) c) – A aquisição pelo preferente é efetuada com afetação do uso exclusivo da quota-parte do prédio a que corresponde o locado. 9 – Caso o obrigado à preferência pretenda vender um imóvel não sujeito ao regime da propriedade horizontal, podem os arrendatários do mesmo, que assim o pretendam, exercer os seus direitos de preferência em conjunto, adquirindo, na proporção, a totalidade do imóvel em compropriedade.” A medida legislativa assim adotada confere ao arrendatário habitacional de parte específica de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal o direito de preferência legal na transmissão do prédio, mas só na proporção do valor da parte arrendada em relação ao valor total da transmissão, ficando-lhe afetado o uso exclusivo dessa parte. Não é portanto atribuído ao arrendatário, nestas condições, o direito de preferência sobre a totalidade do prédio em alienação. Só no caso de existirem vários arrendatários do prédio não constituído em propriedade horizontal é que se permite, no n.º 9, que eles exercem os seus direitos de preferência em conjunto sobre a totalidade do prédio. A adoção dessas duas medidas só pode significar a assunção pelo legislador de que, nos termos do artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, não assiste ao arrendatário urbano de parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento sobre a totalidade do mesmo, já que a existência deste direito tornaria desnecessárias essas medidas. Ademais, no tocante ao arrendatário habitacional, a medida adotada ficou aquém do que vinha sendo admitido pela orientação maioritária da preferência sobre a totalidade do prédio». Concordamos, na íntegra, com este entendimento que vem sendo seguido neste Supremo Tribunal, sobre esta matéria, como revelam os acórdãos já citados, não só o que acaba de se transcrever em parte, mas também os que são nele mencionados de 21/01/2016, proferido no processo n.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1, de 24/05/2018, no processo n.º 1832/15.0T8GMR.G1.S2, de 18/10/2018, no processo n.º 3131/16.1T8LSB.L1.S1 e de 26/02/2019, proferido no processo n.º 9/13.4TBFAF.G1.S1. Não vislumbramos razões seguras e suficientes para discordar desse entendimento. Não são, com certeza, as medidas resultantes da alteração introduzida pela citada Lei n.º 64/2018, pelas razões já referidas, em especial o seu n.º 8, o qual acabou por ser declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional, por acórdão de 16 de Junho de 2020, n.º 299/2020, publicado no DR, n.º 183, I, de 18/9/2020, por se ter entendido que violava o n.º 1 do art.º 62.º em conjugação com o n.º 2 do art.º 18.º da Constituição. Acresce que, contrariamente ao pretendido pela recorrente, a referida Lei n.º 64/2018, entrada em vigor em 30/10/2018, não contendo qualquer norma de aplicação retroactiva, não é aplicável às situações ocorridas antes do início da sua vigência, nos termos do art.º 12.º do Código Civil. E não tem natureza interpretativa, já que a medida legislativa nela contida revela carácter inovatório, “ainda mais acentuado”, relativamente ao disposto no art.º 1091.º, n.º 1, al. a), na redação dada pela Lei n.º 6/2006, “no entendimento aqui perfilhado de que este normativo nem sequer confere preferência legal ao arrendatário urbano de parte de prédio indiviso”. Assim, por tudo o que se deixou dito, e cingindo-nos à interpretação que nos foi cometida, impõe-se concluir, tal com fez o citado acórdão de 11/7/2019, que “o artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, deve ser interpretado no sentido de só atribuir ao arrendatário urbano o direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de prédio ou fração autónoma dele, quando o arrendamento incida sobre a totalidade deste prédio ou fração autónoma dele, não contemplando os casos, como o dos autos, em que o arrendamento se confina a uma parte de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal”. No caso dos autos, a autora/recorrente é apenas arrendatária de parte do prédio identificado sob o n.º 9, no ponto ix da alínea A) dos factos provados, mais precisamente do rés-do-chão direito, não autonomizada visto que esse prédio não se encontra constituído em propriedade horizontal. A mesma nem sequer se propõe exercer o direito de preferência sobre todo o prédio, já que desistiu do pedido principal que deduzira. Pretendia apenas exercer tal direito relativamente à parte de que é arrendatária, nos termos formulados no pedido subsidiário que deduziu. Mas isso está-lhe vedado nos termos citados supra, pelo que não lhe assiste o direito de preferência que invocou e pediu, tal como já foi decidido pelas instâncias. 2.2. Da inconstitucionalidade da norma constante do art.º 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, na interpretação acima considerada A recorrente insiste que a interpretação desta norma nos termos feitos pelo tribunal recorrido, que não divergem dos referidos supra, é inconstitucional por violação dos princípios constitucionais da igualdade e do acesso à habitação própria consagrados, respectivamente, nos art.ºs 13.º e 65.º da CRP. Porém, sem qualquer razão. Servindo-nos, mais uma vez, do citado acórdão de 11/7/2019, importa transcrever aqui, quanto a esta matéria, o seguinte: «Em primeiro lugar, como já acima foi referido, o direito de preferência legal do arrendatário urbano constitui-se em concreto no momento em que ocorre o negócio translativo da propriedade, sendo, por isso, aplicável a lei em vigor a essa data, mormente quanto aos respetivos pressupostos, como vem sendo unanimemente reconhecido pela doutrina e jurisprudência. Não relevam assim, para tal efeito, as meras hipóteses de direito de preferência abstratamente previstas na lei no decurso da relação arrendatícia. Com efeito, trata-se de um direito real de aquisição que só emerge com a verificação dos pressupostos factuais da sua constituição tipicamente previstos na lei então vigente. Nessa perspetiva, não estamos perante os efeitos teoricamente potenciados pelo conteúdo da relação arrendatícia com abstração das condições de verificação de tais pressupostos, mas sim ante a constituição de um direito dependente da sua ocorrência factual, sendo, por isso aplicável, a lei em vigor à data desta ocorrência, nos termos do artigo 12.º do CC. Nem o direito de preferência legal do arrendatário urbano constitui um imperativo categórico, …, variando com o devir económico-social e consoante as sucessivas políticas de arrendamento e habitação que, nesse decurso, sejam adotadas.» No presente caso, trata-se de um contrato de arrendamento celebrado em data anterior a 19/5/1973, sujeito a sucessivos regimes de preferência legal do arrendatário, desde, pelo menos, a Lei n.º 63/77, de 25/8, passando pelo RAU, aprovado pelo DL n.º 321-B/90, de 15/10 e culminando no NRAU, aprovado pela Lei n.º 6/2006, de 27/2. Acontece que a venda em que a autora pretende preferir ocorreu em 16/11/2017, portanto na vigência do art.º 1091.º, n.º 1, al. a) do C. Civil, na redação dada pela referida Lei n.º 6/2006. Assim, não é lícito à autora socorrer-se da aplicação de normas anteriores, nomeadamente do art.º 47.º do RAU com a interpretação que vinha sendo efectuada, ainda que fosse a então dominante. Por outro lado, “há que diferenciar os casos em que o contrato de arrendamento incide sobre todo o prédio urbano indiviso ou fração autónoma dele e os casos em que recai apenas sobre uma parte específica de prédio indiviso ou não constituído em propriedade horizontal. Nesse quadro, a função económico-social do direito de preferência legal do arrendatário urbano não implica necessariamente que os dois tipos de situação tenham de ser tutelados com o mesmo alcance, nomeadamente que deva ser conferido ao arrendatário de apenas parte de prédio indiviso o direito de preferir pela totalidade na alienação do prédio, que extravasa o objeto locado. Cabe assim ao legislador conformar o âmbito de tutela a conferir a cada um desses tipos de situação em função do relevo que tiver por adequado atribuir à finalidade da preferência no quadro das políticas de acesso à habitação e de incremento do mercado habitacional.”[12] E prossegue o mesmo acórdão “… na vigência dos regimes de preferência legal do arrendatário urbano regulados pela Lei n.º 63/77, de 25-08, e pelo RAU, veio sendo considerado predominantemente que, atenta a finalidade dessa preferência e o quadro normativo ali estabelecido, se justificava uma interpretação ampla no sentido de contemplar os casos de arrendamento de parte de prédio indiviso, ainda que, nestes casos, o exercício da preferência fosse para além do objeto material locado, o que não sucedia quando o arrendamento incidisse sobre todo o prédio. Tal entendimento não assentava no reconhecimento de uma relação de identidade entre os dois tipos de situação nem sequer numa exigência constitucional de tratamento equiparado, mas antes numa base interpretativa de que essa era a solução mais condizente com o pensamento legislativo subjacente extraído da ratio legis e da própria sistemática do instituto. De igual modo, a orientação aqui perfilhada sobre a interpretação do artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do CC, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, estriba-se em argumentos do mesmo género, considerando agora que o legislador de 2006 não deu à finalidade das referidas preferências legais o mesmo relevo e alcance que dantes vinha sendo considerado pela orientação dominante. Pelo que já acima foi dito, não se afigura que, dada a sua diferenciação, os dois tipos de casos em referência devam merecer idêntica tutela jurídica em sede de preferência legal do arrendatário urbano, bem podendo ser diferenciados em vista da função económico-social conferida a tal preferência e ao papel que lhe for dado na realização das políticas de acesso a habitação própria e de dinamização do mercado habitacional. Nessa base de distinção entre os casos de arrendamento incidente sobre todo o prédio indiviso ou fração autónoma dele e os casos em que o arrendamento recai apenas sobre uma parte de prédio indiviso, não se vê que a atribuição de preferência legal aos inquilinos daqueles arrendamentos e a não atribuição deste direito aos inquilinos de parte de prédio indiviso seja discriminatória e, portanto, violadora dos princípios da igualdade e da proporcionalidade nos termos consagrados nos artigos 13.º, n.º 1, 17.º, 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constituição.” Tal como ali, também nós aqui, com os mesmos fundamentos, que subscrevemos e reproduzimos, concluímos pela inexistência de qualquer violação do princípio da igualdade. Quanto à alegada violação do direito de acesso à habitação consagrado no art.º 65.º, n.º 1 e 2, da Constituição, “há que ter presente que se trata de um direito programático cuja prossecução não importa necessariamente a atribuição ao arrendatário urbano do direito de preferência legal. Esta atribuição poderá ser, quando muito, uma das múltiplas vias de facilitar o acesso a habitação própria, a considerar no quadro da política social e económica da habitação e do respetivo mercado imobiliário. De resto, …, a atribuição ao arrendatário urbano de parte de prédio indiviso para preferir na totalidade da venda desse prédio em pouco contribuirá para o incremento do acesso a habitação própria, dada a raridade de casos em que os arrendatários, nessas condições, dispõem de recursos financeiros para tanto”[13]. Em suma, tal como ali, também nós concluímos pela não violação do preceituado no artigo 65.º, n.º 1 e 2, da Constituição. Refira-se, por último, que o Tribunal Constitucional já se pronunciou, no processo n.º 583/2016, sobre esta questão - da inconstitucionalidade da norma constante do art.º 1091.º, n.º 1, al. a), do Código Civil, na redacção introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27/2, interpretada no sentido de o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não ter direito de preferência sobre a parte arrendada ou sobre a totalidade do prédio, na compra e venda desse mesmo prédio (interpretação correspondente à “teoria do local”), proferindo juízo de não inconstitucionalidade. Aquele Tribunal considerou, além do mais, que (i) não há violação do direito à habitação, previsto no artigo 65.º, n.ºs 1 e 3 da CRP, porque não se pode extrair desse preceito “a exigência imperativa de que uma das vias de realização do direito à habitação seja a da previsão legislativa de aquisição, através do direito de preferência, em termos gerais, a quem já dispõe de uma habitação arrendada, do direito de propriedade sobre um bem imóvel que exceda o locado”; e que (ii) não há restrição desproporcionada ao direito de acesso à propriedade, quer porque “tal direito não existe com a pretendida configuração (enquanto direito fundamental previsto na Constituição)”, pelo que afastado está que tenha sido desproporcionadamente restringido, quer porque “o direito à habitação não se confunde com o direito de propriedade e não tem que se realizar necessariamente (em geral e, especialmente, em hipóteses como a dos presentes autos) por via do direito de propriedade, que, manifestamente, não está em causa”. À autora/recorrente não assiste, pois, o direito de preferência legal na venda do prédio urbano identificado sob o n.º 9, efectuada pela 1.ª ré à 2.ª ré, de que, aliás, desistiu, nem da parte do mesmo de que é arrendatária, não autonomizada, por não estar constituído em propriedade horizontal. Destarte, improcedem as questões suscitadas no recurso, susceptíveis de reapreciação, não se mostrando violadas as normas indicadas nas conclusões, pelo que o acórdão recorrido deve ser mantido. Sumário: 1. O art.º 1091.º, n.º 1, al. a), do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27/2, não atribui o direito de preferência legal ao arrendatário de parte específica de prédio urbano indiviso ou não constituído em propriedade horizontal. 2. Esta interpretação não viola os princípios constitucionais da igualdade e de acesso à habitação própria, consagrados, respectivamente, nos art.ºs 13.º, n.º 1, e 65.º, n.ºs 1 e 3, ambos da Constituição. III. Decisão Pelos fundamentos expostos, acorda-se em negar a revista e manter o acórdão recorrido. * Custas pela recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário com que litiga (art.º 527.º, n.º 1 e 2 do CPC). * STJ, 9 de Março de 2021 Nos termos do art.º 15.º-A do DL n.º 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo art.º 3.º do DL n.º 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem voto de conformidade dos Ex.mos Juízes Conselheiros Adjuntos que não podem assinar. Fernando Augusto Samões (Relator) Maria João Vaz Tomé (1.ª Adjunta) António José Moura de Magalhães (2.º Adjunto) _______ [1] Do Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Central Cível de ... - Juiz 2. |