Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
124/10.6JBLSB.E1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL BRAZ
Descritores: MEIO PARTICULARMENTE PERIGOSO
FRIEZA DE ÂNIMO
REFLEXÃO SOBRE OS MEIOS EMPREGADOS
PREMEDITAÇÃO
AGRAVANTE
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
ALTERAÇÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS
COMUNICAÇÃO AO ARGUIDO
NULIDADE
PRINCÍPIO DA PROIBIÇÃO DA DUPLA VALORAÇÃO
REFORMATIO IN PEJUS
PROIBIÇÃO DE PROVA
POLÍCIA JUDICIÁRIA
ARGUIDO
CONVERSA INFORMAL
COMPARTICIPAÇÃO
CO-AUTORIA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
ILICITUDE
CULPA
DOLO DIRECTO
COMPRESSÃO
Data do Acordão: 01/08/2014
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE
Área Temática:
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS.
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES EM ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / CRIMES CONTRA A INTEGRIDADE FÍSICA / CRIMES CONTRA A LIBERDADE PESSOAL.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - ACTOS PROCESSUAIS / NULIDADES / PROVA / MEIOS DE PROVA / PROVA POR RECONHECIMENTO / PROVA DOCUMENTAL - JULGAMENTO / AUDIÊNCIA / SENTENÇA / RECURSOS.
Doutrina:
- Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, 2005, pp. 291 e 292, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2007, pp. 79 a 82, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, p. 32.
- Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, p. 1074.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 1.º, ALÍNEA M), 118.º, 120.º, N.º 2, ALÍNEAS D) E C), E N.º 3, ALÍNEAS A) E C), 122.º, N.º1, 123.º, N.º1, 126.º, 127.º, 147.º, N.ºS.2 E 7, 165.º, N.º1, 356.º, N.º7, 358.º, N.ºS 1 E 3, 361.º, 370.º, 371.º, 374.º, Nº 1, ALÍNEA A), 379.º, N.º 1, ALÍNEA B), 400.º, N.º1, AL. F), 401.º, N.º1, AL. B), 409.º, N.º1, 410.º, N.º2, 412.º, N.ºS 3 E 4, 414.º, N.º 2, 420.º, N.º 1, ALÍNEA B), 424.º, N.º3, 425.º, N.º 4, 434.º.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, N.ºS 1 E 2, 71.º, 77.º, N.ºS 1 E 2, 132.º, N.º2, ALS. D), E), H) E J), 144.º, ALS. A) E B), 145.º, N.ºS 1, ALS. A) E B), 2, 158.º, N.º2, ALS. A) E B).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 18.º, N.º2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 08/02/2007, NO PROCESSO Nº 07P159, DE 15/02/2007, NO PROCESSO Nº 07P015, DE 08/03/2007, NO PROCESSO Nº 07P447, DE 15/03/2007, NO PROCESSO Nº 07P663, DE 29/03/2007, NO PROCESSO Nº 07P339, DE 27/05/2009, NO PROCESSO Nº 05P0145, DE 17/09/2009, NO PROCESSO Nº 169/07.3GCBNV, DE 14/10/2009, NO PROCESSO Nº 101/08.7PAABT, DE 13/01/2010, NO PROCESSO Nº 274/08.9JASTB, DE 24/02/2010, NO PROCESSO Nº 3/05.9GFMTS, E DE 07/04/2010, NO PROCESSO Nº 2792/05.1TDLSB, TODOS DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT .

-DE 25/03/2009, CJ, ACÓRDÃOS DO STJ, ANO XVII, TOMO I, PÁGINA 236; DE 27/01/2010, PROC. Nº 401/07.3JELSB.L1.S1; DE 07/04/2010, PROC. Nº 295/05.3GCTND.C2.S1; E DE 27/05/2010, PROC. Nº 139/07.1JAFUN.L1.S1, DISPONÍVEIS EM SUMÁRIOS DE ACÓRDÃOS DO STJ.

-DE 07/05/2009, CJ, ACÓRDÃOS DO STJ, ANO XVII, TOMO II, PÁG. 193; DE 12/11/2009, PROC. Nº 200/06.0JAPTM; DE 16/12/2010, PROC. Nº 893/05.5GASXL; DE 19/01/2011, PROC. Nº 421/07.8PCAMD; DE 04/05/2011, PROC. Nº 626/08.4GAILH; DE 11/01/2012, PROC. Nº 158/08.0SVLSB; DE 21/03/2012, PROC. Nº 303/09.9JDLSB, ESTES DISPONÍVEIS EM WWW.DGSI.PT.; E DE 26/10/2011, CJ, ACÓRDÃOS DO STJ, ANO XIX, TOMO III, PÁG. 198.

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ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA Nº 4/95, PUBLICADO NO DR, I SÉRIE, DE 06/07/1995.

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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:
-NºS 2/2006, 20/07, 125/2010, 186/2013.
Sumário :
I  -   Por aplicação do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, nos casos de julgamento por vários crimes em concurso em que, em 1.ª instância, por algum ou alguns ou só em cúmulo jurídico haja sido imposta pena superior a 8 anos de prisão e por outros a pena aplicada não seja superior a essa medida, sendo a condenação confirmada pela Relação, o recurso da decisão desta para o STJ só é admissível no que se refere aos crimes pelos quais foi aplicada pena superior a 8 anos de prisão e à operação de determinação da pena única.

II -  Este entendimento já foi sancionado pelo TC que, em plenário, através do Ac. n.º 186/2013, decidiu «não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão».

III - O recorrente defende que «sendo o reconhecimento vocal uma modalidade particular da prova por reconhecimento, haverá que adaptar a este meio de obtenção de prova os requisitos do formalismo do n.º 2 do art. 147.º do CPP», o que, no caso, para ser conseguido, exigia que a gravação das vozes, quer a sua quer as das outras duas pessoas que consigo apresentariam semelhanças, fosse feita na sua presença. E que, de imediato, sempre na presença do recorrente, a gravação fosse exibida ao ofendido, para efeitos de reconhecimento.

IV - Estando a razão de ser da exigência da presença da pessoa a reconhecer contida no n.º 2 do art. 147.º do CPP no facto de ela ser sujeita a comparação com outras duas, em relação, designadamente, às suas características que podem ser descritas visualmente, dessa norma, mesmo aplicada com as devidas adaptações ao reconhecimento de voz, não decorre a exigência de que coincidam no tempo a gravação das vozes da pessoa a reconhecer e das outras duas que apresentem semelhanças, com a imediata exibição das gravações ao ofendido, para efeitos de reconhecimento, nem, por essa via, da presença da pessoa a reconhecer.
V - A alteração da qualificação jurídica dos factos é uma realidade que se não identifica com qualquer tipo de alteração dos factos. A alteração da qualificação jurídica dos factos e a alteração substancial ou não substancial dos factos são figuras autónomas, cada uma com a sua disciplina. Não é por isso correcta a afirmação do recorrente de que o art. 358.º, n.º 3, do CPP, equipara a alteração da qualificação jurídica dos factos à alteração não substancial dos factos. Essa norma mais não faz do que estender, com as devidas adaptações, à alteração da qualificação jurídica dos factos a disciplina prevista no n.º 1 para assegurar o direito de defesa do arguido em face de uma alteração não substancial dos factos. Sem que as figuras se confundam. Se de equiparação se pode falar, é só nesse âmbito; não noutros domínios, designadamente em sede de consequências da não comunicação prévia da alteração ao arguido. Aí, o que constitui nulidade é «a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos nos artigos 358.° e 359.°»; não a condenação pelos mesmos factos, mas com diversa subsunção jurídica.
VI - No caso em apreço, o crime de sequestro já fora subsumido na previsão da al. a) do n.º 2 do art. 158.º do CP pela decisão instrutória, que a considerou preenchida, bem como à al. b). E o tribunal de 1.ª instância considerou estar preenchida essa al. a), decidindo, porém, que para agravar o sequestro bastava a al. b), sendo o facto integrador da al. a) valorado em sede de medida da pena. Havia, pois, a possibilidade de o sequestro vir a ser considerado agravado pela via da al. a), cuja previsão a decisão de 1.ª instância teve como preenchida, tendo mesmo valorado juridicamente o respectivo facto. Não se pode assim dizer que a alteração da qualificação jurídica operada neste ponto pela Relação (ao considerar que o sequestro era agravado pela al. a), e não b) do n.º 2 do art. 158.º do CP) fosse desconhecida do arguido. E por isso não havia que desencadear o procedimento previsto no n.º 3 do art. 424.º do CPP.
VII - O recorrente praticou efectivamente os crimes de sequestro e de ofensa à integridade física grave e qualificada, mas, para não haver dupla valoração, a ofensa física não pode funcionar como agravante do sequestro, que, porém, será agravado nos termos da al. a) do n.º 2 do art. 158.º, que se verifica e foi imputada ao recorrente na decisão instrutória. É essa a única solução que assegura a defesa eficaz dos interesses protegidos.
VIII - Se, nos termos do art. 409.º, n.º 1, do CPP, sendo interposto recurso apenas em favor do arguido, é proibido ao tribunal superior agravar a medida da pena, por identidade de razão, impõe-se a esse tribunal o seu desagravamento numa situação em que o tribunal de recurso altera a qualificação jurídica dos factos, afastando uma circunstância que influíra, em desfavor do arguido, na determinação da pena pelo tribunal recorrido.
IX - Na verdade, verificando-se que, se o tribunal recorrido houvesse aplicado o direito tal como o definiu o tribunal de recurso, teria fixado uma pena mais favorável ao arguido do que aquela que veio a fixar, num tal caso, a manutenção da pena pelo tribunal de recurso tem o mesmo alcance e significado que a sua agravação numa situação em que se mantêm, em recurso, inalterados os pressupostos de aplicação da pena definidos pelo tribunal recorrido. A correcção deste ponto da decisão recorrida será feita no momento em que se efectuar a medida concreta da pena.
X -  À questão de saber de que modo e em que termos actuam a culpa e a prevenção responde o art. 40.º do CP, ao estabelecer, no n.º 1, que «a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e, no n.º 2, que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa». Assim, a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, de reinserção do agente na comunidade. À culpa cabe a função de estabelecer um limite que não pode ser ultrapassado.
XI - A determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita, de acordo com o disposto no art. 71.º do CP, em função da culpa e das exigências de prevenção, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, circunstâncias essas de que ali se faz uma enumeração exemplificativa e podem relevar pela via da culpa ou da prevenção.
XII - O crime de sequestro agravado é punível com pena de prisão de 2 a 10 anos. A privação da liberdade do ofendido foi planeada com alguma antecedência entre o arguido e outros indivíduos, estando o recorrente e outros à sua espera, devidamente preparados, nomeadamente com o rosto coberto por capuzes para não serem reconhecidos, enquanto outro deles ia ao aeroporto esperar a vítima, para, sob engano, a conduzir ao local escolhido. Tratou-se, pois, de uma acção bem reflectida, com tempo, antes de ser executada, para o recorrente interiorizar o alcance e as possíveis consequências do acto projectado e deixar-se penetrar pelos contra-motivos ético-jurídicos que se lhe colocaram. Houve, pois, uma vontade muito firme de levar a cabo os factos, traduzindo dolo muito intenso. O grau de ilicitude da sua conduta é o normal neste tipo de crime, na medida em que opera uma única circunstância qualificativa, que não se encontra entre as mais desvaliosas das previstas, ainda que a duração da privação da liberdade tenha ultrapassado em vários dias o período típico. A conduta mais grave ocorrida no âmbito da privação da liberdade releva no âmbito de outro crime. A culpa nesta parte situa-se, assim, num nível médio, a permitir que a pena se aproxime do ponto intermédio da moldura penal. A medida das exigências de prevenção geral é significativa, sem ser elevada, visto ser mediana a intensidade da violação do bem jurídico protegido e estar-se perante crime já com algum impacto na comunidade, sem ser, porém, dos que mais intranquilidade geram. O mínimo de pena imprescindível ao restabelecimento da paz social situa-se, assim, bem acima do limite mínimo da moldura da pena, mas muito mais próximo desse limite do que do máximo. O nível das exigências de prevenção especial é mediano, porque, por um lado, a facilidade com que o arguido aderiu ao projecto criminoso, a vontade muito determinada de o levar avante e os cuidados tidos na sua preparação, como as cautelas adaptadas para evitar ser reconhecido, sinalizam uma personalidade pouco fiel ao direito e, por outro, não tem antecedentes criminais que possam relevar: em Portugal inexistem; no estrangeiro, ignora-se se existem. As necessidades de ressocialização assim configuradas impõem que a pena se fixe um pouco acima do mínimo exigido pela prevenção geral. Ponderando estes dados, acha-se permitida pela culpa, necessária e suficiente para satisfazer as finalidades da punição a medida de 5 anos de prisão.
XIII - O crime de ofensa à integridade física qualificada é punido com pena de prisão de 3 a 12 anos. No caso, o dolo é muito intenso, pois houve uma vontade muito determinada de praticar os factos, como decorre do cuidado planeamento, e persistente, atenta a sucessão das agressões. Por outro lado, a especial censurabilidade ou perversidade que, nos termos do n.º 2 do art. 145.º do CP, qualifica a ofensa à integridade física grave do art. 144.º, al. a), ambos do CP, decorre, não de um, mas de três circunstâncias que a revelam, assumindo uma esse papel qualificador e relevando as restantes em sede de determinação da pena concreta.
XIV - Nesta sede, há que dar relevo, para além do facto de o número dos agressores ter retirado qualquer possibilidade de defesa á vítima, à crueldade dos meios usados para ofender a sua integridade física, com vista a aumentar o seu sofrimento: o recorrente e os outros começaram por queimar o ofendido com cigarros, líquidos efervescentes e a ponta de um maçarico, causando-lhe fortes dores, ao mesmo tempo que riam às gargalhadas, filmavam e fotografavam o sofrimento que lhe causavam; no âmbito da decisão conjunta, o co-arguido SJ colocou-lhe uma abraçadeira à volta dos testículos, a qual apertou de modo a causar-lhe dores muito intensas e por fim a perda de sentidos; o recorrente e os outros novamente com um cigarro aceso queimaram-lhe o pénis e as nádegas; no âmbito da decisão conjunta, o co-arguido SJ, com o uso de um martelo e de uma cavilha, trespassou o dorso das mãos e dos pés do ofendido; o recorrente e os outros pregaram-no a paletes de madeira; o recorrente queimou a orelha esquerda da vítima com a chama de um isqueiro; no âmbito da decisão conjunta, o co-arguido SJ decepou os dedos mindinhos dos pés da vítima, a orelha direita e o dedo anelar direito; sempre no âmbito da decisão conjunta, o co-arguido SJ martelou os joelhos do ofendido e cortou-lhe quase na totalidade o tendão de Aquiles; o recorrente e os outros entornaram-lhe produtos químicos em cima das feridas, o que fez aumentar a intensidade das dores do ofendido.
XV - Em sede de ilicitude, deve ter-se em conta que, sem oposição do recorrente, o tribunal de 1.ª instância, com confirmação da Relação, considerou verificadas as circunstâncias das als. a) [desfiguramento grave e permanente] e b) [afectação grave da capacidade de trabalho] do art. 144.º do CP, elegendo a primeira para preenchimento do tipo e valorando a outra em sede de determinação da pena. Considerando, assim, a afectação da capacidade de trabalho que resultou para a vítima das ofensas físicas sofridas, a amplitude do desfiguramento grave e permanente, sem que haja nisso dupla valoração, visto as sequelas permanentes que resultaram para o ofendido das agressões sofridas, como as amputações do dedo anelar da mão esquerda e dos dedos mindinhos de ambos os pés, estarem muito para além do necessário para o preenchimento da previsão típica, que se satisfaria com a amputação da orelha, e as dores intensíssimas que as agressões provocaram ao ofendido, que chegou a perder os sentidos, o grau de i1icitude é muito elevado. De todo o circunstancialismo acabado de descrever resulta culpa em medida muito elevada, a permitir que a pena se fixe muito mais perto do limite máximo do que do limite mínimo da moldura penal. As exigências de prevenção geral são igualmente muito elevadas, em face da excepcionalmente intensa violação do bem jurídico protegido, de tal modo que o mínimo de pena imprescindível à manutenção da confiança colectiva na validade da norma violada se situa muito acima do limite mínimo da moldura penal, mesmo para lá do seu ponto intermédio. Em sede de prevenção especial, se é certo que o recorrente não tem antecedentes criminais relevantes, também o é que manifestou no facto uma personalidade insensível aos valores que regem a vida em sociedade e capaz de facilmente enveredar pela via da violência física. As necessidades de ressocialização que estas qualidades desvaliosas da personalidade convocam impõem que a pena se fixe um pouco acima do mínimo exigido pela prevenção geral. Ponderando estes dados, acha-se permitida pela culpa, necessária e suficiente para satisfazer as finalidades da punição a medida de 8 anos de prisão.
XVI - Nos termos do n.º 2 do art. 77.º do CP, há-de ser fixada entre o mínimo de 8 anos de prisão, a pena singular mais elevada, e o máximo de 20 anos de prisão, a soma de todas. Na fixação da medida concreta da pena única devem ser tidos em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no art. 71.º do CP – exigências gerais de culpa e prevenção – e o critério especial dado pelo n.º 1 do art. 77.º: «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

XVII - O recorrente CM praticou recorrente praticou um crime de tráfico agravado, punido com a pena de 7 anos de prisão, um crime de sequestro agravado, punido com 5 anos de prisão, e um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, punido com 8 anos de prisão.

XVIII - A gravidade global dos factos, aferida pela medida dessas penas e da relação de grandeza que apresentam entre si, sendo uma de média e duas de grande dimensão, não sendo grande a diferença entre elas, é elevada. Daí que a culpa pelo conjunto dos factos, ou o grau de censura a dirigir ao arguido por esse conjunto, seja também elevado, a permitir que a pena se fixe muito acima do limite mínimo da moldura do concurso. A gravidade global dos factos releva também pela via da prevenção geral, determinando um mínimo de pena situado muito acima do limite mínimo daquela moldura. Por outro lado, o número de crimes, não sendo embora revelador de uma tendência criminosa, não deixa de assinalar, tendo em conta as ligações que entre eles existem, alguma facilidade em enveredar pela via criminosa. As exigências de ressocialização que daí decorrem impõem que a pena se fixe um pouco acima do mínimo determinado pela prevenção geral. Ponderando estes dados, acha-se, permitida, necessária e suficiente a pena única de 12 anos de prisão [em substituição da pena única de 15 anos de prisão fixada na decisão recorrida].

XIX - O recorrente SJ entende que está viciado a prestação de informações à PJ por parte do co-arguido TM, informações que permitiram a descoberta dos referidos factos. A obtenção de informações sobre a prática de crimes é um método corrente e lícito de investigação usado pelos órgãos e autoridades de polícia criminal. E nada muda, no aspecto da validade da prova recolhida, se as informações são fornecidas por um co-arguido. Ponto é que não tenha ocorrido qualquer das situações que geram nulidade da prova, nos termos do art. 126.º do CPP.

XX - Num caso em que um co-arguido, num acto em que, não estando, mas devendo estar, assistido por defensor, prestasse informações sobre a prática de um crime, a declaração da respectiva nulidade teria como consequência a invalidade desse acto, que teria de ser repetido, mas não tornaria nulas as provas que as polícias, servindo-se dessas informações, viessem a recolher, porque a nulidade do acto em que as informações foram prestadas, sendo alheia a qualquer proibição de prova, não afectaria aquela recolha.

XXI - Pretende ainda o recorrente SJ que foram valorados depoimentos de agentes policiais, em violação do disposto no art. 356.º, n.º 7, do CPP. Com a invocação desta norma pretenderá dizer que os agentes da PJ a quem TM prestou as aludidas informações foram inquiridos sobre o conteúdo das declarações mediante as quais este veiculou essas informações.

XXII - Não obstante os agentes policiais não possam ser inquiridos sobre o conteúdo das declarações que nesses termos, informalmente, TM lhes prestou, o impedimento não se estende a declarações sobre factos de que tiveram conhecimento directo, referentes, nomeadamente a buscas, apreensões e outras diligências sequentes ao recebimento dessas informações.

XXIII - A medida abstracta da pena, para o crime de sequestro agravado praticado por SJ, vai de 2 a 10 anos de prisão. O dolo é intensíssimo, pois, estando o ofendido no Reino Unido, o recorrente teve que convencê-lo a vir a Portugal, para o que foram necessários vários contactos telefónicos, persistindo por isso necessariamente a vontade criminosa ao longo de um considerável período de tempo. A operação foi da iniciativa do recorrente, trazendo depois outros para o projecto criminoso, detendo sempre uma posição de liderança. Os motivos do crime, ligados a supostas dívida e traição do ofendido no contexto de uma actividade ilícita – tráfico de droga noutro país –, para além do facto de o arguido cobiçar para sua companheira a mulher da vítima, remetem para sentimentos muito censuráveis, como vingança, mesquinhez e inveja ou ciúme. Merecedores de grande censurabilidade são os fins visados pelo recorrente com sequestro do ofendido: a prática de outro crime. O grau de ilicitude do facto não se afasta do que é normal neste tipo de crime, na modalidade agravada, visto que opera uma única circunstância agravadora, que não se encontra entre as mais desvaliosas das previstas, devendo, porém, ter-se em consideração que a duração da privação da liberdade ultrapassou em vários dias o período típico.

XXIV - A medida das exigências de prevenção geral é muito elevada, porque se o grau de ilicitude do facto não se afasta do que é normal num contexto de sequestro agravado, não pode esquecer-se a perigosidade, para a ordem jurídica, revelada na preparação do crime e com a capacidade de recrutamento de outros para agirem sob as suas ordens, nem o impacto que este tipo de crime tem na comunidade, principalmente quando, como aqui, surge ligado a criminalidade altamente organizada. O mínimo de pena imprescindível ao restabelecimento da paz social situa-se, assim, mais próximo do limite máximo da moldura penal do que do mínimo. É também elevado o nível das exigências de prevenção especial, pois os motivos do crime, os seus fins, a capacidade de planeamento da conduta criminosa, trazendo outros para o processo criminoso, de que teve sempre a liderança, levam a concluir que o arguido encara com facilidade e normalidade a prática de crimes, ou seja, reflectem uma personalidade afeiçoada ao crime. As necessidades de ressocialização que daí decorrem impõem que a pena se fixe bem acima do mínimo exigido pela prevenção geral. Ponderando estes dados, acha-se permitida pela culpa, necessária e suficiente para satisfazer as finalidades da punição a medida de 7 anos e 6 meses de prisão [em substituição da pena de 9 anos de prisão aplicada na decisão recorrida].

XXV - Relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada, foram consideradas verificadas as circunstâncias das als. d), h) e j) do n.º 2 do art. 132.° do CP. O dolo é igualmente intensíssimo, pois persistiu ao longo de um período considerável de tempo, o que mediou entre a tomada da resolução criminosa e o início da sua execução, envolvendo vários contactos telefónicos do arguido com o ofendido, que se encontrava no Reino Unido, com vista a atraí-lo a Portugal, e o recrutamento dos comparticipantes. A firmeza da vontade criminosa, logo do dolo, está ainda bem patente na sucessão dos episódios em que se traduziram as ofensas físicas. Os motivos do crime são os indicados para o sequestro, remetendo para os mesmos sentimentos e sendo merecedores da mesma censurabilidade.

XXVI - Por outro lado, a especial censurabilidade ou perversidade que, nos termos do n.º 2 do art. 145.º, qualifica a ofensa à integridade física grave do art. 144.º, al. a), ambos do CP, decorre, não de uma, mas de três circunstâncias que a revelam, assumindo uma esse papel qualificador e relevando as restantes em sede de determinação da pena concreta. Nesta sede, há pois que dar relevo, para além do facto de o número dos agressores ter retirado qualquer possibilidade de defesa à vítima, à crueldade dos meios usados para ofender a sua integridade física, com vista a aumentar o seu sofrimento.

XXVII - Considerando, assim, a afectação da capacidade de trabalho que resultou para a vítima das ofensas físicas sofridas, a amplitude do desfiguramento grave e permanente, sem que haja nisso dupla valoração, visto as sequelas permanentes que resultaram para o ofendido das agressões sofridas, como as amputações do dedo anelar da mão esquerda e dos dedos mindinhos de ambos os pés, estarem muito para além do necessário para o preenchimento da previsão típica, que se satisfaria com a amputação da orelha, e as dores intensíssimas que as agressões provocaram ao ofendido, que chegou a perder os sentidos, o grau de i1icitude é elevadíssimo. Todo o circunstancialismo acabado de descrever traduz culpa em medida elevadíssima. Pode mesmo dizer-se que não é de verificação fácil um crime deste tipo em que a culpa se situe em patamar tão elevado. As exigências de prevenção geral são muito elevadas, em função da intensíssima violação do bem jurídico protegido, do número cada vez maior de casos de grande violência, no contexto da criminalidade altamente organizada, como o tráfico de droga, a título de represália, causando intranquilidade nas pessoas, e da perigosidade que o arguido representa para a ordem jurídica, revelada no seu descrito comportamento. Em face disso, é de concluir que o mínimo de pena imprescindível à manutenção da confiança colectiva na validade da norma violada se situa muito mais perto do limite máximo da moldura penal do que do mínimo. As necessidades de prevenção especial são também muito elevadas, como decorre da facilidade com que o arguido partiu para a prática de uma infracção desta gravidade, reveladora de uma personalidade mal formada, com predisposição para prática de crimes. Essas circunstâncias exigem que a pena se fixe bem acima do mínimo pedido pela prevenção geral. Ponderando estes dados, acha-se permitida pela culpa, necessária e suficiente para a realização das finalidades da punição a pena de 10 anos de prisão [em substituição da pena de 11 anos de prisão fixada pelo tribunal recorrido].

XXVIII - O crime de tráfico agravado realizou-se através do cultivo da planta cannabis em terrenos que o arguido e os comparticipantes adquiriam, da preparação do produto final, vulgarmente conhecido como haxixe, mediante secagem, prensagem, embalagem e posterior venda, obtendo lucros elevados. Para essa preparação do produto, o recorrente tinha em funcionamento um laboratório/estufa, com elevada capacidade de produção e equipado com meios técnicos sofisticados. O recorrente dominava, assim, todas as fases do negócio: cultivava as plantas, preparava o produto final e procedia à sua venda. E a importante dimensão desse negócio infere-se, desde logo, pela qualidade e grandeza do laboratório/estufa, que ocupava, não um, mas vários edifícios, e pelo facto de nas plantações de cannabis que o recorrente e os comparticipantes possuíam trabalharem pessoas que eram recrutadas no Reino Unido, as quais se deslocavam a Portugal para esse efeito. Só um negócio proporcionador de grandes lucros poderia permitir uma tal prática.

XXIX - Destes dados decorre um dolo intensíssimo, traduzido numa vontade criminosa que persistiu durante um longo período de tempo, pois o negócio já se encontrava a produzir resultados e a sua implementação foi necessariamente morosa e reflectida. E i1icitude em grau muito elevado, em vista das várias condutas típicas realizadas pelo recorrente e da extensão do negócio, tudo a representar a criação de enorme perigo para os bens jurídicos protegidos. As exigências de prevenção geral são também muito elevadas em função do grau de ilicitude da actividade desenvolvida pelo recorrente, actividade essa que representa uma violação muito intensa da norma que protege os bens jurídicos postos em perigo, e da circunstância de o tráfico de droga se manter em níveis muito altos, longe de dar sinais de abrandamento, gerando grande intranquilidade e insegurança na comunidade, em face da criminalidade que anda associada ao comércio ilegal de drogas e, principalmente, ao seu consumo. Em sede prevenção especial, há que ter conta que a actividade delituosa do arguido não resultou de circunstâncias acidentais, sendo antes reveladora de uma predisposição do recorrente, patente nas demoradas e notoriamente reflectidas condutas que puseram o negócio em marcha, para além das ligações que nesse contexto necessariamente estabeleceu no mundo do comércio ilegal de drogas. Nestes termos, é de concluir que a pena de 10 anos de prisão fixada na decisão recorrida, coincidindo com o ponto intermédio da moldura penal, não excede nem a medida permitida pela culpa nem a necessária à realização das finalidades da punição.

XXX - Nos termos do n.º 2 do art. 77.º do CP a pena única há-de ser fixada entre o mínimo de 10 anos de prisão, a medida das duas penas singulares mais elevadas, e o máximo de 25 anos de prisão, visto a soma de todas, perfazendo 36 anos e 6 meses, exceder esse limite [o recorrente praticou 1 crime de tráfico agravado, punido com a pena de 10 anos de prisão, 1 crime de ofensa à integridade física grave qualificada, punido com 10 anos de prisão, 1 crime de homicídio qualificado tentado, punido com 8 anos de prisão, 1 crime de sequestro agravado, punido com 7 anos e 6 meses de prisão, e 1 crime de detenção de arma proibida, punido com 1 ano de prisão].

XXXI - A gravidade global dos factos é muito elevada, aferindo-se pela medida dessas penas e da relação de grandeza que apresentam entre si, sendo 4 delas de elevada dimensão, sem que seja grande a diferença entre elas, e só uma de baixa dimensão. Daí que a culpa pelo conjunto dos factos, ou o grau de censura a dirigir ao arguido por esse conjunto, seja também elevado, a permitir que a pena se fixe mais perto do limite máximo do que do limite mínimo da moldura do concurso. A gravidade global dos factos releva também pela via da prevenção geral, determinando um mínimo de pena situado acima do ponto intermédio dessa moldura. Por outro lado, o número de crimes, se não é indicador de uma tendência criminosa, acaba por revelar, conjugado com a ligação que entre eles existe, uma personalidade com facilidade em enveredar pela via criminosa. As exigências de ressocialização que daí decorrem impõem que a pena se fixe bem acima do mínimo determinado pela prevenção geral. Ponderando estes dados, acha-se, permitida, necessária e suficiente a pena única de 18 anos e 6 meses de prisão [em substituição da pena única de 22 anos e 6 meses de prisão considerada na decisão recorrida].

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

            No 1º Juízo Criminal da comarca de Loulé, no final de julgamento em processo comum com intervenção do tribunal colectivo, foi proferido acórdão que, além do mais que aqui não importa, condenou os arguidos

                                                           AA:

            -a 11 anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artºs131º, 132, nºs 1 e 2, alínea g), 22º, 23º e 73º, nº 1, alíneas a) e b), do CP;

            -a 9 anos de prisão, pela prática de um crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artº 158º, nº s 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 144º, alíneas a) e b), do CP;

            -a 11 anos de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artºs 144º, alínea a), e 145º, nºs 1, alínea b), e 2, com referência ao artº 132º, nº 2, alíneas d), e), h) e j), do CP;

            -a 10 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico agravado, p. e p. pelos artºs 21º, nº 1, e 24º, alínea c), do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro;

            -a 1 ano de prisão, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 86º, nº 1, alínea c), com referência aos artºs 2º, nºs 1, alíneas p), s) e v), e 5, alínea g), e 3º, nº 2, alínea l), da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro; e

            -em cúmulo jurídico, na pena única de 25 anos de prisão;

                                                           BB:

            -a 7 anos de prisão, pela prática de um crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artº 158º, nº s 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 144º, alíneas a) e b), do CP;

            - a 9 anos de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artºs 144º, alínea a), e 145º, nºs 1, alínea b), e 2, com referência ao artº 132º, nº 2, alíneas d), e), h) e j), do CP;

            - a 7 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico agravado, p. e p. pelos artºs 21º, nº 1, e 24º, alínea c), do DL nº 15/93; e

            -em cúmulo jurídico, na pena única de 15 anos de prisão.

            Ambos os referidos arguidos interpuseram recurso para a Relação de Évora, que, por acórdão 25/06/2013, decidiu:

            -julgar improcedente o recurso do arguido BB, alterando, porém a qualificação jurídica do sequestro, que passou a ser agravado pela via da alínea a), e não b), do nº 2 do artº 158º;

            -julgar parcialmente procedente o recurso do arguido AA, alterando a decisão de 1ª instância nos seguintes termos:

                        -a pena do crime de homicídio qualificado tentado passou a ser de 8 anos de prisão;

                        -o crime de sequestro é p. e p. pelo artº 158º, nºs 1 e 2, alínea a), do CP, mantendo-se em relação a ele a pena de 9 anos de prisão;

                        -a pena única passou a ser de 22 anos e 6 meses de prisão.

            Os dois referidos arguidos interpuseram recurso do acórdão da Relação para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo assim a sua motivação:

                                                                           AA:

         «1. Vem o presente Recurso do Acórdão proferido pelo V. Tribunal da Relação de Évora e do qual decorre a condenação do Arguido na pena de 22 anos e 6 meses de prisão;

2. Com tal Decisão se não conforma o Arguido;

3. Decidiu o Tribunal de primeira instância, condenar o arguido AA:

- Um crime de Homicídio Qualificado, em co-autoria e na forma tentada, p. e p. nos termos das disposições conjugadas dos artigos 22º, 23º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea g), todos do Código Pena, a pena de 11 (onze) anos de prisão;

- Um crime de Sequestro Agravado, p. e p. pelo artigo 158º, nº 1, alíneas a) e b), por referência ao artigo 144º, alíneas a) e b), todos do Código Penal, a pena de 9 (nove) anos de prisão;

- Um crime de Ofensa à Integridade Física Qualificada, em co-autoria e consumado, p. e p. pelos artigos 144º, alíneas a) e b) e 145º, nºs 1-b) e 2, com referência ao artº 132º, nº 2, alíneas d), e), h) e j), todos do Código Penal, a pena de 11 (onze) anos de prisão;

- Um crime de Tráfico de Drogas Agravado, em co-autoria e consumado, p. e p. pelos artigos 21º-1 e 24º-c), do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela 1-C, anexa a este diploma, a pena de 10 (dez) anos de prisão;

- Um crime de detenção de arma proibida, em autoria e consumado, p. e p. pelo artigo 86º, nº 1-c), ex vi dos artigos 2º, nº 1-p), s), v), nº 5-g) e artigo 3º, nº 2- l), todos da Lei nº 5/2006, de 23/02, a pena de 1 (um) ano de prisão.

Em cúmulo jurídico, fixar a pena única ao arguido de 25 (vinte e cinco) anos de prisão.

4. Interposto Recurso para o V. Tribunal da Relação de Évora, decidiu:

- conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA;

- condenar AA e BB, em co-autoria, por crime de sequestro agravado pela alínea a) do nº 2 do art. 158º do CP;

- condenar AA na pena de 8 anos de prisão pela prática do crime de homicídio qualificado na forma tentada;

- condenar AA na pena única de 22 anos e 6 meses de prisão.

5. No que concerne às diligências processuais nas quais interveio o co-arguido CC, o douto Acórdão de primeira instância que reconhece que se trata de uma diligência processual não documentada, o portanto de um acto processual.

6. Pelo que terão que se encontrar sujeitas às regras de todas as restantes diligências processuais. Por conseguinte, ao estipulado pelo art. 64º nº 1 al. c), do mesmo diploma legal. Que prevê a obrigatoriedade do arguido se encontrar assistido por defensor, em qualquer acto processual sempre que o arguido for desconhecedor da língua Portuguesa.

7. Tal omissão constitui nulidade insanável, prevista pelo art. 119º alínea c), que desde já se argui.

8. Por outro lado, o arguido não se encontrava assistido por interprete, tal como estipula o art. 92º nº 2 do C.P.P., o que determina um nulidade constante do art. 120º nº 2 al. c) do mesmo diploma legal.

9. Nem se poderá afirmar que o arguido prescindiu da presença de defensor e intérprete, uma vez que é totalmente inexistente qualquer auto donde tal resulte. Art 128º nº 3 CPC – necessidade de redução a auto

10. Vem o douto Acórdão recorrido invocar que, a ausência de documentação das diligências se deveu a exigência daquele arguido e que se encontrava em jogo a “eminente morte do ofendido”.

11. Note-se que o Arguido não prestou qualquer declaração sobre o crime de tráfico de estupefacientes.

12. E que na data das referidas diligência o ofendido já tinha sido localizado, pelo que tal argumento não deve colher.

13. Na sequência dessa diligência, ferida de nulidade nos termos supra expostos, vieram a ser efectuadas e realizadas as buscas e apreensões à Q... S... G..., as quais foram documentadas e juntas aos autos.

14. Entre a diligência realizada com o arguido CC e as buscas e apreensões que vieram a ser efectuadas na Q... S... G... existe um nexo funcional, que, necessariamente, fere de nulidade as buscas e apreensões ali efectuadas.

15. Nulidade esta, que o recorrente aqui invoca na qualidade de participante processual interessado, e cuja declaração de nulidade se requer com as legais consequências.

16. Vem ainda, e por outra via, tentar o V. Tribunal da Relação de Évora aceitar os depoimentos dos agentes que intervieram nessas diligências, feridas de nulidade.

17. Estipula o art. 122º do C.P.P. que “As nulidades tornam inválido o ato em que se verifiquem, bem como os que dele dependerem, e aquelas puderem afectar.”

18. E por outro lado, estipula o art. 356 nº 7 que “os órgãos de policia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer titulo, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas”.

19. Assim, entende a defesa que, por respeito ao princípio da legalidade, não devem tais depoimentos serem valorados nessa parte, reconhecendo-se a nulidade invocada.

20. No que tange o crime de trafico de estupefacientes agravado, o douto Acórdão do V. Tribunal da Relação considerou que “...recorrentes se dedicassem a esse negócio de tráfico, na vertente da produção de cannabis, que também vendiam, detendo, além de plantações em terreno, estufa/laboratório de cultivo, produção, secagem e embalagem da planta, com meios técnicos sofisticados e permitindo elevada capacidade produtiva.

Não lhes era conhecida outra actividade e, quanto à apurada, recorriam a colaboração de outras pessoas, contratadas pelo recorrente AA, sobretudo cidadãos do Reino Unido, tendencialmente no sentido de a ampliar, denotando interesse em plantações similares (conforme transparece das diversas fotos que constavam do telemóvel apreendido ao recorrente BB) e no sentido inequívoco de que esse negócio, realizado por pessoas com grande proximidade, viesse a assimilar cadeia que assegurasse lucros inevitavelmente elevados.

E, para tanto, é indiferente que a quantidade da planta apreendida não seja substancialmente elevada e que se tratasse de cannabis, bem como que não estivesse pronta para ser comercializada....”.

21. Não consegue o Recorrente aceitar que seja indiferente a quantidade e qualidade de droga apreendida, servindo para condenar pelo crime de tráfico na forma agravada, somente a falta de existência de ocupação em Território Nacional.

 22. Nada se provou quanto às alegadas plantações, tal como resulta dos factos não provados ponto (6).

23. Bem como não se logrou provar que o recorrente possuía os meios indispensáveis ao prosseguimento de produção e comercialização em larga escala. – factos não provados, ponto 29.

24. Não se encontra provado o crime na sua forma agravada, porquanto apesar da lei contentar-se com a expectativa de grandes lucros, exige que o agente tenha obtido proventos de uma grandeza que claramente extravase os lucros que normalmente se obtêm ou se tentam obter com o tráfico de produtos estupefacientes, sendo esta uma actividade ilícita que, normalmente, pela sua natureza, tende à consecução de operações rentáveis e de aquisição de somas monetárias significativas.

25.Tem de estar, portanto, em causa um empreendimento ilícito de tal ordem, que seja de molde a gerar grandes lucros ou a criar expectativas de um enriquecimento do património em grande escala, muito para além do que está pressuposto no tipo-base de tráfico.

26. Nada ficou definido relativamente: as quantidades transaccionadas, à dimensão do abastecimento do mercado, o efeito conjugado da oferta e da procura, a complexidade ou estruturação da organização de fornecimento aos revendedores e a distribuição pelos consumidores directos, e até mesmo que era intenção de qualquer dos arguidos vender.

27. No local foram encontrados 235 pés de planta de cannabis, a que corresponde o peso líquido de 1,05 Kg.

28. Produto esse que não poderia ser consumido como produto estupefaciente, pois ainda se encontrava em fase de secagem.

29. Não foi apreendido, no local Q... S... G..., qualquer produto estupefaciente pronto a ser comercializado.

30. Nem tão pouco foi apurado, por qualquer forma, que as plantas aí encontradas se destinavam a ser colocadas no Mercado.

31. O preenchimento da agravação prevista na alínea c) do DL 15/93 de 22/01 exige a comprovação de factos muito concretos. E não só uma pluralidade de actividades, com lapso temporal mais ou menos definido, aproveitamento económico preciso, como também expressões numéricas, diferenças entre despesas e expectativas de lucro ou lucro efectivo.

32. De salientar a situação pessoal do arguido, nomeadamente que provém de um agregado familiar com poucos recursos económicos, e que na data em que foi detido vivia com a companheira e seus 4 filhos no interior de uma carrinha.

33. Nem lhes foram apreendidos valores monetários que evidenciassem que tivessem sido adquiridos com avultados proventos da actividade de tráfico.

34. Ao arguido, aliás, não foram encontradas grandes quantias em dinheiro, nem consta que tivesse contas chorudas em estabelecimento bancário ou que as tivesse empregue na aquisição de bens ou por qualquer forma dissipado ou dissimulado. Os objectos que lhe foram encontrados também não atestam um vultuoso negócio no tráfico da droga.

35. A livre convicção que se refere o artigo 127º do C.P.P. não é um puro juízo subjectivo, antes devendo ser um juízo baseado em provas concretas, avaliadas tendo em conta o princípio “in dubio pro reo”.

36.Os factos provados nos nºs 30 a 34 dizem respeito a factos passados fora do território nacional, pelo que não deve o Tribunal deles conhecer, muito menos considera-los provados, não se aceitando que tal possa servir para indicar absolutamente nada no que tange a pessoa do Arguido, tendo principalmente em atenção que no País onde alegadamente foram praticados, não existe qualquer queixa, ou procedimento criminal.

37. Até mesmo porque resulta do Registo Criminal do Arguido que nunca foi condenado pela prática de qualquer crime de tráfico agravado, tendo isso sim registos de consumo de produtos estupefacientes. O que o coloca ao nível do consumo e não de traficante a larga escala.

38. Acresce ainda o facto de não se ter apurado o grau de toxicidade das plantas de cannabis apreendidas, na Q... S... G.... 

39.Note-se que o teste rápido realizado acusa Liamba e que no teste laboratorial acusa cannabis.

40. Existe uma discrepância entre estes exames, sem menção da descrição técnica e fundamentada que é cannabis. Como bem se sabe, o grau de toxicidade varia entre os 3% e 22%. Correspondendo a cannabis ao THC com grau de toxicidade de 22%.

41. Impunha-se perante a discrepância de reacção ao teste rápido e o exame laboratorial e a sua insuficiência, proceder a peritagem ou esclarecimentos complementares, o que não tendo sido feito, oficiosamente inquina a prova de nulidade que deve ser conhecida, em conformidade com o estabelecido pelo art. 120º nº 2 al. d) do C.P.P.

42. Analisando agora o crime de tentativa de homicídio qualificado, o Recorrente considera que não foram praticados actos de execução.

43. A execução não se materializa no acordo, pois isso significava antecipar a execução para o momento do acordo e considerá-lo um acto de execução, o que não se enquadra no art. 22º do C.P.

44. O co-autor presta um contributo essencial, indispensável à realização do plano criminoso e ele pode fazer gorar a consumação do crime pela simples omissão da sua tarefa, tem o poder de impedir a consumação do facto não prestando o seu contributo, tem necessariamente de ter o domínio do facto, através do domínio da sua função.

45.Para além da conversa parcialmente transcrita no ponto 73 dos factos provados, que diz respeito a uma intercepção do dia 12/10/10 pelas 18:47h, (antes do inicio dos factos) não existe qualquer outra comunicação mantida com o arguido CC Macgurk ou M... C....

46. O acordo em colocar fim à vida de alguém, não pode ser visto como um acto de execução.

47. Como bem ensina Claus Roxin, em Problemas fundamentais de Direito Penal, utilizando um exemplo similar: “ o autor de planeado roubo toca à porta da casa da vítima. Segundo o plano, em primeiro lugar ele só deveria entrar na casa da vítima, ir para a cama com ele – o caso desenrola-se no meio homossexual – e, finalmente “numa ocasião propícia”, deixar entrar dois outros cúmplices, conjuntamente com os quais o roubo deveria ser executado. A porta não foi no entanto aberta. Aqui, como toda a justiça, foi somente admitida uma mera acção preparatória que, segundo a opinião do tribunal colectivo, também teria sido realizada se o autor tivesse entrado. A partir daqui, pode ver-se que para a existência de uma tentativa não basta só que o autor entre numa relação com a esfera da vítima que, finalmente, deva desembocar num resultado. Tem de se acrescentar ainda algo: nomeadamente, uma “estreita conexão temporal” entre a acção do autor e a produção do resultado, que se pode caracterizar um pouco através da expressão “agora põe-se em marcha”. A acção do autor tem, portanto, de conduzir ao resultado em fases intermédias proteladoras. Este estádio somente teria sido atingido, como o tribunal também afirmou, se tivesse surgido a oportunidade de o autor “fazer entrar em casa os outros dois co-autores”. Igualmente a exigência da “estreita conexão temporal”: enquanto o comportamento do autor não conduzir ainda directamente à própria acção típica, faltará “um safanão” na paz jurídica; pois, até ele deixar entrar os cúmplices, a vítima do nosso caso teria encarado o encontro com o autor como acontecimento normal”.

48. É esta a situação dos autos, a vítima entende a volta de carro como um acontecimento normal, não existindo a prática de qualquer facto com perturbação da esfera do vitima, nem existe estreita conexão temporal. Onde uma destas falte, não existe ainda tentativa.

49. O que a Douta decisão ora recorrida faz é antecipar os actos de execução para o momento em que os co-arguidos procederam a recolha da tampa de betão.

50. Na modesta opinião da defesa, tal facto não é um acto de execução; e permitir tal, seria admitir que comprar o veneno é um acto de execução; “...Uma tentativa de homicídio qualificado não existiria ainda, quando a mulher coloca a sopa na prancha de aquecimento, estando o marido ainda no escritório, mas somente a partir do momento em que a vitima fica, segundo as representações da mulher, directamente em perigo; isto é, quando entra na cozinha e se prepara para pegar na panela da sopa.... Neste caso, sem dúvida que não se verificaria ainda uma tentativa como a colocação da sopa na prancha de aquecimento, mas só com o servir da sopa”, Claus Roxin em Problemas fundamentais de Direito Penal.

51. ”... não é da aplaudir o facto de o Supremo Tribunal pretender admitir uma execução tentada, porque o autor “tinha carregado mercadorias num veículo para, a seguir, as passar sem autorização na fronteira”, Claus Roxin, Problemas fundamentais de Direito Penal.

52. Pelo que deve o arguido ser absolvido do crime de tentativa de homicídio qualificado.

53. Considera ainda o arguido que a pena de 22 anos e 6 meses de prisão excede em muito a medida de culpa.

54. São exigências de prevenção geral e de adequação à culpa que, sobretudo nos casos de particular gravidade, continuam a justificar a aplicação de penas de prisão efectivas de longa duração, dado que os seus inconvenientes superam em muito as vantagens que lhes possam ser assinaladas.

55. A tentativa de socialização em que, como sabemos, deve traduzir-se a execução da pena, é contraída – e, nesta acepção, mais que “compensada” – pela forçosa dessocialização derivada do corte nas relações familiares e profissionais do condenado.

56. No presente caso, desde o efeito da repercussão da infâmia social que inevitavelmente se liga à entrada na prisão, na maioria dos casos, da inserção daquele na subcultura prisional, em si mesma de forte pendor criminógeno.

57. Como factores relevantes para a medida da pena, haverá a considerar o da sensibilidade do agente à pena, isto é, a medida em que o agente será atingido pela pena que lhe for aplicada; As qualidades da personalidade do agente manifestadas na execução do facto. Sendo que a personalidade em questão não é apenas a que resulta do seu carácter, mas o carácter, o princípio pessoal que lhe preside, mormente a atitude interna donde o facto provém e que, nesta acepção o fundamenta.

58. Entendemos, primeiro, que a medida da pena não se alcança colocando a fasquia no seu ponto mais elevado, e consoante as atenuantes a mesma vai descendo em direcção ao seu ponto menor.

59. Admitindo sem conceder, será muito mais curial entendermos uma medida penal situada no seu ponto mais baixo e a partir daí deverão ser tomadas em conta todas as circunstâncias agravantes e atenuantes, para a sua efectiva determinação e concretização.

60. Assim a pena de 22 anos e 6 meses de prisão é manifestamente violadora dos Artigos 71º, 72º e 73º, do Código Penal.

61. E sendo verdade que os crimes pelos quais o Arguido foi condenado se revestem de acentuada ilicitude e gravidade.

62. Porém, a moldura concretamente estabelecida sobre as condições pessoais do Recorrente e as circunstâncias dos factos puníveis determinam que a pena seja excessiva, se atentarmos num quadro de reintegração social e de prevenção especial.

63. E é por este motivo que o Recorrente entende que o V. Tribunal da Relação de Lisboa e no Aresto que ora se impugna, não considerou todos os factores supra referidos na configuração da pena, sendo que os mesmos são imprescindíveis para o cômputo final desta, por deporem a favor do arguido e constituíram.

64. Há uma “medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar”, mas que não fornece ao juiz um quantum exacto de pena, pois “abaixo desse ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem perda da sua função primordial”.

65. Dentro desta moldura de prevenção geral, ou seja, “entre o ponto óptimo e, o ponto ainda, comunitariamente, suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico)” actuam considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a medida da pena.

66. No caso em apreço milita a favor do arguido o facto de não ter antecedentes criminais por crimes de idêntica natureza, tendo registado um crime de condução sem habilitação legal.

67. Conta com o apoio da sua família.

68. Durante todos os seus anos de permanência em Portugal nunca foi envolvido ou indiciado pela prática de crimes de idêntica natureza.

69. O Arguido é querido pelos seus amigos e familiares

70. ...que aliás se deslocaram de Inglaterra para em Portugal depor a seu favor em audiência de Julgamento.

71. Por tudo o que aqui fica dito, entende o Arguido que a pena de 22 anos e 6 meses de prisão a que foi condenado é excessivamente onerosa e que, misericordiosamente espera a sua redução, pois em nada colidirá com a finalidade das penas.

Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente Recurso e, em consequência, ser revogado o aliás Douto Acórdão, no termos supra expostos,

E,

Em qualquer caso, mesmo que assim não se entenda, deverá a pena aplicada ao Arguido ser alterada por outra próxima dos limites mínimos legais.

Fazendo-se assim e Boa e já costumada JUSTIÇA».

                                                                           BB:

         «1. O recorrente alegou nas suas motivações e extraiu nas suas conclusões a questão de que da matéria provada não se retirava a concretização de factos capazes de suportar um enquadramento jurídico-penal do crime de tráfico de drogas.

2. O Tribunal da Relação não se pronunciou sobre a questão suscitada nas motivações e conclusões de recurso relativa ao enquadramento jurídico do crime de tráfico de estupefacientes agravado.

3. Nos termos dos arts. 430°, n° 1 e 412° n°s 1, 2 e 3 são as conclusões extraídas e formuladas na motivação do recurso que definem e delimitam o respectivo objecto ou seja aquilo sobre o qual o tribunal superior ou de recurso tem de se pronunciar.

4. Dispõe o n° 4 do art. 425° do CPP que “É correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379° e 380° (...).

5. Nos termos do art. 379°, n° 1 , al. c), do C.P.P., é nula a sentença “Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (...)“ – omissão de pronúncia.

6. A omissão de pronúncia constitui nulidade nos termos do art. 379° n° 1 , al. c), do C.P.P, nulidade que aqui se suscita, com as legais consequências.

NULIDADE INSANÁVEL

7. Nas suas motivações e conclusões de recurso, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 64°, n° 1 al c) e 119°, al. c), o recorrente suscitou a nulidade insanável da diligência de reconhecimento de local feita pelos OPC com o arguido CC à Q... S... G..., e, em consequência dessa nulidade, arguiu a invalidade da prova obtida na sequência dessa diligência, nomeadamente a respeitante às buscas e apreensões realizadas à dita quinta juntas a fls. 1147 a 1153.

8. A nulidade supra foi julgada improcedente por duas razões – “(...) a ausência de documentação das diligências se deveu a exigência daquele arguido e, enquanto tal, não constituem, em rigor, actos processuais (...)” e porque o que foi valorado foram as declarações dos agentes da PJ, que como depoimento directo falaram sobre o que constaram.

9. O Douto Acórdão não define acto processual, sendo que tal definição se impunha dado que a decisão tomada partiu dessa premissa, pelo que, desde logo o Acórdão recorrido peca por falta de fundamentação.

10. Acto processual é todo o acto praticado no processo pelos sujeitos da relação processual ou por terceiros e capaz de produzir efeitos processuais – a diligência cuja nulidade se arguiu é um acto processual porque dela resultaram efeitos processuais – conduziu a um local que foi alvo de buscas e apreensões, logo não se alcança como não defini-la como acto processual, sendo que, o querer do arguido não tem a capacidade de alterar a sua natureza.

11. A diligência de reconhecimento de local efectuada com o arguido CC, com vista à localização da Q... S... G... realizou-se no dia 19 ou 20 de Outubro de 2010.

12. Nessa data a vida ou a integridade física da vítima já não estava em perigo, pois o ofendido foi libertado do seu cativeiro em 18/10/2010, logo, concretizando-se tal diligência após a libertação da vítima, o aludido perigo não tinha actualidade à data da sua realização.

13. Á data da diligência os arguidos já tinham sido presentes ao Mm° Juiz de Instrução Criminal, o que sucedeu em 16/10/2010, e já lhes tinha sido nomeado defensor nos autos.

14. O arguido CC é britânico e desconhecedor da língua portuguesa, pelo que, nos termos do art. 64°, n° 1 al. c), deveria ter sido assistido pelo seu defensor, no acto processual de reconhecimento de local da dita quinta, acto este que tinha em vista a obtenção de provas relevantes para o crime de tráfico de estupefacientes.

15. A falta de defensor em acto que obrigue à sua comparência constitui, nos termos da al. c) do art. 119° do CPP, uma nulidade insanável que determina e impõe a nulidade de actos praticados sem a presença do defensor, pelo que, atento às disposições conjugadas da al. c) do n° 1 do art. 64 e da al. c) do art. 119° do CPP, o acto de reconhecimento de local à Q... S... G..., em que interveio o arguido CC padece de uma nulidade insanável.

16. As provas obtidas na Q... S... G... foram obtidas na sequência de acto que padece de nulidade insanável, sendo que entre esse acto ferido de nulidade insanável e as diligências de obtenção de prova existe um nexo de dependência, razão pela qual, nos termos do disposto no art. 122° do CPP, as diligências subsequentes que visaram a obtenção de provas na referida quinta estão, também elas feridas de nulidade, e por isso todas as provas ali recolhidas (documentadas e juntas aos autos a fis. 1147 a 1153 – Vol. V) são inválidas e não podem ser valoradas.

17. As nulidades absolutas ou insanáveis são de conhecimento oficioso, podem ser arguidas por qualquer interessado independentemente do estado do processo, desde que o façam até ao trânsito em julgado da decisão, e por estar em causa a assistência obrigatória de defensor relativamente a arguido desconhecedor da língua portuguesa, tal assistência, por ser legalmente imposta, não está sequer na disponibilidade do arguido tê-la ou não – é o caso dos autos.

18. A valoração dos depoimentos dos agentes da PJ que prestaram depoimento sobre o que constataram na dita diligência com o arguido CC e nas buscas e apreensões realizadas à Q... S... G..., não pode ser valorada como prova testemunhal directa, por tais depoimentos versaram sobre factos que advieram ao conhecimento das testemunhas na sequência de uma diligência ferida de nulidade insanável.

PROVA POR RECONHECIMENTO

19. Do n° 2 do art. 147° do CPP resulta de forma inequívoca que à prova por reconhecimento, seja ela por fotografia, filme ou gravação, está sempre subjacente o elemento presencialidade.

20. Entende o recorrente que para ser cumprido o formalismo do n° 2 do art. 147° do CPP a gravação das vozes (quer a do recorrente quer a dos outras duas pessoas que consigo apresentem semelhança) teria de ser feita na sua presença.

21. Acto contínuo a essa recolha de vozes, feita na presença do recorrente, devia, de imediato, proceder-se à sua exibição ao ofendido para efeitos de reconhecimento – só desta forma se cumpria o formalismo imposto pelo n° 2, do art. 147° do CPP:

22. Com a expressão ‘se devem chamar’ constante no n° 2 do art. 147° do CPP, “quis o legislador impor que neste tipo de obtenção de prova tudo seja feito na presença do arguido, de forma a acautelar e garantir que a prova é obtida sem qualquer vício.

23. O n° 5 do art. 147° do CPP dispõe que o reconhecimento por fotografia, filme ou gravação realizado no âmbito da investigação criminal só pode valer como meio de prova se for seguido de reconhecimento efectuado nos termos do n° 2.

24. Por sua vez, o n° 7 do artigo 147° do CPP estabelece que o reconhecimento que não obedecer ao disposto neste artigo não tem valor como meio de prova, seja qual for a fase do processo em que ocorrer.

25. Ora, no caso dos presentes autos o formalismo legalmente imposto não foi cumprido, porque as vozes que foram apresentadas ao ofendido foram recolhidas pela polícia inglesa (como se constata a fls. 1309 a 1312) e por esta enviadas para a PJ, que as manteve na sua posse, e posteriormente as exibiu a DD em conjunto com a recolha de voz do recorrente.

26. Desrespeitado o formalismo exigido o reconhecimento de voz não pode ser valorado como meio de prova, o que se suscita com relevância para a absolvição do recorrente, conforme decorre das motivações de recurso.

OMISSÃO DE DILIGÊNCIA ESSENCIAL DA PROVA

27. O recorrente suscitou que a preterição de prova indispensável à descoberta da verdade, com a qual visava demonstrar que em 06.10.2010 se encontrava em Espanha, violou os seus direitos de defesa constitucionalmente consagrados no art. 32° da CRP.

28. O Tribunal não usou dos meios disponíveis para a obtenção da dita prova e até hoje o recorrente desconhece que diligências foram produzidas para a obtenção da mesma.

29. O recorrente por mais de uma vez durante o julgamento e até depois de encerrada a prova, insistiu pela obtenção da mesma, dada a sua importância para a sua defesa e considerando que nada impedia a sua junção aos autos até ao acórdão condenatório.

30. O douto despacho que deferiu a aludida prova dizia que seria tomado posição em conformidade caso a prova não fosse junta aos autos até ao encerramento da produção de prova, essa pronúncia não foi proferida, nem mesmo após o requerimento apresentado pelo recorrente já após a produção de prova.

31. O recorrente aguardou pelo despacho do Tribunal, o qual não chegou a ser proferido, pelo que, neste contexto a nulidade só podia ser invocada no recurso da decisão, nos termos do n° 3 do art. 410° do CPP.

32. A prova em questão era essencial para o recorrente demonstrar que estava ausente do país num momento em que os ilícitos continuavam a ser praticados, o que, pelo menos, provava de forma inequívoca que não tinha participado nos mesmos até ao final.

33. A preterição de prova requerida na fase de julgamento, que se manifeste indispensável à descoberta da verdade material, constitui uma violação dos direitos de defesa, constitucionalmente consagrados no n° 1 do art. 32° da CRP.

34. Tal direito constitucional pretende garantir que ninguém seja condenado, sem que lhe seja assegurado previamente o direito de se defender com eficácia – e a verdade é que no caso do recorrente esse direito, pelos motivos supra, não lhe foi garantido.

35. Violaram-se, em consequência, os direitos de defesa do recorrente constitucionalmente protegidos no n° 1 do art. 32° da CRP, pois, claramente, houve preterição de diligências de prova essenciais à descoberta da verdade material e que comprometeram o seu direito de defesa, é esta a melhor interpretação que deve ser dada às normas constantes dos arts. 120°, n° 2 al. d), 315°, n° 1 e 340°, n°s 1 e 2, sob pena de as mesmas padecerem de inconstitucionalidade material, inconstitucionalidade que desde já se suscita.

36. A preterição de diligências de prova, legitima e atempadamente requeridas, que de forma notória se revelam indispensáveis para a descoberta da verdade, consubstancia a nulidade processual susceptível de ser enquadrada na al. d) do n° 2 do art. 120° do CPP.

37. A nulidade supra, pelos argumentos atrás expendidos, pode ser invocada no recurso da Decisão, como decorre do disposto no n° 3 do art. 410° do CPP, nulidade esta cuja declaração se requer, com as legais consequências.

CRIME DE TRÁFICO DE DROGAS AGRAVADO

38. O princípio in dubio pro reo é um princípio geral do processo penal decorrente do princípio da presunção da inocência do arguido constitucionalmente consagrado, pelo que, assume a natureza de uma questão de direito de que o STJ deve conhecer, quando da globalidade do próprio texto da decisão resultar que o tribunal decidiu em sentido desfavorável ao arguido.

39. Como infra se demonstrará, a conclusão retirada pelo Tribunal da Relação de Évora em matéria de prova resultou numa decisão contra o recorrente, que não é suportada de forma suficiente pela prova em que assentou a convicção.

40 — Fazendo uma apreciação global às intercepções telefónicas, à prova testemunhal e à prova documental, no limite, apenas se pode retirar que o recorrente se relacionava com o arguido Steven, conforme claramente se demonstra nas motivações de recurso.

41. A conclusão supra não pode conduzir a uma decisão, com a certeza que o direito exige, de que essas relações se estendiam à actividade de tráfico de droga que era praticada na plantação da Q... S... G..., nem nada se provou quanto a este respeito, e é a actividade ali praticada que constitui o objecto dos autos.

42. As ditas “provas” dos autos consistem em “pontas” insusceptíveis de, ligadas entre si, conduzirem à conclusão inequívoca que o recorrente se dedicava à actividade de tráfico de drogas, produzindo cannabis na plantação de Q... S... G....

43. Sobre o crime de tráfico de estupefacientes a prova, no que ao recorrente respeita, não constitui base suficiente ou idónea para a decisão de direito.

44. Pela manifesta insuficiência da prova, o Douto Acórdão recorrido decidiu em sentido desfavorável ao arguido, pelo que, violou um dos princípios basilares do direito penal – o do in dubio pro reo.

45. Os factos dados como provados em 1, 2, 4, 26, 27, 28 e 29 não concretizam a conduta pela qual o recorrente se dedicava à actividade de tráfico de drogas.

46. Nada se concretiza no que respeita à sua participação na produção de cannabis levada a cabo na Q... S... G..., nem se nela cultivou, produziu ou se distribuiu ou vendeu cannabis ali produzido.

47. Da matéria provada não se indica o lugar, o tempo, o modo, o grau de participação ou as circunstâncias relevantes em nenhum facto provado se descreve uma conduta do recorrente relativa a tal actividade.

48. O constante nos pontos 1 e 2 da matéria dada como provada não correspondem a factos, mas sim a imputações genéricas, atribuindo ao recorrente a prática de uma actividade sem especificar quais as condutas daquele que concretizam a aludida produção e cultivo de cannabis.

49. As afirmações genéricas contidas na matéria dada como provada no Douto Acórdão ora recorrido, não são susceptíveis de contradita, pois não sabe o recorrente como lhe é imputado o desenvolvimento da aludida produção de cannabis.

50. As imputações genéricas, no domínio do tráfico de estupefacientes, sem qualquer especificação das condutas, em que se concretiza o aludido tráfico, não são passíveis de um efectivo contraditório e, portanto, violam-se os direito de defesa do arguido constitucionalmente consagrados no art. 32° do CRP.

51. Os factos 1, 2, 4, 26, 27, 28 e 29 deviam ter sido dados como não provados relativamente ao ora recorrente, é esta a melhor interpretação que deve ser dada às normas constantes dos arts. 283°, n° 3 al. b), 374°, n° 2, 410° n° 2 e 4 12°, n° 3 do CPP, sob pena de as mesmas padecerem de inconstitucionalidade material - inconstitucionalidade que desde já se suscita.

52. A imputação genérica de uma actividade de tráfico de droga não releva de um ponto de vista jurídico, pelo que se impõe a absolvição do arguido quanto ao crime de tráfico de drogas agravado p. e p. pelos artigos 210lo e 24°-c), do DL 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à Tabela I-C, anexa a este diploma

CRIME DE SEQUESTRO E DE OFENSAS À INTEGRIDADE FISICA

53. Da matéria fáctica e probatória retirada das declarações da vítima, resulta uma dinâmica de factos incontestável que impede uma condenação com a certeza e segurança que o direito exige, e, por isso, impunha-se, pelo menos, que, «face às regras da experiência comum”, surgisse a dúvida, impondo-se a aplicação do princípio legal e constitucionalmente consagrado do in dubio pro reo, com a consequente absolvição do recorrente dos crimes de sequestro agravado e de ofensa à integridade física qualificada.

Sem prescindir,

54. O Tribunal da Relação veio a confirmar que efectivamente resulta do Apenso B4 e do depoimento da testemunha EE que o recorrente estava em Espanha na manhã do dia 06.10.20 12 e que ali permaneceu até ao dia 12.10.2010.

55. Da prova integralmente valorada pelo tribunal (declarações da vitima), resulta que as agressões a que a vitima foi sujeita duraram durante dois dias.

56. Apesar de a vítima ter declarado ter sido agredido durante dois dias, o Tribunal da Relação manteve os factos dados como provados pelo Tribunal colectivo, nomeadamente os dos pontos 63 e 93, dos quais resulta provado que as agressões aconteceram na noite de 5 para 06.10.2010.

57. Impende sobre o Acórdão recorrido um juízo arbitrário no sentido de que foram dados como provados factos que contrariam as declarações da vitima – prova esta integralmente valorada pelo Tribunal.

58. Um raciocínio lógico não pode ignorar factos tão essenciais como os que delimitam o tempo em que durou a prática de um crime, pelo que, se a vítima diz ter sido agredida durante dois dias e se da prova valorada resulta que o recorrente não esteve presente durante todo esse tempo, uma apreciação critica fundada num raciocínio lógico obrigaria a concluir, pelo menos, que o recorrente não esteve presente durante todo o tempo em que o ofendido foi agredido - facto essencial para determinar a participação do recorrente nos factos respeitantes à agressão. 

59. Um raciocínio lógico obrigaria a, pelo menos, a concluir que o recorrente não estava na casa quando aconteceram as agressões mais graves, que foram as últimas a ser perpetradas.

60. Ao manter a matéria de facto provada, que contende com as declarações da vítima, o Acórdão ora recorrido padece do vício de erro notório consubstanciado em juízo arbitrário, vício que, nesta sede se suscita.

61. Face ao evidente vício de erro notório na apreciação da prova de que padece o Acórdão ora recorrido, nos termos do disposto nos n°s 2 e 3 do art. 410° do CPP, vem o recorrente apelar aos poderes deste Venerando Tribunal, enquanto alta instância de recurso, com a dignidade de Tribunal de revista que lhe assiste, de se “intrometer” na matéria de facto no que respeita à factologia expendida nas motivações de recurso.

ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DO CRIME DE SEQUESTRO E DE OFENSAS À INTEGRIDADE FISICA

62. O recorrente nas suas motivações e conclusões invocou que a condenação que lhe foi aplicada pela prática de um crime de sequestro, em co-autoria e consumado, p. e p. pelo art. 158°, n° 1 e n° 2 al. b), por refª ao art. 144°, als., a) e b), todos do C.P. e um crime de ofensa à integridade física qualificada, em co-autoria e consumado, p. e p. pelos arts. 144°, al. a) e 145°, n°s 1, al. b) e 2, com referência ao art. 132°, n° 2, als. d), e), h) e j), todos do CP, valorou duplamente as ofensas à integridade física, violando, assim, o principio constitucionalmente consagrado “ne bis in idem”.

63. Nas conclusões extraídas das motivações o recorrente suscitou a questão da dupla valoração das ofensas à integridade física, não se extraindo das motivações qualquer questão relativa à alteração da qualificação jurídica.

64. São as conclusões extraídas das motivações de recurso que, definindo as razões do pedido, delimitam o “thema decidendum” – art. 412°, n° 1 e 417°, n° 3 do CPP.

65. Assim sendo, o Tribunal da Relação conheceu de questão que não lhe era lícito conhecer, porque não compreendida no objecto do recurso.

66. Nos termos das disposições conjugadas no art. 415° n° 4 e art. 379°, n° 1 al. e), do CPP, é nula a sentença “Quando o tribunal conheça de questões de que não podia tomar conhecimento» - Excesso de pronúncia.

67. A alteração da norma qualificativa do crime de sequestro preconizada pelo Tribunal de recurso, equipara-se a uma alteração não substancial dos factos, face ao disposto no art. 358°, n° 3 do CPP.

68. A alteração oficiosa da qualificação jurídica pelo tribunal de recurso, tem de ser, previamente, comunicada ao recorrente para que este, querendo, se pronuncie – art. 424°, n° 3 do CPP.

69. Não tendo o tribunal cumprido o dever de comunicar a alteração ao recorrente e de lhe dar a oportunidade de defesa, a sentença é nula nos termos das disposições conjugadas do n° 4 do art. 425° e do art. 379°, n° 1, al. b), do Código de Processo Penal. 

Sem prescindir

70. O enquadramento jurídico-penal é o resultado da factualidade descrita na peça acusatória, imputada ao tipo de crime que, por tal factualidade, é preenchido.

71. In casu, a factualidade descrita na pronúncia é, sem qualquer margem para dúvidas, subsumível na previsão da al. b) do art. 158° do CP.

72. O Tribunal Colectivo fez uma correcta subsunção dos factos ao tipo de crime, quando imputou as condutas descritas na pronúncia na al. b) do art. 158° do C.P., além de que ponderou na medida da pena as restantes qualificativas do crime.

73. Verificando-se a correcta imputação dos factos ao tipo de crime, não podia do ponto de vista jurídico o Douto Acórdão recorrido proceder à alteração em causa.

75. A pena de sete anos de prisão aplicada ao recorrente pela qualificativa da al. b) do art. 158° do C.P., foi ponderada pela gravidade subjacente à qualificativa da al. b), não deixando, no entanto, o Tribunal Colectivo de ter tido também em conta, para efeitos de medida da pena, as restantes qualificativas.

76. Ao proceder à alteração da qualificação jurídica para uma qualificativa do sequestro que, segundo o Tribunal Colectivo, é menos grave e não foi aquela que foi determinante para a medida da pena, impunha-se ao Tribunal de recurso a correspondente redução da pena, sob pena de violação do princípio da proibição da reformatio in pejus.

77. A manutenção da pena numa situação de alteração da qualificação jurídica para uma qualificativa menos grave do que aquela que foi ponderada para a medida concreta da pena, consubstancia uma autêntica agravação da pena, pois mantém-se para uma qualificativa menos grave a mesma pena que foi aplicada para a qualificativa mais grave.

78. O Tribunal de recurso não podia proceder à alteração da qualificação jurídica nos termos em que o fez, pelo que se pugna pela manutenção da imputação feita pelo Tribunal Colectivo, e suscita-se, novamente, nesta sede, a dupla valoração das ofensas à integridade física, o que impõe a absolvição do recorrente do crime de ofensa à integridade física qualificada.

MEDIDA DA PENA

79. Pelos motivos expendidos nas motivações as penas parcelares e pena única aplicadas ao recorrente consideram-se objectivamente excessivas.

Nestes termos e nos mais de direito, deverá o presente recurso obter provimento:

a) Pelas nulidades e invalidades de prova;

b) Por aplicação do princípio in dubio pro reo

c) Pela redução das penas de acordo com a participação e culpa do recorrente;

d) Pelo enquadramento jurídico-penal;

e) Pela redução da medida das penas parcelares e única;

Cumpriria decidir de outra forma, devendo por conseguinte, sempre com o Douto suprimento de V. Exas., ser dado provimento ao presente Recurso, Sendo que, V. Exas. sempre farão, com saber e ponderação, a costumada e desejada JUSTIÇA».

         Respondendo, o MP junto do tribunal recorrido defendeu a improcedência dos recursos.

            No Supremo Tribunal de Justiça, a senhora Procuradora-Geral-Adjunta emitiu parecer no sentido de que os recursos, a terem provimento em algum ponto, será apenas quanto à medida de cada uma das penas únicas.

            Foi cumprido o artº 417º, nº 2, do CPP.

            Não foi requerida a realização de audiência.

            Colhidos os vistos, cumpre decidir.

         Foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):

         «1. Os arguidos AA, BB e CC, cidadãos britânicos, bem como outros indivíduos não cabalmente identificados, designadamente FF, conhecido pela alcunha de “P...”, dedicaram-se, desde altura não concretamente determinada, à actividade de tráfico de drogas, designadamente cannabis.

2. Em Portugal, a referida actividade era desenvolvida através da produção de cannabis, cujas plantas semeavam em terrenos que para o efeito eram adquiridos. As plantas criadas eram depois sujeitas a tratamentos de secagem e prensagem, com vista à obtenção do produto final – haxixe –, a cuja venda procediam, com a obtenção de elevados lucros, através dos diferenciais entre os custos produção e os valores de venda.

3. Por outro lado, era o arguido AA quem procedia à escolha e contratação de pessoas, designadamente cidadãos do Reino Unido, para virem trabalhar nas plantações de cannabis que o grupo possuía em Portugal.

4. Estes arguidos não tinham qualquer ocupação profissional lícita nem recebiam qualquer remuneração ou rendimentos em Portugal, para além de proventos obtidos resultantes da actividade de tráfico de drogas.

5. Num local ermo, denominado por B… da …, em S… M… do S… – Grândola (na posição geográfica com a localização GPS xx.xxxxx N – x,xxxxx W), área remota e de muito difícil acesso, dentro de uma coutada de caça denominada S… da C… – S… M… do S…, situa-se um terreno com aproximadamente 50 metros de comprimento por 20 de largura, correspondendo-lhe, assim, uma área de cerca de 1.000 metros quadrados.

6. Neste local, vieram a ser encontrados e apreendidos pela Polícia Judiciária – UNCT, no dia 20 de Outubro de 2010, 22 pés de plantas de cannabis (sativa L) cuja natureza e composição foi laboratorialmente determinada.

7. O arguido AA possuía, no interior de uma outra quinta, sita na Estrada dos Q… M… (P… do M…, em Q... S... G...) – Montijo, instalada em vários edifícios, uma estufa/laboratório de cultivo, produção, secagem e embalagem da planta cannabis, com meios técnicos sofisticados e elevada capacidade de produção.

8. Neste local foram localizados e apreendidos, no dia 25 de Outubro de 2010, quando os sistemas de refrigeração e secagem do laboratório se encontravam em pleno funcionamento, diversos artigos relacionados com o cultivo e produção da planta, nomeadamente centenas de vasos com plantas de cannabis, holofotes, ventoinhas, desumidificadores, fertilizante, condutas de ventilação e ventiladores, termómetros de parede, botijas de CO2, sacos para embalagem, sendo os equipamentos eléctricos maioritariamente alimentados através de tomadas de modelo inglês.

9. Neste local foram encontrados e apreendidos, designadamente, os seguintes haveres:

• 235 pés da planta cannabis, que a PJ acondicionou num saco de serapilheira;

• Um saco de serapilheira, contendo resíduos da planta cannabis;

• Uma balança de precisão;

• Uma carta verde referente à viatura Chrysler Voyager com a matrícula “xxxxKLxx”;

• Três fotografias onde consta retratado o arguido AA;

• Um rolo fotográfico que, após revelação, se verificou ter retratado o arguido AA e os elementos do seu agregado familiar;

• uma pintura em tela assinada por “J. M…”, nome este também utilizado pelo arguido AA.

10. A natureza estupefaciente do produto apreendido foi confirmada por exame pericial.

11. O arguido AA detinha ainda, no mesmo local, o seguinte:

• Uma espingarda caçadeira calibre 12 m/m (com o número de série rasurado –, a qual consta na base de dados “Schengen” como objecto roubado, desviado ou extraviado);

• Um cartucho de caçadeira.

12. A espingarda caçadeira é uma arma de calibre 12m/m, modificada através de ocultação da sua numeração de origem, e o arguido não possui qualquer tipo de autorização para o seu uso, porte ou detenção de armas de fogo desse tipo, arma esta que, mediante uma intervenção não autorizada tem a sua coronha reduzida de forma relevante na sua dimensão.

13. O cartucho de caçadeira é uma munição de calibre 12 m/m, e o arguido não possui qualquer tipo de manifesto, documento ou autorização para uso, porte ou detenção de armas desse calibre, nem sequer apresentou o competente livro de aquisição e registo de munições.

14. O laboratório/fábrica instalado no P… do M…, em Q... S... G... – Montijo era importante para a actividade descrita, razão pela qual havia sido arrendado o local, pelo preço de € 1.000,00 (mil euros) mensais ao proprietário respectivo, GG.

15. Por sua vez, nas proximidades da quinta e a apenas cerca de 6 km de distância dela, o arguido AA tomara de arrendamento, a A… B… da S…, uma residência sita na Rua S… L… dos S… J… (lote xx – xº Esqº) – no Pinhal Novo, sendo o contrato de arrendamento respectivo datado de 19 de Maio de 2010 e figurando como arrendatário S… T… C…, cidadão britânico, titular do passaporte nº 040319636.

16. No dia 09/10/2010, o arguido AA deslocou-se ao Aeroporto de Faro, levando consigo cidadãos britânicos, os quais havia contratado para trabalhar nas plantações de cannabis e regressavam ao Reino Unido. Eram eles D… B…, ou S… W… (actual companheiro de T… W…) DD, Q… M… e S… B…, viajando ainda com eles T… W… (ex-companheira do arguido AA).

17. Foi o arguido AA quem efectuou as reservas de voo para todos os cidadãos britânicos referidos.

18. No dia 15 de Outubro de 2010, o arguido AA, que se encontrava já a ser investigado e seguido pela PJ-UNCT na sequência do desaparecimento do cidadão britânico DD, foi localizado e detido numa zona descampada junto a um lago em Albufeira, onde tinha parqueado a viatura de marca Ford (modelo Transit, com a matrícula xxxxxxx). Na altura, detinha consigo e foram-lhe apreendidos, no interior da viatura referida vários objectos, designadamente:

• 10,328 gramas de uma substância que o exame laboratorial confirmou tratar-se de cannabis (sativa L);

• 1 impresso da operadora VODAFONE, com referência ao nº xxxxxxxxx;

• 2 sacos de plástico contendo restos de uma substância que o exame laboratorial determinou ser cannabis (sativa L), com o peso líquido respectivo de 1,423 e 5,835 gramas.

19. No mesmo dia e já no interior das instalações da PJ-UNCT, em Lisboa, o arguido AA detinha consigo e foi-lhe apreendido um blusão que vestia e que continha resíduos de uma substância que o exame laboratorial confirmou tratar-se de cannabis.

20. O arguido CC, no dia 15 de Outubro de 2010, no quarto que utilizava na residência sita na V… V… do V…, no B… – São Bartolomeu de Messines, detinha consigo e foram-lhe apreendidos, designadamente, uma balança de precisão contendo vestígios de produto cujo exame laboratorial confirmou ser cannabis e o montante de € 400,00 (quatrocentos euros) em dinheiro.

21. Este arguido, não obstante residir em Messines, havia tomado de arrendamento, pela renda mensal de € 700,00 (setecentos euros) uma vivenda designada “C… da B…”, sita em S… F… – Alfontes – Loulé, tendo pago seis meses adiantados.

22. Tal casa era pertença de J… D….

25. Nas imediações do local onde o arguido W… Q… residia, no C… dos M…, F…, Albufeira, foi encontrada e apreendida, no dia 3 de Novembro de 2010, a viatura ligeira de passageiros, a si pertencente, da marca Daimler-Jaguar (modelo 4.0 Auto, com a matrícula inglesa yyyyyyy).

26. No dia 15 de Outubro de 2010, o arguido BB detinha consigo e foi-lhe apreendido, quando se encontrava na residência do arguido CC (sita na V… V… do V…, no B… – São Bartolomeu de Messines) um Cartão de Memória e um telemóvel de marca NOKIA (modelo 8800D, com o IMEI xxxxxxxxxx), onde constam diversas fotos de plantações de cannabis, bem como dinheiro, no montante de € 225,00 (duzentos e vinte e cinco euros).

27. Todos os bens e dinheiro que os arguidos AA, BB e CC detinham em seu poder e supra descritos, foram obtidos como resultado ou com vista à actividade de tráfico de cannabis a que se dedicavam.

28 Bem conheciam os arguidos AA, BB e CC, a natureza e características das substâncias estupefacientes.

29. Estes arguidos, com as suas condutas, pretenderam auferir ou proporcionar a outros que auferissem, elevados ganhos pecuniários, através dos diferenciais entre os preços de custo de produção e venda de tal produto.

30. O arguido AA, no Reino Unido, já havia estado ligado a uma organização cujo escopo era, de igual forma, o tráfico de drogas e na qual trabalhou o cidadão britânico DD.

31. Nessa actividade e por força dela, o arguido AA entendia que DD lhe devia dinheiro e que o havia ainda atraiçoado, por ter trabalhado para outro grupo que se dedicava à mesma actividade de tráfico de drogas no Reino Unido.

32. Foi no âmbito deste enquadramento factual que, em dia não determinado do mês de Agosto de 2010, quatro indivíduos encapuzados e armados com facas, a mando do arguido AA, haviam entrado na residência de DD no Reino Unido, intimando-o a pagar a dívida reclamada.

33. Enquanto os indivíduos encapuzados se encontravam no interior da casa de DD, o arguido AA telefonou, dizendo que mandaria incendiar a casa caso não fosse feita a entrega do dinheiro que DD lhe devia.

34. O arguido AA, em Portugal, decidiu vingar-se de DD.

35. Para além destas motivações, acrescia ainda a circunstância de DD ser casado com D… A… H…, mulher que o arguido AA também gostava de ter como companheira.

36. O arguido AA idealizou então um plano, com o objectivo de atrair DD a Portugal.

37. Depois de vários contactos telefónicos, o arguido AA conseguiu convencer DD, o qual se decidiu a vir para Portugal.

38. Entretanto, para levar a cabo o plano que idealizou, o arguido AA convidou o arguido BB e outros indivíduos de nacionalidade britânica, entre os quais se contava M…C… (e não se tendo apurado em concreto a identidade dos restantes), a tomarem parte activa nas acções a levar a cabo para a concretização do plano de vingança traçado, proposta que estes aceitaram levar a cabo, sob a sua direcção.

39. Assim, no dia 05/10/2010, DD viajou do Aeroporto Internacional de Gatwick (voo BA2696) para Portugal Continental, através do Aeroporto Internacional de Faro, onde chegou cerca das 20h55m do mesmo dia.

40. Nessa viagem, DD trajava uma camisa em xadrez branco e preto (da qual veio a ser encontrado um pedaço, apreendido na casa onde veio a estar em cativeiro, sita em S… F… – A… – Loulé), umas calças de cor escuras, uns sapatos/ténis de cor branca e um casaco de cor escura, transportando ao ombro um saco desportivo de cor escura e na mão direita um saco branco.

41. À espera do ofendido, no interior do Aeroporto Internacional de Faro, encontrava-se o arguido AA, o qual, no momento da chegada do DD, se deslocou para um café, onde pediu cafés para ambos, ficando os dois durante alguns minutos à conversa.

42. O arguido AA disse então a DD que iria levá-lo a uma vivenda onde pernoitaria e transportou-o, na sua carrinha de marca Ford (modelo Transit), para a vivenda sita em S… F… (A… – Boliqueime – Loulé), arrendada pelo arguido CC.

43. A casa referida é uma vivenda no interior algarvio, num local rural e ermo, com terreno privado na sua periferia, ladeado por um muro de alvenaria, numa zona com vivendas isoladas e sem vizinhança próxima.

44. Chegados à residência, o arguido AA, juntamente com os indivíduos referidos, estes encapuzados com gorros pretos, sendo um deles o co-arguido BB, de imediato imobilizaram DD, amarraram-lhe as mãos e os pés e prenderam-no a uma palete de madeira, desta forma o privando da sua liberdade.

45. Seguidamente, cortaram-lhe as roupas e puseram-no completamente nu, vendaram-lhe ainda os olhos, enquanto o iam agredindo corporalmente, com socos e pontapés por todo o corpo.

46. O arguido AA e seus companheiros, depois de, pela forma descrita, terem posto o DD na situação de impossibilidade de lhes opor qualquer resistência, de imediato retiraram os diversos pertences que o mesmo trazia consigo, contra a sua vontade, designadamente um telemóvel e uma máquina fotográfica e peças de ouro.

47. Objectos estes aos quais o ofendido atribui o valor global de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros).

48. De seguida, os arguidos AA, BB e seus companheiros, submeteram DD a actos de tortura, queimando-o com cigarros, líquidos efervescentes e com a ponta de um maçarico, tendo-lhe infligido fortes dores.

49. Enquanto estes actos iam sendo praticados, os arguidos AA, BB e seus companheiros, iam-se rindo às gargalhadas, enquanto fotografavam e filmavam o sofrimento do DD, fazendo chacota da situação em que o mesmo se encontrava.

50. Em determinado momento, o arguido AA colocou uma abraçadeira à volta dos testículos de DD e apertou-a até não conseguir mais, provocando-lhe dores muito intensas.

51. Ainda assim, não satisfeito com as dores causadas por esta forma e com um movimento abrupto, o arguido AA voltou a apertar a abraçadeira até ouvir mais dois clics, causando a DD dores de tal forma intensas que quase o fizeram perder os sentidos.

52. O arguido AA e seus companheiros agrediram então DD com um bastão.

53. Sendo que, a determinado momento disseram a DD, em língua inglesa ”O bastão está três polegadas pelo teu cú acima”.

54. O arguido AA e seus companheiros queimaram então o pénis e as nádegas de DD com a ponta de um cigarro.

55. Através do uso de um martelo e de uma cavilha, o arguido AA, após dizer que ia mostrar aos restantes como se fazia, trespassou os dorsos das mãos e dos pés de DD.

56. Obrigaram de seguida DD a sentar-se, amarrado e pregado às paletes de madeira, numa cadeira de lona, a cujos braços amarraram as mãos dele, enquanto os pés eram amarrados um ao outro. De seguida, arrastaram-no para uma casa de banho e introduziram-lhe os pés dentro de uma banheira.

57. Neste momento, o arguido BB aproximou-se de DD e disse-lhe, em língua inglesa, “o J… saiu pelo que agora eu posso fazer o que quiser… Eu estive no exército.”

58. De seguida, o arguido BB começou a queimar a orelha esquerda de DD com a chama de um isqueiro.

59. Cerca de 10 minutos depois, o arguido AA regressou, altura em que um dos indivíduos de nacionalidade britânica começou a apertar o dedo mindinho do pé direito de DD com um alicate de corte de ferro. O arguido AA disse então, em língua inglesa, “Eu mostro-vos como se faz” e, fazendo uso do referido alicate de corte de ferro, decepou-lhe, sucessivamente, os dedos mindinhos do pé direito e do pé esquerdo.

60. Acto contínuo, sempre animado do intuito de fazer sofrer DD, o arguido AA, fazendo uso de um x-acto, decepou-lhe a orelha direita e, novamente com recurso ao alicate de corte de ferro, amputou-lhe o dedo anelar da mão esquerda, onde DD tinha a aliança do seu casamento com D… A… H… e já com o dedo decepado na mão, no qual se encontrava colocada a aliança de casamento de DD, o arguido AA disse, em língua inglesa “Isto é para a …”, referindo-se à mulher do ofendido.

61. O arguido AA martelou então os joelhos de DD e cortou-lhe quase na totalidade o tendão de Aquiles, após o que este arguido e seus companheiros lhe entornaram produtos químicos sobre as feridas, o que avivou ainda mais as fortes dores já sentidas.

62. Após todas estas mutilações, o arguido AA começou a procurar tirar a abraçadeira dos testículos de DD, o que apenas conseguiu depois de a cortar, atendendo à força com que a tinha apertado.

63. Algumas horas depois, os arguidos AA e BB e os outros indivíduos não identificados, deixaram DD na habitação, ficando a guardá-lo M... C..., o qual acabou por retirar a venda dos olhos de DD.

64. Por força das agressões e mutilações de que foi alvo, supra descritas, DD começou a esvair-se em sangue, tendo sido necessário o recurso a avultadas quantidades de papel e lençóis para estancar as hemorragias.

65. No dia seguinte, 07/10/2010, pelas 15h30m, o arguido AA deslocou-se ao Centro Comercial Fórum Montijo, de onde efectuou uma chamada telefónica, através do posto fixo nº xxxxxxxx (correspondente a uma cabine telefónica localizada no Centro Comercial Fórum Montijo) para a D… A… H…, mulher de DD, a quem disse que tinha agredido o seu marido, designadamente que lhe tinha partido os pés, pernas e braços, afirmando-lhe então que ela não poderia falar com o marido, porquanto este se encontrava fechado numa jaula, nos bosques, acrescentando que DD se encontrava inanimado porque tinha os pés, os tornozelos, as pernas, os braços e as costelas partidos. O arguido AA, na altura, fez ainda um aviso, dizendo a D… H… que, caso as autoridades policiais fossem alertadas, DD seria abatido.

66. Depois de regressar à habitação onde se encontrava fechado DD, o arguido AA disse-lhe que já tinha falado com D…, acabando por lhe dar, na altura, uma bebida, de natureza não apurada, a qual provocou no ofendido dolorosas alucinações.

67. Alguns dias depois, a 12/10/2010, o arguido CC, bem como o arguido R… R…, dirigiram-se à residência onde se mantinha preso DD.

68. Nessa ocasião, estando vendado e amarrado DD, foi-lhe dito que iria ser levado para um hotel em Lisboa, o que não correspondia à verdade, uma vez que, obedecendo a ordens dadas pelo arguido AA, de pôr termo à vida de DD e fazerem desaparecer o seu corpo, o arguido CC e M... C... introduziram DD no banco traseiro do veículo Mercedes CLK (com a matrícula inglesa xxxxx), utilizado pelo arguido CC e por este disponibilizado para o efeito, no interior do qual estava o arguido R… R….

69. O arguido CC conduzia a viatura e o arguido R... R... seguiu ao seu lado, no lugar do pendura, enquanto M... C... entrou para o banco traseiro, sentando-se ao lado de DD que ali foi colocado.

70. Dirigiram-se então para a zona da barragem de Santa Clara, no Alentejo, fazendo o percurso, durante cerca de 30 minutos por estradas secundárias e, depois, em estradas de terra batida, vias estas cheias de solavancos e com subidas e descidas muito íngremes.

71. Cerca de uma hora depois de circularem nas estradas de terra batida, M... C... e o arguido CC recolheram uma tampa de betão, com cerca de 30 quilos de peso, pertencente ao sistema de bombagem da Barragem de Santa Clara, a qual introduziram na bagageira da viatura, tendo dito a DD, na altura, que se tratava de um ornamento de jardim e que mais tarde lho iriam mostrar.

72. Na realidade, a tampa destinava-se a ser presa ao corpo de DD quando o atirassem, depois de lhe terem posto termo à vida, como tinham projectado fazer na altura, para dentro da albufeira da Barragem de Santa Clara, para fazer com que o corpo se afundasse nas águas.

73. Nessas alturas, em conversa telefónica mantida com o arguido AA pelo referido M... C... – através do telemóvel nº xxxxxxxx, pertencente ao arguido CC –, o arguido AA foi dando as instruções sobre os procedimentos a tomar, de pôr termo à vida de DD por afogamento na barragem, dizendo-lhe “Eu sei o que estás a dizer, mas tens de ir pelas estradas secundárias, companheiro. Só há duas hipóteses... ou o fazes agora... ou fá-lo desaparecer...” e depois de o arguido AA repetir “ou o fazes agora ou tens de o fazer desaparecer...”, o mesmo M... C... disse “Portanto... vai nadar...?”, ao que o arguido AA respondeu “Quanto mais depressa, melhor, companheiro...”.

74. Já nas imediações da Barragem de Santa Clara (num local denominado Barranco do Bufo) e depois de terem efectuado uma subida muito íngreme, iniciaram uma descida de forte inclinação, acabando o veículo por ficar imobilizado num local de onde não conseguiu o arguido que o conduzia, CC, fazê-lo sair pelos próprios meios.

75. Nesta altura, saíram todos da viatura, levando consigo DD, e o arguido CC provocou o incêndio do veículo, regressando todos à estrada de alcatrão, em Santana da Serra, a pé.

76. A circunstância de não terem conseguido retirar a viatura do local levou a que ficasse sem efeito o projecto de pôr ali termo à vida de DD, por recearem os arguidos e M... C... que se viesse a fazer ligação da eventual descoberta do corpo da vítima à viatura e ao arguido CC, bem como aos restantes arguidos.

77. No percurso, o arguido CC telefonou então para o arguido W… Q…, seu tio, e solicitou-lhe que os fossem buscar, pedido que foi atendido por este último, tendo comparecido na zona de Santana da Serra ao volante da sua viatura de marca Jaguar (modelo Daimler, com a matrícula inglesa xxxxxxxx).

78. Cerca das 03h30m, já do dia 13/10/2011, enquanto os arguidos CC, W... Q... e R... R... se deslocaram para as respectivas residências, deixaram DD e M... C..., o qual estava encarregue da sua guarda e vigilância, na vivenda de S… F….

79. O arguido AA, enquanto ocorriam os factos supra descritos, manteve sempre o contacto com M... C... e com o arguido CC, reiterando a sua vontade de que os mesmos pusessem termo à vida de DD.

80. Entretanto, no dia 15/10/2010, os arguidos AA, BB, CC e R... R..., na sequência de uma operação levada a cabo pela PJ-UNCT, vieram a ser detidos e apresentados em juízo, tendo sido aplicada a cada um deles, em primeiro interrogatório judicial de arguido detido, a medida de coacção de prisão preventiva.

81. Com efeito, os arguidos CC, BB e R... R... vieram a ser localizados e detidos pela Polícia Judiciária, no dia 15 de Outubro de 2010, na residência sita no Barrocal – São Bartolomeu de Messines, denominada V… V… do V…, ocupada pelo primeiro.

82. Procedeu-se, na altura, também à apreensão da viatura de marca Ford (modelo Escort e matrícula xx-xx-xx) na qual estes arguidos se haviam transportado até à residência, bem como e, designadamente, dos seguintes objectos, para alem dos referidos supra, nos pontos 20 e 26:

• Um telemóvel com o IMEI xxxxxxxx que tinha introduzido o cartão SIM (com a referência xxxx) que corresponde ao contacto xxxxxxxxx, encontrado no hall de entrada;

• Um telemóvel com o IMEI xxxxxxxx que tinha introduzido o cartão SIM correspondente ao contacto xxxxxxxx, encontrado no quarto do arguido CC;

• Um cartão SIM com a referência xxxxxxx, que corresponde ao contacto xxxxxxxxx, encontrado no quarto do arguido CC;

• Os documentos da viatura Mercedes CLK (com a matrícula xxxxxx) encontrado dentro de um saco do lixo.

83. Ao arguido R... R... foi encontrado e apreendido dinheiro, no montante de € 315,00.

84. Nos dias 21 e 22/10/2010 foi dado cumprimento ao Mandado de Busca emitido para a residência onde o ofendido DD esteve privado da sua liberdade e onde ocorreram as agressões e torturas de que foi alvo, sita em S… F… – Boliqueime, nela tendo sido encontrados e apreendidos, designadamente, os seguintes objectos:

• Um par de boxers de cor preta, completamente danificados por acção de um objecto cortante e correspondendo à descrição dos acontecimentos feita por DD;

• Um cinto em pele de cor preta, danificado por acção de objecto cortante e correspondendo à descrição dos acontecimentos feita por DD;

• Documentos em nome de “W… J… J… Q…”, “C… M”, “Mr. J. R…”, “J… D…” e “Mr. R… R…”;

• Uma tabela de marés com o nº xxxxxxx manuscrito (contacto que está registado na agenda telefónica do cartão com nº xxxxxxxxx, pertencente ao arguido BB);

• Um saco, contendo diversos pedaços de madeira consumida pelo fogo (carbonizada), pedaços de peças de roupa queimadas e três telemóveis também queimados, pertencentes a DD;

• Um rolo de fita adesiva castanha;

• Uma bracelete metálica de um relógio da marca Lorus, pertencente a DD;

• Uma cadeira de lona, contendo ainda diversos pedaços de fita adesiva e correspondendo à descrição dos acontecimentos feita por DD;

• Diversas abraçadeiras plásticas, umas por estrear outras já usadas e cortadas e algumas ensanguentadas, as quais serviram para manietar e torturar DD;

• Diversos lençóis, resguardos e toalhas cobertas de sangue de DD;

• Um pedaço de tecido em xadrez preto e branco, com vestígios de sangue e do padrão correspondente à camisa que DD vestia à data da chegada a Faro;

• Um gorro passa-montanhas, com vestígios biológicos do arguido BB.

85. No dia 17/10/2010, após ter estado com o referido “P...” em Albufeira, M... C..., sabendo das detenções dos arguidos e por recear a acção das autoridades, acabou por abandonar a residência de S… F…, assim soltando DD que, no entanto, esgotado e fragilizado pela dor e sofrimento, ainda ali permaneceu até ao dia seguinte.

86. Com efeito, só na manhã do dia seguinte, 18/10/2010, ao raiar do dia, DD, subalimentado e sob grande sofrimento por força das agressões, torturas e amputações de que fora alvo, conseguiu abandonar a residência de S… F…, arrastando-se ao longo da estrada, até ser encontrado por C… M… F… P…, na mesma manhã, pelas 09h30m.

87. Como causa directa e necessária das agressões de que foi alvo, DD sofreu as seguintes lesões, examinadas 12 dias depois da data em que as sofreu:

- Equimose verde-acastanhada, na face anterior do escroto (compatível com a colocação de braçadeira à volta dos testículos);

- Escoriação linear na face anterior do escroto, horizontal, que mede 5 cm de comprimento (compatível com a colocação de braçadeira à volta dos testículos);

- Escoriações no joelho esquerdo, arredondada, com 1,5 cm de diâmetro (compatível com marteladas desferidas nos joelhos);

- Escoriações no joelho direito, de maior eixo vertical, ovalada, com 3 cm x 2 cm (compatível com marteladas desferidas nos joelhos);

- Amputação do pavilhão auricular direito e da região retroauricular direita, com secção completa da hélix, do tragus e do lóbulo, com placa amarelada sobre a região retroauricular;

- Amputação do 4º dedo da mão esquerda, a nível da extremidade proximal da falange proximal, com exposição óssea de superfície irregular e acima do nível da solução de continuidade cutânea;

- Amputação do 5º dedo do pé esquerdo, a nível da extremidade proximal da falange proximal, com exposição óssea de superfície irregular e acima do nível da solução de continuidade cutânea e de bordos ligeiramente tumefactos e hiperemiados;

- Amputação do 5º dedo do pé direito, a nível da extremidade proximal da falange proximal, com exposição óssea de superfície irregular e acima do nível da solução de continuidade cutânea;

- Ferida incisa na extremidade distal da face posterior da perna esquerda, de bordos lineares, com diastase de 1cm, apresentando um fundo com tecido de granulação e áreas amareladas, de maior eixo oblíquo para baixo e para a esquerda, que mede 7cm de comprimento (compatível corte na zona do tendão de Aquíles);

- Duas feridas perfurantes, punctiformes, transfixivas do dorso da mão esquerda, cobertas por crosta (compatíveis com pregos espetados nas mãos e pés);

- Duas feridas perfurantes, punctiformes, transfixivas do dorso da mão direita, cobertas por crosta (compatíveis com pregos espetados nas mãos e pés);

- Duas feridas perfurantes, punctiformes, transfixivas do dorso do pé esquerdo, cobertas por crosta (compatíveis com pregos espetados nas mãos e pés);

- Duas feridas perfurantes, punctiformes, transfixivas do dorso do pé direito, cobertas por crosta (compatíveis com pregos espetados nas mãos e pés);

- Queimadura térmica irregularmente ovalada, na região sagrada e no sulco internadegueiro, de maior eixo ligeiramente oblíquo para baixo e para a esquerda, que mede 12 cm x 5 cm (compatível com queimaduras provocadas por liquido em ebulição);

- Queimadura térmica circunferencial, na região nadegueira esquerda, com zona central poupada e halo perifocal avermelhado, com 0,4 cm de largura e diâmetro máximo de 3 cm (compatível com queimaduras provocadas pela boca de um maçarico);

- Queimadura térmica circunferencial, na região nadegueira direita, com zona central poupada e halo perifocal avermelhado, com 0,4 cm de largura e diâmetro máximo de 3 cm (compatível com queimaduras provocadas pela boca do maçarico);

- Queimadura térmica circunferencial, na face posterior da extremidade distal da coxa direita, com zona central poupada e halo perifocal avermelhado, com 0,4 cm de largura e diâmetro máximo de 3 cm (compatível com queimaduras provocadas pela boca do maçarico);

- Queimadura térmica redonda, na face dorsal do pénis, que mede 1 cm de diâmetro (compatível com queimaduras de cigarros no pénis).

88. Tais lesões, conforme se conclui no Relatório do Exame Médico-Legal:

• foram causadas por traumatismos de natureza contundente, corto-contundente, cortante, perfurante e física (compatíveis com acção de calor/fogo/líquido em ebulição/metal ao rubro);

• configuram o conceito de desfiguração grave e permanente (amputação de orelha direita, amputação de dedo da mão esquerda e de dois dedos dos pés), sendo, cumulativamente, susceptíveis de afectarem, de maneira grave, as capacidades de utilização do corpo e, inerentemente, a capacidade de trabalho;

• devido à multiplicidade de lesões infligidas e de instrumentos utilizados e a gravidade das sequelas resultantes, houve, em conclusão, uma clara intenção de marcar (sic) a vítima.

89. Os arguidos quiseram e participaram, cada um com o seu contributo, nos factos.

90. Sob a orientação e ordens do arguido AA, em todas estas acções levadas a cabo contra DD, quer no sentido de ser este privado da sua liberdade durante 13 dias, despojado dos seus haveres, quer enquanto agredido corporalmente e torturado, M... C..., os indivíduos não aqui identificados e o arguido BB participaram e auxiliaram de forma determinante a acção daquele.

            91. Ainda sob a orientação e ordens do arguido AA, em momento posterior, tendo aquele decidido matar DD, o arguido CC aderiu a esse plano, muito embora dele viesse a desistir já na Barragem de Santa Clara quando se verificou a perda do veículo em que se transportavam.

92. A morte de DD, nessa altura, apenas não se verificou pelo facto de se ter perdido o transporte conduzido pelo arguido CC e, posteriormente a isso, porque a intervenção da Polícia Judiciária – UNCT criou sucessivos embaraços à determinação do arguido AA que culminaram com a fuga de M... C... que, por seu lado, permitiu a libertação de DD e a detenção dos arguidos.

93. O arguido AA, com o acordo de M... C..., do arguido BB e juntamente com outros indivíduos de identidade não apurada, dolosamente e de forma concertada, a partir da noite de 05 para 06/10/2010, agrediram fisicamente o corpo do ofendido DD, perpetrando-lhe diversos socos, pontapés, marteladas no joelhos, sendo ainda fisicamente torturado com queimaduras provocadas por cigarros (inclusive no pénis), por líquido a ferver, com a boca de um maçarico e com um isqueiro e crucificado com pregos espetados nos pés e mãos, mutilado através da amputação de dois dedos dos pés, de um dedo das mãos e de uma orelha, do corte do tendão de Aquiles, bem como do aperto dos testículos por intermédio de uma abraçadeira.

94. Agiram todos estes arguidos, nas respectivas condutas, de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo serem as mesmas proibidas e puníveis por lei.

95. O arguido AA sabia ainda que não podia deter consigo, nas condições descritas acima a espingarda caçadeira de calibre 12 m/m e a respectiva munição.

96. Já após a detenção dos arguidos, o arguido CC decidiu prestar algumas informações à PJ, exigindo que tais contributos não ficassem documentados no processo, desde logo conduzindo-os à referida fábrica de Q... S... G... – Montijo e, posteriormente, ao local onde estava estacionada a carrinha Chrysler verde, bem como às imediações da casa de S. F….

O arguido AA é oriundo de um agregado familiar com poucos recursos económicos, mas coeso e afectivo, mantendo-se com a mãe após a separação dos pais e tendo posteriormente abandonado a mesma para viver com a namorada.

Concluiu o ensino secundário e frequentou escola politécnica e formação adicional em carpintaria. Profissionalmente exerceu várias tarefas, como manobrador de máquinas e mergulhador, mas também fez trabalhos em ferro-velho, reciclagem e revenda de peças de automóveis.

Viveu no Reino Unido, no México e Malawi, bem como em Espanha e França.

Alterou o nome de nascimento para AA.

Tem companheira e filhos menores de idade.

Tem antecedentes criminais averbados em Portugal.

O arguido BB é oriundo de um agregado familiar com poucos recursos económicos, mas coeso e afectivo.

Concluiu o ensino secundário e ingressou no serviço militar prolongando-o por cinco anos.

Teve um relacionamento afectivo de dez anos com uma companheira, de quem tem dois filhos biológicos e um adoptado, hoje já adultos e autónomos.

Desenvolveu actividades de vendedor e consultor em empresa de serviços de vigilância.

Viveu no Reino Unido, Espanha, Holanda, Dinamarca e França, bem como em África – Marrocos e Senegal.

Não tem antecedentes criminais averbados em Portugal, muito embora o IRS tenha apurado envolvimento com o sistema judiciário no Reino Unido e em Espanha.

Apreciando:

1. Critérios de recorribilidade:

Nos termos do artº 400º, nº 1, alínea f), do CPP, «não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos».

Por aplicação desta norma, nos casos de julgamento por vários crimes em concurso em que, em 1ª instância, por algum ou alguns ou só em cúmulo jurídico haja sido imposta pena superior a 8 anos de prisão e por outros a pena aplicada não seja superior a essa medida, sendo a condenação confirmada pela Relação, o recurso da decisão desta para o Supremo Tribunal de Justiça só é admissível no que se refere aos crimes pelos quais foi aplicada pena superior a 8 anos de prisão e à operação de determinação da pena única, não o sendo no respeitante a cada um dos crimes pelos quais foi aplicada pena de prisão não superior a 8 anos. A irrecorribilidade prevista nessa norma afere-se separadamente, por referência às penas singulares e à pena aplicada em cúmulo, porque, no caso de concurso de crimes, pena aplicada é tanto a pena singularmente imposta por cada crime como a pena única. É neste sentido que o Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo (cf., por exemplo, acórdãos de 07/05/2009, CJ, Acórdãos do STJ, Ano XVII, Tomo II, pág. 193; de 12/11/2009, proc. nº 200/06.0JAPTM; de 16/12/2010, proc. nº 893/05.5GASXL; de 19/01/2011, proc. nº 421/07.8PCAMD; de 04/05/2011, proc. nº 626/08.4GAILH; de 11/01/2012, proc. nº 158/08.0SVLSB; de 21/03/2012, proc. nº 303/09.9JDLSB, estes disponíveis em www.dgsi.pt.; e de 26/10/2011, CJ, Acórdãos do STJ, Ano XIX, Tomo III, pág. 198).

Outro entendimento nestes casos levaria a que, quando os vários crimes em concurso fossem apreciados na mesma decisão, poderiam ser reexaminadas em recurso as questões relativas aos ilícitos punidos singularmente com pena de prisão não superior a 8 anos, com confirmação da Relação, enquanto que isso estaria vedado num caso idêntico de concurso de conhecimento superveniente, sendo de questionar se aí não haveria violação do princípio da igualdade.

E o Tribunal Constitucional, em plenário, através do acórdão nº 186/2013, já decidiu «não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f) do nº 1 do artigo 400º do Código de Processo Penal, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objecto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão».

2. Recurso do arguido BB:

            2.1. Da parte do acórdão recorrido que não admite recurso:

Este arguido foi condenado em 1ª instância

-a 7 anos de prisão, pela prática de um crime de sequestro agravado, p. e. p. pelo artº 158º, nº s 1 e 2, alínea b), com referência ao artº 144º, alíneas a) e b), do CP;

            -a 9 anos de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artºs 144º, alínea a), e 145º, nºs 1, alínea b), e 2, com referência ao artº 132º, nº 2, alíneas d), e), h) e j), do CP;

            -a 7 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico agravado, p. e p. pelos artºs 21º, nº 1, e 24º, alínea c), do DL nº 15/93; e

            -em cúmulo jurídico, na pena única de 15 anos de prisão.

            Essa decisão foi confirmada pela Relação, mas com alteração da qualificação jurídica no que se refere ao sequestro, que foi considerado agravado pela via da alínea a), e não da alínea b), do nº 2 do artº 158º do CP.

            Assim, o acórdão da Relação é confirmatório da decisão de 1ª instância, com excepção do que se refere ao crime de sequestro.

            Deste modo, em face do que acima se disse, relativamente ao crime de tráfico agravado, punido com pena de prisão não superior a 8 anos, a decisão da Relação não é recorrível.

            Por essa razão, não se toma conhecimento das questões relacionadas com esse crime de tráfico, ficando para apreciação apenas as que digam respeito ao crime de ofensa à integridade física qualificada, punido com pena de prisão superior a 8 anos, ao crime de sequestro, relativamente ao qual a decisão recorrida não é confirmatória, e à determinação da pena única.

            2.1.1. Entre as questões de que assim se não conhece estão desde logo aquelas a que se reportam as conclusões 1 a 6, que têm a ver unicamente com o crime de tráfico.

            2.1.2. Estão no mesmo caso as questões a que se referem as conclusões 7 a 18, relativas à validade da prova obtida através de diligência realizada na Q... S... G.... Como este local está relacionado apenas com o crime de tráfico, nesta parte só pode estar em causa esse crime. Nem outro será o entendimento do recorrente, em face do teor da conclusão 14.

            2.1.3. Não se conhece ainda das questões resumidas nas conclusões 38 a 52, relacionadas também e só com o crime de tráfico.

            2.1.4. Na parte do recurso delimitada pelas conclusões 53 a 61 insurge-se contra a decisão de considerar provada a sua participação nos factos tidos como integradores dos crimes de sequestro e de ofensa à integridade física qualificada, falando em violação do princípio in dubio pro reo e erro notório na apreciação da prova. Nessas alegações expressa-se discordância relativamente à decisão proferida sobre matéria de facto.

Mas o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista, conhece exclusivamente sobre matéria de direito, nos termos do artº 434º do CPP.

Se nesse preceito se contempla a possibilidade de o Supremo Tribunal de Justiça declarar a existência dos vícios previstos no nº 2 do artº 410º, isso é só nos casos em que o recurso vise exclusivamente o reexame da matéria de direito, ou seja, quando esses vícios não são invocados como fundamento do recurso, pois, se o forem, o recurso não visa exclusivamente o reexame da matéria de direito. Efectivamente, a alegação da verificação dos vícios do nº 2 do artº 410º representa uma das formas, a mais restrita, de impugnar a decisão proferida sobre matéria de facto, sendo a mais ampla a prevista no art. 412º, nºs 3 e 4. Por outras palavras, o Supremo Tribunal de Justiça, visando o recurso para ele interposto «exclusivamente o reexame da matéria de direito», como, por exemplo, a qualificação jurídica dos factos provados ou a medida da pena, deparando-se com qualquer dos vícios do nº 2 do artº 410º que inviabilize a correcta decisão de direito, não está impedido de afirmar oficiosamente a sua verificação, e deve fazê-lo, tirando as devidas consequências, ou seja, decretando o reenvio do processo para novo julgamento, por lhe estar vedado decidir sobre a matéria de facto. É neste sentido que o Supremo vem uniformemente interpretando o artº 434º (v., por exemplo, os acórdãos de 08/02/2007, no processo nº 07P159, de 15/02/2007, no processo nº 07P015, de 08/03/2007, no processo nº 07P447, de 15/03/2007, no processo nº 07P663, de 29/03/2007, no processo nº 07P339, de 27/05/2009, no processo nº 05P0145, de 17/09/2009, no processo nº 169/07.3GCBNV, de 14/10/2009, no processo nº 101/08.7PAABT, de 13/01/2010, no processo nº 274/08.9JASTB, de 24/02/2010, no processo nº 3/05.9GFMTS, e de 07/04/2010, no processo nº 2792/05.1TDLSB, todos disponíveis em www.dgsi.pt).

E se a alegação da violação do princípio in dubio pro reo constitui, em certa perspectiva, uma verdadeira questão de direito, quando se pretende que da decisão recorrida resulta que o tribunal se deparou com uma dúvida insanável acerca da verificação de um ou mais factos, resolvendo-a contra o arguido, no caso, não é essa a situação alegada nem a que se verifica. O que o recorrente diz é que, perante a prova produzida, o tribunal devia ter ficado na dúvida em relação a determinados factos e, em consequência, devia tê-los considerado não provados. Nessa alegação suscita-se uma pura questão de facto, que é a de saber se a prova produzida é ou não suficiente para dar como provados os ditos factos, a qual, por isso, está fora dos poderes de cognição do Supremo.

Sendo assim, também não se conhece destas questões.

            2.2. Da alegada nulidade da prova obtida por reconhecimento:

Um dos meios de prova em que o tribunal de 1ª instância se baseou para dar como provada a participação deste arguido nos factos que tiveram lugar na vivenda identificada no facto nº 42, local da prática dos crimes de sequestro agravado e ofensa à integridade física qualificada, foi o reconhecimento da sua voz por parte do ofendido.

            Diz o recorrente que, para o reconhecimento valer como prova, tinha de ser observado o formalismo previsto no nº 2 do artº 147º do CPP, o que, em seu entender, exigia que o acto tivesse lugar na sua presença. Como isso não aconteceu, o reconhecimento efectuado não pode valer como prova, nos termos do nº 7 do artº 147º.

            Tendo a Relação desatendido essa sua pretensão, o arguido insiste que houve violação do formalismo previsto no nº 2 do artº 147º, pois a prova por reconhecimento, mesmo por fotografia, filme ou gravação, tem sempre “subjacente o elemento presencialidade”, pelo que a gravação das vozes, quer a sua quer as das outras duas pessoas que consigo apresentariam semelhanças teria de ser feita na sua presença.

            Na sua decisão, a Relação considerou que, uma vez que se tratava de um “reconhecimento de voz que foi previamente gravada, e não de um reconhecimento de pessoa na verdadeira acepção”, ao “reconhecimento de voz” não tinha que seguir-se um “reconhecimento presencial”.

            O recorrente aceita esse modo de ver, dizendo: “Em momento algum defendeu que ao reconhecimento de voz se tenha de seguir um reconhecimento presencial”. O que defende é que, “sendo o reconhecimento vocal uma modalidade particular da prova por reconhecimento, haverá que adaptar a este meio de obtenção de prova os requisitos do formalismo do nº 2 do art. 147º do CPP”, o que, no caso, para ser conseguido, exigia que a gravação das vozes, quer a sua quer as das outras duas pessoas que consigo apresentariam semelhanças fosse feita na sua presença. E que, de imediato, sempre na presença do recorrente, a gravação fosse exibida ao ofendido, para efeitos de reconhecimento.

            O recorrente não discorda, pois, da decisão recorrida no ponto em que considera que o que estava em causa não era o reconhecimento da sua pessoa através dos seus sinais ou características visíveis, mas apenas o reconhecimento da sua voz. E que por isso não havia que colocar o recorrente ao lado de duas outras pessoas que com ele apresentassem as maiores semelhanças possíveis, nos termos referidos no nº 2 do artº 147º. Em seu entender, esta disposição seria aplicável ao caso, com as devidas adaptações. Adaptada ao caso, a norma exigiria a presença do recorrente no momento da gravação das vozes, a sua e a das outras duas pessoas, e da exibição dessa gravação ao recorrente.

            Não está, assim, em discussão, o facto de não ter havido o reconhecimento presencial previsto no nº 2 do artº 147º, aceitando o recorrente que, como a Relação decidiu, o reconhecimento tinha unicamente como objecto a sua voz, sem que houvesse lugar a uma operação de comparação visual da sua pessoa com outras duas que consigo apresentassem as maiores semelhanças possíveis nesse aspecto.

            Até porque esse tipo de reconhecimento não era viável, na medida em que o ofendido nunca disse que viu o recorrente, mas apenas que ouviu a sua voz, o que se explica por estar de olhos vendados.

            O que há, pois, a decidir (é só isso que está em discussão) é se, não obstante não ter lugar no caso o reconhecimento do arguido por comparação dos seus sinais visíveis com os de outras pessoas (foi o que decidiu a Relação, com o acordo do recorrente), ainda assim era exigida a sua presença na operação de reconhecimento, unicamente pela voz.

            E não era.

            No entender do recorrente, a sua presença era obrigatória no acto da gravação da sua voz e da de duas outras pessoas que consigo apresentassem semelhança, bem como na sua imediata exibição ao ofendido.

            Não se percebe com que utilidade. Para efeito de comparação das suas características visíveis com as de outras pessoas (razão de ser da exigência da presença da pessoa a reconhecer nas circunstâncias previstas no nº 2 do artº 147º), não era, pois a Relação, com o acordo do recorrente, decidiu que não havia lugar a esse procedimento.

            O recorrente pretende que a lei exige em casos como este a presença da pessoa a reconhecer para evitar qualquer tipo de viciação deste meio de prova. E que, neste caso,”tendo as vozes das pessoas que apresentavam semelhanças sido recolhidas em momento anterior ao da realização da diligência, não há como garantir que as mesmas não tenham sido exibidas ao ofendido antes do dia a que este procedeu ao reconhecimento”.

            Mas, para evitar qualquer possibilidade de viciação, como a referida pelo recorrente, não se tornava necessária a presença do recorrente. Era suficiente a presença do defensor.

Se se pretende que a necessidade da presença da pessoa a reconhecer resulta do facto de terem de decorrer no mesmo momento a gravação das vozes dessa pessoas e das outras duas que apresentem semelhanças, no caso essa coincidência não era possível, visto que, sendo o recorrente um cidadão do Reino Unido, com o sotaque próprio de uma determinada região desse país, era ali que se encontravam aquelas pessoas e tinha de se proceder, como procedeu, à gravação das respectivas vozes. Encontrando-se o recorrente e o ofendido em Portugal, só em momento posterior podia fazer-se o reconhecimento, por confronto de vozes, como sucedeu.

E, adquirido que, como decidiu a Relação e o recorrente aceita, no caso não havia lugar ao reconhecimento visual, mas apenas auditivo, não se vê que o facto de a gravação das vozes das pessoas que a esse nível apresentavam semelhanças com o recorrente não coincidir temporalmente com a gravação da voz deste último e com o reconhecimento por parte do ofendido seja suficiente para pôr em causa a validade deste meio de prova. A semelhança das vozes das outras duas pessoas com a do recorrente não é por ele negada, e não há nem se alega qualquer sinal de que a gravação das vozes que foram confrontadas com a do recorrente possa ter sido previamente exibida ao ofendido.

De qualquer modo, estando a razão de ser da exigência da presença da pessoa a reconhecer contida no nº 2 do artº 147º no facto de ela ser sujeita a comparação com outras duas, em relação, designadamente, às suas características que podem ser descritas visualmente, dessa norma, mesmo aplicada com as devidas adaptações ao reconhecimento de voz, não decorre a exigência de que coincidam no tempo a gravação das vozes da pessoa a reconhecer e das outras duas que apresentem semelhanças, com a imediata exibição das gravações ao ofendido, para efeitos de reconhecimento, nem, por essa via, da presença da pessoa a reconhecer.

Não procede, assim, esta pretensão do recorrente.

                                   

2.3. Da pretensa nulidade prevista no artº 120º, nº 2, alínea d), do CPP:

 Na sua contestação, o recorrente, pretendendo demonstrar a sua ausência do país em determinada data e portanto a impossibilidade de haver participado em factos ocorridos na vivenda referida no facto nº 42, onde foram praticados os crimes de ofensa à integridade física qualificada e sequestro agravado, requereu que se averiguasse junto da unidade hoteleira H… B… A…, sita em Espanha, se ele ali esteve e, em caso afirmativo, a indicação das datas de entrada e saída.

            Como informa a decisão recorrida, deferindo esse requerimento, o tribunal de 1ª instância proferiu despacho determinando que se oficiasse àquela entidade a solicitar informação sobre se o arguido aí esteve entre 6 e 13 de Outubro de 2010 e, em caso afirmativo, em que circunstâncias.

Nesse despacho, consignou-se ainda: «vai deferido este requerimento do arguido BB na medida em que as respostas ao mesmo sejam juntas ao processo até ao encerramento da restante prova e, caso não estejam, tomará o tribunal colectivo posição em conformidade oportunamente».

Posteriormente, o tribunal de 1ª instância solicitou à Polícia Judiciária que, por intermédio das autoridades espanholas, obtivesse daquela unidade hoteleira a pretendida informação.

Na sequência desse pedido, a Polícia Judiciária informou o tribunal de que a referida unidade hoteleira se encontrava encerrada, acrescentando que as autoridades espanholas desenvolviam diligências para localizar os responsáveis, de modo a possibilitar o acesso aos registos.

Até ao encerramento da discussão da causa, não chegou ao processo a pretendida informação.

No recurso para a Relação, o recorrente arguiu a nulidade de omissão de diligência essencial para a descoberta da verdade na fase de julgamento, prevista no artº 120º, nº 2, alínea d), do CPP.

A Relação desatendeu essa pretensão, considerando que o tribunal de 1ª instância usou de todos os meios disponíveis para obter a informação, não se podendo por isso falar de omissão de diligência.

No recurso para o Supremo, o arguido insiste que foi cometida a apontada nulidade, dizendo que o tribunal de 1ª instância não insistiu junto da Polícia Judiciária no sentido de saber-se que diligências foram feitas para a obtenção da informação. Acrescenta que, tendo o despacho que deferiu o pedido de informação àquela unidade hoteleira afirmado que, se não houvesse resposta até ao “encerramento da prova”, tomaria oportunamente posição em conformidade, aguardou que esse despacho fosse proferido, entendendo que, enquanto o não fosse, não havia que suscitar qualquer nulidade.

Deve dizer-se antes de mais que não houve, no caso, omissão por parte do tribunal de 1ª instância de qualquer diligência essencial à descoberta da verdade. O tribunal fez o que estava ao seu alcance. Pediu directamente a informação à unidade hoteleira. Não havendo resposta, solicitou à Policia Judiciária que, por intermédio das autoridades espanholas, diligenciasse no sentido de ser obtida a informação da unidade hoteleira. Insistiu com a Polícia Judiciaria, acabando esta por informar que essa unidade se encontrava encerrada, estando, apesar disso, as autoridades espanholas a desenvolver esforços para localizarem os responsáveis, com vista a poderem aceder aos registos e, assim, fornecer a informação pedida.

Não se vê o que mais podia ser feito. Não estava nas mãos do tribunal remover os obstáculos que se opunham à obtenção da informação: encerramento da unidade hoteleira e desconhecimento do local onde se encontravam os responsáveis.

De resto, nem se percebe qual a razão por que o arguido quis colocar sobre o tribunal o encargo de diligenciar pela obtenção da dita informação, quando não mostrou que não pudesse obtê-la pelos seus próprios meios.

De qualquer modo, a nulidade, se existisse, teria de ser arguida até ao encerramento da audiência.

Após esse encerramento, fora das situações previstas nos artºs 370º e 371º, que não estão em causa, não é admissível a junção de documentos, nos termos do artº 165º, nº 1, nem a produção de outra prova. O encerramento da audiência teve lugar em 28/06/2012, na sessão em que foram produzidas as alegações orais, foi cumprido o artº 361º, todos do CPP, e foi designado dia para a leitura do acórdão final, estando o recorrente presente.

Este, por isso, ficou nessa sessão de 28/06/2012 a saber que não se realizaria mais qualquer diligência no sentido da obtenção da requerida informação.

Logo, se nulidade houvesse, ela ocorreria na audiência. E, nos termos do artº 120º, nº 3, alínea a), do CPP [«As nulidades referidas nos números anteriores devem ser arguidas: Tratando-se de nulidade de acto a que o interessado assista, antes que o acto esteja terminado»], para poder ser conhecida, teria de ser arguida até ao termo desse acto, no qual o recorrente esteve presente.

Não tendo isso sido feito, a nulidade, se existisse, estaria sanada.

2.4. Do enquadramento jurídico do sequestro:

2.4.1. Nesta parte, diz o recorrente, em primeiro lugar, que no recurso para a Relação alegou que a consideração da ofensa à integridade física qualificada para agravar o sequestro e, simultaneamente, para integrar o crime de ofensa à integridade física qualificada, violava a proibição da dupla valoração. Conhecendo dessa alegação, a Relação decidiu que o sequestro era agravado pela via da alínea a), e não da alínea b), do nº 2 do artº 158º do CP, em face do que perdia razão a alegação do recorrente.

Ao assim proceder, porque o recorrente não suscitou qualquer questão de qualificação jurídica relativamente ao crime de sequestro, a Relação conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, razão pela qual a decisão recorrida enferma da nulidade prevista no artº 379º, nº 1, alínea c), aplicável por força do disposto no artº 425º, nº 4, ambos do CPP.

Trata-se de alegação claramente infundada, na medida em que a qualificação jurídica dos factos é de conhecimento oficioso, como já decidiu o acórdão de fixação de jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/95, publicado no DR, I série, de 06/07/1995 e está hoje previsto no artº 424º, nº 3, do CPP, onde se fala de uma alteração da qualificação jurídica «não conhecida do arguido».

Aliás, o recorrente reconhece isso mesmo, ao suscitar a questão de que a seguir se tratará.

2.4.2. Em segundo lugar, diz o recorrente que, se o tribunal decidir alterar oficiosamente a qualificação jurídica dos factos, tem de previamente comunicar a alteração ao arguido, nos termos do referido artº 423º, nº 3, sob pena de incorrer na nulidade prevista no artº 379º, nº 1, alínea b), aplicável por força do disposto no artº 425º, nº 4.

Não tendo a Relação dado oportunidade ao recorrente para, querendo, se pronunciar sobre a apontada alteração da qualificação jurídica no que se refere ao sequestro, a decisão recorrida enferma daquela nulidade.

Não tem razão.

Em primeiro lugar, em matéria de nulidades vigora o princípio da legalidade ou tipicidade, consagrado no artº 118º: «A violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei» (nº 1), sendo que quando «a lei não cominar a nulidade, o acto ilegal é irregular» (nº 2).

E em lado algum a lei classifica como nulidade a mera alteração da qualificação jurídica dos factos, sem prévia comunicação ao arguido. Nomeadamente, não o faz na alínea b) do nº 1 do artº 379º, aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, nos referidos termos do artº 425º, nº 4. A nulidade aí prevista refere-se à alteração dos factos: «É nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358º e 359º». A alteração da qualificação jurídica dos factos é uma realidade que se não identifica com qualquer tipo de alteração dos factos. A alteração jurídica dos factos e a alteração substancial ou não substancial dos factos são figuras autónomas, cada uma com a sua disciplina. Não é por isso correcta a afirmação do recorrente de que o artº 358º, nº 3, do CPP equipara a alteração da qualificação jurídica dos factos à alteração não substancial dos factos. Essa norma mais não faz do que estender, com as devidas adaptações («correspondentemente»),  à alteração da qualificação jurídica dos factos a disciplina prevista no nº 1 para assegurar o direito de defesa do arguido em face de uma alteração não substancial dos factos. Sem que as figuras se confundam. Se de equiparação se pode falar, é só nesse âmbito; não noutros domínios, designadamente em sede de consequências da não comunicação prévia da alteração ao arguido. Aí, o que constitui nulidade é, repete-se, «a condenação por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e condições previstos nos artigos 358º e 359º»; não a condenação pelos mesmos factos, mas com diversa subsunção jurídica. Outro entendimento colide com o princípio da legalidade.

Não estando prevista como nulidade, a alteração da qualificação jurídica, sem previamente se dar oportunidade ao arguido de, querendo, se pronunciar sobre a matéria, constitui mera irregularidade, a arguir no prazo de 3 dias a contar da notificação do acórdão da Relação, nos termos do artº 123º, nº 1, do CPP.

Considerando-se o recorrente notificado do acórdão da Relação em 01/07/2013, visto haver sido expedida em 26/06/2013 a carta registada para esse efeito, a arguição do vício no recurso para este Supremo Tribunal, interposto em 22/07/2013, é claramente extemporânea.

Por isso se vício houvesse, estaria sanado.

Mas não foi cometida neste ponto qualquer ilegalidade.

Nos termos do artº 424º, nº 3, a alteração da qualificação jurídica que exige a notificação aí prevista é a «não conhecida do arguido».

Ora, no caso, o sequestro já fora subsumido na previsão da alínea a) pela decisão instrutória, que a considerou preenchida, bem como à alínea b). E o tribunal de 1ª instância considerou estar preenchida essa alínea a), decidindo, porém, que para agravar o sequestro bastava a alínea b), sendo o facto integrador da alínea a) valorado em sede de medida da pena.

Havia, pois, a possibilidade de o sequestro vir a ser considerado agravado pela via da alínea a), cuja previsão a decisão de 1ª instância teve como preenchida, tendo mesmo valorado juridicamente o respectivo facto.

Não se pode assim dizer que a alteração da qualificação jurídica operada neste ponto pela Relação fosse desconhecida do arguido.

E por isso não havia que desencadear o procedimento previsto no nº 3 do artº 424º.

2.4.3. Em terceiro lugar, diz o recorrente, se bem se percebe, que a subsunção do sequestro na alínea b) do nº 2 do artº 158º do CP, feita pelo tribunal de 1ª instância, foi a que os factos imputados na pronúncia determinavam. Tendo a qualificativa da alínea a) sido valorada em sede determinação da pena, a Relação procedeu incorrectamente ao alterar do modo indicado a qualificação jurídica.

Os factos imputados ao recorrente na pronúncia preenchem sem qualquer dúvida a qualificativa da alínea a) [«… se a privação da liberdade: Durar mais de dois dias»], pois alegou-se ali que a privação da liberdade teve início na noite de 5 para 6 de Outubro de 2010 e termo em 17 do mesmo mês. E na qualificação jurídica dos factos feita nessa peça considerou-se o crime de sequestro agravado, além do mais, pela via dessa alínea a).

Por isso, tendo o facto sido dado como provado, não se vê onde possa estar o erro de direito apontado pelo recorrente na decisão de a Relação considerar o sequestro agravado em função dessa mesma alínea. A sua previsão ficou sem dúvida preenchida. E a Relação, como já se disse, podia oficiosamente alterar a qualificação jurídica dos factos.

A pretensão neste ponto do recorrente é insustentável. Como a circunstância da alínea b) se preenche «…se a privação da liberdade: For precedida ou acompanhada de ofensa à integridade física grave …», o sequestro deveria ser agravado em função dessa circunstância e, para não haver violação do princípio da proibição da dupla valoração, a ofensa à integridade física não poderia ser valorada para preencher o crime de ofensa física p. e p. pelos cartºs 144º, alínea a), e 145º, nºs 1, alínea b), e 2, com referência ao artº 132º, nº 2, alíneas d), e), h) e j), do CP, em onsequência do que deveria ser absolvido da acusação nesta parte.

Não estando nem podendo estar em causa que este crime foi preenchido, torna-se evidente que a correcto enquadramento jurídico dos factos é o feito pela Relação: O recorrente praticou efectivamente os crimes de sequestro e de ofensa à integridade física grave e qualificada, mas, para não haver dupla valoração, a ofensa física não pode funcionar como agravante do sequestro, que, porém, será agravado nos termos da alínea a) do nº 2 do artº 158º, que se verifica e foi imputada ao recorrente na decisão instrutória. É essa a única solução que assegura a defesa eficaz dos interesses protegidos.

2.4.4. Em quarto lugar, defende o recorrente que, a admitir-se a alteração da qualificação jurídica levada a cabo pela Relação, o facto de a circunstância da alínea a) do nº 2 do artº 158º do CP, passando a funcionar como agravante modificativa da pena aplicável, não poder ser valorada em sede de determinação da pena, esta deveria ser reduzida. Essa redução impunha-se mesmo, sob pena de violação da proibição de reformatio in pejus.

Neste ponto assiste razão ao recorrente.

Na verdade, se, nos termos do artº 409º, nº 1, do CPP, sendo interposto recurso apenas em favor do arguido, é proibido ao tribunal superior agravar a medida da pena, por identidade de razão, impõe-se a esse tribunal o seu desagravamento numa situação em que o tribunal de recurso altera a qualificação jurídica dos factos, afastando uma circunstância que influíra, em desfavor do arguido, na determinação da pena pelo tribunal recorrido. Na verdade, verificando-se que, se o tribunal recorrido houvesse aplicado o direito tal como o definiu o tribunal de recurso, teria fixado uma pena mais favorável ao arguido do que aquela que veio a fixar, num tal caso, a manutenção da pena pelo tribunal de recurso tem o mesmo alcance e significado que a sua agravação numa situação em que se mantêm, em recurso, inalterados os pressupostos de aplicação da pena definidos pelo tribunal recorrido (cf. neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 4ª edição actualizada, pág. 1074).

A correcção deste ponto da decisão recorrida será feita no momento em que se fizer a apreciação da pretensão de redução das penas.

2.5. Da medida das penas:

2.5.1. Nesta parte, e desconsiderando a referência feita ao crime de tráfico, relativamente ao qual o recurso, como se viu, não é admissível, o recorrente diz que

-a alteração em relação à circunstância qualificativa do sequestro, sendo que a circunstância desconsiderada pelo tribunal recorrido é mais grave do que a considerada, a pena aplicada por esse crime é manifestamente excessiva;

-a pena de 9 anos aplicada pelo crime de ofensa à integridade física qualificada é igualmente excessiva, pois o recorrente não pode ter participado nos respectivos factos até ao final, nomeadamente nos mais graves;

-as penas parcelares e única devem ser diminuídas a graduadas de acordo com a culpa manifestada.

2.5.2. Tem de começar por se apreciar a questão das penas singulares.

A determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita, de acordo com o disposto no artº 71º, em função da culpa e das exigências de prevenção, devendo atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, circunstâncias essas de que ali se faz uma enumeração exemplificativa e podem relevar pela via da culpa ou da prevenção.

À questão de saber de que modo e em que termos actuam a culpa e a prevenção responde o artº 40º, ao estabelecer, no nº 1, que «a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade» e, no nº 2, que «em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa».

Assim, a finalidade primária da pena é a de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, de reinserção do agente na comunidade. À culpa cabe a função de estabelecer um limite que não pode ser ultrapassado.

Na lição de Figueiredo Dias, a aplicação de uma pena visa acima de tudo o “restabelecimento da paz jurídica abalada pelo crime”. Uma tal finalidade identifica-se com a ideia da “prevenção geral positiva ou de integração” e dá “conteúdo ao princípio da necessidade da pena que o art. 18º, nº 2, da CRP consagra de forma paradigmática”.

Há uma “medida óptima de tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias que a pena se deve propor alcançar”, mas que não fornece ao juiz um quantum exacto de pena, pois “abaixo desse ponto óptimo ideal outros existirão em que aquela tutela é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena concreta aplicada se pode ainda situar sem perda da sua função primordial”.

Dentro desta moldura de prevenção geral, ou seja, “entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de medida da tutela dos bens jurídicos (ou de defesa do ordenamento jurídico)” actuam considerações de prevenção especial, que, em última instância, determinam a medida da pena. A medida da “necessidade de socialização do agente é, em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial”, mas, se o agente não se «revelar carente de socialização», tudo se resumirá, em termos de prevenção especial, em «conferir à pena uma função de suficiente advertência» (Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2007, páginas 79 a 82).

2.5.3. O crime de sequestro agravado é punível com pena de prisão de 2 a 10 anos.

A privação da liberdade do ofendido foi planeada com alguma antecedência entre o arguido e outros indivíduos, estando o recorrente e outros à sua espera, devidamente preparados, nomeadamente com o rosto coberto por capuzes para não serem reconhecidos, enquanto outro deles ia ao aeroporto esperar a vítima, para, sob engano, a conduzir ao local escolhido. Tratou-se, pois, de uma acção bem reflectida, com tempo, antes de ser executada, para o recorrente interiorizar o alcance e as possíveis consequências do acto projectado e deixar-se penetrar pelos contra-motivos ético-jurídicos que se lhe colocavam. Houve, pois, uma vontade muito firme de levar a cabo os factos, traduzindo dolo muito intenso.

O grau de ilicitude da sua conduta é o normal neste tipo de crime, na medida em que opera uma única circunstância qualificativa, que não se encontra entre as mais desvaliosas das previstas, ainda que a duração da privação da liberdade tenha ultrapassado em vários dias o período típico. A conduta mais grave ocorrida no âmbito da privação da liberdade releva no âmbito de outro crime.

A culpa nesta parte situa-se, assim, num nível médio, a permitir que a pena se aproxime do ponto intermédio da moldura penal.

A medida das exigências de prevenção geral é significativa, sem ser elevada, visto ser mediana intensidade da violação do bem jurídico protegido e estar-se perante crime já com algum impacto na comunidade, sem ser, porém, dos que mais intranquilidade geram. O mínimo de pena imprescindível ao restabelecimento da paz social situa-se, assim, bem acima do limite mínimo da moldura pena, mas muito mais próximo desse limite do que do máximo.

O nível das exigências de prevenção especial é mediano, porque, por um lado, a facilidade com que o arguido aderiu ao projecto criminoso, a vontade muito determinada de o levar avante e os cuidados tidos na sua preparação, como as cautelas adoptadas para evitar ser reconhecido, sinalizam uma personalidade pouco fiel ao direito e, por outro, não tem antecedentes criminais que possam relevar: em Portugal inexistem; no estrangeiro, ignora-se se existem. As necessidades de ressocialização assim configuradas impõem que a pena se fixe um pouco acima do mínimo exigido pela prevenção geral.

Ponderando estes dados, acha-se permitida pela culpa, necessária e suficiente para satisfazer as finalidades da punição a medida de 5 anos de prisão.

   

2.5.4. Relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada, foram consideradas verificadas as circunstâncias das alíneas d) [o agente «empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima»], e) [o agente «ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil»], h) [o «agente praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum»] e j) [o agente «agir com frieza de ânimo ou com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas»] do nº 2 do artº 132º do CP.

Sendo claras as razões pelas quais assim se decidiu relativamente às alíneas d), h) e j), o mesmo não acontece no que se refere à alínea e). Nesta parte, estando naturalmente excluídas as restantes hipóteses, por estranhas aos factos provados, a falta de esclarecimento leva a que não se saiba se se quis afirmar que o arguido foi determinado «pelo prazer de causar sofrimento» ou que foi determinado «por qualquer motivo torpe ou fútil».

Seja como for, por nenhuma dessa duas vias se pode ter como verificada essa circunstância.

Em relação à primeira, deve dizer-se que neste exemplo-padrão estão em causa os motivos do crime, exigindo-se uma especial motivação. Ora, sobre os motivos do crime apenas se provou que o co-arguido AA quis vingar-se do ofendido, devido a supostas dívida e traição, aderindo o arguido BB e outros a esse projecto de vingança. De acordo com o que ficou provado, a vontade de causar «sofrimento» à vítima foi o motivo, não do crime, mas do emprego dos métodos escolhidos para o executar: o arguido e os comparticipantes empregaram actos de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima. E esse facto preenche já a circunstância da alínea d).

No respeitante à segunda, não pode considerar-se que tenha havido motivo torpe ou fútil, figuras que, como ensina Figueiredo Dias, só se verificam quando «o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito» (cf. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, página 32). O desejo de vingança devido a supostas dívida e traição inclui-se entre os motivos normais de um crime contra a integridade física.

Têm-se, assim, como assentes apenas as qualificativas das alíneas d), h) e j), alterando-se neste ponto a qualificação jurídica dos factos, o que pode ser feito oficiosamente, como já se afirmou em 2.4.1.

A alteração não viola a proibição de reformatio in pejus, prevista no artº 409º, na medida em que favorece o arguido.

E não há que dar-lhe oportunidade de se pronunciar sobre a matéria, ao abrigo do disposto no artº 424º, nº 3, do CPP, visto que a eliminação de uma qualificativa não suscita qualquer questão em relação à qual tenha de se defender.

 

Este crime é punível com pena de prisão de 3 a 12 anos.

A única razão em que o recorrente fundamenta a pretensão de fixação da pena em medida inferior à decidida pelo tribunal de 1ª instância e pela Relação é de que não participou nos factos integradores deste crime até ao fim, designadamente nos mais graves, do que resultaria culpa diminuída.

Não é correcto esse ponto de vista.

Como resulta dos factos nºs 44 e 48 a 63, o recorrente esteve presente ao longo de todo o período em que ocorreram as agressões. E participou nelas no âmbito de uma decisão conjunta, em resultado do que a sua responsabilidade se estende à totalidade da actividade que foi desenvolvida sobre DD.

O dolo é muito intenso, pois houve uma vontade muito determinada de praticar os factos, como decorre do cuidado planeamento, e persistente, atenta a sucessão das agressões. Manifestação da vontade muito forte de levar por diante as agressões é a frase: “o J… saiu, pelo que agora eu posso fazer o que quiser … Eu estive no Exército”.

Por outro lado, a especial censurabilidade ou perversidade que, nos termos do nº 2 do artº 145º, qualifica a ofensa à integridade física grave do artº 144º, alínea a), ambos do CP decorre, não de uma, mas de três circunstâncias que a revelam, assumindo uma esse papel qualificador e relevando as restantes em sede de determinação da pena concreta.

Não tendo a decisão recorrida nem o tribunal de 1ª instância esclarecido este ponto, há que fazê-lo agora, elegendo para desempenhar a função qualificadora a circunstância da alínea j), a primeira que se verificou em termos cronológicos.

Nesta sede, há pois que dar relevo, para além do facto de o número dos agressores ter retirado qualquer possibilidade de defesa á vítima, à crueldade dos meios usados para ofender a sua integridade física, com vista a aumentar o seu sofrimento: a) o recorrente e os outros começaram por queimar o ofendido com cigarros, líquidos efervescentes e a ponta de um maçarico, causando-lhe fortes dores, ao mesmo tempo que riam às gargalhadas, filmavam e fotografavam o sofrimento que lhe causavam; b) no âmbito da decisão conjunta, o co-arguido AA colocou-lhe uma abraçadeira à volta dos testículos, a qual apertou de modo a causar-lhe dores muito intensas e por fim a perda de sentidos; c) o recorrente e os outros novamente com um cigarro aceso queimaram-lhe o pénis e as nádegas; d) no âmbito da decisão conjunta, o co-arguido AA, com o uso de um martelo e de uma cavilha, trespassou o dorso das mãos e dos pés do ofendido; e) o recorrente e os outros pregaram-no a paletes de madeira; f) o recorrente queimou a orelha esquerda da vítima com a chama de um isqueiro; g) no âmbito da decisão conjunta, o co-arguido AA decepou os dedos mindinhos dos pés da vítima, a orelha direita e o dedo anelar direito; h) sempre no âmbito da decisão conjunta, o co-arguido AA martelou os joelhos do ofendido e cortou-lhe quase na totalidade o tendão de Aquiles; i) o recorrente e os outros entornaram-lhe produtos químicos em cima das feridas, o que fez aumentar a intensidade das dores do ofendido.

Em sede de ilicitude, deve ter-se em conta que, sem oposição do recorrente, o tribunal de 1ª instância, com confirmação da Relação, considerou verificadas as circunstâncias das alíneas a) [desfiguramento grave e permanente] e b) [afectação grave da capacidade de trabalho] do artº 144º do CP, elegendo a primeira para preenchimento do tipo e valorando a outra em sede de determinação da pena.

Considerando, assim, a afectação da capacidade de trabalho que resultou para a vítima das ofensas físicas sofridas, a amplitude do desfiguramento grave e permanente, sem que haja nisso dupla valoração, visto as sequelas permanentes que resultaram para o ofendido das agressões sofridas, como as amputações do dedo anelar da mão esquerda e dos dedos mindinhos de ambos os pés, estarem muito para além do necessário para o preenchimento da previsão típica, que se satisfaria com a amputação da orelha, e as dores intensíssimas que as agressões provocaram ao ofendido, que chegou a perder os sentidos, o grau de ilicitude é muito elevado.

De todo o circunstancialismo acabado de descrever resulta culpa em medida muito elevada, a permitir que a pena se fixe muito mais perto do limite máximo do que do limite mínimo da moldura penal.

As exigências de prevenção geral são igualmente muito elevadas, em face da excepcionalmente intensa violação do bem jurídico protegido, de tal modo que o mínimo de pena imprescindível à manutenção da confiança colectiva na validade da norma violada se situa muito acima do limite mínimo da moldura penal, mesmo para lá do seu ponto intermédio.

Em sede de prevenção especial, se é certo que o recorrente não tem antecedentes criminais relevantes, também o é que manifestou no facto uma personalidade insensível aos valores que regem a vida em sociedade e capaz de facilmente enveredar pela via da violência física. As necessidades de ressocialização que estas qualidades desvaliosas da personalidade convocam impõem que a pena se fixe um pouco acima do mínimo exigido pela prevenção geral.

Ponderando estes dados, acha-se permitida pela culpa, necessária e suficiente para satisfazer as finalidades da punição a medida de 8 anos de prisão.

2.5.5. Resta a medida da pena única.

Esta pena, nos termos do nº 2 do artº 77º do CP, há-de ser fixada entre o mínimo de 8 anos de prisão, a pena singular mais elevada, e o máximo de 20 anos de prisão, a soma de todas.

Na fixação da medida concreta da pena única, como ensina Figueiredo Dias, devem ser tidos em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artº 71º – exigências gerais de culpa e prevenção – e o critério especial dado pelo nº 1 do artº 77º: «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

Sobre o modo de levar à prática estes critérios, diz este autor: “Tudo deve passar-se (…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.

Considera ainda que à questão de saber se “factores de medida das penas parcelares podem ou não, perante o princípio da proibição da dupla valoração, ser de novo considerados na medida da pena conjunta” se impõe, “em princípio”, uma resposta negativa. Mas faz notar que “aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo factor concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: nesta medida não haverá fundamento para invocar a proibição da dupla valoração” (Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Reimpressão, 2005, páginas 291 e 292).

O recorrente praticou um crime de tráfico agravado, punido com a pena de 7 anos de prisão, um crime de sequestro agravado, punido com 5 anos de prisão, e um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, punido com 8 anos de prisão.

A gravidade global dos factos, aferida pela medida dessas penas e da relação de grandeza que apresentam entre si, sendo uma de média e duas de grande dimensão, não sendo grande a diferença entre elas, é elevada.

Daí que a culpa pelo conjunto dos factos, ou o grau de censura a dirigir ao arguido por esse conjunto, seja também elevado, a permitir que a pena se fixe muito acima do limite mínimo da moldura do concurso.

A gravidade global dos factos releva também pela via da prevenção geral, determinando um mínimo de pena situado muito acima do limite mínimo daquela moldura.

Por outro lado, o número de crimes, não sendo embora revelador de uma tendência criminosa, não deixa de assinalar, tendo em conta as ligações que entre eles existem, alguma facilidade em enveredar pela via criminosa. As exigências de ressocialização que daí decorrem impõem que a pena se fixe um pouco acima do mínimo determinado pela prevenção geral.

Ponderando estes dados, acha-se, permitida, necessária e suficiente a pena única de 12 anos de prisão.

           

3. Recurso do arguido AA:

3.1. Da parte do acórdão da Relação que não admite recurso:

O arguido foi condenado em 1ª instância:

-a 11 anos de prisão, pela tentativa de homicídio qualificado;

-a 9 anos de prisão, pelo sequestro agravado;

-a 11 anos, pela ofensa à integridade física qualificada;

-a 10 anos de prisão, pelo tráfico agravado;

-a 1 ano, pela detenção de arma proibida; e

-em cúmulo jurídico, na pena única de 25 anos de prisão.

A Relação alterou a decisão de 1ª instância, nos seguintes termos:

-a pena da tentativa de homicídio tentado passou a ser de 8 anos de prisão, sem que nesta parte tenha havido modificação da qualificação jurídica ou da decisão de facto;

-o sequestro foi considerado agravado, não pela alínea b), mas pela alínea a) do nº 2 do artº 158º do CP;

-a pena única passou a ser de 22 anos e 6 meses de prisão.

Ao que se disse em 1, acrescenta-se agora o seguinte:

Também nos casos em que a Relação, em recurso, diminui a pena aplicada em 1ª instância, sem alteração dos factos provados e da sua qualificação jurídica, se deve entender que, relativamente ao arguido, há confirmação.

Efectivamente, o que fundamenta o seu direito de interpor recurso de uma decisão judicial é a circunstância de esta lhe ser desfavorável, como resulta do artº 401º, nº 1, alínea b). Ora, se o arguido, no caso de ser condenado em 1ª instância em pena de prisão não superior a 8 anos, com confirmação dessa pena por acórdão da Relação, não pode recorrer desta última decisão, mal se compreenderia que, à luz do apontado fundamento do direito de recorrer, lhe fosse permitido interpor recurso numa situação que lhe é mais favorável, como é a do acórdão da Relação que, mantendo inalterados os respectivos pressupostos, reduz a pena aplicada pelo tribunal de 1ª instância.

É neste sentido que o Supremo Tribunal de Justiça vem decidindo maioritariamente, falando de confirmação in melius (cf., por exemplo, acórdãos de 25/03/2009, CJ, Acórdãos do STJ, Ano XVII, Tomo I, página 236; de 27/01/2010, proc. nº 401/07.3JELSB.L1.S1; de 07/04/2010, proc. nº 295/05.3GCTND.C2.S1; e de 27/05/2010, proc. nº 139/07.1JAFUN.L1.S1, disponíveis em Sumários de acórdãos do STJ).

E o Tribunal Constitucional, chamado a decidir sobre esta matéria por mais de uma vez, não viu neste entendimento desconformidade com normas constitucionais. Exemplos disso são os acórdãos nºs 2/2006, 20/07 e 125/2010, podendo ler-se neste último:

«(…) a questão de inconstitucionalidade colocada pelo recorrente não pode ser resolvida com a mera invocação da garantia de um terceiro grau de jurisdição, pois que, não podendo essa garantia ser reconhecida em todos os casos, tal resolução exige necessariamente a ponderação da razoabilidade, arbitrariedade ou desproporcionalidade da não admissão desse terceiro grau, no caso concreto.

Ora, realizando tal ponderação, dir-se-á que não é constitucionalmente censurável que a exclusão do terceiro grau de jurisdição resulte de se “qualificar como confirmatório da decisão condenatória, proferida em 1ª instância, o acórdão da Relação que – sem qualquer alteração ou convolação dos fundamentos essenciais ou substanciais – se limite, em mera «redução quantitativa», a atenuar a medida concreta da pena aplicada ao arguido, reduzindo a que lhe havia sido cominada na 1ª instância, por diversa reponderação do quadro de circunstâncias atenuantes”.

E dir-se-á também que não é desrazoável tratar do mesmo modo os casos em que a Relação, aplicando pena não superior a oito anos, confirma totalmente a decisão da 1ª instância, e os casos em que a Relação, aplicando pena não superior a oito anos, reduz a pena aplicada pela 1ª instância».

Portanto, o acórdão da Relação, sendo confirmatório da decisão da 1ª instância também relativamente à tentativa de homicídio qualificado, não é recorrível nessa parte, por ter sido aplicada pena de prisão não superior a 8 anos.

Em consequência, não se tomará conhecimento das questões a que se reportam as conclusões 42 a 52, que visam a condenação pela tentativa de homicídio qualificado.

3.2. Sobre as alegadas invalidades da prova:

3.2.1. Como se viu, deu-se como provado no nº 96 dos factos: «Já após a detenção dos arguidos, o arguido CC decidiu prestar algumas informações à PJ, exigindo que tais contributos não ficassem documentados no processo, desde logo conduzindo-os à referida fábrica de Q... S... G... – Montijo e, posteriormente, ao local onde estava estacionada a carrinha Chrysler verde, bem como às imediações da casa de S. F…».

Referindo-se a este facto, o recorrente diz:

-o arguido CC, no acto de prestar as referidas informações, não se encontrava assistido por defensor, o que era obrigatório nos termos do artº 64º, nº 1, alínea c), do CPP, visto ser desconhecedor da língua portuguesa;

-a ausência do defensor nesse acto integra a nulidade insanável prevista no artº 119º, alínea c), do mesmo diploma;

-além disso, o arguido CC não se encontrava assistido por intérprete, como exige o artº 92º, nº 2, também do CPP, o que preenche a nulidade prevista no artº 120º, nº 2, alínea c);

-na sequência desse acto do arguido CC foram feitas as buscas e apreensões na Q... S... G...;

-a nulidade desse acto do arguido CC, em função dos apontados motivos fere de nulidade essas buscas e apreensões, atento o nexo existente entre aquele e estas, sendo a prova obtida por esse meio nula.

Esta alegação tem em vista prova que serviu para dar como provados os factos dos nºs 7 a 14, relacionados com os crimes de tráfico agravado e detenção de arma proibida, interessando aqui apenas aquele, visto não ser recorrível o acórdão da Relação quanto ao último ilícito.

O acto que o recorrente pretende estar viciado é a prestação de informações à Polícia judiciária por parte do co-arguido CC, informações que permitiram a descoberta dos referidos factos.

Esse acto não foi documentado, por exigência do referido CC, como está provado, sendo que o Supremo não tem poderes para se intrometer na decisão proferida sobre matéria de facto. Não faz por isso parte do processo; passou-se fora dele; não existe para o processo. Sendo assim, não se está perante qualquer acto processual, isto é, sujeito à disciplina das normas do processo penal, não se podendo dele dizer, designadamente, que enferma de nulidade.

O que se passou, simplesmente, foi que alguém prestou informações à polícia Judiciária que permitiram a descoberta de um crime. A obtenção de informações sobre a prática de crimes é um método corrente e lícito de investigação usado pelos órgãos e autoridades de polícia criminal. E nada muda, no aspecto da validade da prova recolhida, se as informações são fornecidas por um co-arguido. Ponto é que não tenha ocorrido qualquer das situações que geram nulidade da prova, nos termos do artº 126º do CPP. E no caso não se alega nem vislumbra qualquer dessas situações.

As nulidades processuais não se confundem com as proibições de prova, como resulta do nº 3 do artº 118º do mesmo código. Quando existam e sejam declaradas invalidam o acto em que se verificarem e aqueles que, sendo delas dependentes, sejam por elas formalmente afectados, nos termos do artº 122º, nº 1, ainda do CPP. Num caso em que um co-arguido, num acto em que, não estando, mas devendo estar, assistido por defensor, prestasse informações sobre a prática de um crime, a declaração da respectiva nulidade teria como consequência a invalidade desse acto, que teria de ser repetido, mas não tornaria nulas as provas que as polícias, servindo-se dessas informações, viessem a recolher, porque a nulidade do acto em que as informações foram prestadas, sendo alheia a qualquer proibição de prova, não afectaria aquela recolha.

Desconsidera-se a suposta nulidade da falta de intérprete, pois, se existisse, há muito estaria sanada, por não ter sido arguida pelo interessado, que seria o co-arguido CC, se não no próprio acto de prestação de informações, nos termos do artº 120º, nº 3, alínea a), do mesmo código, dada a falta de defensor, até ao encerramento de debate instrutório, em conformidade com o disposto na alínea c).  

Ainda que se pudesse entender que a nulidade traduzida na ausência de defensor teria a virtualidade de afectar a prova recolhida com base nas ditas informações, nem assim poderia proceder a alegação do recorrente, pois o vício, afectando unicamente os direitos do referido CC, só em relação a ele poderia ter consequências.

3.2.1. Pretende ainda o arguido que foram valorados depoimentos de agentes policiais, em violação do disposto no artº 356º, nº 7, do CPP [«Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer outras pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas»]. Não sendo o recorrente claro sobre o ponto, com a invocação desta norma pretenderá dizer que os agentes da Polícia Judiciária a quem CC prestou as aludidas informações foram inquiridos sobre o conteúdo das declarações mediante as quais este veiculou essas informações. Ora, de lado algum resulta, e o recorrente não chega a afirmá-lo, que o tribunal de 1ª instância, com a concordância da Relação, valorou essas declarações.

Não obstante esses agentes policiais não poderem ser inquiridos sobre o conteúdo das declarações que nesses termos, informalmente, CC lhes prestou, o impedimento não se estendia a declarações sobre factos de que tivessem conhecimento directo, referentes, nomeadamente às buscas, apreensões e outras diligências sequentes ao recebimento das informações. E não se mostra nem alega que a inquirição dos agentes tenha extravasado esse âmbito.

3.3. Acerca do preenchimento do crime de tráfico agravado:

            3.3.1. O tribunal de 1ª instância e a Relação consideraram o crime de tráfico agravado pela circunstância da alínea c) do artº 24º do DL nº 15/93 [«… se: O agente obteve ou procurava obter avultada compensação remuneratória»].

            E foram dados como provados factos que integram essa qualificativa:

            -o recorrente juntamente com outros dedicava-se ao cultivo e venda da canabis, obtendo “elevados lucros”, cultivo esse que tinha lugar em terrenos que adquiriam para o efeito, sendo as plantas “depois sujeitas a tratamentos de secagem e prensagem, com vista à obtenção do produto final – haxixe” (factos nºs 2 e 29);

            -numa quinta situada em Q... S... G..., o recorrente tinha “instalada em vários edifícios uma estufa/laboratório para secagem, prensagem e embalagem da planta canabis, com meios técnicos sofisticados e elevada capacidade de produção” (facto nº 7);

-nesse local, foram encontrados e apreendidos, em 25/10/2010, “quando os sistemas de refrigeração e secagem do laboratório se encontravam em pleno funcionamento, diversos artigos relacionados com o cultivo e produção da planta, nomeadamente centenas de vasos com plantas de canabis, holofotes, ventoinhas, desumidificadores, fertilizante, condutas de ventilação, ventiladores, termómetros de parede, botijas de CO2, sacos para embalagem, sendo os equipamentos eléctricos maioritariamente alimentados através de tomadas de modelo inglês” (facto nº 8);

-o local havia sido tomado de arrendamento pelo recorrente, que pagava a renda de € 1000 por mês;

-o recorrente contratava no Reino Unido pessoas para trabalharem nas plantações de canabis, as quais se deslocavam de avião a Portugal para esse efeito (factos nºs 3, 16 e 17).

            O recorrente pretende que o crime de tráfico não é agravado, sem que se perceba se a sua discordância visa a decisão de dar estes factos como provados ou se tem em vista a decisão de, com base neles, se ter subsumido o tráfico na alínea c) do artº 24º do DL nº 15/93.

Se a sua pretensão é a primeira, como sugere a afirmação de que “a livre convicção a que se refere o artº 127º do CPP não é um puro juízo subjectivo, antes devendo ser um juízo baseado em provas concretas, avaliadas tendo em conta o princípio in dubio pro reo”, dela não pode conhecer-se, visto o Supremo, como já se afirmou e justificou, conhecer exclusivamente de matéria de direito.

Se é a segunda, como pode sugerir a alusão, algo desconexa, a “imputações genéricas”, não lhe assiste razão. Desde logo, porque, como se viu, foi dado como provado que o recorrente, actuando conjuntamente com outros, procedia ao cultivo e venda de canabis, obtendo “elevados lucros”. E se essa afirmação é, só por si, conclusiva, ela não se encontra isolada, antes se estriba em factos bem concretos que a legitimam: o recorrente juntamente com os comparticipantes cultivava a canabis, tendo para o efeito mais de uma plantação e tinha a funcionar um laboratório/estufa para secagem, prensagem e embalamento do produto, com “elevada capacidade de produção” e equipado com meios técnicos sofisticados, encontrando-se ainda ali centenas de vasos com plantas daquela espécie. Tratava-se, pois, de um negócio em grande escala, sendo os respectivos rendimentos tão avultados que lhes permitiam trazer pessoas do Reino Unido para trabalharem nas plantações de canabis, pessoas escolhidas e contratadas pelo recorrente.

A referida a alusão a imputações genéricas não se mostra fundada perante os factos acabados de mencionar. A circunstância de não se terem apurado pormenores, como locais, datas, etc. não é obstáculo a que se considere preenchido o crime.

Sobre a referência aos factos nºs 30 a 34, deve dizer-se que foram dados como provados com vista a estabelecer a motivação do recorrente para actuar como actuou em relação ao ofendido DD.

Nesta parte, só na motivação, que não nas conclusões, o recorrente fala no vício do artº 410º, nº 2, alínea a), do CPP, sem que o identifique, mais parecendo que o vê na falta de prova suficiente para dar como provados certos factos, quando esse vício se traduz na falta de decisão sobre matéria de facto relevante para a correcta decisão de direito, situação que não alega. De todo o modo, como já se explicou, a alegação dos vícios do nº 2 do artº 410 é uma das formas, a mais restrita, de impugnação da decisão sobre matéria de facto, não tendo por isso cabimento num recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto tribunal de revista.

Fala ainda o recorrente, também só na motivação, na nulidade prevista no artº 374º, nº 1, alínea a), do mesmo código, igualmente sem dizer em que se traduziu, sendo certo que o recorrente já apontou essa nulidade – falta de fundamentação – à decisão do tribunal de 1ª instância no recurso para a Relação. Esse tribunal recusou a existência do vício, e o recorrente não diz que a decisão recorrida não está fundamentada nesse ponto.

3.3.2. Ainda nesta matéria diz o recorrente que não se apurou “o grau do toxicidade das plantas de canabis apreendidas”, pois não bastará “a plantação de uma qualquer planta independentemente de esta ser ou não prejudicial para a saúde pública”, devendo notar-se que o teste rápido realizado “acusa liamba”, enquanto o teste laboratorial “acusa canabis”, sem conter a “descrição técnica e fundamentada” do que é canabis. Em face dessas discrepância e insuficiência, impunha-se “proceder a peritagem ou esclarecimentos complementares. Não tendo isso sido feito foi cometida a nulidade prevista no artº 120º, nº 2, alínea d), do CPP.

Esta questão foi colocada no recurso interposto da decisão do tribunal de 1ª instância, tendo sido apreciada e decidida pela Relação, que negou a existência do apontado vício.

O recorrente suscita de novo a questão no recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, mas como se a decisão recorrida fosse a de 1ª instância, ignorando por completo o decidido pela Relação.

De facto, a invocação daquela nulidade só tem sentido em relação a fase do processo anterior ao recurso. Relativamente à decisão da Relação, no que se refere a este ponto, o que teria cabimento seria argui-la de nula, obviamente por fundamento diferente e que integrasse qualquer das situações previstas no artº 379º, nº 1, aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, nos termos do artº 425º, nº 4, ambos do CPP, ou pôr em discussão o seu mérito.

Ignorando a decisão da Relação, e porque esta é a única que pode ser objecto do recurso para o Supremo, tem de concluir-se por falta de motivação nesta parte.  

A falta de motivação, quando diga respeito à totalidade do recurso, leva à rejeição deste, nos termos dos artºs 420º, nº 1, alínea b), e 414º, nº 2, ambos do mesmo código. Reportando-se só a uma ou algumas questões, tem como consequência o não conhecimento do recuso nessa parte.

De qualquer modo, a nulidade prevista no artº 120º, nº 2, alínea d), a existir, não poderia aqui ser conhecida. Com efeito, respeitava ao inquérito, à instrução ou à audiência de julgamento. Nos dois primeiros casos, teria de ser arguida até ao encerramento do debate instrutório, como se vê da alínea c) do nº 3 do mesmo preceito. No último, teria de ser arguida até ao final da audiência, como decorre da alínea a). Não tendo sido arguida nesses momentos, se existiu, sanou-se.

3.4. Das penas:

3.4.1. O recorrente impugna a medida das penas parcelares e da pena única, sem que diga em concreto quais as razões que, relativamente a cada pena singular e à pena conjunta, fundamentam uma redução.

Vejamos, porém.

Vem condenado em:

-8 anos de prisão, pela tentativa de homicídio qualificado;

-9 anos de prisão, pelo sequestro agravado;

-11 anos, pela ofensa à integridade física qualificada;

-10 anos de prisão, pelo tráfico agravado;

-1 ano, pela detenção de arma proibida; e

-na pena única de 22 anos e 6 meses de prisão.

Sendo o acórdão da Relação confirmatório relativamente à tentativa de homicídio qualificado e ao crime de detenção de arma proibida e não sendo as respectivas penas superiores a 8 anos de prisão, nessa parte, não admitindo a decisão da Relação recurso, pelos motivos já apontados, não se conhece.

3.4.2. Sobre os critérios de determinação da pena de cada crime e o modo como operam já se disse o que havia para dizer em 2.5.2.

Como medida abstracta da pena, temos:

-2 a 10 anos de prisão, para o crime de sequestro agravado;

-5 a 15 anos, para o crime de tráfico agravado;

-3 a 12 anos de prisão, para o crime de ofensa à integridade física qualificada.

3.4.3. O crime de sequestro foi na decisão instrutória considerado agravado nos termos das alíneas a) e b) do nº 2 do artº 158º do CP. O tribunal de 1ª instância considerou que o sequestro seria agravado em função apenas de uma das circunstâncias ali previstas, elegendo para esse efeito a da alínea b), valorando a outra, a da alínea a), em sede de determinação da pena. A Relação, por considerar que a circunstância da alínea b), referindo-se a facto que constituía um crime autónomo, não podia ser valorada no âmbito do sequestro, sob pena de violação da proibição da dupla valoração, decidiu que o sequestro era agravado pela alínea a), que assim deixou de relevar em sede de determinação da pena.

Não obstante este desagravamento da infracção, a Relação manteve a pena aplicada em 1ª instância. Há nisso violação da proibição de reformatio in pejus, como se explicou em 2.4.4., o que determinará a fixação da pena por este crime em medida inferior à decidida pela Relação.

O dolo no que se refere a este crime é intensíssimo, pois, estando o ofendido no Reino Unido, o recorrente teve que convencê-lo a vir a Portugal, para o que foram necessários vários contactos telefónicos, persistindo por isso necessariamente a vontade criminosa ao longo de um considerável período de tempo.

A operação foi da iniciativa do recorrente, trazendo depois outros para o projecto criminoso, detendo sempre uma posição de liderança.

Os motivos do crime, ligados a supostas dívida e traição do ofendido no contexto de uma actividade ilícita – tráfico de droga noutro país –, para além do facto de o arguido cobiçar para sua companheira a mulher da vítima, remetem para sentimentos muito censuráveis, como vingança, mesquinhez e inveja ou ciúme.

Merecedores de grande censurabilidade são os fins visados pelo recorrente com sequestro do ofendido: a prática de outro crime.

O grau de ilicitude do facto não se afasta do que é normal neste tipo de crime, na modalidade agravada, visto que opera uma única circunstância agravadora, que não se encontra entre as mais desvaliosas das previstas, devendo, porém, ter-se em consideração que a duração da privação da liberdade ultrapassou em vários dias o período típico.

A intensidade do dolo, os motivos do crime, os sentimentos neles reflectidos, a posição de liderança e o grau de ilicitude traduzem culpa elevada, a permitir que a pena se situe mais próxima do limite máximo da moldura penal do que do mínimo.

A medida das exigências de prevenção geral é muito elevada, porque se o grau de ilicitude do facto não se afasta do que é normal num contexto de sequestro agravado, não pode esquecer-se a perigosidade, para a ordem jurídica, revelada pelo recorrente, na preparação do crime e com a capacidade de recrutamento de outros para agirem sob as suas ordens, nem o impacto que este tipo de crime tem na comunidade, principalmente quando, como aqui, surge ligado a criminalidade altamente organizada, categoria em que se inclui o tráfico de droga, nos termos do artº 1º, alínea m), do CPP. O mínimo de pena imprescindível ao restabelecimento da paz social situa-se, assim, mais próximo do limite máximo da moldura penal do que do mínimo.

É também elevado o nível das exigências de prevenção especial, pois os motivos do crime, os seus fins, a capacidade de planeamento da conduta criminosa, trazendo outros para o processo criminoso, de que teve sempre a liderança, levam a concluir que o arguido encara com facilidade e normalidade a prática de crimes, ou seja, reflectem uma personalidade afeiçoada ao crime. As necessidades de ressocialização que daí decorrem impõem que a pena se fixe bem acima do mínimo exigido pela prevenção geral.

Ponderando estes dados, acha-se permitida pela culpa, necessária e suficiente para satisfazer as finalidades da punição a medida de 7 anos e 6 meses de prisão.

  

3.4.4. Relativamente ao crime de ofensa à integridade física qualificada, foram consideradas verificadas as circunstâncias das alíneas d), e), h) e j) do nº 2 do artº 132º do CP.

Porém, pelas razões referidas em 2.5.4., têm-se como assentes apenas as qualificativas das alíneas d), h) e j), alterando-se oficiosamente neste ponto a qualificação jurídica dos factos, sem que, pela razão ali indicada, deva ter lugar a notificação a que alude o artº 424º, nº 3, do CPP.

 

O dolo quanto a este crime é igualmente intensíssimo, pois persistiu ao longo de um período considerável de tempo, o que mediou entre a tomada da resolução criminosa e o início da sua execução, envolvendo vários contactos telefónicos do arguido com o ofendido, que se encontrava no Reino Unido, com vista a atraí-lo a Portugal, e o recrutamento dos comparticipantes. A firmeza da vontade criminosa, logo do dolo, está ainda bem patente na sucessão dos episódios em que se traduziram as ofensas físicas.

Os motivos do crime são os indicados para o sequestro, remetendo para os mesmos sentimentos e sendo merecedores da mesma censurabilidade.

Por outro lado, a especial censurabilidade ou perversidade que, nos termos do nº 2 do artº 145º, qualifica a ofensa à integridade física grave do artº 144º, alínea a), ambos do CP decorre, não de uma, mas de três circunstâncias que a revelam, assumindo uma esse papel qualificador e relevando as restantes em sede de determinação da pena concreta.

Não tendo a decisão recorrida nem o tribunal de 1ª instância esclarecido este ponto, há que fazê-lo agora, elegendo para desempenhar a função qualificadora a circunstância da alínea j), a primeira que se verificou em termos cronológicos.

Nesta sede, há pois que dar relevo, para além do facto de o número dos agressores ter retirado qualquer possibilidade de defesa à vítima, à crueldade dos meios usados para ofender a sua integridade física, com vista a aumentar o seu sofrimento: a) o recorrente e os outros começaram por queimar o ofendido com cigarros, líquidos efervescentes e a ponta de um maçarico, provocando-lhe fortes dores, ao mesmo tempo que riam às gargalhadas, filmavam e fotografavam o sofrimento que causavam; b) o recorrente colocou-lhe uma abraçadeira à volta dos testículos, a qual apertou de modo a causar-lhe dores muito intensas e por fim a perda de sentidos; c) o recorrente e os outros novamente com um cigarro aceso queimaram-lhe o pénis e as nádegas; d) usando um martelo e uma cavilha, o recorrente trespassou o dorso das mãos e dos pés do ofendido; e) o recorrente e os outros pregaram-no a paletes de madeira; f) no âmbito da decisão conjunta, um dos outros queimou a orelha esquerda da vítima com a chama de um isqueiro; g) o recorrente martelou os joelhos do ofendido e cortou-lhe quase na totalidade o tendão de Aquiles; h) o recorrente decepou os dedos mindinhos dos dois pés do ofendido, bem como o dedo anelar da mão esquerda e a orelha direita; i) o recorrente e os outros entornaram-lhe produtos químicos em cima das feridas, o que fez aumentar de intensidade as dores do ofendido.

Em sede de ilicitude, deve ter-se em conta que, sem oposição do recorrente, o tribunal de 1ª instância, com confirmação da Relação, considerou verificadas as circunstâncias das alíneas a) [desfiguramento grave e permanente] e b) [afectação grave da capacidade de trabalho] do artº 144º do CP, elegendo a primeira para preenchimento do tipo e valorando a outra em sede de determinação da pena.

Considerando, assim, a afectação da capacidade de trabalho que resultou para a vítima das ofensas físicas sofridas, a amplitude do desfiguramento grave e permanente, sem que haja nisso dupla valoração, visto as sequelas permanentes que resultaram para o ofendido das agressões sofridas, como as amputações do dedo anelar da mão esquerda e dos dedos mindinhos de ambos os pés, estarem muito para além do necessário para o preenchimento da previsão típica, que se satisfaria com a amputação da orelha, e as dores intensíssimas que as agressões provocaram ao ofendido, que chegou a perder os sentidos, o grau de ilicitude é elevadíssimo.

Todo o circunstancialismo acabado de descrever traduz culpa em medida elevadíssima. Pode mesmo dizer-se que não é de verificação fácil um crime deste tipo em que a culpa se situe em patamar tão elevado.

As exigências de prevenção geral são muito elevadas, em função da intensíssima violação do bem jurídico protegido, do número cada vez maior de casos de grande violência, no contexto da criminalidade altamente organizada, como o tráfico de droga, a título de represália, causando intranquilidade nas pessoas, e da perigosidade que o arguido representa para a ordem jurídica, revelada no seu descrito comportamento. Em face disso, é de concluir que o mínimo de pena imprescindível à manutenção da confiança colectiva na validade da norma violada se situa muito mais perto do limite máximo da moldura penal do que do mínimo.

As necessidades de prevenção especial são também muito elevadas, como decorre da facilidade com que o arguido partiu para a prática de uma infracção desta gravidade, reveladora de uma personalidade mal formada, com predisposição para prática de crimes. Essas circunstâncias exigem que a pena se fixe bem acima do mínimo pedido pela prevenção geral.

Ponderando estes dados, acha-se permitida pela culpa, necessária e suficiente para a realização das finalidades da punição a pena de 10 anos de prisão.

3.4.5. O crime de tráfico agravado realizou-se através do cultivo da planta canabis em terrenos que o arguido e os comparticipantes adquiriam, da preparação do produto final, vulgarmente conhecido como haxixe, mediante secagem, prensagem, embalagem e posterior venda, obtendo lucros elevados. Para essa preparação do produto, o recorrente tinha em funcionamento um laboratório/estufa, com elevada capacidade de produção e equipado com meios técnicos sofisticados.

O recorrente dominava, assim, todas as fases do negócio: Cultivava as plantas, preparava o produto final e procedia à sua venda. E a importante dimensão desse negócio infere-se, desde logo, pela qualidade e grandeza do laboratório/estufa, que ocupava, não um, mas vários edifícios, e pelo facto de nas plantações de canabis que o recorrente e os comparticipantes possuíam trabalharem pessoas que eram recrutadas no Reino Unido, as quais se deslocavam a Portugal para esse efeito. Só um negócio proporcionador de grandes lucros poderia permitir uma tal prática.

Os factos provados afirmam claramente que o recorrente liderava todo o processo: Era dele o laboratório/estufa (facto nº 7) e era ele quem seleccionava e contratava no Reino Unido as pessoas que vinham trabalhar nas plantações (facto nº 3).

Destes dados decorre um dolo intensíssimo, traduzido numa vontade criminosa que persistiu durante um longo período de tempo, pois o negócio já se encontrava a produzir resultados e a sua implementação foi necessariamente morosa e reflectida.

E ilicitude em grau muito elevado, em vista das várias condutas típicas realizadas pelo recorrente e da extensão do negócio, tudo a representar a criação de enorme perigo para os bens jurídicos protegidos.

A intensidade do dolo, o grau de ilicitude do facto e o papel liderante do recorrente em todo o processo situam a culpa em patamar muito elevado, a permitir que a pena se fixe mais perto do limite máximo da moldura penal do que do mínimo.

As exigências de prevenção geral são também muito elevadas em função do grau de ilicitude da actividade desenvolvida pelo recorrente, actividade essa que representa uma violação muito intensa da norma que protege os bens jurídicos postos em perigo, e da circunstância de o tráfico de droga se manter em níveis muito altos, longe de dar sinais de abrandamento, gerando grande intranquilidade e insegurança na comunidade, em face da criminalidade que anda associada ao comércio ilegal de drogas e, principalmente, ao seu consumo. Daí que o mínimo de pena imprescindível ao restabelecimento da confiança colectiva na validade da norma violada se situe na zona intermédia da moldura penal.

Em sede de prevenção especial, há que ter conta que a actividade delituosa do arguido não resultou de circunstâncias acidentais, sendo antes reveladora de uma predisposição do recorrente, patente nas demoradas e notoriamente reflectidas condutas que puseram o negócio em marcha, para além das ligações que nesse contexto necessariamente estabeleceu no mundo do comércio ilegal de drogas. As exigências de ressocialização que daí decorrem impõem que a pena se fixe bem para lá do mínimo pedido pela prevenção geral.

Nestes termos, é de concluir que a pena de 10 anos de prisão fixada na decisão recorrida, coincidindo com o ponto intermédio da moldura penal, não excede nem a medida permitida pela culpa nem a necessária à realização das finalidades da punição.

3.4.6. Resta fixar a pena única.

Os critérios da sua determinação já foram explicitados em 2.5.5.

Nos termos do nº 2 do artº 77º do CP, há-de ser fixada entre o mínimo de 10 anos de prisão, a medida das duas penas singulares mais elevadas, e o máximo de 25 anos de prisão, visto a soma de todas, perfazendo 36 anos e 6 meses, exceder esse limite.

O recorrente praticou um crime de tráfico agravado, punido com a pena de 10 anos de prisão, um crime de ofensa à integridade física grave qualificada, punido com 10 anos de prisão, um crime de homicídio qualificado tentado, punido com 8 anos de prisão, um crime de sequestro agravado, punido com 7 anos e 6 meses de prisão, e um crime de detenção de arma proibida, punido com 1 ano de prisão.

A gravidade global dos factos é muito elevada, aferindo-se pela medida dessas penas e da relação de grandeza que apresentam entre si, sendo quatro delas de elevada dimensão, sem que seja grande a diferença entre elas, e só uma de baixa dimensão.

Daí que a culpa pelo conjunto dos factos, ou o grau de censura a dirigir ao arguido por esse conjunto, seja também elevado, a permitir que a pena se fixe mais perto do limite máximo do que do limite mínimo da moldura do concurso.

A gravidade global dos factos releva também pela via da prevenção geral, determinando um mínimo de pena situado acima do ponto intermédio dessa moldura.

Por outro lado, o número de crimes, se não é indicador de uma tendência criminosa, acaba por revelar, conjugado com a ligação que entre eles existe, uma personalidade com facilidade em enveredar pela via criminosa. As exigências de ressocialização que daí decorrem impõem que a pena se fixe bem acima do mínimo determinado pela prevenção geral.

Ponderando estes dados, acha-se, permitida, necessária e suficiente a pena única de 18 anos e 6 meses de prisão.

Decisão:

Em face do exposto, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça, no provimento parcial de ambos os recursos, em alterar a decisão recorrida do modo seguinte:

1. Relativamente ao arguido BB:

a) a pena pelo crime de sequestro agravado passa a ser de 5 (cinco) anos de prisão;

b) o crime de ofensa à integridade física qualificada é o p. e p. pelo artº 145º, nºs 1 e 2, alínea b), e 2, com referência aos artºs 144º, alínea a), e 132º, nº 2, alíneas d), h) e j), do CP, sendo o arguido condenado pela sua prática na pena de 8 (oito) anos de prisão;

c) a pena única passa a ser de 12 (doze) anos de prisão.

2. Relativamente ao arguido AA:

a) a pena pelo crime de sequestro agravado passa a ser de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão;

b) o crime de ofensa à integridade física qualificada é o p. e p. pelo artº 145º, nºs 1 e 2, alínea b), e 2, com referência aos artºs 144º, alínea a), e 132º, nº 2, alíneas d), h) e j), do CP, sendo o arguido condenado pela sua prática na pena de 10 (dez) anos de prisão;

c) a pena única passa a ser de 18 (dezoito) anos e 6 (seis) meses de prisão.

No mais, mantém-se a decisão recorrida.

Havendo provimento parcial de ambos os recursos, não há lugar ao pagamento de taxa de justiça, nos termos do artº 513º, nº 1, do CPP.

Lisboa, 8 de Janeiro de 2014

  
Manuel Braz (relator)
Isabel São Marcos