Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | FONSECA RAMOS | ||
Descritores: | ABUSO DO DIREITO VENIRE CONTRA FACTUM PROPRIUM PRINCÍPIO DA CONFIANÇA BOA FÉ RECTIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS RETIFICAÇÃO DE ERROS MATERIAIS TEMPESTIVIDADE QUINHÃO HEREDITÁRIO COMPOSIÇÃO DE QUINHÃO ERRO DE CÁLCULO RECTIFICAÇÃO DE SENTENÇA RETIFICAÇÃO DE SENTENÇA CASO JULGADO PROCESSO DE INVENTÁRIO ACÇÃO EXECUTIVA AÇÃO EXECUTIVA PARTILHA DA HERANÇA SENTENÇA HOMOLOGAÇÃO EMBARGOS DE EXECUTADO FALTA DE CONTESTAÇÃO REVELIA FALTA DE DISCRIMINAÇÃO DOS FACTOS PROVADOS PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NULIDADE DE ACÓRDÃO | ||
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Nº do Documento: | SJ | ||
Data do Acordão: | 09/05/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / EXERCÍCIO E TUTELA DE DIREITOS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES / PRINCÍPIO DA BOA FÉ. DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSO DE DECLARAÇÃO / ARTICULADOS / EXCEPÇÕES DILATÓRIAS ( EXCEÇÕES DILATÓRIAS ) - PROCESSO DE EXECUÇÃO / OPOSIÇÃO À EXECUÇÃO. | ||
Doutrina: | - Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 7.ª edição, 536; Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 307. – Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, I, 333. - Ihering, A Luta pelo Direito. - J. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil” Anotado, 3.°, 91. - Manuel de Andrade, Noções Elementares do Processo Civil, 1979, 320 e 321. - Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Colecção Teses, 745; na Revista da Ordem dos Advogados, Ano 58, Julho 1998, 964. - Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 579; «O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material», B.M.J., 325-49 e segs.. - Palma Carlos, Direito Processual Civil, Acção Executiva, 1967-l03. - Remédio Marques, Curso de Processo Executivo Comum, 150-151. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 334.º, 762.º, N.º 2. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 580.º, 581.º, 729.º, AL. A). CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 2.º, 205.º, N.º 2, 282.º, N.º 3. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 28.11.1996, IN C.J./S.T.J., 1996, III, 117. -DE 19.2.1998, NÚMERO CONVENCIONAL JSTJ00032922, IN WWW.DGSI.PT . -DE 29.6.2010, PROC. N.º 67-A/1999.P1.S1, IN WWW.DGSI.PT . | ||
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Sumário : | I - Dado que os recorrentes não contestaram os embargos de executado e posto que a Relação, perante a ausência de discriminação dos factos provados, se limitou a elencar os factos que, em consequência da revelia operante, teve como demonstrados (o que era um passo indispensável para a aplicação do direito), não se verifica qualquer violação do princípio do contraditório. II - É manifesto que, entre um processo de inventário por morte (em que se visa a divisão da herança entre os herdeiros e a composição dos seus quinhões) e uma acção executiva (que tem por base um título executivo, que se invoca para obter coercivamente o pagamento de uma quantia) inexiste a tríplice identidade suposta pelo caso julgado – mesmo nos casos em que o título dado à execução é a sentença homologatória da partilha –, tanto mais que os conceitos de parte e de interessados não são sobreponíveis e que, naquela sentença, não foi abordado o valor dos quinhões dos recorrentes. III - Tendo sido previamente autorizada, por despacho judicial transitado em julgado que mereceu a concordância de todos os interessados, a retirada, de uma das verbas que compunham a herança, de uma importância para liquidar dívidas da herança e não tendo a sentença homologatória da partilha tido em consideração a inerente diminuição do valor daquela verba, é de concluir pela ocorrência de um erro manifesto de cálculo, o que, a par com a consideração de que o direito exequendo incorporado no título executivo é passível de ser contestado por via dos embargos, leva a excluir a possibilidade de se lançar da figura da autoridade do caso julgado. IV - O erro mencionado em III é passível de rectificação a todo o tempo – pois não se trata de um erro de julgamento ou de interpretar uma decisão judicial com recurso às pertinentes regras hermenêuticas –, não sendo necessário que os interessados requeiram no processo de inventário a respectiva correcção. V - O abuso do direito é uma válvula de escape que se constitui como um instrumento morigerador de actuações que só aparentemente correspondem ao salutar exercício de um direito mas que, no caso concreto, colidem com o sentimento de justiça dominante. A parte actua a coberto de um poder formal, mas visa resultados que atenta contra os limites impostos pela boa fé ou pelos bons costumes ou pelo fim económico e social do direito. VI - O venire contra factum proprium verifica-se sempre que a conduta abusiva consiste num comportamento com que razoavelmente não se podia contar face à anterior conduta e às legítimas expectativas, assim se violando o princípio da confiança e traindo o investimento na confiança. Importa, por isso, que os factos demonstrem a violação das expectativas incutidas pela contraparte ou a clamorosa ultrapassagem do fim social e económico do direito e, bem assim, o cariz manifesto da injustiça. VII - Posto que os recorrentes não contestaram os embargos de executado e que, em flagrante contradição com a conduta anteriormente assumida, procuraram receber, às custas do património da executada (que é mãe daqueles), a quantia que compunha a verba mencionada em III de que sabiam não ser credores por inteiro, é de concluir pela ocorrência de abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Proc.281/16.8T8CHV-A.G1.S1 R-616[1] Revista
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
AA,
BB, e
CC, instauraram Execução Comum para Pagamento de Quantia Certa, com base em sentença homologatória da partilha, contra:
DD
Alegando no requerimento executivo:
Na douta sentença transitada em julgado, proferida nos autos e que aqui se considera integralmente reproduzida, foi adjudicado a cada um dos Exequentes um sexto da verba um da relação de bens, conforme mapa da partilha de fls. 734 a fls. 736 (cfr. certidão que se apresenta como doc. 1).
Por conseguinte, face ao saldo partilhado de € 50.625,81 da conta de depósitos à ordem do BANCO EE da verba um, com o nº 0000000294, cabe a cada um dos Exequentes o montante de € 8.437,64 (cfr. certidão que se apresenta como doc. 1).
Sucedeu que, a Executada, [que é mãe dos exequentes] aproveitando-se da circunstância de ser co-titular da referida conta, correspondente à verba um, movimentou-a débito, retirando da mesma os fundos necessários ao preenchimento da quantia adjudicada a cada um dos Exequentes (cf. doc. 2).
Razão pela qual, face à douta sentença proferida nos autos de inventário, o BANCO EE, apenas entregou a cada um dos Exequentes por conta da verba um o montante de € 5.822,06, corresponde a 1/6 do que transferiu de uma só vez para a conta do signatário, representante dos Exequentes naquela entidade bancária, pelo montante global de € 17.466,19, quando o montante global devido aos três Exequentes era no montante de € 25.312.92 (€ 8.437,64 x 3) (cf. doc. 3 e 4).
A referida transferência ocorreu no passado dia 28.09.2015, após procedimento de habilitação exigido pela referida entidade bancária (cfr. doc. 4).
Deste modo, a Executada, que desempenhou as funções de cabeça-de-casal nos autos de inventário, deve entregar aos Exequentes o montante em falta para completar o montante que lhes foi adjudicado na douta sentença.
Isto é, a Executada deve a cada um dos Exequentes o montante de € 2.615,58, correspondente ao montante global de € 7.846,73.
Acresce que a Executada deve ainda aos Exequentes os juros civis à taxa legal, pelo menos, desde a data 28.09.2015, em que o BANCO EE entregou o montante alegado em 4, uma vez que, os Exequentes não obtiveram a entrega da totalidade da verba naquela data, devido ao levantamento dos fundos existentes na conta bancária por parte da Executada (cfr. doc. 2).
Termos em que, os Exequentes pedem contra a Executada o pagamento da quantia de € 2.615,58 para cada um, correspondendo ao montante global de € 7.846,73, acrescido dos juros vencidos no montante de € 102,33, dos juros vincendos na pendência destes autos até ao efectivo pagamento e das custas do processo.
Por apenso a tais autos, veio a executada DD, deduzir oposição à execução, alegando:
– O crédito ora invocado pelos exequentes não existe, nada devendo a executada aos exequentes, seus filhos.
– Com efeito, correu termos o processo de inventário n.º693/08.0TBCHV pela Comarca de … - Instância Local - Secção Cível - J2 - …, para partilha da herança aberta por óbito de seu falecido marido FF (cfr. doc. n.º 1 que, para todos os devidos efeitos legais, se dá por integralmente reproduzido).
– Da relação de bens fez parte a verba n.º1, com o saldo de € 50.625,81 (Cfr. doc. n.º 1 a fls. 4).
– Como consta do citado documento n.º1, no decurso do processo de inventário apareceu uma dívida relacionada com o bem imóvel que fazia parte da herança, existente em França (verba n.º 18 da Relação de Bens do dito inventário), no valor de € 15.793,38 (Cfr. doc. n.º 1 a fls. 5 verso, 9 a 25).
– Os ora exequentes, na qualidade de interessados no dito inventário, face ao teor do requerimento apresentado pela cabeça-de-casal, ora executada, instruíram os citados autos de inventário com um requerimento dirigido à Meritíssima Juiz em que pediram que fosse proferido despacho no sentido de autorizar a cabeça-de-casal a efectuar junto da instituição bancária a respectiva transferência, a fim de ser liquidada a dívida em causa (cfr. doc. n.º 1 a fls. 27).
– E, na sequência de tudo isso, foi proferido despacho a autorizar o pagamento da dita dívida no valor de € 15.793,38 com parte das quantias existentes na dita verba n.º 1 (cfr. doc. n.º 1 a fls. 29 a 32).
– Os exequentes mentem e, consequentemente, litigam de má-fé quando imputam à ora executada o levantamento abusivo da dessa quantia.
– Por isso, os exequentes sempre souberam que aquela quantia já tinha sido retirada da verba n.º1 para fazer face a tal encargo da herança.
– O que só pôde ser feito com o seu consentimento.
– E mediante despacho judicial, como já referido.
Pelo que não existe qualquer dívida da ora executada aos exequentes, verificando-se, por isso, o fundamento de oposição referido na alínea e) do artigo 729º do Código de Processo Civil.
Mais deduziu oposição à penhora, alegando para tanto:
– Encontra-se penhorada nos presentes autos a conta de depósitos à ordem n.º 00000000416 do BANCO EE no montante de € 9.700,00.
– Tal quantia é proveniente de prestações pagas a título de aposentação da ora executada.
– Pelo que também a mesma é impenhorável na proporção de duas terças partes, tal como decorre do n.º 1, artigo 738º do Código de Processo Civil.
Requerendo o imediato levantamento da penhora feita, dando-se cumprimento ao disposto no n.º 1, artigo 738º do Código de Processo Civil.
Os executados não contestaram os embargos à execução nem a oposição à penhora.
***
Na audiência prévia proferiu-se sentença que julgou totalmente improcedentes, por não provados, os embargos e a oposição à penhora deduzidos, determinando-se o prosseguimento da execução, nos seus precisos termos.
***
Inconformada, a embargante apelou para o Tribunal da Relação de …, que, por Acórdão de 23.3.2017 - fls.65 a 76 – decidiu:
“Nestes termos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de … em julgar procedente a apelação, revogando a sentença recorrida, julgando totalmente procedentes, por provados, os embargos à execução e, consequentemente, sem título a execução.
Mais condenam os embargados/exequentes, como litigantes de má-fé, em multa, que fixam em 2 Ucs (€ 204 – duzentos e quatro euros) para cada um.
As custas da execução, dos embargos e desta apelação são da responsabilidade dos exequentes.”
***
Os exequentes/embargados, invocando violação do caso julgado, recorreram para este Supremo Tribunal de Justiça e, alegando, formularam as seguintes conclusões:
1ª. O Tribunal “a quo” decidiu que no saneador sentença da 1ª Instância não constam os factos provados e que a omissão dos fundamentos de facto gera a nulidade da sentença nos termos do artigo 616°, n° 1, al. b) do Código de Processo Civil, pelo que, para efeitos de apreciação da apelação decidiu suprir oficiosamente a referida nulidade, porém, ao fazê-lo incorreu em nulidade por omissão, uma vez que não deu cumprimento ao disposto no artigo 665°, n°3 do Código de Processo Civil, ou seja, não ouviu cada uma das partes, pelo prazo de 10 dias, dando origem a uma “decisão surpresa”.
2ª. Ora, por força dos artigos 3°, n°3 e 615°, 1, al. d) do Código de Processo Civil, aquela omissão verificada no julgamento da apelação dá lugar à nulidade do douto acórdão impugnado que pode ser arguida nesta sede ao abrigo do disposto no artigo 674°, n°1, al. c) e 666° do Código de Processo Civil, nulidade que se invoca para ser declarada com todas as consequências legais.
3ª. A presente revista é interposta com o fundamento específico previsto no artigo 629°, n°2, segmento final da al. a) do Código de Processo Civil, ou seja, com fundamento em que o douto acórdão impugnado ofende o caso julgado constituído pela douta sentença transitada em julgado em 23.03.2015, proferida em 12.02.2015 no processo de inventário n°693/08.0TBCHV, Instância Local Cível de Chaves – J2, como se procura demonstrar ao longo das alegações que antecedem e nas conclusões que seguem,
4ª. A douta sentença proferida no processo de inventário referido consagra expressamente que homologa a partilha conforme acordado em conferência de interessados e da ata da conferência de interessados do processo de inventário considerado nestes autos, realizada no dia 18 de novembro de 2014, resulta que os interessados, todos representados por advogados, deliberaram por unanimidade adjudicar pelos valores constantes da respetiva relação de bens de fls. 375 e segs. à c/c DD, viúva: Dinheiro: ½ (metade) da verba 1 (um); à interessada filha AA, viúva: Dinheiro 1/6 da verba 1 (um); ao interessado filho BB, divorciado: Dinheiro 1/6 (um sexto) da verba 1 (um); ao interessado filho CC, divorciado: - Dinheiro 1/6 (um sexto) da verba 1 (um).
5ª. Na relação de bens de fls. 375 e ss. dos autos de inventário considerado, o valor da verba n°1 é no montante de € 50.625,81 e o Tribunal, na douta sentença homologatória da partilha considera ainda como pressuposto da homologação da partilha, o mapa da partilha de fls. 734 a 736, onde expressamente foi considerado que o valor de 1/6 da verba um adjudicado a cada um dos Recorrentes é de € 8.437.64.
6ª. O mapa da partilha foi notificado a todos os interessados naquele processo de inventário, não tendo sido apresentadas reclamações.
7ª. Sucede que, no douto acórdão impugnado que conhece do recurso de apelação interposto da decisão da 1ª Instância que conheceu dos embargos de Executada à execução que foi instaurada com fundamento na sentença proferida no inventário referido, o Tribunal “a quo”, conclui que a obrigação exequenda não existe e julga procedente a apelação, revogando a sentença da 1ª Instância, julgando totalmente procedentes, por provados, os embargos à execução e, consequentemente, sem título a execução, contra o que se insurgem os Recorrentes, uma vez que, os fundamentos que sustentam o douto acórdão impugnado derrogam o princípio da intangibilidade do caso julgado formado no processo de inventário 693/08.OTBCHV, Instância Local Cível de Chaves – J2.
8º. O título executivo que serve de fundamento à execução é a douta sentença transitada em julgado, proferida no processo de inventário 693/08.0TBCHV Instância Local Cível de … – J2, conforme certidão que se encontra nos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzida e o Tribunal “a quo” decidiu, ao abrigo dos artigos 236° a 239° do Código Civil, que relativamente à verba n°1 considerada na douta sentença proferida no processo de Inventário se verifica eventual erro de cálculo de quem elaborou o mapa da partilha e, ao abrigo de tal entendimento, reduziu o montante partilhado respeitante à referida verba dos referidos € 50.625,81 para € 34.832,43, por entender que a referida verba não estica pelo que tem que lhe ser deduzido o pagamento de uma alegada dívida da herança de € 15.793,38.
9ª Mais defendeu o Tribunal “a quo” que tendo os aqui Recorrentes recebido por conta da referida verba o montante de € 5.822,06, tal quantia ultrapassa o montante que lhes cabia.
10ª. Depois defende que a decisão proferida no âmbito do processo de inventário em 14.12.2009 transitou em julgado e que tal decisão deve prevalecer sobre a douta sentença homologatória do inventário ao abrigo do disposto no artigo 625°, nº2, do Código de Processo Civil, pois, segundo o Tribunal “a quo” a decisão proferida em 14.12.2009, porque primeiro transitada em julgado, determina que se tenha que considerar no mapa da partilha os valores com redução referidos na conclusão 8ª.
12ª[2]. Ora, das conclusões que antecedem, salvo o devido respeito, resulta que o Tribunal “a quo” ignorou completamente a sentença transitada em julgado no processo de inventário que se considera nesta revista, ofendendo de forma manifesta o princípio constitucional da intangibilidade do caso julgado e o regime ordinário do caso julgado, nomeadamente, no que ao regime legal aplicável ao processo de inventário respeita.
13ª. O acórdão impugnado ao considerar, sem mais, que existe um eventual erro de cálculo deitou por terra os pressupostos das deliberações tomadas na conferência de interessados, pondo em causa o princípio da autonomia da vontade que rege em sede de partilha, nos termos do artigo 2102° do Código Civil e 1353°, n° 1, do Código de Processo Civil (antigo) e o regime do caso julgado, por ter ignorado a douta sentença que homologou a partilha acordada na conferência de interessados.
14ª. O douto acórdão impugnado interpreta a douta sentença homologatória da partilha como contendo um erro de cálculo, desvirtuando completamente o que havia sido acordado pelos interessados na conferência do processo de inventário, nomeadamente, ao considerar que se verificou um eventual erro de cálculo, relativamente à verba n°1, o que não tem um mínimo de correspondência com a vontade dos interessados, manifestada na conferência de Interessados aludida. Os interessados deliberaram como deliberaram tendo como pressuposto essencial na formação da vontade que a verba n°1 era adjudicada pelo valor inscrito na relação de bens de fls. 375 e segs., como de resto ficou escrito na ata respetiva.
15ª. Aliás, o douto acórdão não ponderou que, se o valor a considerar na verba n°1 fosse outro, o acordo quanto à partilha não seria alcançado, uma vez que, a dívida que vem apontada como sendo de um bem da herança, o mencionado apartamento de França, não era uma dívida apenas da herança, mas sim do casal constituído entre o Inventariado e a cabeça de casal, de tal modo que tal dívida foi eliminada do passivo da herança na totalidade (circunstância completamente ignorada pelo Tribunal “a quo”).
16ª. Assim, o que o Tribunal “a quo” ignorou porque não teve intervenção no processo de inventário em que foi proferida a sentença violada é que a cabeça de casal, do produto da venda daquele imóvel localizado em França recebeu o valor correspondente à meação, bem como o valor correspondente a ¼ da herança do inventariado e o valor correspondente ao usufruto deixado por testamento do inventariado, ou seja, a cabeça de casal, do produto da venda do apartamento localizado em França recebeu 75% do preço de venda, pelo que, aquela dívida nunca poderia ser imputada aos Recorridos na proporção defendida no douto acórdão impugnado, aliás, por isso mesmo foi eliminada do passivo da herança.
17ª. Acresce que, foi considerando o valor da verba n°1 que os herdeiros acordaram, também, que as outras verbas do ativo em dinheiro ou valores mobiliários ficassem na íntegra para a cabeça de casal (verbas n° 2, 3 e 4).
18ª. Ainda que se verificasse um eventual erro de cálculo que não se admite existir, o meio próprio de o corrigir com as necessárias garantias do caso julgado para todos os interessados, está previsto nos artigos 1386° e 1387° do anterior Código de Processo Civil que, deste modo, também, foram violados pelo douto acórdão impugnado. Isto é, ainda que se verificasse qualquer erro legalmente relevante na partilha realizada nos autos de inventário considerado neste recurso, era no âmbito dos autos de inventário onde a sentença homologatória da partilha foi proferida que cabia proceder à emenda, como determinam aquelas normas.
19ª. O Tribunal “a quo”, no douto acórdão impugnado fundamenta ainda a decisão proferida esclarecendo que a decisão de 14.12.2009 transitou em julgado antes da sentença que se executa, pelo que se lhe impõe – art.° 625° n°2 do Código de Processo Civil prevalecendo sobre a mesma. Todavia, o artigo 625°, n°2 do Código de Processo Civil refere-se a decisões que versem sobre a mesma questão concreta da relação processual e a sentença transitada em julgado proferida no processo de inventário não é uma decisão que verse sobre a relação processual. A sentença homologatória da partilha é uma decisão que versa sobre a relação material controvertida e, por conseguinte, o regime previsto no artigo 625°, n°2, do Código de Processo Civil não se lhe pode aplicar.
20ª. Por outro lado, confrontando a decisão proferida em 14.12.2009 e a sentença homologatória da partilha, facilmente se retira que não versam sobre a mesma questão. A primeira autoriza a cabeça-de-casal a movimentar a conta da herança (assinale-se que o Inventariado era titular de pelo menos três contas no BANCO EE e nunca foi identificada a conta da verba n° 1 da relação de bens como sendo a que seria movimentada) nada determinando quanto ao valor da verba n°1 e a sentença homologatória tem como objeto a partilha tal como foi acordada na conferência de interessados e resulta do mapa da partilha.
21ª. Isto posto, salvo o devido respeito e melhor entendimento, também por esta via interpretativa utilizada no Tribunal “a quo” se ofendeu o caso julgado constituído na douta sentença homologatória da partilha, pelo que, o douto acórdão impugnado violou o disposto nos artigos 2°, 205°, n°2 e 282°, n°3 da Constituição da República Portuguesa, os artigos 577°, al. i), 580°, 581°, 619° e 621° do Código de Processo Civil e os artigos 1386° e 1387° do anterior Código de Processo Civil.
22º. O douto acórdão impugnado, ao fazer a interpretação dos artigos 236° a 239° do Código Civil e do artigo 625°, n°2 do Código de Processo Civil de modo a retirar da douta sentença homologatória da partilha aquilo que a mesma não contém, nem nunca conteve, ou seja, que o valor da verba n°1 da relação de bens no inventário com o n° 693/08.OTBCHV, Instância Local Cível de Chaves – J2, não é o que figura na relação de bens, no mapa da partilha elaborado atendendo às deliberações dos herdeiros na conferência de interessados e, consequentemente, na douta sentença homologatória da partilha, mas outro que o Tribunal “a quo” entende fixar, viola princípio constitucional da intangibilidade do caso julgado, em concreto, não respeita o caso julgado formado quanto à partilha e ao modo de composição dos quinhões hereditários dos interessados determinado na sentença, o que dá lugar uma inconstitucionalidade material por violação daquele princípio constitucional, o que» se pede seja declarado com as legais consequências.
23ª. Sem prescindir, o respeito pelo caso julgado determina que estava vedado ao Tribunal “a quo” alterar o valor da verba n°1 objeto da partilha homologada pela douta sentença proferida no inventário considerado nestes autos. Pelo que, de modo a ser reposta a intangibilidade do caso julgado, não pode o douto acórdão impugnado manter-se, devendo ser revogado, com as legais consequências, nomeadamente, determinando-se que a sentença proferida no processo de inventário n° 693/08.0TBCHV, Instância Local Cível de … – J2, constitui título executivo relativamente à quantia exequenda e, por conseguinte, a obrigação exequenda existe.
Termos em que, contando com o douto suprimento de V. Exas., acolhendo as conclusões que antecedem e revogando o douto acórdão impugnado farão justiça.
A embargante contra-alegou, pugnando pela confirmação do Acórdão recorrido.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir, tendo em conta que a Relação considerou provados os seguintes factos[3]:
1. Na partilha a que se procedeu no inventário 693/08.0TBCHV (mapa elaborado em 16.1.2015), em face do acordo celebrado pelos interessados na acta da conferência a que aí se procedeu em 18.11.2014, homologada por sentença transitada em julgado, proferida em 12.2.2015, foi adjudicado a cada um dos exequentes um sexto da verba nº 1 da relação de bens. (Docs. a fls. 11 verso a 14, da execução, renumeradas pela relatora).
2. Tal verba fora relacionada no inventário como “Depósito em conta à ordem nº0000000294, junto do BANCO EE, com a forma de movimentação solidária – 2 titulares – FF e DD – a qual apresentava à data do óbito do inventariado o saldo de € 16.283,34 e, actualmente com o saldo de € 50.625,81”. (Docs. a fls. 6 da execução e 8 verso dos embargos).
3. No mesmo inventário, sob requerimento de todos os interessados, foi proferido despacho datado de 14.12.2009, autorizando a cabeça-de-casal, aqui embargante, a movimentar a conta bancária do inventariado (verba nº1) para proceder ao pagamento da quantia de € 15.793,38, respeitante ao condomínio do imóvel relacionado sob a verba nº18, (docs. a fls. 20, 21 e 22 verso). (Docs. a fls. 20 verso, 21 e verso, 22 verso e 23 dos embargos).
4. A Cabeça de Casal, aqui embargante juntou aos referidos autos de inventário prova de ter procedido ao aludido pagamento mediante transferência para o estrangeiro da referida quantia da conta referida em 2. (docs. a fls. 23 verso e 24 dos embargos e 15 da execução).
5. Na sequência da partilha os exequentes receberam cada um, da verba nº1, a quantia de € 5.822,06. (confessado no art.º 4º do requerimento executivo).
6. Na execução, como requerido pelos exequentes, foi penhorada a quantia de € 9.700 existente na conta bancária da executada no BANCO EE (conta de depósitos à ordem n.º 00000000416 (auto de penhora a fls. 20 da execução).
7. Tal quantia é proveniente de prestações pagas a título de aposentação da ora executada (art.º 16º da oposição à penhora, não impugnado – arts 785º nº 2, 732º nº 3 e 293º nº 3, todos do Código de Processo Civil).
Fundamentação:
Sendo pelo teor das conclusões das alegações o recorrente que, em regra, se delimita o objecto do recurso – afora as questões de conhecimento oficioso – importa saber:
- Se o Acórdão padece de nulidade por ter considerado provados os factos com que lidou, sem que, previamente, tivesse dado conta disso aos Recorridos que sustentam tratar-se de “decisão-surpresa”.
- Se o Acórdão recorrido violou o caso julgado formado com a sentença homologatória da partilha em processo de inventário, em que foram interessados a recorrente e os recorridos;
- Se, sob a invocação de erro material, o Acórdão não podia ter considerado que a Recorrente não deve a quantia por que foi executada;
- Se, por ter sentenciado no sentido contestado pelos recorrentes, violou a Constituição da República.
Vejamos.
A 1ª questão:
Os Recorrentes, reconhecendo que da decisão recorrida não constam quaisquer factos como provados, e que a Relação supriu tal omissão, consideram que incorreu numa outra ao ter omitido a audição das partes, nos termos do art. 655º, nº3, do Código de Processo Civil, antes de considerar a matéria de facto com que lidou.
De referir, quanto a este aspecto, que os ora Recorrentes não contestaram os embargos. Não foi suscitada pela Recorrente a nulidade da sentença apelada, pelo que, em bom rigor, o Tribunal da Relação se limitou a elencar os factos emergentes da dinâmica processual que constam da certidão que emerge da instrução do recurso.
Não tendo os ora Recorrentes contestado os embargos, nem a oposição à penhora, as consequências dessa opção são as que, como bem assinala o Acórdão recorrido, se acham previstas no nº3 do art. 732º do Código de Processo Civil, “À falta de contestação é aplicável o disposto no n.°1 do artigo 567º, e no artigo 568.°, não se considerando, porém, confessados os factos que estiverem em oposição com os expressamente alegados pelo exequente no requerimento executivo” e quanto à oposição à penhora o nº2 do art. 785º: “O incidente de oposição à penhora segue os termos dos artigos 293.º a 295.º, aplicando-se ainda, com as necessárias adaptações, o disposto nos nºs 1 e 3 do artigo 732.°.
Nos termos do art. 567º, nº1, do diploma adjectivo – “Se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor.” No caso, adaptadamente, não tendo os exequentes/embargados contestado os embargos e a oposição à penhora, a revelia, que é operante, implica que se considerem confessados os factos alegados pela executada.
Os recorridos não discordam do elenco dos factos considerados provados, pelo que não se considera que tenha havido procedimento violador dos seus direitos em sede de contraditório, sequer “decisão-surpresa”.
Não tendo contestado, haveriam de saber que a consequência da revelia era a aplicação cominatória prevista na lei. Se, porventura, a Relação tivesse considerado factos que não o deveriam ter sido, ou não elencando outros que o deveriam ter sido, os Recorrentes não deixariam de o alegar em sede de recurso.
Não existe, pois, a arguida nulidade: o Tribunal da Relação teria, para aplicar o direito, que considerar aqueles factos como factos provados.
Os exequentes/embargados instauraram execução para pagamento de quantia certa contra a executada, sustentando que, tendo sido adjudicado, a cada um deles, um sexto da verba nº1 da relação de bens – valor do depósito de uma conta bancária no montante de € 50 625,80 – no inventário que ocorreu por morte do seu pai e marido da executada, e tendo a partilha sido homologada por sentença transitada em julgado, no identificado processo de inventário, foram surpreendidos pelo facto da executada, sua mãe e cabeça-de-casal naquele inventário, a ter movimentado a débito, pelo que não receberam a quantia que a cada um cabia de € 8 437,64, mas a de € 5 822,36.
Esta quantia foi-lhes entregue pelo BANCO EE, em 28.9.2015, após habilitação, pelo que, aduziram, lhes são devidos também juros, pelo menos desde tal data.
A executada embargou, alegando que a quantia que levantou daquela conta, e que afectou o valor que a cada um dos exequentes coube, o foi com o consentimento de todos e com expressa autorização do Tribunal onde correu o inventário, destinando-se a pagar a quantia de € 15 793,30 por dívida de despesas de condomínio de um imóvel da herança, sito em França, relacionado sob a verba nº 18 da relação de bens.
O Tribunal, assim decidiu, por despacho de 14.12.2009, transitado em julgado no processo de inventário, decisão com a qual todos concordaram, prescindindo, inclusivamente, do prazo de recurso – documento de fls. 23. Autorizado e comprovado tal pagamento nada deve aos exequentes, sustenta a Recorrente.
Por isso, não foi abusivo o levantamento da quantia que consta do mapa da partilha elaborado, erradamente, sem ter contemplado aquele pagamento que diminuiu o valor da verba nº1.
O Tribunal de 1ª Instância, considerando que o título executivo invocado pelos ora recorridos é a sentença transitada em julgado, homologatória da partilha, julgou os embargos improcedentes, considerando que, a existir erro, deveria ele ser corrigido no processo de inventário.
Menos formalista e, por isso, mais próximo das realidades da vida, foi a interpretação contrária acolhida no Acórdão recorrido.
A fls. 72/73 pode ler-se:
“Os títulos executivos, mesmo quando são uma sentença, como qualquer outro documento, devem ser interpretados de acordo com as regras constantes dos arts. 236° a 239° do Código Civil (…). No caso em apreço estamos perante uma sentença homologatória de uma partilha, elaborada nos termos do acordo celebrado pelas partes, nos autos de inventário. Para a sua interpretação é inexorável fazermos apelo também à relação de bens apresentada e suas eventuais modificações, posteriormente introduzidas. Aos exequentes, filhos da Cabeça de Casal, coube 1/6 da verba n°1 (depósito em dinheiro). A verba n° 1 não estica, pelo que eventual erro de cálculo de quem elaborou esse mapa sempre poderia, em sede da presente execução, ser atendido, sem necessidade de prévia rectificação, desde que fosse evidente. Ora, no caso em apreço, em face de uma decisão transitada em julgado nesses autos, a verba n°1 (€ 50.625,81) foi reduzida do montante necessário ao pagamento da dívida da herança no valor de € 15.793,38, passando a corresponder a € 34.832,43. Como bem o sabem os exequentes, não só porque o requereram no inventário, mas também porque prescindiram do prazo de recurso do despacho que autorizou tal pagamento (doc. a fls. 23 dos embargos). Tendo os exequentes, por força da partilha acordada, direito a 1/6 dessa verba deveriam receber € 5.805,40. Tendo recebido € 5.822,06, quantia que até ultrapassa o montante que lhes cabia, nada mais lhes é devido. Com efeito a decisão de 14.12.2009 transitou em julgado antes da sentença que se executa, pelo que se lhe impõe – art. 625°, n° 2, do Código de Processo Civil – prevalecendo sobre a mesma. No caso tal prevalência da decisão proferida em 14.12.2009 impõe que se considere no mapa da partilha os valores acima referidos e não os que dele constaram, na ignorância da prévia redução do valor da verba n°1. Assim os presentes embargos sempre procederiam, quer por via da interpretação do título executivo, neste caso uma sentença homologatória de uma partilha, constante de um mapa a elaborar em função do que foi acordado pelos interessados e do que mais decorria dos autos no tocante às verbas a partilhar. Quer por força do “caso julgado” intraprocessual, que impõe a prevalência do decidido em 14.12.2009 sobre qualquer outra decisão posteriormente proferida nesses autos – cfr. arts. 625° e 729°al. f) do Código de Processo Civil. Consequentemente, em face do título, a obrigação exequenda não existe”.
Os Recorrentes alegam que este entendimento que, por um lado, considerou ter havido um erro material, interpretando o título executivo, que contaminou a sentença, mas antes que se formara caso julgado quando o Tribunal do inventário autorizou (e os ora recorrentes também), a ora recorrida a movimentar a conta bancária para pagar uma dívida atinente a um bem da herança, violou de forma flagrante o caso julgado formado pela sentença homologatória da sentença proferida no inventário - Processo nº693/08.0TBCHV- por morte dos pais e marido da recorrida.
Vejamos se a decisão objecto de revista violou o caso julgado, nos termos afirmados pelos recorrentes. O art. 581º do citado diploma (igual ao art.498º) - (Requisitos da litispendência e do caso julgado) estatui: 2. Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. 3. Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. 4. Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico. Nas acções reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas acções constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.” “A excepção do caso julgado consiste na alegação de que a acção proposta é idêntica a outra – ou é a repetição de outra – já decidida por sentença com trânsito em julgado” – J. Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, 3.°-91.
“É o facto de um pleito haver sido resolvido por uma decisão judicial de que já não é possível interpor recurso ordinário ou reclamação”- Palma Carlos, “Direito Processual Civil, Acção Executiva”, 1967-l03.
“Caso julgado é a alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito que não admite recurso ordinário” – Antunes Varela, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed. -307). É material o que assenta sobre decisão de mérito proferida em processo anterior; nele a decisão recai sobre a relação material ou substantiva litigada; é formal quando há decisão anterior proferida sobre a relação processual. Ele pressupõe a repetição de qualquer questão sobre a relação processual dentro do mesmo processo (ob. cit., 308). Ambos pressupõem o trânsito em julgado da decisão anterior.” Como ensina Manuel de Andrade, in “ Noções Elementares de Processo Civil”, edição de 1979, pág. 320:
“O que a lei quer significar é que uma sentença pode servir como fundamento da excepção de caso julgado quando o objecto da nova acção, coincidindo no todo ou em parte com o da anterior, já está total ou parcialmente definido pela mesma sentença; quando o Autor pretenda valer-se na nova acção do mesmo direito (...) que já lhe foi negado por sentença emitida noutro processo identificado, esse direito não só através da sua causa ou fonte”.
No caso em apreciação, importa ponderar o objectivo do processo de inventário, onde se contém a decisão que os Recorrentes consideram ter sido ofendida, bem como a natureza do processo executivo e dos embargos que lhe são opostos.
Diremos que a finalidade, logo, a causa de pedir e os pedidos, não são coincidentes. Com efeito, no processo de inventário, o que os interessados visam é a divisão da herança, a composição os seus quinhões, limitando-se, no comum dos casos, o Juiz a homologar o mapa da partilha e com a adjudicação, cada um se torna proprietário do seu quinhão: a herança foi dividida.
Na execução há um título executivo e por ele se mede, se afere, não só a legitimidade activa e passiva, como o objecto da execução. O título executivo é a prova de primeira aparência, de índole documental as mais das vezes, que o credor invoca para obter coercivamente o pagamento pelo seu devedor. Formalmente, no nosso direito, traduz-se num documento. Por isso, título executivo pode definir-se como o documento que, por oferecer demonstração legalmente bastante da existência de um direito a uma prestação, pode, segundo a lei, servir de base à respectiva execução” – Castro Mendes, “Direito Processual Civil” – 1980, I, 333.
Pese embora, no caso, o título executivo ser a sentença homologatória da partilha em processo de inventário é manifesto que não existe a tríplice identidade suposta na figura do caso julgado: sujeitos, pedido e causa de pedir.
Mas, tendo o título exequendo a montante, uma sentença que definiu os valores que cabiam a cada um dos ora exequentes, será que o facto de se demonstrar que esse título não corresponde à realidade, por não comportar o valor objecto da execução, advindo do inventário, pode ser objecto de modificação por via de embargos à execução?
Os embargos de executado não se destinam a contestar o requerimento executivo, sendo antes: - “Acções declarativas estruturalmente autónomas, porém instrumental e funcionalmente ligadas às acções executivas – nelas correndo por apenso – pelas quais o executado pretende impedir a produção dos efeitos do título executivo ” – cfr. “Curso de Processo Executivo Comum”, de Remédio Marques, págs. 150-151.
Os fundamentos de oposição à execução baseada em sentença acham-se previstos no art. 729º do Código de Processo Civil, entre eles a inexistência ou inexequibilidade do título (al. a).
Ante aquela interrogativa, importam breves considerações sobre a figura, afim, da autoridade do caso julgado – que prescinde da tríplice identidade, que é exigida no instituto do caso julgado.
“Das relações de inclusão entre objectos processuais nascem as situações de consumpção objectiva; a consumpção objectiva pode ser recíproca, se os objectos processuais possuem idêntica extensão, e não recíproca, se os objectos processuais têm distinta extensão; a consumpção não recíproca pode ser inclusiva, se o objecto antecedente engloba o objecto subsequente, e prejudicial, se o objecto subsequente abrange o objecto antecedente [...]. [...] A excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional, duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior: a excepção de caso julgado garante não apenas a impossibilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira diferente (Zweierlei), mas também a inviabilidade de o tribunal decidir sobre o mesmo objecto duas vezes de maneira idêntica (Zweimal).” (pág. 176) [...] Quando vigora como autoridade de caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção ou a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição no processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição da decisão antecedente.” (pág. 179).
Neste sentido, in multis, o Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 19.2.98, in www.dgsi.pt., número convencional JSTJ00032922, de que foi Relator o Conselheiro Miranda Gusmão.
“I – O instituto do caso julgado material é analisado numa dupla perspectiva: como excepção de caso julgado e como autoridade de caso julgado. II – O caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo posterior quando o objecto processual anterior (pedido e causa de pedir) é condição para a apreciação do objecto processual posterior. III – O caso julgado de decisão anterior releva como excepção de caso julgado no processo posterior quando a apreciação do objecto processual anterior (pedido e causa de pedir) é repetido no objecto processual subsequente...”.
No mesmo sentido a lição de Manuel de Andrade, in “Noções Elementares do Processo Civil”, 1979, págs. 320 e 321:
“O que a lei quer significar é que uma sentença pode servir como fundamento de excepção de caso julgado quando o objecto da nova acção, coincidindo no todo ou em parte com o da anterior, já está total ou parcialmente definido pela mesma sentença… “Esta interpretação permite chegar a resultados positivos bastante parecidos com aqueles a que tende uma certa teoria jurisprudencial, distinguindo entre a excepção do caso julgado e a simples invocação pelo Réu da autoridade do caso julgado que corresponde a uma sentença anterior, e julgando dispensáveis, quanto a esta figura, as três identidades do artigo 498.º”
Voltando à lição de Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Processo Civil”, pág. 579, “[…] não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.
Dada a natureza do processo de inventário em que o conceito de partes não é sobreponível ao conceito de interessados, próprio destes processos, e não tendo a sentença homologatória da partilha versado, em concreto, a questão que a agora se discute nos embargos, relacionada com o valor do quinhão dos executados, na sequência do acordo para levantamento da quantia que determinou que recebessem menos da verba nº1, entendemos que tal decisão não faz caso julgado e, como tal, que o Acórdão recorrido não o violou.
De convocar o sentenciado no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 29.6.2010, Proc. 67-A/1999.P1.S1 – in www.dgsi.pt, de que foi Relator Sebastião Póvoas:
“Quer na vigência do regime do Código de Processo Civil (artigos 1326.º e seguintes) quer no actual Regime Jurídico do Processo de Inventário (Lei n.º 29/2009, de 29 de Junho) a sentença homologatória da partilha só constitui caso julgado material quanto às questões que expressa, e explicitamente, decidiu e não quando se limita a “chancelar” ou “autenticar” uma partilha acordada.”
No caso poder-se-ia, quando muito, invocar a autoridade do caso julgado, mas essa consideração, desvanece-se por duas ordens de razões:
a) no processo de inventário existe uma decisão transitada em julgado, que não versa sobre a relação processual (logo não faria caso julgado formal), mas sobre a relação substantiva: a que autorizou, com o acordo expresso de todos os interessados, que da verba nº1, fosse retirada a quantia em dinheiro, requerida pela cabeça-de-casal; ora, essa verba que logo diminuiu consensualmente o valor a partilhar (depósito bancário) nunca poderia ser aquela que, por erro manifesto, consta do mapa da partilha e da sentença homologatória transitada em julgado;
b) a segunda razão, é que existindo execução, o direito exequendo incorporado no título, pode ser contestado pela via da oposição.
No caso, o Acórdão recorrido considerou que, existindo erro manifesto de cálculo,[4] que é o que existe e que contaminou a sentença homologatória da partilha, ele poderia ser considerado na decisão, nos termos do art. 249º do Código Civil, não sendo necessário que os interessados fossem, previamente, ao processo de inventário pedir a respectiva rectificação.
Existindo um erro material manifesto, seja de cálculo, seja de escrita, consubstanciado no facto do Tribunal do inventário não ter considerado a decisão transitada em julgado que, por força do decidido, diminuiu o valor da verba nº1, decisão primeira que, a ter sido acolhida, estaria reflectida no mapa da partilha e na sentença que o homologou, não deixa de constituir injustificado apego a razões formais a invocação de que estando o erro coberto pela sentença transitada em julgado, a executada, em sede de oposição, ao sustentar que a dívida exequenda inexiste está a violar o caso julgado, ou impor-lhe, a inexorabilidade do título executivo, exigindo que tivesse antes, com os demais interessados, pedido a rectificação da sentença homologatória da partilha ou dela recorrido.
Aproximando a conclusão, sempre diremos que, neste Supremo Tribunal de Justiça, e independentemente dos fundamentos do recurso e das conclusões formuladas, a pretensão dos Recorrentes não poderia ser acolhida.
A sua conduta de litigantes, contra a sua mãe, tendo agredido, inclusivamente, a sua pensão de reforma, para cada um deles obter uma magra quantia, a que não têm direito, viola de forma clamorosa a regra da boa fé, exprimindo claro abuso do direito na modalidade de venire contra factum proprium – art. 334º do Código Civil.
Como antes se disse, os ora recorrentes foram confrontados, no processo de inventário, com um requerimento da ora recorrente sua mãe que, na qualidade cabeça-de-casal, pediu autorização para levantar da conta bancária relacionada (verba nº1) uma verba, que claramente indicou, para proceder ao pagamento de quantia que importava pagar como dívida de um imóvel da herança sito em França (dívidas de condomínio). Prestamente todos anuíram, ao ponto de terem prescindido do prazo de recurso - fls. 22 verso e 23.
Como se provou: “No mesmo inventário, sob requerimento de todos os interessados, foi proferido despacho datado de 14.12.2009, autorizando a cabeça-de-casal, aqui embargante, a movimentar a conta bancária do inventariado (verba nº1) para proceder ao pagamento da quantia de € 15.793,38, respeitante ao condomínio do imóvel relacionado sob a verba nº18. (docs. a fls. 20, 21 e 22 verso). (Docs. a fls. 20 verso, 21 e verso, 22 verso e 23 dos embargos) ”.
Bem sabendo que, por força daquele pagamento a que todos estavam obrigados, viriam a receber menos à custa do depósito que constitui a verba nº1 da relação de bens no inventário, prevalecendo-se, descabidamente, de estritas razões formais e de erro que, claramente conhecem, dando o dito por não dito (venire), sujeitando a cabeça-de-casal à injusta execução.
O abuso do direito é um instrumento morigerador de actuações que só formalmente aparentam salutar exercício do direito, mas, que no caso concreto, deturpam e agridem o sentimento de justiça dominante. “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”
O instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações, seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça.
Como afirma Ihering, in “A Luta pelo Direito”, “O direito não é uma simples ideia, é uma força viva. Por isso a Justiça sustém numa das mãos a balança com que pesa o direito, enquanto na outra segura a espada por meio da qual o defende. A espada sem balança é a força bruta, a balança sem a espada, é a impotência do direito”.
“O abuso de direito pressupõe a existência da uma contradição entre o modo ou fim com que a titular exerce o direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito a casos em que se excede os limites impostos pela boa fé.” – Ac. do Supremo Tribunal de Justiça, de 28.11.96, in CJSTJ, 1996, III, 117.
A parte que abusa do direito, actua a coberto de um poder legal, formal, visando resultados que, clamorosamente, violam os limites impostos pela boa-fé, ou pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social do direito.
Uma das vertentes em que se exprime tal actuação, manifesta-se, quando tal conduta viola o princípio da confiança, revelando um comportamento com que, razoavelmente, não se contava, face à conduta anteriormente assumida e às legítimas expectativas que gerou – “venire contra factum proprium”.
“Há abuso do direito, segundo a concepção objectiva aceite no artigo 334º sempre que o titular o exerce com manifesto excesso dos limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes, ou pelo fim económico ou social desse direito. Não é necessária a consciência, por parte do agente, de se excederem com o exercício do direito os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito; basta que, objectivamente, se excedam tais limites”. – “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, pág. 536, Antunes Varela.
Para que se possa considerar abusivo o exercício do direito, importa a demonstração de factos através dos quais se possa considerar que, no exercício do direito, foram excedidos, manifestamente, clamorosamente, o seu fim social ou económico, ou que, com a sua actuação, os exercentes violaram sérias expectativas por si incutidas na contraparte, assim traindo o seu investimento na confiança, violando a regra da boa-fé – art. 762º,nº2, do Código Civil.
O art. 334º do Código Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.
A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.
Como ensina o Professor Antunes Varela, obra citada, pág. 536:
“Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder. É preciso, como acentuava M. de Andrade, que o direito seja exercido, “em termos clamorosamente ofensivos da justiça”.
No âmbito da fórmula “manifesto excesso” cabe a figura da conduta contraditória – “venire contra factum proprium” - que se inscreve no contexto da violação do princípio da confiança, o que sucede quando o agente adopta uma conduta inconciliável com as expectativas adquiridas pela contraparte, em função do modo como antes actuara.
O abuso do direito - “como válvula de escape” só deve funcionar em situações de emergência, para evitar violações clamorosas do direito.
Como escreve o Prof. Menezes Cordeiro, in “Da Boa Fé no Direito Civil”- Colecção Teses -, pág.745, - O “Venire contra factum proprium” postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – o factum proprium - é, porém contrariado pelo segundo.”
Ora, como dissemos, a actuação dos recorridos/exequentes, não tendo sequer contestado a oposição, e recorrendo, na perspectiva da defesa de um ponto de vista que contraria a sua conduta anterior, visando o recebimento à custa do património da executada de quantias que, de antemão sabem não serem credores, exprime abuso do direito e, como tal, não pode ser atendida.
Ademais, com estes fundamentos foram, no essencial, condenados como litigantes de má fé, sendo que, a este propósito, nada versaram nas conclusões das alegações o recurso.
A findar importa dizer que a interpretação acolhida no Acórdão recorrido e que aqui, nas questões versadas se sufraga, não viola quaisquer preceitos constitucionais, mormente, o que os Recorrentes consideram o “princípio constitucional da intangibilidade do caso julgado e a da autonomia privada”, quando se referem à auto-composição dos seus quinhões hereditários pela via do consenso, na conferência de interessados do inventário: citam os artigos 2°, 205°, n°2 e 282°, n°3, da Constituição da República.
Decisão:
Nega-se a revista.
Custas pelos recorrentes.
Supremo Tribunal de Justiça, 05 de setembro de 2017 Fonseca Ramos – Relator Ana Paula Boularot Pinto de Almeida _______________________________________________________ [3] Antes da enunciação da matéria de facto, consta do Acórdão recorrido: “A) Omissão dos fundamentos de facto na sentença recorrida. Estabelece o art.º 607,º nº 3, do Código de Processo Civil, que, na sentença, o juiz deve discriminar os factos que julga provados. Tal dispositivo é também aplicável ao saneador sentença, isto é, quando o juiz se julgue habilitado a conhecer do mérito logo no saneador (art.º 595º nº 1 al. b) e nº3). Tal obrigação decorre também do disposto no art.º 154º do Código Civil e 205º nº 1 da Constituição da República. Não constando da sentença os fundamentos de facto esta é nula (art.º 616º nº 1 al. b) do Código de Processo Civil). Nulidade que este Tribunal suprirá para efeitos da apreciação do presente recurso. Assim, tendo em conta o disposto nos arts. 732º nº 3 e 785º nº 2 do Código de Processo Civil (consequências da falta de contestação dos embargos e da oposição à penhora) e os documentos juntos aos autos, que fazem prova plena dos factos neles contidos, consideramos assente a seguinte factualidade.” |