Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
190/18.6YRGMR.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO MAGALHÃES
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DIVÓRCIO
DECISÃO DE AUTORIDADE ADMINISTRATIVA
CONSERVADOR DO REGISTO CIVIL
Data do Acordão: 09/29/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDER A REVISTA
Sumário :
I - A decisão que consta do art. 978.º do CPC deve ser entendida de forma ampla, de modo a abranger decisões proferidas quer por autoridades judiciais quer por autoridades administrativas.

II - Nesta segunda hipótese se insere o caso de uma Conservatória do Registo Civil da Ucrânia que, nos termos da lei ucraniana, e com base em requerimento conjunto dos cônjuges, ou de um deles, procede ao registo do divórcio.

III - A certidão de divórcio, emitida pela referida Conservatória, comprova a existência de uma decisão administrativa subjacente ou correspondente ao registo do divórcio, que carece e é susceptível de revisão.
Decisão Texto Integral:

Revista nº 190/18.6YRGMR.S1



Acordam na 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:


*

           AA, cidadão de nacionalidade portuguesa, residente em ..., instaurou no Tribunal da Relação de Guimarães, contra BB, residente em ..., acção especial de revisão de sentença estrangeira, ao abrigo dos arts 978º e segs. do CPC.

            Alegou, em síntese, que, “por decisão emitida em 2 de Julho de 2014 pela Conservatória do Registo Civil … de …, distrito de …, órgão competente para o efeito, no âmbito do processo de Divórcio Consensual, foi decretado o divórcio e dissolvido o casamento entre o requerente e a requerida – conforme Decisão de Divórcio devidamente traduzida e certificada, que ora se junta”; que “Tal decisão transitou em julgado na mesma data, tendo sido ordenado o respectivo averbamento ao registo civil” e que, relativamente à mesma, estão verificados todos os demais requisitos previstos no artº 980º, CPC, como necessários para ela ser confirmada.

           Consequentemente, pediu que “deve a final ser confirmada a decisão em questão, para todos os devidos efeitos legais, designadamente, para que o divórcio produza todos os seus efeitos em Portugal”.

            Juntou documento alusivo ao divórcio provindo da ....

            Pelo Relator foi proferido despacho em que, constatando a falta de sentença a rever, e a inerente falta de causa de pedir, convidou o requerente a pronunciar-se sobre esta e sobre a falta de interesse em agir, no prazo de 10 dias, nos termos que entender convenientes e/ou juntar os documentos adequados, com a advertência de que, findo o mesmo, se tomará posição, na perspectiva da validade do processo e da regularidade da instância, quanto ao desfecho dos mesmos.

            Após, o requerente esclareceu que o seu casamento, contraído na ..., estava averbado ao seu Assento de Nascimento transcrito em Portugal e daí o seu interesse e requereu prazo para juntar a certidão da decisão de divórcio.

            Porém, o demandante apresentou requerimento alegando que foi informado que o documento/certidão do registo era o único que existe e servia de prova do divórcio, pelo que entendeu que ele era válido para o fim pretendido, tinha “força de sentença judicial” e tinha sido emitido “no âmbito de um processo de dissolução do casamento por mútuo consentimento, realizado em sede administrativa”. Juntou cópia de emails sobre o assunto recebidos da Embaixada da ... em Lisboa.

            Pelo Relator foi proferido despacho em que, insistindo na falta de uma sentença, mesmo que proferida por autoridade administrativa, e na desnecessidade da revisão, para o caso de essa sentença não existir, designadamente face ao disposto no art. 6º do CRC, determinou o seguinte: “ a) Notifique o requerente para informar se solicitou o averbamento do divórcio, em Portugal, na Conservatória do Registo Civil; no caso negativo, por que razão o não fez; no caso afirmativo, qual o resultado; b) Notifique-o também para diligenciar pela obtenção (porventura junto da Embaixada consultada) de cópia da parte do Código de Família da ..., traduzida para português, que trata dos diferentes tipos de processo de divórcio e do respectivo registo na Conservatória; c) Entretanto, para obviar a maiores delongas, cite a requerida, incluindo a cópia dos despachos proferidos e requerimentos apresentados após a petição inicial; d) Notifique este despacho.”

            A requerida, devidamente citada, não interveio nos autos.

            O requerente, entretanto, informou que se dirigiu à Conservatória de Registo Civil Portuguesa mas aí foi informado que não é possível averbar o seu divórcio sem o mesmo ser revisto e confirmado por tribunal português.

           Em alegações, o Ministério Público sustentou não haver obstáculo à requerida revisão e confirmação “da decisão que decretou o divórcio”.

            Por sua vez, o requerente, reiterando o que já alegara ao longo dos autos, defendeu que devia a acção ser julgada procedente e confirmar-se “a decisão que decretou o divórcio”.

            Seguiu-se acórdão em que os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães acordaram em julgar improcedente, por não provada, a acção e, consequentemente, em absolver a requerida do pedido.

            Com este acórdão não se conformou o requerente que dele interpôs recurso de revista formulando as seguintes conclusões:

            “1. O douto acórdão do Tribunal que agora se recorre, salvo o devido respeito, alicerçou a sua decisão numa interpretação errada das normas jurídicas aplicáveis.

            2. O douto Tribunal entendeu que no presente caso se estava perante um acto de publicitação do divórcio e não perante uma decisão constitutiva que tenha extinguido a relação conjugal.

            3. Considerou dessa forma que a decisão junta aos autos pelo requerente era um mero acto de registo que, por natureza e função, não se equipara nem tem a força de decisão constitutiva, heterocompositivamente declarada para se tornar eficaz, concluindo que ao não existir decisão, nada havia para o Tribunal reconhecer.

           4. Entendeu assim o douto Tribunal que nenhum papel lhe caberia bastando que a Conservatória aplicasse o artigo 6º do CRC para fazer ingressar no registo civil nacional o acto de registo …. face à certidão do mesmo.

           5. Salvo o devido respeito, o requerente nos autos, ora recorrente, não se pode conformar com tal douta decisão porquanto o documento constante dos autos é uma certidão que atesta a decisão de divórcio devidamente traduzida e apostilada.

            6. Consta dos autos, fls. 11 a 14, documento que atesta que o divórcio em questão foi decretado por entidade administrativa competente, em concreto, por decisão emitida em 2 de Julho de 2014 pela Conservatória do Registo Civil do Serviço do Registo do Departamento de Justiça do Concelho de …, distrito de ..., 10/15 9 dissolvendo-se o casamento entre o requerente, ora recorrente e a requerida, sendo tal decisão equiparada a uma sentença.

           7. A mencionada Decisão consta de documento cuja autenticidade e inteligência não suscita qualquer dúvida, provém de entidade estrangeira competente e não versa sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses.

           8. Em virtude das dúvidas levantadas pelo tribunal o ora recorrente solicitou ainda informação junto dos competentes Serviços do Registo Civil da ... quanto à possibilidade de existência de outro documento passível de ser junto aos presentes autos tendo a resposta sido negativa.

            9. O recorrente solicitou, por escrito, a mesma informação aos serviços competentes da Embaixada da ... em Lisboa, constando dos autos emails desta embaixada a informar que tal documento “serve como prova do facto da dissolução de casamento entre o casal …. tanto na ..., como no estrangeiro.”

           10. A requerida não apresentou contestação que pudesse contrariar o alegado.

           11. Desta forma, nos presentes autos, e de forma clara e evidente, foram observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes sendo que o reconhecimento da decisão em questão não conduz a resultado manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado Português.

           12. Pelo que ao decidir como fez, o douto acórdão recorrido incorre na sua fundamentação, toda ela de direito, numa clara violação da lei, em concreto do disposto nos artigos 978º, 980º e 983º do CPC, e numa interpretação incorrecta do disposto nos artigos 6º e 7º do CRCivil.

            13. A decisão que foi junta aos autos como prova da dissolução do casamento no país de origem, é valida para os efeitos pretendidos, tem a força de Sentença Judicial, uma vez que foi emitido pelos competentes serviços de registo civil da ..., no âmbito de um processo de dissolução do casamento por mútuo consentimento, realizado em sede Administrativa.

            14. A este propósito, e no âmbito de uma questão de todo em todo semelhante à levantada nos presentes autos, decidiu já o Supremo Tribunal de Justiça, vide douto Acórdão, com o n.º de processo 05B1880, número convencional JSTJ000 e com data de 12-07-2005.

           15. Ao contrário do sugerido pelo acórdão de que agora se recorre, não é possível efectuar o averbamento do seu divórcio através da conservatória do registo civil em Portugal, uma vez que a ... não é um País membro da CE e o seu caso não se encontra abrangido pelo Regulamento CE N.º 2201/2003 do Conselho, de 27 de Novembro de 2003.

           16. Igual fundamentação foi invocada pelo Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Guimarães, vide requerimento do ilustre e Excelentíssimo Sr. Procurador-Geral Adjunto, junto aos presentes autos no dia 4 de Abril de 2019, por se tratar da aplicação mais consentânea com o espirito das normas aplicáveis ao caso em apreço.

            17. Impõe-se assim decisão diversa da recorrida sob pena de se esvaziar o processo de revisão de sentença estrangeira, devendo este douto Supremo Tribunal de Justiça determinar a procedência do peticionado e decretando-se a confirmação da decisão emitida pelos Serviços de Registo Civil da ..., determinando-se assim a produção de efeitos do divórcio na ordem jurídica portuguesa. 12/15 11

            18. Ao decidir como fez o douto acórdão de que agora se recorre, violou as normas constantes dos artigos 978º, 980º e 983º do CPC, interpretando de forma errónea o dispôs nos artigos 6º e 7º do CRCivil. “

            Pede, a terminar, que seja revogado o acórdão recorrido.

            Não houve contra-alegações.
Cumpre decidir.
Com base nos documentos juntos, não impugnados, a Relação considerou relevantes e provados os seguintes factos:
“a) O requerente AA nasceu em …-1972 em …., …., …, ... – Assento nº ... do ano de 2012, junto a fls. 20 dos autos, lavrado na Conservatória dos Registos Centrais de Lisboa, lavrado com base em pública-forma de certidão de registo;
b) O requerente adquiriu nacionalidade portuguesa por decisão de 14-04-2012, da Conservatória do Registo Civil de Bragança, sendo fixado o nome AA, e é portador do Cartão de Cidadão Português nº … válido até 29-03-2022 – Averbamento nº 1 ao Assento de Nascimento de fls. 21-vº e cópia de fls. 6 e 7.
c) Casou civilmente com BB, em …-1992, em …, ..., conforme Averbamento nº 2 ao Assento de Nascimento de fls. 21-vº do seu Assento de Casamento nº 75 de 2012 lavrado na Conservatória do Registo Civil de Bragança – fls. 21-vº.
d) Do documento nº 1 que, em língua …., juntou com a petição inicial e designou como “Decisão de Divórcio”, constante de fls. 11, segundo a respectiva tradução em língua portuguesa de fls. 14, resulta: “... – Certidão de Divórcio – O casamento entre o cidadão AA (nome patronímico – ….) e a cidadã BB (nome patronímico – ….), foi dissolvido – No livro de Registos de Divórcio, referente ao ano de 2014, no mês de Julho, no dia 02, foi feito o registo com o nº 08. Apelidos atribuídos após registo do divórcio: Cidadão: AA Cidadã BB – Local de Registo: Conservatória do Registo Civil do Serviço de Registo do Departamento de Justiça do concelho de …., distrito de ... – Entidade Estatal que emitiu a certidão: Conservatória do Registo Civil do Serviço de Registo do Departamento de Justiça do Concelho de ..., distrito de ... – Esta certidão foi entregue ao cidadão AA. Data de emissão: 02-07-2014.”. Tal documento tem Apostilha segundo a qual a certidão foi assinada pelo Conservador – fls. 11 e 14
e) Por mail de 15-01-2019, junto aos autos, dirigido ao Exmº Advogado do autor, “Em resposta ao solicitado em 11.01.2019, a Secção Consular da Embaixada da ... na República Portuguesa informa V. Ex.ª que, segundo a legislação da ... em vigor, um casamento pode ser dissolvido mediante apresentação de um respetivo pedido de ambos os cônjuges à Conservatória do Registo Civil da ... que registou o matrimónio se a decisão sobre o divórcio for por mútuo consentimento (Art.º 105 do Código de Família da ...) ou mediante um requerimento sobre o divórcio ao Tribunal competente, apresentado em conjunto ou, apenas, por um dos cônjuges, caso o casal tenha filhos em comum ou existam disputas sobre a partilha de bens adquiridos (Art.º 109 e 110 do referido acima Código). Deste modo, se o divórcio tenha sido ocorrido junto de uma Conservatória do Registo Civil, como prova da dissolução de casamento é emitida Certidão de Divórcio (um exemplar a cada um dos ex-cônjuges). Caso o divórcio tenha sido ocorrido junto de Tribunal – é emitida uma Sentença (Decisão) de Tribunal sobre o divórcio, também, um exemplar a cada um dos ex-cônjuges. Ambos os documentos têm o mesmo valor legal para fins de prova da dissolução de casamento, mas na certidão de casamento é registado apenas o facto de divórcio e na sentença – motivos e fundamentos para o divórcio. Também, se o processo de divórcio correu termos em Tribunal, existe possibilidade de requerer a emissão de uma certidão de divórcio com base na sentença de tribunal sobre o divórcio. Porém, assim como na ... não existem «certidões narrativas», a referida certidão não terá averbamentos sobre a sentença que deu origem à sua emissão. Para verificar se uma determinada certidão de divórcio foi emitida ou não com base em sentença do Tribunal, será necessário requerer à entidade competente da ... a emissão de um Extrato do Registo Civil completo referente ao casamento, o qual terá toda informação desde o registo de casamento até à sua dissolução com devidos averbamentos.”
f) Por mail de 15-02-2019, junto ao autos, “a Secção Consular da Embaixada da ... na República Portuguesa informa V. Ex.ª que a certidão em anexo é uma Certidão de Divórcio, emitida em nome AA pela Conservatória do Registo Civil do concelho de ..., distrito de .... A mesma possui também Apostila de acordo com o estipulado na Convenção da Haia de 1961 e serve como prova do facto da dissolução de casamento entre o casal …. tanto na ..., como no estrangeiro.”
A Relação declarou ainda: “ Não se provou, por ausência do documento respectivo, o teor de qualquer alegada (item 1º da petição) decisão proferida, designadamente pela Conservatória, que tenha decretado o divórcio e ordenado o seu averbamento ao registo civil no âmbito do referido processo de dissolução do casamento (item 6º do requerimento de 15-02-2019), já que apenas foi junta certidão, por aquela emitida, de que “foi feito o registo” e de que “o casamento foi dissolvido”.
O Direito:
Depois de exaustiva e aprofundada apreciação sobre os requisitos da revisão de sentenças estrangeiras, a Relação sublinhou o seguinte, relativamente ao caso concreto: que desconhece a causa do divórcio, qual o acto precedente modificativo da relação jurídica (dissolução) a confirmar e a rever, se ele teve origem em processo judicial, administrativo ou numa escritura notarial; no entanto, mesmo admitindo que o divórcio tenha sido por mútuo consentimento e em sede administrativa, não conhece qualquer decisão constitutiva que tenha servido depois de base ao acto de registo efectuado, sendo que o acto de registo, por natureza e função, não se equipara nem tem a força de decisão constitutiva; aliás, se o fundamento ou causa de pedir desta acção radicasse tão-só no acto de registo nem sequer seria necessária qualquer revisão e confirmação judicial, para ele poder também ser levado ao registo civil português, como decorre dos artº 6º, 49º, 69º, nº 1, a), e 70º, nº 1, b), do CRC; considera, assim, que não existe decisão que possa ser revista, divergindo, pois, do entendimento seguido no Ac. STJ de 12-07-2005, relatado por Moitinho de Almeida, publicado em www.dgsi.pt, designadamente quanto à possibilidade de, a partir da prova do mero registo do divórcio, se inferir que existe pelo menos uma decisão administrativa que o decretou, sem que minimamente se conheça a mesma e os seus termos nem sequer se saiba quem foi a entidade que a proferiu.
Objecta o recorrente que a certidão de fls. 11 a 14 atesta que o divórcio em questão foi decretado pela Conservatória do Registo Civil do Serviço do Registo do Departamento de Justiça do Concelho de …., distrito de ..., dissolvendo-se o casamento entre o requerente, ora recorrente e a requerida, sendo tal decisão equiparada a uma sentença.
Mas não é isso que, em bom rigor, consta da certidão de divórcio (al d) dos factos provados). A certidão de divórcio emitida pela Conservatória do Registo Civil de ... documenta apenas que “o casamento entre o cidadão AA (nome patronímico …) e a cidadã BB (nome patronímico – ...), foi dissolvido”. Dela não consta nem a maneira pela qual o dito casamento foi dissolvido nem a entidade que o dissolveu. É, assim, difícil afirmar, apenas com base na certidão, que a referida Conservatória proferiu qualquer decisão.
No entanto, está provado que: “ e) Por mail de 15-01-2019, junto aos autos, dirigido ao Exm.º Advogado do autor, “Em resposta ao solicitado em 11.01.2019, a Secção Consular da Embaixada da ... na República Portuguesa informa V. Ex.ª que, segundo a legislação da ... em vigor, um casamento pode ser dissolvido mediante apresentação de um respetivo pedido de ambos os cônjuges à Conservatória do Registo Civil da ... que registou o matrimónio se a decisão sobre o divórcio for por mútuo consentimento (Art.º 105 do Código de Família da ...) ou mediante um requerimento sobre o divórcio ao Tribunal competente, apresentado em conjunto ou, apenas, por um dos cônjuges, caso o casal tenha filhos em comum ou existam disputas sobre a partilha de bens adquiridos (Art.º 109 e 110 do referido acima Código). Deste modo, se o divórcio tenha sido ocorrido junto de uma Conservatória do Registo Civil, como prova da dissolução de casamento é emitida Certidão de Divórcio (um exemplar a cada um dos ex-cônjuges). Caso o divórcio tenha sido ocorrido junto de Tribunal – é emitida uma Sentença (Decisão) de Tribunal sobre o divórcio, também, um exemplar a cada um dos ex-cônjuges. Ambos os documentos têm o mesmo valor legal para fins de prova da dissolução de casamento, mas na certidão de casamento é registado apenas o facto de divórcio e na sentença – motivos e fundamentos para o divórcio. Também, se o processo de divórcio correu termos em Tribunal, existe possibilidade de requerer a emissão de uma certidão de divórcio com base na sentença de tribunal sobre o divórcio. Porém, assim como na ... não existem «certidões narrativas», a referida certidão não terá averbamentos sobre a sentença que deu origem à sua emissão. Para verificar se uma determinada certidão de divórcio foi emitida ou não com base em sentença do Tribunal, será necessário requerer à entidade competente da ... a emissão de um Extrato do Registo Civil completo referente ao casamento, o qual terá toda informação desde o registo de casamento até à sua dissolução com devidos averbamentos.”.
Ou seja: à data do registo do divórcio (2.7.2014) encontrava-se em vigor o Código de Família da ..., na versão de 4.8.2013, e disponível em https://zakon.rada.gov.ua/laws/show/2947-14/page2#Text, de que se transcreve, para o que agora importa, o seguinte excerto:
“Capítulo 11
RESCISÃO DO CASAMENTO
Artigo 104. Motivos para rescisão do casamento
1. O casamento cessa com a morte de um dos cônjuges ou com a declaração da sua morte.
2. O casamento é rescindido como resultado de sua dissolução.
3. Se um dos cônjuges falecer antes da entrada em vigor da decisão judicial de divórcio, considera-se que o casamento terminou com a sua morte.
4. Se no dia da entrada em vigor da decisão do tribunal de divórcio faleceu um dos cônjuges, considera-se que o casamento foi rescindido em consequência do divórcio.
Artigo 105. Cessação do casamento em decorrência de sua dissolução
1. O casamento é dissolvido em resultado da sua dissolução por requerimento conjunto dos cônjuges nos termos do artigo 106.º ou de um deles nos termos do artigo 107.º do presente Código.
{Parte um do Artigo 105, conforme alterado pela Lei № 524-V de 22 de dezembro de 2006 }
2. O casamento extingue-se em resultado da sua dissolução a requerimento conjunto dos cônjuges com base em decisão judicial, nos termos do artigo 109.º deste Código.
3. O casamento cessa com a sua dissolução por ação de um dos cônjuges por decisão do tribunal, nos termos do artigo 110.º deste Código.
Art. 106. Divórcio pelo órgão de registro estadual de atos do estado civil a requerimento de cônjuge que não tenha filhos
1. O cônjuge que não tiver filhos tem o direito de apresentar um pedido de divórcio ao órgão de registo estadual de actos do estado civil.
Se um dos cônjuges, por motivo válido, não puder requerer pessoalmente o divórcio no registro civil, tal declaração, com firma reconhecida ou equivalente, poderá ser feita em seu nome pelo outro cônjuge.
{A primeira parte do Artigo 106 é complementada por um parágrafo de acordo com a Lei № 524-V de 22 de dezembro de 2006 }
2. O órgão de registo estadual dos actos do estado civil lavra auto de divórcio após o decurso de um mês a contar da data da apresentação do pedido, se este não tiver sido revogado.
{Parte dois do Artigo 106, conforme alterado pela Lei № 2398-VI de 1 de julho de 2010 }
3. O casamento é dissolvido independentemente da existência de conflito de bens entre os cônjuges.
Art. 107. O divórcio pelo órgão de registro estadual do estado civil atua a pedido de um dos cônjuges
1. O casamento é dissolvido pelo órgão de registro estadual de atos do estado civil, a pedido de um dos cônjuges, se o outro dos cônjuges:
1) declarado ausente;
2) declarado incapaz.
{O parágrafo 3 da primeira parte do Artigo 107 é excluído com base na Lei № 2398-VI de 01.07.2010 }
2. O casamento é dissolvido independentemente da existência de conflito de bens entre os cônjuges.
Artigo 108. Reconhecimento do divórcio como fictício
1. A pedido da pessoa em causa, um divórcio efetuado em conformidade com as disposições do artigo 106 deste Código pode ser declarado fictício por um tribunal se for estabelecido que a mulher e o homem continuaram a viver como uma família e não tinham a intenção de rescindir o casamento.
{Parágrafo um da primeira parte do Artigo 108, conforme alterado de acordo com a Lei № 2398-VI de 1 de julho de 2010 }
Com base na decisão do tribunal, o registro do ato de divórcio e a certidão de divórcio são anulados pelo órgão de registro estadual dos atos do estado civil.
Artigo 109. Divórcio por decisão judicial a pedido conjunto de um cônjuge que tenha filhos
1. O cônjuge que tem filhos tem o direito de requerer o divórcio em tribunal juntamente com um acordo por escrito com qual deles os filhos irão viver, que parte dos pais que viverão separadamente participará na garantia de suas condições de vida, e também sobre as condições de exercício do direito à educação pessoal dos filhos.
2. O acordo entre os cônjuges sobre o valor da pensão alimentícia deve ser notarizado. Em caso de não cumprimento deste contrato, a pensão alimentícia pode ser cobrada com base em um mandado de execução de um notário.
3. O tribunal decide sobre o divórcio se ficar estabelecido que o pedido de divórcio corresponde à vontade real da mulher e do marido e que os seus direitos pessoais e patrimoniais e os direitos dos filhos não serão violados após o divórcio.
4. O tribunal decidirá sobre a dissolução do casamento decorrido um mês a contar da data de depósito do pedido. Até o final deste período, a esposa e o marido têm o direito de retirar o pedido de divórcio.
Artigo 110. Direito de entrar com ação de divórcio
1. A ação de divórcio pode ser proposta por um dos cônjuges.
2. A acção de divórcio não pode ser intentada durante a gravidez da esposa e durante um ano após o nascimento do filho, a menos que um dos cônjuges cometa conduta ilícita que contenha elementos de infracção penal contra o outro cônjuge ou filho.
{Parte dois do Artigo 110 conforme alterado de acordo com a Lei n. 245-VII de 16/05/2013 }
3. O marido e a mulher têm o direito de pedir o divórcio durante a gravidez da mulher, se a paternidade do filho concebido for reconhecida por outra pessoa.
4. O marido e a mulher têm o direito de pedir o divórcio antes de o filho completar um ano de idade, se a paternidade for reconhecida por outra pessoa ou por decisão judicial a informação sobre o marido porque o pai da criança está excluído do registo de nascimento da criança.
5. O tutor tem o direito de requerer o divórcio se os interesses do cônjuge declarado incompetente o exigirem.
(…)
Artigo 114. O momento da cessação do casamento em caso de sua dissolução
1. Em caso de divórcio pelo órgão de registro estadual de atos do estado civil, o casamento cessa no dia do registro do divórcio.
{Parte um do Artigo 114, conforme alterado pela Lei № 524-V de 22 de dezembro de 2006 }
2. Em caso de divórcio judicial, o casamento cessa no dia da entrada em vigor da decisão judicial de divórcio.
Artigo 115. Registro estadual de divórcio
1. O divórcio, efectuado na forma prevista nos artigos 106.º e 107.º deste Código, deve ser inscrito no registo estadual de actos do estado civil.
2. A decisão do tribunal sobre o divórcio após a sua entrada em vigor deve ser remetida pelo tribunal ao órgão de registo estadual dos atos do estado civil do lugar da decisão para inserir as informações no Registo Estadual dos Atos do Estado Civil e marcar o registo de casamento.
3. O divórcio, realizado pelos órgãos de registro estadual de atos do estado civil, é certificado pelo Certificado de Divórcio, uma amostra do qual é aprovado pelo Conselho de Ministros da ....
O documento que certifica o facto do divórcio pelo tribunal é a decisão do tribunal sobre o divórcio, que entrou em vigor.
{Artigo 115 conforme alterado pela Lei № 2398-VI de 1 de julho de 2010 }”
Ora, dos preceitos transcritos resulta que, na ..., em 2.7.2014, um casamento podia ser dissolvido: mediante apresentação de pedido de ambos os cônjuges à Conservatória do Registo Civil que registasse o matrimónio (arts.105º, nº 1 e 106º do Código de Família da ...) ou por um deles (arts. 105º, nº 1 e 107º), caso não tivessem filhos; por requerimento conjunto dos cônjuges com base em decisão judicial, se tivessem filhos (arts. 105º, nº2 e 109º); por decisão do tribunal proferida em acção de divórcio (arts. 105º, nº 3 e 110º do referido Código). Resulta, ainda, que, a essa data, o divórcio efectuado na forma prevista nos arts. 106º e 107º devia ser inscrito no registo estadual de actos do estado civil (art. 115º, nº 1); que o divórcio realizado pelos órgãos no registo estadual de actos do estado civil era certificado pelo Certificado de Divórcio (art. 115º, nº 3); e que o documento que certificava o facto do divórcio pelo tribunal era a própria decisão do tribunal sobre o divórcio (art. 115º, nº 3).
De tais normas pode, portanto, concluir-se que: o Certificado de Divórcio certificava o divórcio realizado pelos órgãos do registo estadual de actos do estado civil, ou seja, pela Conservatória do Registo Civil do Serviço do Registo do Departamento de Justiça do Concelho de …., distrito de ...; que, nos termos da lei da ..., o registo, no caso concreto, não se baseou em qualquer decisão estranha às autoridades do registo: teve, sim, origem no requerimento conjunto das partes, ou de uma delas, junto das autoridades, que terá culminado, por força da lei (pela aferição dos requisitos legais), na decisão de admitir o registo.
É certo que, como consta da al. e) dos factos provados, a Secção Consular admitiu a possibilidade de, no caso de o processo de divórcio ter corrido termos em Tribunal, se requerer a emissão de uma certidão de divórcio com base na sentença de tribunal sobre o divórcio, caso em que a certidão não teria averbamentos sobre a sentença que deu origem à sua emissão, pelo que, para verificar se uma determinada certidão de divórcio tinha sido emitida ou não com base em sentença do Tribunal, seria necessário requerer à entidade competente da ... a emissão de um Extracto do Registo Civil completo referente ao casamento.
No entanto, não vindo essa hipótese apoiada em fundamentos legais, é lícito admitir que ela não corresponderia à normalidade das situações, em que o divórcio realizado pelos órgãos no registo estadual de actos do estado civil era certificado pelo Certificado de Divórcio (art. 115º, nº 3); e o documento que certificava o facto do divórcio pelo tribunal era a própria decisão do tribunal sobre o divórcio (art. 115º, nº 3).  Aliás, da certidão consta que a data de emissão coincide com o registo do divórcio, o que inculca a ideia de que, como o requerente afirmou, na Relação (assim, requerimento de 15.2.2019 reportado no relatório do acórdão) e agora em recurso de revista, o divórcio terá ocorrido no âmbito da Conservatória do Registo Civil ..., que emitiu para prova da dissolução de casamento a referida Certidão de Divórcio. Parece assim, excessivo, nestas circunstâncias, exigir da parte do requerente (cujo estatuto económico se desconhece) um Extracto do Registo Civil completo referente ao casamento (de custo desconhecido). E, por isso, se conclui que o divórcio foi realizado pela Conservatória do Registo Civil ....
É verdade que não se mostra junto qualquer processo administrativo que contenha a decisão administrativa, subjacente ao registo nº 8 no livro de Registos de Divórcio (ou que com ele se confunde) de que dá nota a certidão de divórcio. No entanto, essa certidão evidencia que existiu uma decisão administrativa, subjacente ou correspondente ao registo do divórcio, tomada pelos órgãos do registo civil da ..., cujos contornos essenciais se podem antever, a partir da certidão e das normas do Código de Família .... Cremos, por isso, que a certidão é prova suficiente da decisão administrativa da Conservatória do Registo Civil no sentido de que o divórcio foi legalmente reconhecido, sendo que, como é jurisprudência dominante - à qual se adere - embora a lei aluda à “decisão… proferida por tribunal estrangeiro”, a decisão que consta do art. 978º do CPC deve ser entendida de forma ampla, de forma a abranger não apena as decisões proferidas por autoridades judiciais mas também as proferidas por autoridades administrativas (cfr. Ac. STJ de 25.6.2013, no proc. n.º 623/12.5YRLSB.S1, Ac. STJ de 12.7.2005, Proc. nº 05B1880, Ac. STJ de 29.3.2011, proc. nº 214/09.8YRERVR.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Inexistem dúvidas sobre a autenticidade e inteligibilidade do documento (certidão) que dá nota bastante da decisão da Conservatória do Registo Civil da ... que reconheceu o divórcio entre o requerente e a requerida.
É certo que se desconhece se o divórcio foi dissolvido por mútuo consentimento, nos termos do art. 106º do Código da Família da ... ou se foi dissolvido nos termos do art. 107º do mesmo diploma, caso em que se admite que o casamento é dissolvido a pedido de um dos cônjuges se o outro for declarado ausente ou incapaz, o que não é permitido na nossa ordem jurídica interna, a qual exige que o divórcio unilateral, por qualquer dos fundamentos legalmente previstos, como, por exemplo, a alteração das faculdades mentais ou a ausência, seja decretado por via judicial (art. 1781º do Código Civil).
No entanto, mesmo para esta última hipótese, que dispensa a via judicial, a decisão em causa, que reconhece o divórcio, não colide com princípios da ordem pública internacional do Estado Português no que respeita às relações de família. O Código da Família … confere a ambos os cônjuges a mesmo direito baseado nos mesmos fundamentos legais (parecendo exigir, aliás, que o cônjuge não requerente seja, previamente “declarado” ausente ou incapaz). Da aplicação das normas jurídicas ...s não resulta, assim, qualquer solução que repugne aos princípios fundamentais que enformam a ordem jurídica portuguesa (v., v.g,, Ac.. STJ de 8.7.2003, proc. nº 03B2106, o de 21.2.2006, proc. nº 05B4160, o de 24.4.2018, proc. nº 137/17.7YRPRT.S1 e o Ac. R.P. de 7.12,2017, proc. nº 137/17.7YRPRT, todos em www.dgsi.pt).
A decisão revidenda também não é ofensiva dos requisitos mencionados no art. 980º, alíneas b), c), d) e e) do CPC.
Em síntese, podemos concluir que:
“I- A decisão que consta do art. 978º do CPC deve ser entendida de forma ampla, de modo a abranger decisões proferidas quer por autoridades judiciais quer por autoridades administrativas;
II- Nesta segunda hipótese se insere o caso de uma Conservatória do Registo Civil da ... que, nos termos da lei ..., e com base em requerimento conjunto dos cônjuges, ou de um deles, procede ao registo do divórcio;
III- A certidão de divórcio, emitida pela referida Conservatória, comprova a existência de uma decisão administrativa subjacente ou correspondente ao registo do divórcio, que carece e é susceptível de revisão.
Pelo exposto, concede-se a revista, revoga-se o acórdão recorrido e confirma-se a decisão da Conservatória do Registo Civil ... que reconheceu a dissolução do casamento por divórcio e procedeu ao correspondente registo.

As custas do processado na Relação ficam pelo requerente.

Sem custas o recurso de revista.

Oportunamente, dever-se-á dar cumprimento ao disposto no art.º 79º n.º 4 do CRCivil.


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Lisboa, 29 de Setembro de 2020


                                    O relator António Magalhães

                                        (Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A/2020 de 13.3., atesto o voto de conformidade dos Srs. Juízes Conselheiros Adjuntos Dr. Jorge Dias e Dr.ª Maria Clara Sottomayor, que não puderam assinar).