Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
185/13.6GCALQ.L1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: MAIA COSTA
Descritores: ARMA DE FOGO
DECLARAÇÕES
ESPECIAL CENSURABILIDADE
ESPECIAL PERVERSIDADE
EXEMPLOS-PADRÃO
DECLARAÇÃO DE INCONSTITUCIONALIDADE
FINS DAS PENAS
HOMICÍDIO QUALIFICADO
INAUDIBILIDADE DA PROVA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
MEIO INSIDIOSO
MOTIVO FÚTIL
NULIDADE SANÁVEL
PARENTESCO
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
PRINCÍPIO DA TIPICIDADE
Data do Acordão: 03/12/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - ACTOS PROCESSUAIS ( ATOS PROCESSUAIS ) / FORMA DOS ACTOS E SUA DOCUMENTAÇÃO ( FORMA DOS ATOS E SUA DOCUMENTAÇÃO ) - SENTENÇA - RECURSOS.
Doutrina:
- Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, pp. 11-20.
- Eduardo Correia, “Atas da Comissão Revisora do Código Penal”, pp. 22, 32 e 33.
- Fernanda Palma, “O homicídio qualificado no novo Código Penal Português”, Revista do Ministério Público, nº 15, pp. 59-74.
- Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pp. 25-28.
- João Curado Neves, “Indícios de culpa ou tipos de ilícito?”, Liber Discipulorum para Figueiredo Dias, pp. 721-757.
- Maia Gonçalves, “Código Penal Português” Anotado, 17ª ed., p. 479.
- Margarida Silva Pereira, Direito Penal II, Os Homicídios, pp. 39-67.
- Teresa Serra, Homicídio Qualificado, pp. 125-127 (em síntese).
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 494.º, 496.º, N.º3.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 101.º, N.ºS 3 E 4, 358.º, N.º1, 363.º, 364.º, Nº 1, 409.º, 432.º, Nº 1, C), E N.º2.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, 71º, NºS 1 E 2, 72º, Nº 2, B), 131.º, 132.º, N.ºS 1 E 2, E), I) E J).
LEI Nº 5/2006, DE 23-2 (LEI DAS ARMAS): - ARTIGO 86.º, N.º3.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 30.11.1983, BMJ 333, P. 376, E DE 19.5.2004, PROC. Nº 1086/04;
-DE 8.2.1984 (BMJ 334, P. 258), E, MAIS RECENTEMENTE, O ACÓRDÃO DE 27.5.2010, PROC. N.º 11/04.7GCABT.C1.S1, E DE 30.10.2013, PROC. N.º 40/11.4JAAVR.C2.S1;
-DE 21.2.2007, PROC. Nº 4594/06;
-DE 26.9.2007, PROC. Nº 2591/07;
-DE 13.3.2008, PROC. Nº 2589/07;
-DE 19.2.2014, PROC. Nº 168/11.0GCCUB.S1 .


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ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL:

-Nº 13/2014; N.º 852/2014, PUBLICADO NO DR, 2ª SÉRIE, DE 10.3.2015.
AMBOS EM WWW.TRIBUNALCONSTITUCIONAL.PT .
Sumário :
I - A doutrina que veio a ser consagrada pelo AFJ do STJ n.º 13/2014 ─ “a nulidade prevista no art. 363.º do CPP deve ser arguida perante o tribunal da 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do artigo 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada” ─ tem aplicação às nulidades ocorridas em data anterior à da sua publicação no DR.

II - Por um lado, ela não podia ser ignorada pelo recorrente, uma vez que correspondia a uma das orientações adotadas pela jurisprudência e pela doutrina, não podendo aquele considerar-se surpreendido pela opção tomada. Por outro, esta é a melhor doutrina, porque, facultando aos sujeitos processuais o acesso às gravações à medida que se vão realizando, permite-lhes simultaneamente o controlo da sua regularidade, assegurando um processamento correto da audiência e evitando irregularidades e repetições de atos do julgamento.

III -Deste modo, deve considerar-se sanada a nulidade por deficiente documentação das declarações orais prestadas em audiência de julgamento se o arguido requereu cópia da gravação áudio quando já se encontrava esgotado o prazo de 10 dias para arguir essa nulidade.

IV - O crime de homicídio qualificado, previsto no art. 132.º do CP, constitui uma forma agravada do crime de homicídio simples, previsto no art. 131.º do CP, que constitui o tipo de ilícito, agravamento esse que se produz não através da previsão de circunstâncias típicas fundadas em maior ilicitude do facto, cuja verificação determinaria a realização do tipo, como acontece por exemplo no furto qualificado, mas antes em função de uma culpa agravada, de uma “especial censurabilidade ou perversidade” da conduta (cláusula geral enunciada no n.º 1), revelada pelas circunstâncias indicadas no n.º 2.

V - Estas circunstâncias constituem exemplos-padrão, ou seja, indícios de culpa agravada referida no n.º 1, que constitui o elemento típico do homicídio qualificado (tipo de culpa). Assim, ainda que essas circunstâncias envolvam eventualmente uma maior ilicitude do facto, não é o simples acréscimo de ilicitude que determinará a qualificação do crime. Só se as circunstâncias revelarem uma maior censurabilidade ou perversidade da conduta se verificará a qualificação.

VI -Como meros indícios, as circunstâncias do n.º 2 têm sempre que ser submetidas à cláusula geral do n.º 1. Da interação entre os n.ºs 1 e 2 do art. 132.º pode resultar a exclusão do efeito de indício do exemplo-padrão, e consequentemente a integração dos factos no crime de homicídio simples do art. 131.º. Mas pode também, precisamente pelo seu caráter meramente indiciário de uma culpa especialmente agravada, admitir-se a qualificação do homicídio quando se constatar a substancial analogia entre os factos e qualquer um dos exemplos-padrão.

VII - Esta interação reflexa entre os dois n.ºs do art. 132.º permite por um lado uma maior flexibilidade no tratamento dos casos concretos, e consequentemente na administração da justiça do caso, e por outro assegura a delimitação do tipo de homicídio qualificado em termos suficientemente rigorosos, garantindo a determinabilidade dos elementos do tipo legal, não havendo assim lesão dos princípios da legalidade e da tipicidade.

VIII - O TC julgou inconstitucional a norma do n.º 1 do art. 132.º do CP, na relação deste com o n.º 2 do mesmo preceito, quando interpretada no sentido de nela se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, sem que seja possível subsumir a conduta do agente a qualquer das als. do n.º 2 ou ao critério de agravação a ela subjacente, por violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade penais, garantidos pelo art. 29.º, n.º 1, da CRP.

IX - Essa decisão, ao exigir que a agravação do n.º 2 do art. 132.º do CP só funcione quando a conduta é subsumível a alguma das alíneas desse n.º 2, mas também ao critério de agravação a ela subjacente, ratifica a constitucionalidade da posição acima defendida.

X - Os únicos relacionamentos familiares previstos no n.º 2 do art. 132.º do CP, são os que ocorrem entre ascendentes e descendentes ─ al. a) ─ e entre cônjuges ─ al. b). Tal não impede a invocação da analogia, caso a relação entre tio e sobrinho, nas circunstâncias do caso, se aproxime francamente de uma relação paternal/filial.

XI - Nenhuma especial censurabilidade pode ser detetada se o arguido e a vítima tinham há muito relações tensas, se os laços familiares de tio e de sobrinho não tiveram influência na conduta criminosa e se na raiz dos factos esteve um conflito entre proprietários.

XII - O motivo do agente é fútil quando revela uma frivolidade evidente, quando é absolutamente desproporcionado em função das conceções éticas e culturais da comunidade, independentemente ponto de vista subjectivo do agente.

XIII - Nas comunidades rurais, a terra tem, além do valor patrimonial, uma valor simbólico primordial, pelo que a defesa da propriedade mobiliza emocionalmente, de forma intensa, a generalidade das pessoas, sendo consequentemente fonte de conflitos extremos, despertando paixões violentas, não raro dentro das próprias famílias, como foi o caso.

XIV - O conflito que perdurava há anos entre o arguido e a vítima, decorrente da utilização por esta de um caminho que passava junta da habitação daquele, afasta a possibilidade de subsumir a motivação do arguido (a da defesa do seu hipotético direito de propriedade) à futilidade a que se reporta a parte final da al. e) do n.º 2 do art. 132.º do CP.

XV - A insídia caracteriza-se por um comportamento dissimulado, ardiloso ou traiçoeiro, que coloca a vítima numa situação de indefesa, é um comportamento desleal, enganoso ou pérfido, que reduz a vítima à condição de presa fácil do agressor.

XVI - Revela inegável perfídia, enquadrável na al. i) do n.º 2 do art. 132.º do CP, a conduta do arguido que disparou dissimuladamente o tiro letal do interior da sua residência, quando a vítima se aproximava, apanhando-a de surpresa e não lhe dando qualquer possibilidade de defesa.

XVII - O homicídio qualificado em razão do uso de arma (al. h) do n.º 2 do art. 132.º do CP) não pode ser agravado pelo n.º 3 do art. 86.º da Lei das Armas.

XVIII - Como o uso da arma de fogo não faz parte do tipo legal, nem agravou o homicídio, o arguido deve ser condenado pela prática de um crime de homicídio qualificado agravado p. e p. pelos arts. 131.º, 132.º, n.º s 1 e 2, al. i), do CP e 86.º, n.º 3, da Lei das Armas, na pena de 17 anos de prisão, que satisfaz os fins da penas e não excede a culpa.
Decisão Texto Integral:                

            Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

            I. Relatório


AA, com os sinais dos autos, foi condenado pelo tribunal coletivo do 2º Juízo da extinta comarca de Alenquer, por acórdão de 22.7.2014, como autor material de um crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 131º, 132º, nºs 1 e 2, do Código Penal (CP) e 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23-2 (doravante, Lei das Armas), na pena de 17 anos de prisão; e, como autor material de um crime de detenção ilegal de arma, p. e p. pelos arts. 2º, nº 3, e), 3º, nº 2, q), 18º, nº 3, e 86º, nº 1, d), da mesma Lei, na redação da Lei nº 12/2011, de 27-4, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, num total de € 500,00.
            Mais foi condenado, no provimento parcial do pedido de indemnização civil deduzido por BB, CC e DD, a pagar:
             - a todos os demandantes a quantia de € 60 000,00 pela perda do direito à vida de EE;
            - € 40 000,00, relativamente às dores e sofrimentos sentidos pela demandante BB com a morte de EE;
            - € 20 000,00 a cada um dos outros demandantes (CC e DD) relativa às dores e sofrimentos físicos e psíquicos resultantes da morte de EE.
            Foi ainda condenado a pagar ao Instituto de Segurança Social, IP, a quantia de € 2 576,70, acrescida de juros de mora contados à taxa legal para os juros civis, contados desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização cível e até efetivo e integral pagamento, bem como as demais quantias pagas a título de pensões de sobrevivência que o demandante vier a pagar.

            Deste acórdão recorreu o arguido para o Tribunal da Relação de Lisboa, concluindo:

I - ENQUADRAMENTO E OBJECTO DO RECURSO:

1- Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal coletivo, o arguido vinha acusado pelo Digno Magistrado do Ministério Público, imputando-lhe factos constantes da acusação de fls. 255 a 349, os quais, no seu entendimento, eram susceptíveis de integrar a prática, por parte do arguido, como autor material e em concurso real, de:

- Um crime de homicídio agravado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos artigos 131º, do Código Penal e 86°., nº. 3 da Lei n°. 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redação conferida pela Lei nº. 12/2011, de 27 de Abril;

- Um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punível pelos artigos 2º nº. 3, al. e), 3°., nº. 2, al. q), 18°., n°. 3 e 86°., n°. 1 al. d) da Lei n°. 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redação conferida pela Lei nº. 12/2011, de 27 de Abril.

2- A ofendida constituiu-se assistente e a fls. 422 a 428 veio deduzir acusação contra o arguido, imputando-lhe a prática dos factos que ali descreve, os quais, são no seu entender, susceptíveis de integrar a prática pelo arguido de:

- Um crime de homicídio qualificado, agravado, previsto e punível pelos artigos 131°, 132°, n°, 2, als, i) e j) do Código Penal e artigo 86°., nº. 3 da Lei nº. 5/2006, de 23 de Fevereiro.

3- Vieram ainda os demandantes BB, CC e DD, respetivamente, cônjuge sobrevivo e filhos da vítima, a fls. 374 a 403, deduzir pedido de indemnização cível, no montante global de € 145.000,00 (Cento e quarenta e cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais pelo dano morte sofrido pela vítima EE e pelos danos não patrimoniais ou morais sofridos pelos demandantes acima referidos, com a morte da vítima.

4- Realizou-se a audiência de julgamento. Após a produção de prova, o douto tribunal coletivo decidiu proceder à alteração do enquadramento jurídico penal dos factos, imputando-lhe a prática de factos que descreve como reveladores de especial perversidade e censurabilidade, os quais no seu entendimento são susceptíveis de integrar a prática pelo arguido de:

- Um crime de homicídio qualificado, agravado, previsto e punível pelos artigos, 131º., 132°, n°. 2, aIs. i) e j) do Código Penal e artigo 86°., nº. 3 da Lei n°. 5/2006, de 23 de Fevereiro.

5- Por configurar uma alteração não substancial dos factos constantes da acusação, foi dada, a possibilidade, ao arguido, nos termos e para os devidos efeitos do artigo 358°. do C.P.P., de se pronunciar, tendo a defesa do mesmo requerido prazo para preparação da defesa, tendo-se pronunciado contrária à alteração da qualificação jurídico penal dos factos constantes da acusação, nos termos do requerimento junto aos autos.

• O arguido foi condenado como autor material de um crime de homicídio qualificado, agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131°., 132°., n°. 1 e 2, als. i) e j) do Código Penal e 86°., n°. 3, da Lei n°. 5/2006, na pena de dezassete anos de prisão;

• Como autor material, de um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punível pelos artigos 2°., n°. 3, al. e), 3°., nº. 2, al. q), 18°., nº. 3 e 86°., n°. 1 al. d) da Lei n°. 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redação conferida pela Lei nº. 12/2011, de 27 de Abril, na pena de cem dias de multa, à taxa diária de cinco euros num total de quinhentos euros.

6- Foi ainda julgado parcialmente procedente por parcialmente provado o pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes, BB; CC e DD e em consequência condenado o demandado AA, a pagar:

• aos demandantes a quantia de sessenta mil euros pela perda do direito à vida de EE;

• Quarenta mil euros relativos às dores e sofrimentos sentidos pela demandante BB com a morte de EE;

• Vinte mil a cada um dos outros demandantes (CC e DD) relativos às dores e sofrimentos físicos e psíquicos resultantes da morte de EE.

7- Mais foi ainda condenado, pelo pedido de indemnização civil deduzido pelo Instituto de Segurança Social, IP, a pagar-lhe a quantia de dois mil quinhentos e setenta e seis euros e setenta cêntimos, acrescida de juros de mora contados à taxa legal para os juros civis, contados desde a data da notificação para contestar o pedido de indemnização cível e até efectivo e integral pagamento, bem como as demais quantias pagas a título de pensões de sobrevivência que o de mandante vier a pagar.

II - QUESTÃO PRÉVIA

8- O recorrente pretende impugnar a matéria de facto dada como provada pelo tribunal "a quo", por discordar da matéria de facto dada como provada no douto acórdão recorrido.

9- Assim para o efeito, requereu a entrega do suporte informático (CD), registo da prova, em sistema áudio em uso no tribunal recorrido.

10- Porém constatou-se que a gravação da prova contém interferências, tornando-a inaudível em determinados momentos, designadamente, nas declarações do arguido, da sessão de 04-06-2014, gravadas através do sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática em uso no tribunal, com início às 11:23:23h e fim às 12:01:32h.

11- Tornando-se assim difícil, à defesa, impugnar a matéria de facto, matéria contida nos poderes de cognição desse Venerando Tribunal, artigo 428°. CPP.

12- Nos termos do artigo 32°. da C.R.P., os direitos de defesa do arguido e de recurso ficam assim irremediavelmente coartados.

13- Tal deficiência do conteúdo da gravação da produção da prova acarreta a nulidade prevista no artigo 363º. do CPP, tornando inválida a prova produzida, com a consequente repetição do julgamento.

14- Ou caso assim se não entender deve ser ordenada a repetição da parte viciada.

III - DA DISCORDÃNCIA QUANTO À ALTERACÃO DA QUALIFICACÃO JURIDICO PENAL DOS FACTOS:

Sem prescindir,

15- Como supra se referiu o ora Recorrente vinha acusado em sede douta acusação indiciária pela prática, em autoria material e em concurso real de:

16- - Um crime de homicídio agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131°. do Código Penal e 86°., n°. 3 da Lei nº. 5/2006 de 23 de Fevereiro na redação conferida pela Lei nº. 12/2011 de 27 de abril;

17- Um crime de detenção ilegal de arma, previsto e punível pelos artigos 2°., n°. 3, al e), 3°., nº.2, al. q), 18°., n°. 3 e 86°., nº. 1 al. d) da Lei n°. 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redação conferida pela Lei n°. 12/2011, de 27 de Abril.

18- Realizou-se a audiência de julgamento. Após a produção de prova, o douto tribunal coletivo decidiu proceder à alteração do enquadramento jurídico penal dos factos, imputando-lhe a prática de factos que descreve como reveladores de especial censurabilidade e perversidade, os quais no seu entendimento são susceptíveis de integrar a prática pelo arguido de:

19- Um crime de homicídio qualificado, agravado, previsto e punível pelos artigos, 131°., 132°, n°. 2, als. i) e j) do Código Penal e artigo 86°., n°. 3 da Lei nº. 5/2006, de 23 de Fevereiro.

20- Por configurar uma alteração não substancial dos factos constantes da acusação, foi dada a possibilidade, ao arguido, nos termos e para os devidos efeitos do artigo 358°. do C.P.P., de se pronunciar, tendo a defesa do mesmo requerido prazo para preparação da defesa, tendo-se pronunciado contrária à alteração da qualificação jurídico-penal dos factos constantes da acusação, nos termos do requerimento junto aos autos.

21- Ora, no caso em apreço, com todo o devido respeito e salvo melhor opinião, o arguido não concorda com a alteração da qualificação jurídica acima referida, porquanto o crime que lhe é imputado já é agravado em termos de moldura penal pelo facto de ter sido praticado com arma de fogo (artigo 86°., nº. 3, da Lei nº. 5/2006, de 23 de fevereiro).

22- Nos termos do previsto no artigo 131°. do Cód. Penal "Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos".

23-. O artigo 132°., nº. 1 do Cód. Penal "Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade e perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos".

24- Nos termos do artigo 132º., nº. 2, do Cód. Penal, na parte que interessa, "É susceptível de revelar especial censurabilidade e perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:

(...)

25- i) "Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso";

(...)

26- j) "Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregues ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas";

27- Ora analisando as supra descritas circunstâncias qualificativas agravantes, previstas no n°. 2, alíneas i) e j) do artigo 132º. do Cód. Penal, cuja alteração da qualificação foi pugnada pelo tribunal, vejamos se a conduta do arguido se enquadra naquelas circunstâncias?

28- O n°. 2, al. i) "utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso", está em causa o modo de execução do crime, nomeadamente, através de uma atuação insidiosa. Ou seja o agente utiliza um meio traiçoeiro, enganador, que expõe a vítima para que se reduzam as suas possibilidades de defesa.

29- Ora o arguido pratica o crime na circunstância de, momentos antes, ter havido uma discussão entre ele e o ofendido por causa de uma serventia de passagem, na sequência da discussão entre ambos, o ofendido empunha uma enxada e um ferro em direção ao arguido e ameaça-o, prosseguindo os seus intentos de efetuar a travessia da serventia, indo carregar o trator com pedras.

30- Na verdade o arguido, com medo, porquanto, na versão do arguido e segundo as suas declarações, as ameaças do ofendido contra si eram constantes, tendo declarado em sede de audiência de julgamento que, oito dias antes dos acontecimentos, terá sido ameaçado pelo ofendido com uma arma de fogo "revólver" que aquele trazia no bolso.

31- As discussões entre ambos duravam há anos, mais de 30 anos.

32- O arguido utilizou a arma descrita na acusação para perpetrar o crime, tendo-a municiado na altura da prática dos factos, o que nos termos e para os devidos efeitos do previsto no artigo 86º., n°. 3 da Lei das Armas e Munições, já constitui um crime agravado.

33- Em relação à circunstância prevista no n°. 2 do artigo 132°., al. j) do Cód. Penal, "Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter insistido na intenção de matar por mais de 24 horas," a ideia fundamental nesta circunstância é a da premeditação. Pressupondo uma reflexão por parte do agente da forma como prepara o crime. Nestes casos o agente prepara o crime, pensa nele, reflete sobre o acto e mesmo assim decide matar. A premeditação surge materializada em três situações:

34- 1- Frieza de ânimo;

35- 2- Reflexão sobre os meios empregados;

36- 3- Protelar a ideia de matar por mais de 24 horas.

37- No caso Sub Judice, não nos parece também, com todo o devido respeito e salvo melhor opinião, que o arguido tenha premeditado o crime, porquanto, depois da discussão entre ambos e do ofendido ter empunhado a enxada e o ferro em direção ao arguido, este foi a casa e municiou a arma, se tivesse calculado previamente a morte do ofendido, teria a arma previamente carregada, o que não aconteceu.

38- Como consta da acusação e da prova produzida, as desavenças entre arguido e ofendido eram constantes.

39- A conduta do arguido resultou de um estado de medo e perturbação e alguma provocação por parte do ofendido, porquanto no dia dos acontecimentos o ofendido decidiu efetuar a travessia da serventia ao final da tarde, cerca das 18h, quando era a hora habitual do arguido sair do trabalho e regressar a casa.

40- Afinal, no dia e hora descritos na acusação, na sequência da discussão entre ambos, o arguido foi ameaçado, pelo ofendido, com uma enxada e um ferro.

41- Portanto o arguido agiu dominado por sentimentos de medo e perturbação em virtude das desavenças anteriores e das ameaças e provocações de que o arguido também era vítima por parte do ofendido, não conseguindo libertar-se daquela pressão, e que só o tempo ajudou a agravar a situação.

42- Acresce que, o relatório social junto aos autos refere traços de personalidade do arguido, "onde se destacam traços de intolerância e elevada impulsividade em situações de forte adversidade, levando a crer na necessidade de alguma intervenção psicoterapêutica a esse nível".

43- Pelo exposto, reside a dúvida se o arguido será ou não portador de alguma anomalia psíquica, que possa conduzir a uma situação de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída, não existindo nenhum relatório de perícia médico-legal, junto aos autos, que nos permita incluir ou excluir essa possibilidade.

44- Mais em sede de contestação o arguido requereu a realização de perícia à sua personalidade, tendo sido indeferida pelo tribunal "a quo", porque o arguido foi ouvido em sede de julgamento, bem como as demais testemunhas que conhecem, entendendo não ser necessária tal perícia.

45- Na nossa modesta opinião, impunha-se a realização de tal perícia, porquanto nem o tribunal nem tão pouco as pessoas que o conhecem, in casu, as testemunhas arroladas são pessoas avalizadas para emitirem um parecer médico-psiquiátrico sobre a personalidade do arguido, por não possuírem conhecimentos técnicos a esse nível.

46- Ao decidir como decidiu, indeferindo a requerida perícia sobre a personalidade do arguido, o tribunal "a quo", violou as disposições conjugadas dos artigos 151°., 159°, 160°., e 351°. do CPP.

47- Acarretando a nulidade da sentença, nos termos do artigo 379°., nº. 1, al. c) do CPP.

48- Pelas razões aduzidas, discordamos, com todo o devido respeito e salvo melhor opinião, da alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, pugnada pelo tribunal colectivo, por entendermos que a conduta do arguido não se enquadra nas circunstâncias qualificativas do nº. 2 do artigo 132°., al. i) e j) do Cód. Penal, mas consubstancia a prática de um crime de homicídio agravado, p. e p. pelos artigos 131°. do Cód. Penal e artigo 86°., nº 3, da Lei das Armas e Munições, tal como consta da incriminação da acusação pública.

49- A admitir a alteração da qualificação jurídica penal dos factos e a conduta do arguido a ser subsumível na previsão do artigo 132°., nº 1 e 2 do Código penal, não poderia ser aplicada a agravação prevista no artigo 86°., nº 3 do RGAM (Regimento Jurídico das Armas e suas Munições).

50- Veja-se a este propósito o Acórdão do Trib. da Relação de Évora (Proc. n°. 323/11.3GBGDL.E1, de 7-01-2014, in www.gde.mj.pt/jtre:

51- (...) “para realidades reveladoras de maior ilicitude e/ou de maior culpa, o Código Penal prevê uma pena específica, logicamente a mais grave (do homicídio qualificado). E sendo esta já a pena aplicável a uma determinada realidade, não haverá lugar à aplicação do n°. 3 do art.86°. (logicamente a incidir sobre o tipo base), pois já ocorreu agravação por via do próprio tipo (qualificado). Agravação que é sempre superior à que resultaria da pena prevista no artigo 131°. Após incidência do art. 86°, nº. 3 do RJAM".

52- Assim, pelo exposto, entendemos na nossa modesta opinião, que o ora recorrente ou deveria ser condenado por homicídio agravado p. e p. pela previsão do artigo 131°. do Código Penal e 86°, nº 3 da Lei n°. 5/2006 de 23 de Fevereiro, por o crime ter sido perpetrado com arma de fogo, cujas penas são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso e porte de arma.

53- Ou como no caso sub judice a lei até prevê agravação mais elevada para o crime em apreço em função do uso e porte de arma, portanto se o ora recorrente é condenado por um crime de homicídio qualificado, agravado, previsto e punível pelos artigos 131º., 132º, nº. 2, als. i) e j) do Código Penal e artigo 86°., nº. 3 da Lei nº. 5/2006, de 23 de Fevereiro.

54- O mesmo significa que o ora recorrente só poderia ser condenado ou por homicídio agravado nos termos do disposto nos artigos 131°. do Código Penal e 86°., nº. 3 da Lei n°. 5/2006 de 23 de fevereiro, ou por homicídio qualificado nos termos do artigo 132°., nº. 1 e 2 do Código Penal, ficando arredada a aplicabilidade, em simultâneo, do artigo 86°, n°. 3 da Lei das Armas e suas Munições, o douto tribunal "a quo", ao decidir como decidiu, violou as disposições dos artigos 131°., 132°., n°. 1 e 2 e artigo 86°., nº. 3 da Lei das Armas e Munições.

55- Ademais, entendemos com todo o devido respeito, e salvo melhor opinião, que não foi produzida prova suficiente para que a conduta do arguido possa ser subsumida na previsão do artigo 132º, nº. 2, al. i) e j) do Cód. Penal, com o consequente agravamento da moldura penal aplicável.

IV - DA MEDIDA CONCRETA DA PENA

56- No que respeita à medida da pena, o limite máximo fixa-se de acordo com a culpa do agente e o limite mínimo de acordo com as exigências de prevenção geral.

57- Nos termos do disposto nos artigos 40º., 71º. do Código Penal, a pena concreta é determinada, considerando as exigências de prevenção especial e todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido.

58- Dito de outro modo por Anabela Rodrigues:

59- «Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida (...) pelas exigências de prevenção geral.

60- “Depois, (...) a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial.

61- “Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena". (Problemas fundamentais de Direito Penal, homenagem a Claus Roxin, Lisboa 2002, p. 208)

62- Refere ainda Figueiredo dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do Crime, Editorial Notícias - tendo por referência o projeto que veio a ser plasmado no artigo 40°., da redação ao artigo 40º. do Código penal - "As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e, na medida do possível na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa: Nestas duas proposições reside a fórmula básica, de resolução das antinomias entre os fins das penas" - cfr. pag.227.

63- Por mais hediondo que seja o crime, por mais dramáticas que sejam os seus efeitos, por maiores que sejam as necessidades de prevenção, nunca pode ser infligida ao arguido uma pena que vá além dos limites impostos pela medida da culpa.

64- Nesta linha de pensamento, "a culpa é o juízo de censura ético-jurídica dirigida ao agente, por ter actuado de determinada forma quando podia e devia ter agido de modo diverso" (Eduardo Correia, Direito Criminal, Coimbra, reimpressão, 1993, Vol. 1, pág. 316)

65- Por seu turno, o artigo 71º., n°. 1 do Código de Processo Penal determina que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção devendo, conforme previsto no nº. 2, atender-se-á às circunstâncias que deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente, as aí enunciadas.

66- O arguido, ora recorrente, é primário, não tem antecedentes criminais, contando à data da prática dos factos com 53 anos de idade.

67- Encontra-se familiar e socialmente integrado, antes de ser detido preventivamente vivia com a mulher e a filha de 16 anos de idade, sendo que sempre manteve uma boa conduta anterior à data da prática dos factos.

68- Era conhecido pelas pessoas com quem manteve relações laborais como uma pessoa bastante trabalhadora e até "meticuloso" com o trabalho, antes de ser preso, trabalhava numa quinta agrícola denominada "...", exercendo funções de trabalhador agrícola.

69- Nos termos e para os devidos efeitos do artigo 72°., n°. 1 do Código Penal "O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena".

70- Nos termos do artigo 72°., n°. 2, al. b) são consideradas para efeitos do número anterior as circunstâncias seguintes:

71- b) "Ter sido a conduta do agente determinada (...) por provocação injusta ou ofensa imerecida".

72- Ora no caso em apreço, o ora recorrente mantinha com a vítima uma relação pouco amistosa, os conflitos entre ambos duravam há mais de trinta anos e prendiam-se com o facto da vítima utilizar uma serventia de passagem junto à residência do recorrente, que dava acesso à propriedade do pai da vítima.

73- Mais resultou das declarações do arguido que havia ameaças por parte da vítima, que o ameaçou várias vezes com enxadas e ferros, que a vítima chegou a dizer-lhe que o havia de matar a ele e à família dele, oito dias antes dos factos, a vítima voltou a ameaçar o arguido, ora recorrente com um "revólver" que o mesmo trazia no bolso. O recorrente declarou que vivia atemorizado com a ideia que a vítima lhe tirasse a vida a si ou à sua família.

74- No dia e hora dos factos a conduta do arguido foi fortemente determinada pela discussão travada entre ambos e pelas ameaças da vítima, terá havido uma certa provocação por parte da vítima o que naquele dia apenas fez transbordar o copo, foi mais um dia, de tantos outros em trinta anos, que culminou nos trágicos acontecimentos.

75- Assim entende o recorrente que o tribunal "a quo" deveria ter tido em consideração a referida circunstância de atenuação especial a que alude o artigo 72°., nº. 2, al. b) do Código Penal e a pena deveria ter sido especialmente atenuada, tendo sido ao invés agravada, em claro desrespeito pela lei, violou assim o disposto no artigo 72°., n°. 1 e 2. al. b) do Código Penal.

DO PEDIDO DE INDEMNIZACÃO CIVIL:

76- Foi ainda julgado parcialmente procedente por parcialmente provado o pedido de indemnização civil deduzido pelos demandantes, BB; CC e DD e em consequência condenado o demandado AA, a pagar:

• aos demandantes a quantia de sessenta mil euros pela perda do direito à vida de EE;

• Quarenta mil euros relativos às dores e sofrimentos sentidos pela demandante BB

com a morte de EE;

• Vinte mil a cada um dos outros demandantes (CC e DD) relativa às dores e sofrimentos físicos e psíquicos resultantes da morte de EE.

77- O recorrente entende que os montantes terão que ser reduzidos para montantes justos e equitativos, atendendo à débil e grave situação económica do arguido e do seu agregado familiar, situação de carência económica que está documentada nos autos.

NORMAS JURÍDICAS VIOLADAS:

Artigos. 71°., 72°., n°. 1 e 2 al. b). 131º., 132°., nº. 1 e 2, todos do Código Penal, artigo 86°., n°. 3 da Lei das Armas e munições, 151°.,159°., 160°. e 351ª. do CPP

Respondeu o Ministério Público, dizendo:

1- OBJECTO DO RECURSO.

a) Questão prévia - inaudibilidade parcial da gravação das declarações do arguido, prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento.

O arguido/recorrente veio invocar, em sede de recurso, a nulidade prevista no art.º 363° do Código de Processo Penal (CPP) e a consequente invalidade da prova produzida em audiência de discussão e julgamento por deficiente gravação da mesma que tornou inaudíveis algumas passagens das declarações do mesmo, prestadas no dia 04.06.2014.

A questão da deficiente gravação da prova já foi largamente tratada e debatida jurisprudencialmente, existindo mesmo arestos dos tribunais superiores com posições diametralmente opostas (mesmo considerando as sucessivas alterações legislativas) sobre as consequências jurídicas que da referida deficiência técnica podiam advir.

Desde nulidade insanável a nulidade sanável e a mera irregularidade, todas as soluções foram propugnadas...

Dispensamo-nos, hoje, de dissertar sobre o tema, tendo em conta a doutrina veiculada, a propósito, pelo recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça para uniformização de jurisprudência, n.º 13/2014, de 03.07.14, publicado no Diário da República, 1ª Série, de 23.09.2014 o qual, para além da melhor interpretação, contém uma resenha histórica e doutrinal que nos dispensamos de transcrever.

Culmina com a seguinte fixação de jurisprudência:

"A nulidade prevista no art.º 363.º do Código de Processo Penal deve ser arguida perante o tribunal de 1.ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão da documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do n.º 3 do art.º 101.º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada."

 Destarte, uma vez que a questão só foi suscitada em sede de recurso e na própria motivação deste, não pode colher a argumentação do recorrente.

b) Para além daquela questão, o arguido/recorrente centrou o objecto do recurso em três outras, a saber, na subsunção dos factos provados ao Direito, designadamente, a qualificação do homicídio, nos termos do disposto nos artigos 131°, 132°, n.ºs 1 e 2 do CP e 86°, n.º 3, da Lei 5/2006, no indeferimento da perícia de personalidade ao recorrente e na dosimetria da pena em concreto que lhe foi aplicada.

II - DA RESPOSTA

Tratada que se mostra a questão prévia suscitada, importa agora responder às demais questões.

Em primeiro lugar e no que respeita à qualificação do crime de homicídio, entende o recorrente que o Tribunal a quo aplicou mal o Direito, na medida em que julgou verificadas as qualificativas do art.º 132° do CP, quando o crime de homicídio já se encontrava "qualificado pelo n.º 3, do art.º 86°, da Lei 5/2006", tal como constava na acusação pública.

Por via da qualificação operada pelo Tribunal a quo, a moldura penal abstracta aplicável foi agravada relativamente à que resultava da qualificação constante da acusação.

Ora, o Tribunal a quo deixou explícita a sua deliberação no sentido de considerar verificada a qualificação constante do art.º 132°, n.ºs 1 e 2 do CP, na fundamentação do douto acórdão ora em crise:

"Da matéria de facto dada como assente, resultam elementos, no entender do tribunal, que revelam uma especial censurabilidade ou perversidade do arguido na prática dos factos em questão.

Uma delas resulta, desde logo, da relação de parentesco existente entre o arguido e o ofendido que eram, respectivamente, tio e sobrinho.

Depois corroborando esta especial censurabilidade temos o facto de o arguido ter agido por um motivo que não pode ser considerado um verdadeiro motivo, ou seja, porque o ofendido passou com o seu tractor numa servidão de passagem pela qual o arguido entendia que não devia passar... não podemos deixar de apreciar este factor à luz do homem médio, e, em face deste, considerar uma «birra», por causa de terras um motivo fútil.

Por fim e como mais relevante na revelação da especial censurabilidade ou perversidade do arguido, temos a forma como actuou. Ou seja, o arguido fez uma espera ao ofendido, aproximou-se da janela do quarto da filha, local de onde o tiro surtiria o efeito pretendido e local onde o ofendido não o podia ver atempadamente e, quando este se encontrava a cerca de dez metros, sem lhe dar possibilidade de se defender, atirou sobre o mesmo."

O art.º 86°, n.º 3, da Lei 5/2006 não qualifica os crimes aos quais prevê aplicação. Agrava a moldura penal desses crimes.

O Tribunal a quo entendeu, face à matéria assente e resultante da discussão da causa, que o tipo legal de crime em causa seria o de homicídio qualificado (resultando essa qualificação, como vimos, da especial censurabilidade ou perversidade do arguido revelada na relação de parentesco existente entre ele e a vítima, no motivo fútil - «birra» por causa da passagem do tractor conduzido pela vítima numa pretensa servidão - e a "espera" feita pelo arguido, a partir de local que a vítima não avistou atempadamente, perto do local de passagem desta, por forma a não errar o tiro, e onde o mesmo ficava na impossibilidade de se defender.

E foi perante a verificação da prática deste crime que recaiu a agravação decorrente da aplicação imperativa constante do n.º 3, do art.º 86º, da Lei 5/86.

Em nosso entender nada obsta à cumulação destas circunstâncias.

 (Aliás, o mesmo aconteceria se se tratasse de parricídio com utilização de arma de fogo... E a agravação decorrente do art.º 86°, n.º 3, da Lei 5/2006 não teria aplicação caso, por exemplo, quer na situação sub judice, quer num parricídio se, ao invés da utilização de arma de fogo, fosse utilizada a força muscular...)

Quanto à recusa do Tribunal a quo em ordenar uma perícia sobre a personalidade do arguido, entendemos que o fundamento utilizado teve total cabimento.

Dispõe o art.º 160º do CPP:

"1 - Para efeito de avaliação da personalidade e da perigosidade do arguido pode haver lugar a perícia sobre as suas características psíquicas independentes de causas patológicas, bem como sobre o seu grau de socialização. A perícia pode relevar, nomeadamente para a decisão sobre a revogação da prisão preventiva, a culpa do agente e a determinação da sanção. 2 - A perícia deve ser deferida a serviços especializados, incluindo os serviços de reinserção social, ou, quando isso não for possível ou conveniente, a especialistas em criminologia, em psicologia, em sociologia ou em psiquiatria. 3 - Os peritos podem requerer informações sobre os antecedentes criminais do arguido, se delas tiverem necessidade."

O Tribunal a quo entendeu por bem não determinar a realização da perícia por dispor dos elementos bastantes para a decisão sobre a culpa do arguido e consequente determinação da sanção a aplicar.

Por outro lado, competia ao arguido indicar a razão pela qual entendia que a perícia poderia relevar para a verdade material o que, em nosso entender, não fez.

"1. Aquele que requerer a realização de perícia sobre a sua personalidade deverá indicar a razão pela qual entende que esse meio de obtenção de prova pode relevar para a verdade material, fundando assim o seu pedido, quer sobre o desiderato prosseguido com a perícia, quer sobre o alcance que, com ela, visa ajudar o tribunal na sua decisão. (...)" Ac. TRE de 25-02-2014, in www.dgs.pt

Finalmente, e quanto à dosimetria da pena que em concreto lhe foi aplicada, atendendo à fundamentação exarada no douto acórdão ora em crise, somos do entendimento que a mesma se mostra adequada, necessária, justa e proporcional, capaz de satisfazer as exigências de prevenção (especial e geral) e de ressocialização.

III - CONCLUSÕES

1 - O arguido só em sede de recurso, com a respectiva motivação, veio suscitar a questão da inaudibilidade parcial das suas declarações prestadas em audiência de julgamento, considerando-se afectado na possibilidade de impugnação da matéria de facto provada, invocando a nulidade prevista no art.º 363° do CPP e requerendo a repetição do julgamento;

2 - Aquela nulidade deveria ter sido arguida perante o tribunal de 1ª instância, em requerimento autónomo, e no prazo de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que ocorreu a deficiente documentação das declarações orais (acrescido do período de tempo que mediou entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efectiva satisfação desse pedido pelo funcionário), o que não aconteceu, devendo considerar-se sanada;

3 - O Tribunal a quo deixou explícita a sua deliberação no sentido de considerar verificada a qualificação constante do art.º 132°, n.ºs 1 e 2 do CP, na fundamentação do douto acórdão sendo certo que o art.º 86°, n.º 3, da Lei 5/2006, não qualifica os crimes aos quais prevê aplicação, tão só agrava a moldura penal desses crimes;

4 - O Tribunal a quo entendeu, face à matéria assente e resultante da discussão da causa, que o tipo legal de crime em causa seria o de homicídio qualificado (resultando essa qualificação, como vimos, da especial censurabilidade ou perversidade do arguido revelada na relação de parentesco existente entre ele e a vítima, no motivo fútil - «birra» por causa da passagem do tractor conduzido pela vítima numa pretensa servidão - e a "espera" feita pelo arguido, a partir de local que a vítima não avistou atempadamente, perto do local de passagem desta, por forma a não errar o tiro, e onde o mesmo ficava na impossibilidade de se defender;

5 - E foi perante a verificação da prática deste crime que recaiu a agravação decorrente da aplicação imperativa constante do n.º 3, do art.º 86°, da Lei 5/86;

6 - O Tribunal a quo entendeu por bem não determinar a realização da perícia de personalidade por dispor dos elementos bastantes para a decisão sobre a culpa do arguido e consequente determinação da sanção a aplicar e porque competia ao arguido indicar a razão pela qual entendia que a perícia poderia relevar para a verdade material o que, em nosso entender, não fez;

7 - Somos do entendimento que a pena de prisão aplicada em concreto se mostra adequada, necessária, justa e proporcional, capaz de satisfazer as exigências de prevenção (especial e geral) e de ressocialização.

Termos em que, mantendo-se a decisão recorrida, que não merece qualquer censura, e negando-se provimento ao recurso, se fará JUSTIÇA.

A assistente e demandante BB respondeu da seguinte forma:


1. Improcede, por ser manifestamente, improcedente a pretensão do recorrente de que as declarações produzidas pelo arguido na audiência de julgamento devem ser repetidas, por deficiência da sua gravação, porque, conforme resulta do artigo 363º do CPP não invoca quais os factos que pretende provar com tal repetição nem se a alegada deficiência terá impedido a fixação do sentido essencial de tais declarações.
2. Mesmo que as declarações prestadas pelo arguido em audiência não fossem audíveis, em termos de justificar a aplicação aos autos do artigo 363º do CPP, sempre se dirá que este facto é insusceptível de pôr em crise a decisão recorrida, pela razão de a mesma subsistir, independentemente das aludidas declarações, por ser sustentada noutros meios de prova, e pelo facto de o recurso a que agora se responde versar apenas matéria de direito e não de facto deve improceder o recurso, na parte em que invoca não estarem preenchidas as circunstâncias previstas na alínea i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, pela razão de que os factos dados como provados no Acórdão recorrido são constitutivos de tal norma, pela razão de integrarem factos que demonstram ter sido o crime perpetrado pelo arguido em condições que impossibilitaram qualquer possibilidade de o ofendido se defender.
3. Deve o recurso improceder, quando invoca que o Acórdão recorrido aplicou mal ao caso dos autos, a norma constante da alínea j) do nº 2 do artigo 132º do CP, pela razão de que o Tribunal recorrido, apesar de ter fundamento para o fazer, não a aplicou pois não fez alusão a nenhum dos conceitos dela constantes.
4. Deve o recurso improceder porque a fundamentação e as conclusões que invoca não são susceptíveis de alterar o conteúdo e o sentido da decisão recorrida porque esta decisão condenou o recorrente pela prática de crime qualificado pelo facto de ter considerado que a globalidade dos factos demonstram especial perversidade e culpabilidade, com o mesmo nível de censura das que são enunciadas no artigo 132º, nº 2, do Código Penal, sem ter efectuado referência a qualquer uma daquelas circunstâncias meramente exemplificativas.
5. Deve o recurso improceder, na parte em que se peticiona a nulidade da sentença pelo facto de o Tribunal ter omitido a realização da perícia requerida pelo arguido em sede de contestação, pela razão de tal requerimento, por violar o artigo 154º, nº 1, do CPP - pois não indica os quesitos que devem ser objecto da perícia -, ser destituído de objecto, pelo facto de a arguição da nulidade ser extemporânea e pelo facto de a decisão de não ter realizado a perícia requerida ser insindicável por a mesma ser desnecessária para a prova dos factos.
6. Deve improceder o recurso quando pretende que não são cumuláveis as qualificantes constantes do artigo 132º, nº 2 do Código Penal, com a agravante do artigo 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, porque tanto a referida qualificante como a referida agravante, por terem fundamentos diferentes, são de aplicação cumulativa.
7. Deve improceder o recurso quando pretende impugnar a pena fixada pela decisão recorrida pelo facto de lhe imputar a violação do artigo 72º, nº 2, alínea b) do Código Penal, tendo em conta que a decisão recorrida ao não ter aplicado tal preceito legal não merece censura, pela razão de não existirem factos fixados que sejam susceptíveis de o preencher.
8. A pena fixada, face aos factos, à elevada culpa do arguido, e à elevadíssima gravidade do crime não merece qualquer reparo pois é equilibrada e cumpre cabalmente os fins de prevenção a que está adstrita.
9. A pretensão do recorrente de que as indemnizações, por danos morais, fixadas pelo Acórdão recorrido devem ser atenuadas, não merece qualquer reparo, nem é susceptível de ser sindicada em sede de recurso, porque foi uma decisão ponderada, criteriosa e respeitadora de todos os princípios de equidade.
10. Que corresponde a um acto dependente da livre resolução do Tribunal e, por isso, insusceptível de recurso como decorre do estatuído no artigo 400º, nº 1, alínea b) do CPP.
11. Os fundamentos invocados pelo recorrente para fundamentar a sua pretensão de ver os montantes da indemnização por danos morais serem diminuídos são improcedentes porque, no caso dos autos, os critérios que devem prevalecer na fixação de tais montantes são a culpa do arguido, que foi elevadíssima, o ressarcimento possível dos danos sofridos, que são irreparáveis, e o seu carácter sancionatório,
Não podendo, tais critérios ser mitigados ou afastados pela situação económica do arguido, por muito débil que seja, o que não se verifica no caso concreto, pois, como consta dos autos existem diversos bens arrestados para garantir o pagamento das suas obrigações pecuniárias derivadas do processo, incluindo o pagamento das indemnizações aos demandantes.

Também os demandantes CC e DD responderam, concluindo:


1. Improcede, por ser manifestamente, improcedente a pretensão do recorrente de que as declarações produzidas pelo arguido na audiência de julgamento devem ser repetidas, por deficiência da sua gravação, porque, conforme resulta do artigo 363º do CPP, não invoca quais os factos que pretende provar com tal repetição nem se a alegada deficiência terá impedido a fixação do sentido essencial de tais declarações.
2. Mesmo que as declarações prestadas pelo arguido em audiência não fossem audíveis, em termos de justificar a aplicação aos autos do artigo 363º do CPP, sempre se dirá que este facto é insusceptível de pôr em crise a decisão recorrida, pela razão de a mesma subsistir, independentemente das aludidas declarações, por ser sustentada noutros meios de prova, e pelo facto de o recurso a que agora se responde versar apenas matéria de direito e não de facto
3. A pretensão do recorrente de que as indemnizações, por danos morais, fixadas pelo Acórdão recorrido devem ser atenuadas, não merece qualquer reparo, nem é susceptível de ser sindicada em sede de recurso, porque foi uma decisão ponderada, criteriosa e respeitadora de todos os princípios de equidade
4. Que corresponde a um acto dependente da livre resolução do Tribunal e, por isso, insusceptível de recurso como decorre do estatuído no artigo 400º, nº 1, alínea b) do CPP.
5. Os fundamentos invocados pelo recorrente para fundamentar a sua pretensão de ver os montantes da indemnização por danos morais serem diminuídos são improcedentes porque, no caso dos autos, os critérios que devem prevalecer na fixação de tais montantes, são a culpa do arguido, que foi elevadíssima, o ressarcimento possível dos danos sofridos, que são irreparáveis, e o seu carácter sancionatório,
Não podendo, tais critérios, ser mitigados ou afastados pela situação económica do arguido, por muito débil que seja, o que não se verifica no caso concreto, pois, como consta dos autos existem diversos bens arrestados para garantir o pagamento das suas obrigações pecuniárias derivadas do processo, incluindo o pagamento das indemnizações aos demandantes.

Os autos foram remetidos ao Tribunal da Relação de Lisboa, o qual se julgou incompetente para a apreciação do recurso, por força do art. 432º, nº 1, c), do CPP, por decisão sumária do Relator, sendo ordenada a remessa a este Supremo Tribunal.

Aqui, a sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu o seguinte parecer:

O arguido AA foi julgado e condenado no então 2º Juízo do Tribunal de Alenquer, círculo judicial de Vila Franca de Xira em 22/7/2014 por autoria de um crime de homicídio qualificado agravado (artºs 131º, 132º nº 1 e 2  do C.P e 86º nº 3 da lei 5/2006) na pena de 17 anos de prisão e um crime de detenção ilegal de armas (artº 86º 1 d) lei 5/2006) na pena de 100 dias de multa à taxa diária de cinco euros e indemnizações aos demandantes e ISS,IP.

O arguido recorre desta condenação para o Tribunal da Relação de Lisboa, em 21/8/2014 e inicialmente, como questão prévia, começa por dizer que pretende impugnar a matéria de facto dada como provada, mas apenas arguiu a nulidade p. no artº 363º do CPP, porque o registo de prova que lhe foi entregue no suporte informático contém interferências, tornando-se inaudível em determinados momentos que identifica em tal registo.

Nestas mesmas, conclusões extensas, que se limitam a reproduzir a motivação, poder-se-á deduzir que também versa questões de direito, quando discorda da qualificação jurídica do crime pelo art. 132.º, n.º 2, als. i) e j), por já ser agravado ao ter sido praticado com arma e também por não ter revelado especial censurabilidade e perversidade nas circunstâncias em que praticou o crime, tenta arguir uma nulidade p. no art. 379.º, n.º 1, c), por ter sido indeferida uma perícia e questiona a medida da pena que deveria ser especialmente atenuada, art. 72.º, nºs. 1 e 2 do CP.

O MºPº respondeu através do sr. Procurador da República, defendendo a decisão recorrida e devendo por isso ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido.

                1 - A primeira nulidade suscitada pelo arguido/recorrente prender-se-ia com matéria de facto, (deficiência do conteúdo da gravação da produção de prova), se tivesse especificado que conteúdo das declarações do arguido poderia influenciar a decisão. E só então se questionaria se tal arguição podia ser apreciada no tribunal da relação, uma vez que o doutamente decidido no acórdão de fixação de jurisprudência n.º 13/14 publicado do D.R. de 23/9/2014, não lhe era ainda aplicável, ainda que os prazos ali previstos tivessem sido respeitados.

                O recurso tal como está definido pelo arguido/recorrente, não abrange matéria de facto, mas tão só de direito, da competência do Supremo Tribunal de Justiça (art. 432.º, n.º 1 c) do CPP).

                As questões de direito colocadas pelo arguido resumem-se, pois, à qualificação do crime de homicídio, nulidade do art. 379.º, n.º 2 do CPP por indeferimento de perícia sobre a sua personalidade e medida da pena.

                2 – O arguido/recorrente AA terá requerido antes do julgamento a realização de uma perícia à sua personalidade, perícia que foi indeferida por despacho proferido em audiência no dia 4/6/2014.

                Se o arguido queria impugnar esta decisão, que não constitui uma nulidade insanável (art. 119.º do CPP), teria de a impugnar. Não o tendo feito atempadamente, mostra-se sanada (arts. 120.º, 121.º do CPP) não constituindo por isso uma nulidade de sentença que possa ser conhecida em recurso (art. 379.º do CPP).

                3 – Homicídio simples, homicídio qualificado

Como já temos vindo a considerar e defender as circunstâncias enumeradas como exemplo padrão no nº 2 do artº 132º do CP não sendo elementos do tipo do crime de homicídio, mas sim da culpa, não funcionam, automaticamente, como de especial censurabilidade ou perversidade, devendo a sua determinação ser indispensável em cada caso concreto para que a sanção pelo crime de homicídio ultrapasse a moldura do p. no artº 131º do CP.          

Seguindo a doutrina e a jurisprudência, nomeadamente, Figueiredo Dias, in Comentário Conimbricense, fls. 26 e segs. e acórdão do STJ, entre muitos o de 15/03/2007, p. 340/07, o crime base é o homicídio simples, p. no art.º 131º conforme está determinado na lei e o homicídio qualificado é uma forma agravada do homicídio simples, não se podendo considerar o contrário, isto é que o homicídio simples é a uma atenuação do agravado.

A agravação da culpa no dizer de Figueiredo Dias é em todos os casos suportada por uma correspondente agravação do conteúdo do ilícito caindo a “especial censurabilidade” nas condutas em que o especial juízo de culpa se fundamenta na refração ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas e a “especial perversidade” terá de cair naqueles casos em que o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação, no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas (anotação artº 132º, Comentário Conimbricense, T.1, fls. 29).

O crime de homicídio, não poderá ser qualificado só porque os factos provados, sem mais, possam fazer supor que estão preenchidos um ou mais dos exemplos padrão do nº 2 do artº 132º, sem que o homicídio seja qualificado só por isso.

Para que a qualificação se verifique terá de ocorrer uma “imagem global do facto agravado” (neste sentido o Ac. do STJ de 8/10/2011. p. 88/09.9, 5ª sec. e toda a jurisprudência e doutrina aqui referidos).

3.1 – Tal como o arguido/recorrente defende também não nos parece que da matéria de facto provada resultem circunstâncias/motivos que revelem especial censurabilidade do arguido AA ao provocar a morte do seu sobrinho EE.

É certo que o acórdão condenatório apesar de considerar que o arguido cometeu um crime qualificado não especificou qual ou quais as circunstâncias que revelam especial censurabilidade, pois limitou-se a indicar o art. 132.º, n.º 1 e 2 do CP, o que constituiria uma omissão.

No entanto na fundamentação do enquadramento jurídico da qualificação do homicídio foi considerado que o facto do ofendido ter passado com o tractor numa servidão de passagem pela qual o arguido entendia não dever passar, será à luz do homem médio uma birra por causa de terras um motivo fútil.

                Primeiro começa por considerar que na “zona” são frequentes as desavenças por motivos semelhantes para depois, além de à luz do homem médio isto ser uma “birra”, é acrescentado no acórdão que tem maior relevo para haver especial censurabilidade ou perversidade do arguido, a forma como actuou o que foi considerado como “espera”, o ter-se aproximado da janela do quarto da filha para disparar sem que o ofendido o pudesse ver e sem se poder defender, o que é considerado pelos julgador uma forma insidiosa.

                3.2 – Esta interpretação da matéria de facto provada, segundo nos parece, não poderá enquadrar-se nem motivo fútil nem na utilização de um meio insidioso.

                3.2.1 - Sobre motivo fútil a título de exemplo não poderemos deixar de citar Jurisprudência do Supremo Tribunal (Ac. do STJ de 27/5/2010 da 5ª sec. p. 517/08.9JACBR.C1.S1) que considerou que “para se avaliar se um motivo é fútil tem de se relacionar a gravidade do comportamento com o móbil do crime. E então, se nenhum motivo justifica causar a morte de outrem (daí ser crime), a grande desproporção entre o que se elege como motivo da acção e aquilo em que esta se analisa, transforma a conduta, não só em algo intolerável, como também em algo absurdo, sem explicação, à luz das concepções éticas correntes, da sociedade. A razão do cometimento do crime tem um valor irrisório para o normal dos cidadãos, comparando com o mal que se provoca com este”.

                As “passagens” para as terras de cultivo são questões que há muitos anos são debatidos em diversas regiões do país criando sempre grandes zangas e disputas às vezes com consequências graves o que é do conhecimento comum.

                Mas a defesa destes direitos não se podem considerar “birras” porque não são ocasionais ou absurdas.

                3.2.2 - O meio insidioso não poderá ser um motivo, tal como é referido na al. i) do n.º 2 do art. 132.º mas a utilização de um meio/instrumento dissimulado, de armadilha, de cilada (Acs. de STJ de 26/3/2008, p. 292/08, do Sr. Conselheiro Relator e de 27/5/2010, p. 58/08).

                O arguido estava em sua casa e tinha “avisado” a vítima, depois da discussão “passas para cima, mas não passas para baixo”, pelo que não poderá considerar-se preenchida esta qualificativa. 

                3.3 - Por isso parece-nos que, não resulta da matéria de facto provada que o motivo fútil ou o meio insidioso como circunstâncias qualificativas se verificam independentemente da conduta do arguido ser censurável.

                No entanto o arguido AA não foi condenado expressamente por qualquer das circunstâncias padrão do n.º 2 do art. 132.º ou qualquer outra.

                Medida da pena

                Vindo a ser alterado o acórdão recorrido quanto à condenação do arguido pelo crime de homicídio qualificado, só poderá ser condenado pelo homicídio agravado (art. 131.º do CP e n.º 3 do art. 86.º da lei 5/2006), tal como havia sido acusado e por isso parece-nos que deverá ser alterada a pena de prisão que terá de ser fixada entre 10 anos e 8 meses de prisão e 21 anos e 4 meses de prisão.

                Porém não nos parece que haja quaisquer outros fundamentos para a pena ser especialmente atenuada, como defende o arguido/recorrente.

                A determinação da medida da pena, nos termos do art. 71.º, n.º 1 do CP “far-se-á em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes”, mas dentro dos limites definidos na lei.

                Existe pois um critério legal para a sua determinação que se baseia na culpa e na prevenção tendo de ser graduada a pena com as circunstâncias atenuantes e agravantes (n.º 2 do art. 71.º do CP).

                Também, a pena terá de prender-se com o disposto no art. 40.º do CP por ter por finalidade “a protecção de bens jurídicos e a reintegração na sociedade”.

                Mas também constitucionalmente está prevista a restrição do exercício dos direitos, liberdades e garantias do arguido para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos (art. 18.º da Constituição) que neste caso concreto foi por si violado o direito à vida da vítima.

                A pena a aplicar ao arguido AA, terá de atender não só à prevenção geral (atendimento do sentimento comunitário) mas também à prevenção especial de acordo com a «neutralização-afastamento» do delinquente no cometimento de outros crimes, para isso intimidando-o a moldar a sua personalidade (neste sentido Ac. de 27/5/2011, p. 517/08.9).

                No caso concreto de homicídio voluntário em que as exigências da prevenção geral são mais elevadas do que a prevenção especial, tendo especialmente estabilizado o ambiente familiar directo, a idade e a ausência de antecedentes criminais, conjugadas com todas as outras circunstâncias dadas como provadas, parece-nos que a medida da pena a aplicar ao arguido AA, poderá ser fixada mais próxima dos 15 anos de prisão.

                Assim e por tudo isto parece-nos que o recurso do arguido AA deverá ser rejeitado quanto à questão prévia e ser julgada parcialmente quanto à qualificação e medida da pena de prisão.

           

Notificado nos termos do art. 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (CPP), só a assistente respondeu, dizendo:


1. A signatária vem apresentar a presente resposta pela razão de que não concorda com a pretensão formulada pelo ilustre representante do Ministério Público nesse Tribunal, de promover a alteração da qualificação jurídica dos factos de homicídio qualificado, p. e p. no artigo 132º do CP, para o crime de homicídio simples, p. e p. no artigo 131º do mesmo diploma legal. Na verdade,
2. Não pode a assistente, embora com todo o respeito, deixar de afirmar toda a sua discordância em relação a tal posição que é defendida pelo Ilustre representante do Ministério Público, nesse Tribunal. Vejamos,
3. Decorre dos factos dados como provados na Sentença que o arguido, para cometer o crime, utilizou um meio insidioso, pelo facto de, acoitado na janela do quarto de sua filha, ter esperado que o ofendido se aproximasse cerca de 10 metros, local onde sabia que o ofendido o não poderia ver e do qual o seu disparo não iria falhar, aproveitou para, de surpresa e sem que aquele tivesse qualquer possibilidade de se defender, efectuar o disparo fatal que, de acordo com a sua intenção, pôs fim à vida do ofendido.
4. Não há dúvida que estas circunstâncias, através das quais o crime foi cometido, revelam especial censurabilidade e perversidade, integrando, por isso, o conceito de meio insidioso estando, por esta razão, preenchido o tipo de culpa previsto na alínea i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal – meio insidioso.
5.  O que implica que, só pelo exposto, a decisão recorrida não seja merecedora de qualquer censura ao ter condenado o arguido pela prática do crime de homicídio qualificado.
6. Porque, é patente na nossa Jurisprudência, a adopção reiterada da posição de qualificar como meio insidioso merecedor da censura acrescida, constantes do artigo 132º do Código Penal, quando o agente do crime procura e se aproveita das situações em que a vítima não se pode defender para, então, consumar a sua intenção de violar o bem vida.
7. A este propósito não podemos deixar de citar, os seguintes arestos:
- O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 26 de Março de 2008, Procº nº 08P292, consultável in www.dgsi.pt, onde consta sob o documento nº SJ2008032602923, que consagra o seguinte:
“I - Resultando, em síntese, da matéria de facto provada que:
- o arguido dirigiu-se a casa da sua ex-companheira, ML, com quem já não vivia há cerca de um ano, levando consigo uma arma de fogo que havia adquirido com o propósito de a matar, propósito esse que já havia formulado;
- conseguiu que ela o deixasse entrar em casa, mas não concretizou nesse momento a sua intenção, pelo contrário, mostrou-se atencioso e delicado com ela e com os filhos de ambos, o que não era habitual;
- só algumas horas depois, e certamente porque a sua “abordagem” não terá sido bem recebida, ele ameaçou a ML, dizendo-lhe: “se não voltares para mim, mato-te”, após o que saiu de casa dela, mas regressou logo de seguida, exibindo a arma de fogo e comunicando-lhe: “Esta arma é para te matar”;
- expulso pela vítima ML, o arguido saiu, mas ficou a “rondar a casa”, às escondidas dos ali residentes, aguardando a ocasião propícia para concretizar o dito projecto;
- e ficou à espera, sempre escondido, algumas horas;
- entretanto, depois de um telefonema efectuado pela ML para o posto da GNR, compareceram no local duas militares daquela corporação, mas nem isso demoveu o recorrente, que permaneceu exactamente nas mesmas circunstâncias;
- e ali esteve até que a vítima ML regressou, acompanhada da mãe, da cidade de O…, onde tinha ido fazer queixa dele no posto da GNR;
- foi então que, já completamente noite, o recorrente apareceu, de surpresa, dirigiu-se ao veículo que a vítima acabara de estacionar, impediu-a de sair da viatura, como ela pretendia, e, estando ela aí bloqueada e sem possibilidade de defesa, sobre ela disparou sucessivamente quatro tiros à queima-roupa;
é correcto concluir, como o fez o acórdão recorrido, que esta actuação do arguido, com espera, surpresa e dissimulação, apanhando a vítima inteiramente desprevenida, encurralando-a no veículo e colocando-a completamente à sua mercê, constitui, sem dúvida, um comportamento insidioso, a integrar na al. h) do n.º 2 do art. 132.º do CP, que qualifica o homicídio em função da utilização de veneno ou qualquer outro meio insidioso.
II - Meio insidioso é um qualquer meio desleal, traiçoeiro, ardiloso, um instrumento de uma armadilha, de uma cilada, situação na qual a vítima se encontra especialmente desprotegida perante o agressor, o que torna a conduta deste especialmente censurável.(…)” (O sublinhado é nosso). E,
- O Acórdão, também do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Maio de 2001, Procº nº 10 de Maio de 2001, Procº nº 0016589, consultável in www.dgsi.pt, onde consta sob o documento nº RL200105100016589, no qual é consagrada seguinte posição:
“I - É pérfida e traiçoeira a conduta de quem, usando arma de guerra, espera a maior aproximação da vítima, disparando contra esta sem proferir qualquer palavra, a curta distância, visando parte do corpo, que em condições normais não permitiria qualquer hipótese de defesa ou sobrevivência.
Está, assim, preenchido o conceito de utilização de meio insidioso, determinativo da qualificação do homicídio, por especial censurabilidade ou perversidade.
II - Há premeditação quando o agente se muniu de uma arma, que utilizou, preparou-a para disparar, desactivando e mantendo inactivos os mecanismos de segurança, e postou-se em condições de tornar inevitável o encontro com a vítima, que esperou.
III - O dano morte não pode ser objecto de miserabilismos ressarcitórios.”
8. Pelo exposto, e atendendo à forma como o crime foi cometido, em que o arguido, intencionalmente, se acoitou, esperou que, desprevenidamente, o ofendido se aproximasse, e disparou a uma curta distância, cerca de 10 metros, com a intenção de lhe tirar a vida, o que concretizou, e sem lhe dar qualquer hipótese de se defender,
9. É manifesto que está preenchida a previsão constante do artigo 132º, nº 2, alínea i), do artigo 132º do Código Penal, porque o homicídio foi cometido através de meio insidioso, revelador de especial perversidade e merecedor de especial censurabilidade,
10. Não podendo, esta circunstância agravante ser afastada com o fundamento que é invocado pelo Ilustre representante do Ministério Público nessa elevada instância, de que o arguido, que estava em sua casa, tinha “avisado” a vítima de que “passas para cima e já não passas para baixo”.
11. Porque, no contexto em que os factos ocorreram, em que a divergência sobre o direito de passagem da vítima, já tinha muitos anos, este pretenso “aviso” nunca poderia ter sido entendido, nem pela vítima, nem por qualquer homem médio, como ameaça de homicídio, pois se assim tivesse sido entendida a vítima não teria ousado passar com o tractor outra vez junto à casa do arguido.
12. O que implica que a aplicação da qualificação prevista na alínea i) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, tenha o fundamento já explicitado de o crime ter sido cometido de forma traiçoeira que impossibilitou à vítima qualquer hipótese de evitar a sua consumação.
13. Mas se é manifesto que a conduta do arguido preenche a previsão da norma constante da alínea i) do nº 2, do artigo 132º do Código penal, é, também, manifesto que preenche a alínea j) deste mesmo preceito legal, porque foi praticado com frieza de ânimo, também ela reveladora de especial perversidade e merecedora de especial censurabilidade, dado o intensíssimo grau de desvalor que a conduta do arguido comportou.
14. Apesar de se considerar que o douto Acórdão sob recurso, não fez apelo à existência da aludida frieza de ânimo, nem condenou o arguido com este fundamento,
15.  Não poderemos deixar de a abordar, pelo facto de que, também esta circunstância qualificante do crime de homicídio está preenchida. Assim,
16. Conforme é assumido pela Jurisprudência, cfr. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Novembro de 2013, Procº. nº 2032/11.4JAPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt, a frieza de ânimo, prevista na citada alínea j) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, existe quando:
“VII - Através da al. j) do n.º 2 do art. 132.º do CP o legislador agrava o crime quando cometido com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregues, ou ainda quando há persistência na intenção de matar por mais de 24 horas.
VIII - Estas situações reconduzem-se afinal a manifestações do conceito tradicional de premeditação, que normalmente revela uma vontade mais intensa e persistente de praticar o crime. A frieza de ânimo consiste numa atuação calculada ou refletida do agente, revelando sangue frio na execução e indiferença perante as consequências do ato. A reflexão sobre os meios empregues consiste na preparação meditada do crime, no estudo de um plano de ação para o executar. A persistência na intenção de matar por mais de 24 horas revelará premeditação na medida em que se trata de tempo considerável para o agente poder ultrapassar impulsos súbitos e ponderar o alcance e consequências do ato. Em todos estes casos, o agente forma a sua vontade de forma calculada e refletida, ou nela persiste por tempo suficiente para vencer emoções imponderadas, revelando, assim, indiciariamente, especial censurabilidade ou perversidade na prática do crime.” (O sublinhado é nosso).
17. Sendo, este conceito de frieza de ânimo concretizado em diversos arestos, que, parecendo ter sido tirados a propósito do caso dos autos, qualificam os seguintes factos como preenchendo o conceito de frieza de ânimo/premeditação, consagrado no artigo 132º, nº 2, alínea i), do Código Penal, por revelarem especial perversidade e censurabilidade:
- “(…) II – Há premeditação quando o agente se muniu de uma arma, que utilizou, preparou-a para disparar, desactivando e mantendo inactivos os mecanismos de segurança, e postou-se em condições de tornar inevitável o encontro com a vítima, que esperou.(…)” cfr. o já citado Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10 de Maio de 2001, Procº nº 10 de Maio de 2001, Procº nº 0016589, consultável in www.dgsi.pt, onde consta sob o documento nº RL200105100016589. E
- “(…) III - Deve considerar-se frieza de ânimo ir a casa, após uma discussão, dai trazer uma espingarda carregada de zagalotes, intimar a vítima a sair do local, sob pena de contra ela disparar, contados que fossem três passos e disparar mesmo.”, cfr. o já citado Acórdão de 18 de Maio de 1988, Procº nº 039526, consultável in www.dgsi.pt sob o  doc. nº SJ198805180395263.
18. Ora, perante os factos provados na sentença recorrida – de que o arguido pelas 18 horas viu o ofendido tendo tido uma discussão com ele, após o que terá proferido uma exclamação no sentido de que ele iria passar para cima para o terreno e que já não passaria para baixo, tendo-se deslocado a sua casa, onde, pelas 18h 20m, avistou o ofendido a descer o caminho, tendo-se munido de uma espingarda com o propósito de lhe tirar a vida o que concretizou – é, manifesto que, face à jurisprudência citada o arguido deveria ter sido, também, condenado pela razão de a sua conduta preencher a circunstância qualificativa, que consta da alínea j) do nº 2, do artigo 132º do Código Penal.
19. E diga-se que o facto dado como provado na sentença - de que o arguido manifesta alguma rigidez pessoal, alguns traços de intolerância e uma forte impulsividade, mostrando-se necessária intervenção psicoterapeuta a esse nível -, não afasta a existência da frieza de ânimo que demonstrou na prática do crime.
20. Porque, tais traços de personalidade, que são traços de uma personalidade mal formada e não uma anomalia psíquica, não o impediram de ter consumado o crime que consumou o que fez, conforme está também provado nos autos, de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei.
21. Mas, se estamos perante factos que consubstanciam as qualificantes previstas no artigo 132º, nº 2, alínea i) – ter sido cometido através de meio insidioso – e alínea j) – ter sido cometido através com frieza de ânimo,
22. Também não poderemos deixar de afirmar que os factos, dados como provados, consubstanciam, ainda, ter sido o crime cometido por motivo fútil, o que preenche a previsão constante da alínea e) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal,
23. Na verdade, a decisão recorrida é inatacável ao produzir tal afirmação, quando afirma:
“Depois, corroborando esta especial censurabilidade temos o facto de o arguido ter agido por um motivo que não pode ser considerado um verdadeiro motivo, ou seja, porque o ofendido passou com o seu tractor numa servidão de passagem pela qual o arguido entendia que não deveria passar. Muito embora, na zona em que nos inserimos sejam frequentes as desavenças por motivos semelhantes, não podemos deixar de apreciar este factor á luz do homem médio, e, em face deste considerar uma “birra” por causa das terras um motivo fútil.
24. Sendo esta afirmação corroborada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, Acórdão de 18 de Maio de 1988, Procº nº 039526, consultável in www.dgsi.pt sob o doc. nº SJ198805180395263, quando consagra a seguinte doutrina:
“I - Para efeitos da alínea c) do n. 2 do artigo 132 do Código Penal, "motivo fútil" é  o motivo  insignificante, de pouco valor ou relevância; e o praticado, quando os seus antecedentes não são de molde a desencadeá-lo, são despropositados.
II - E o caso de se matar alguém, apenas por divergirem, quanto a localização de um caminho de serventia.
III - Deve considerar-se frieza de ânimo ir a casa, após uma discussão, dai trazer uma espingarda carregada de zagalotes, intimar a vítima a sair do local, sob pena de contra ela disparar, contados que fossem três passos e disparar mesmo.”
25. Resultando expressamente do exposto que, ao contrário do que é defendido pelo Ilustre Procurador-Geral Adjunto está certa, por ser conforme com a aplicação do direito, a condenação do arguido pela prática do crime de homicídio qualificado, previsto e punido no artigo 132º, nº 2, alínea e) do Código Penal.
26. Não podendo, no entanto, a signatária deixar de contestar a afirmação proferida nos autos pelo Ilustre Procurador-Geral Adjunto, utilizada para ao arrepio da Jurisprudência citada, que a defesa dos direitos de passagem não podem considerar-se “birras” porque não são ocasionais ou absurdas, porque, no caso dos autos não havia qualquer direito do arguido em impedir a passagem da vítima. E,
27. Mesmo que o houvesse, tal direito não seria, nunca justificativo para o acto que perpetrou.
28. Sendo um homicídio arbitrário, hediondo e demonstrativo de total desrespeito pela vida humana.
29. O que implica a inatacável condenação do arguido pela prática do crime de homicídio qualificado, previsto e punido nos artigos 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea e) do Código Penal constante da decisão recorrida.
30. Conforme é salientado no parecer que é objecto da presente resposta, e já foi salientado em sede de resposta à motivação de recurso, constata-se que a condenação, após fundamentar em matéria de direito a especial censurabilidade e perversidade da conduta do arguido devido à sua relação de parentesco com a vítima, devido ao motivo do crime ter sido um motivo fútil e devido à forma insidiosa com que o arguido actuou, não identificou nenhuma das alíneas constantes do artigo 132º do Código Penal.
31. Pois, limitou-se a afirmar que o arguido foi condenado como autor material de um crime de homicídio qualificado agravado, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 131º, 132º, nº 1 e 2, do Código Penal. Ou seja,
32. Conforme já foi referido, esta condenação não foi proferida por se ter considerado que os factos correspondem a qualquer uma das circunstâncias qualificantes do artigo 132º, nº 2, do Código Penal, mas sim por considerar que a globalidade dos factos provados quanto aos motivos e ao modo como o crime foi cometido, corresponde a uma situação que é valorativamente equivalente às referidas circunstâncias descritas na lei por ser demonstrativa de idêntica censurabilidade e perversidade.
33. Posição que é perfeitamente admissível, conforme é assumido pela jurisprudência, cfr. a este propósito o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27 de Maio de 2010, Procº. nº  517/08.9JACBR.C1.S1, disponível in www.dgsi.pt, do qual resulta que:
“I -          A jurisprudência do STJ tem-se pronunciado, uniformemente, no sentido de que é possível ocorrerem outras circunstâncias, para além das mencionadas no n.º 2 do art. 132.º do CP, se bem que valorativamente equivalentes, que revelem a especial censurabilidade ou perversidade do comportamento do agente. E, por outro lado, apesar da descrição dos factos poder apontar para o preenchimento de uma ou mais alíneas do n.º 2 do preceito, não é só por isso que o crime de homicídio, cometido, se deva ter logo por qualificado (cf. Acs. de 13-02-1997, Proc. n.º 986/96, de 21-05-1997, Proc. n.º 188/97, de 10-12-1997, Proc. n.º 1207/97, de 18-02-1998, Proc. n.º 1086/97, de 03-06-1998, Proc. n.º 301/98, e de 08-07-1998, Proc. n.º 646/98).
II -           Mostra-se ultrapassada uma concepção do crime ancorada só num elemento puramente objectivo, correspondente à ilicitude, e outro subjectivo, integrador da culpa, tendo a dogmática penal passado a distinguir, ainda no campo da ilicitude, entre um desvalor da acção e um desvalor do resultado. A ilicitude deixou de ser só a desaprovação pela ordem jurídica, de uma situação criada com a lesão de certo bem jurídico, e passou a incluir, nessa desaprovação, também, a forma como tal situação surgiu, por obra do agente. Ou seja, no desvalor da acção passou a incluir-se um juízo de desaprovação, em abstracto, resultante do modo como o crime foi cometido.
III - Para além da lesão ou da colocação em perigo do objecto da acção, o que integra o desvalor de resultado, a ilicitude compreende ainda, no desvalor da acção, modalidades externas do comportamento do agente, bem como circunstâncias que radicam na individualidade da sua pessoa. Daí até que se tenha passado a falar também, a este propósito, de um desvalor da acção referido ao facto, ao mesmo tempo que de um desvalor da acção referido ao autor.
IV - Caso as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do art. 132.º do CP fossem taxativas e de aplicação automática, estar-se-ia simplesmente perante uma qualificação do homicídio, atenta a ilicitude acrescida. Concretamente por via do desvalor da acção, e não por via de um maior desvalor do resultado, já que, sendo o bem vida um valor absoluto e eminentemente pessoal (para a ordem de valores constitucional e portanto para o direito penal, não pode haver vidas humanas mais valiosas que outras), causar a morte de uma pessoa esgota, só por si, o desvalor do resultado (e tendo em mente o disposto na al. l) do n.º 2 do art. 132.º do CP, o facto da vítima ocupar um cargo especial, traduzir-se-á no aumento do desvalor da acção).
V - Como a estruturação do preceito recorreu a exemplos padrão, no seu n.º 2, meramente ilustrativos da cláusula geral de agravação que está enunciada no n.º 1, fica afastada a concepção, segundo a qual, a qualificação ficaria a dever-se a um acréscimo de ilicitude.
VI - O preenchimento dos exemplos padrão nem é sempre necessário, porque pode a qualificação derivar de um circunstancialismo equivalente também merecedor de especial censurabilidade ou perversidade, nem é suficiente, porque para além do preenchimento de qualquer das alíneas do n.º 2 do art. 132.º em foco, sempre importará verificar, no caso, a tal especial censurabilidade ou perversidade do agente. O que tudo nos confronta com uma qualificação por via da culpa acrescida (…)”
34. Assim sendo, é manifesto que o texto da decisão recorrida, ao condenar o arguido nos termos em que o condenou, não tendo efectuado apelo a nenhuma das circunstâncias exemplificativas que são enunciadas no artigo 132º, nº 2, do Código Penal, mas, apenas, aos artigos 131º, e 132º, nº 1 e 2, daquele diploma legal, fez uma avaliação da globalidade dos factos que considerou revestirem a mesma especial censurabilidade e perversidade que são susceptíveis de demonstrar os exemplos padrão e, em consequência, condenou o arguido pela prática do crime de homicídio qualificado.
35. Conduta que, face à Jurisprudência prevalecente, é perfeitamente lícita e que, obviamente, é inatacável e imodificável, por ser justa e adoptada de acordo com a lei, não foi sindicada no recurso a que agora se responde, tendo, por isso, transitado em julgado.

Assim, nestes termos e nos demais de direito, a decisão recorrida, por ser justa, por ter fixado correctamente os factos e por ter aplicado devidamente o direito, deve ser mantida na íntegra, como aliás já foi defendido pela signatária da presente resposta em sede da resposta à motivação de recurso que, atempadamente, apresentou.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

II. Fundamentação

O recurso foi interposto para a Relação de Lisboa, que se declarou incompetente, ao abrigo do art. 432º, nº 1, c), do CPP.

Assim é, na verdade. Todas as questões colocadas pelo recorrente enquadram-se em matéria de direito, sendo portanto este Supremo Tribunal o competente para apreciar o recurso, nos termos do preceito citado e ainda do nº 2 do mesmo artigo do CPP.

Analisemos, pois, as questões suscitadas pelo recorrente, que são as seguintes:

a) Nulidade do art. 363º do CPP, traduzida na inaudibilidade de parte do registo magnético relativo às suas declarações em julgamento, o que o teria impedido de impugnar a matéria de facto;

b) Nulidade da sentença, nos termos do art. 379º, nº 1, c), do CPP, por indeferimento, em audiência, da requerida perícia sobre a personalidade;

c) Alteração da qualificação jurídica dos factos, de crime de homicídio simples para crime de homicídio qualificado;

d) Medida da pena (atenuação especial);

e) Montante das indemnizações.

Nulidade do art. 363º do CPP

Alega o arguido que pretendia impugnar a decisão de facto, tendo para o efeito requerido a entrega de cópia da gravação áudio da audiência. Ao ouvi-la, diz o recorrente, constatou que a gravação é parcialmente inaudível, designadamente nas suas declarações da sessão de 4.6.2014. Tal facto tê-lo-ia impedido de impugnar a matéria de facto, como era seu propósito.

Estabelece o citado art. 363º do CPP que “as declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na ata, sob pena de nulidade”.

Essa documentação faz-se, em regra, por meio de registo áudio ou audiovisual (art. 364º, nº 1, do CPP).

Dispõe ainda o nº 4 do art. 101º do CPP que “sempre que for utilizado o registo áudio ou audiovisual não há lugar a transcrição e o funcionário (…) entrega no prazo de 48 horas uma cópia a qualquer sujeito processual que a requeira (…)”.

Suscitou-se na jurisprudência uma larga controvérsia sobre se a nulidade referida no art. 363º deve ser suscitada perante o tribunal de 1ª instância ou se pode ainda ser arguida em recurso.

Essa controvérsia foi resolvida com a prolação do Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça nº 13/2014, publicado no DR, I Série, de 23.9.2014, que fixou a seguinte jurisprudência:

A nulidade prevista no art. 363º do CPP deve ser arguida perante o tribunal da 1ª instância, em requerimento autónomo, no prazo geral de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido a omissão de documentação ou a deficiente documentação das declarações orais, acrescido do período de tempo que mediar entre o requerimento da cópia da gravação, acompanhado do necessário suporte técnico, e a efetiva satisfação desse pedido pelo funcionário, nos termos do nº 3 do art. 101º do mesmo diploma, sob pena de dever considerar-se sanada.

Acontece, porém, que este acórdão não pode ser aplicado mecanicamente ao caso dos autos, uma vez que foi publicado posteriormente à ocorrência da nulidade e à própria interposição do recurso, que é de 21.8.2014.

Contudo, a doutrina vazada no referido acórdão de fixação de jurisprudência é de perfilhar e aplicar no caso dos autos. Por um lado, ela não podia ser ignorada pelo recorrente, uma vez que correspondia a uma das orientações adotadas pela jurisprudência e pela doutrina, não podendo portanto o recorrente considerar-se “surpreendido” com a opção tomada. Por outro, essa opção é sem dúvida a melhor, porque, permitindo aos sujeitos processuais o acesso às gravações à medida que se vão realizando (no caso de o julgamento se desdobrar em várias sessões), permite-lhes simultaneamente o controlo da sua regularidade, assegurando assim um processamento correto da audiência, evitando eventuais irregularidades e repetições de atos do julgamento, que perturbam necessariamente a realização da justiça.

A doutrina do acórdão, responsabilizando os interessados pelo controlo das gravações, não constitui nenhum ónus excessivo, que prejudique os seus interesses ou contenda com os seus direitos (mesmo os da defesa, especialmente valiosos em processo penal), e salvaguarda, insiste-se, o processamento regular da audiência, que constitui um interesse comum a todos os sujeitos processuais.

Em síntese: adota-se a doutrina que veio a ser consagrada no Acórdão nº 13/2014, acima citado, entendendo-se, pois, que a nulidade prevista no art. 363º do CPP deve ser arguida pelo interessado em 1ª instância, e no prazo de 10 dias, a contar da data da sessão da audiência em que tiver ocorrido, acrescido do tempo que mediar entre o requerimento e a entrega da cópia da gravação.

Vejamos o que sucedeu.

O julgamento iniciou-se em 4.6.2014, sessão em que foi produzida a prova, continuou no dia 25.6.2014, com as alegações orais, e terminou no dia 22.7.2014, com a leitura e depósito do acórdão.

A sessão do julgamento em que terá ocorrido a alegada nulidade decorreu no dia 4.6.2014. Em 1.8.2014, o arguido veio requerer a entrega de cópia da gravação da prova produzida em julgamento. Essa cópia da gravação apenas lhe foi entregue em 20.8.2014, um dia antes de terminar o prazo para recorrer, muito para além do prazo que a lei estipula (48 horas).

Porém, quando o arguido requereu a cópia da gravação há muito que estava esgotado o prazo de 10 dias para arguir a nulidade.

Em conclusão, a eventual ocorrência de nulidade por deficiência da gravação áudio deve considerar-se sanada.

Nulidade da decisão recorrida, nos termos do art. 379º, nº 1, c), do CPP

O recorrente argui de nulo acórdão recorrido, por ter indeferido a perícia à sua personalidade, por ele requerida ao abrigo dos arts. 151º, 159º, 160º e 351º do CPP.

Efetivamente o arguido requereu, no decurso da audiência, concretamente na sessão do dia 4.6.2014, a realização de perícia à sua personalidade.

Esse requerimento foi indeferido, por despacho fundamentado, ditado para a ata da mesma sessão.

O arguido não impugnou essa decisão. Por isso, ela deve considerar-se transitada em julgado.

Qualificação jurídica dos factos

Contesta o recorrente a alteração da qualificação jurídica dos factos referentes ao homicídio, realizada em julgamento através de recurso ao disposto no art. 358º do CPP, pretendendo que se retome a qualificação contida na acusação, ou seja, a de homicídio simples agravado, p. e p. pelos arts. 131º do CP e 86º, nº 3, da Lei das Armas.

Em qualquer caso, defende ele, nunca poderia ser condenado pelo crime de homicídio qualificado, p. e p. pelo art. 132º, nºs 1 e 2, do CP, agravado pelo citado art. 86º, nº 3, da Lei das Armas.

Efetivamente, o arguido fora acusado, além de um crime de detenção ilegal de arma, da prática de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo art. 131º do CP, agravado nos termos do art. 86º, nº 3, da Lei das Armas.

Na sessão de julgamento de 25.6.2014, o arguido foi notificado pelo Tribunal (ao abrigo do art. 358º, nº 1, do CPP, embora não expressamente invocado) de que poderia haver lugar a alteração da qualificação jurídica dos factos (alteração não substancial dos factos), no sentido de poder vir a ser condenado pelo crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, i) e j), do CP.

Veio efetivamente o arguido a ser condenado por esse crime, embora sem citação expressa das referidas alíneas, nem de quaisquer outras do mesmo preceito. Importa, pois, indagar se a decisão merece censura.

Preliminarmente, dir-se-á que se respeitou o formalismo exigido para a alteração não substancial dos factos, sendo o arguido notificado da alteração e tendo tido prazo para a contestar.

Resta saber se tal alteração é correta. Para a apreciação desta questão há que conhecer a matéria de facto apurada, que é a seguinte:

O arguido é tio do ofendido EE.

Desde há alguns anos a esta parte, o arguido e o ofendido Joaquim Correia não se relacionavam um com o outro, devido ao facto do primeiro não pretender que o segundo utilizasse um caminho situado junto à sua habitação, sita na Rua da Oliveirinha, nos Casais Fonte da Pipa, Vila Verde dos Francos, situação que originou um conflito entre ambos.

Devido a esse conflito, o arguido e o ofendido EE discutiram algumas vezes, o que se prendia com o facto deste último utilizar o mencionado caminho, para aceder a um terreno pertença do seu pai, todavia, por si explorado.

No dia 13 de Setembro de 2013, cerca das 18h 00m, o arguido observou o ofendido EE a conduzir um tractor no caminho existente junto à sua residência, facto que o levou a dirigir-se para o exterior da mesma.

Uma vez aí, o arguido travou-se de razões com o ofendido EE, sendo que a dada altura lhe dirigiu as seguintes palavras: “passas para cima, mas já não passas para baixo”.

Contudo, apesar da discussão travada com o arguido, o ofendido EE decidiu prosseguir os seus intentos, ou seja, acabou por se dirigir para o terreno que explorava, a fim de carregar o tractor com pedras.

Após ter procedido a esse carregamento de pedras, o ofendido EE iniciou o trajecto de regresso, seguindo na direcção do caminho situado junto à residência do arguido.

Todavia, cerca das 18h 20m do mencionado dia, o arguido, através de uma das janelas da sua residência, avistou o ofendido EE a conduzir o tractor, circulando pelo já mencionado caminho, situação que o desagradou, motivo pelo qual logo tomou a resolução de lhe tirar a vida.

Assim e para o efeito, muniu-se de uma espingarda de caça de canos sobrepostos, marca Sarriuguarte, com o número de série FS 61127, que guardava no interior da sua residência, introduziu dois cartuchos no respectivo carregador e de seguida dirigiu-se para a janela do quarto da sua filha, que tem vista para o caminho em que o ofendido circulava.

Acto contínuo, abriu o estore e o vidro da janela e assim que o tractor se aproximou da sua residência, apontou a espingarda que empunhava na direcção do ofendido EE e a uma distância de cerca de 10 metros do mesmo, efectuou um [dispar]o na região frontal do pescoço, provocando-lhe, desse modo, a queda imediata ao chão.

Em consequência do disparo efectuado pelo arguido, EE sofreu as lesões descritas no exame pericial de fls. 269 a 273, que aqui se dão por reproduzidas, nomeadamente:

- no tórax:

. paredes: múltiplos ferimentos perfurantes punctiformes, com intenso infiltrado sanguíneo nos tecidos moles adjacentes da metade superior da grelha costal , com múltiplos bagos de chumbo dispersos naqueles tecidos;

. esterno: infiltrados sanguíneos no periósteo e tecido ósseo. Ausência de lesões fracturárias.

. clavícula, cartilagens e costelas direitas: fractura do terço interno da clavícula, com infiltrados sanguíneos dispersos nos topos e tecidos moles adjacentes; fractura da 2ª costela pelo arco anterior e médio, com laceração da pleura e infiltração sanguínea dos topos e tecidos moles adjacentes;

. clavícula, cartilagens e costelas esquerdas: ausência de lesões fracturárias; alguns infiltrados sanguíneos dispersos nos tecidos moles;

. pericárdio e cavidade pericárdica: múltiplas perfurações punctiformes pericárdicas, acompanhados de halo de infiltração hemorrágica; presença de alguns bagos de chumbo na cavidade: cerca de 200 centímetros cúbicos de sangue disperso na cavidade – hemopericárdio.

. coração: múltiplos ferimentos perfurantes punctiformes circundados por halo hemorrágico, mais marcados no ventrículo esquerdo; presença de alguns bagos de chumbo na espessura do miocárdio;

. artérias coronárias: ligeiras placas de ateroma dispersas nas três artérias principais;

. artéria aorta: extensas lacerações com rotura na crossa da aorta acompanhadas de hematoma intramural; ligeiras placas de ateroma dispersas;

. traqueia e brônquios: muco sanguinolento disperso à superfície das mucosas:

. pleura parietal e cavidade pleural direita: múltiplas perfurações punctiformes circundadas por halo hemorrágico; cerca de 600 centímetros cúbicos de sangue disperso na cavidade – hemotórax.

. pleura parietal e cavidade pleural esquerda: múltiplas perfurações punctiformes circundadas por halo hemorrágico; cerca de 800 centímetros cúbicos de sangue disperso na cavidade – hemotórax.

. pulmão direito e pleura visceral: múltiplas perfurações punctiformes circundadas por halo hemorrágico e presença de múltiplos bagos de chumbo dispersos nos três lobos.

. pulmão esquerdo e pleura visceral: idem nos dois lobos.

. esófago: várias perfurações e alguns bagos de chumbo dispersos no esófago; sangue disperso na mucosa.

As lesões torácicas acima descritas foram a causa adequada e directa da morte de EE.

                Nesse mesmo dia, o arguido entregou-se aos militares da GNR da Merceana que se deslocaram ao local, tendo procedido, ainda, à entrega da espingarda com a qual efectuou o disparo que atingiu o ofendido EE.

No supra mencionado dia, cerca das 22h00m, no âmbito da investigação dos presentes autos, a Polícia Judiciária efectuou uma busca domiciliária à residência do arguido, no decurso da qual foram encontrados os seguintes objectos:

- no quarto de casal:

. dois cartuchos de cor azul, um deles percutido e deflagrado;

. uma caixa com catorze cartuchos de caça, de calibre 12;

- na cave/arrecadação:

. uma espingarda caçadeira, calibre 12, marca Fabarm, modelo Euro 3, com o número de série 371133.

. dez caixas de cartuchos de caça calibre 12, num total de duzentos e quarenta e quatro cartuchos.

. três cartuchos de calibre 12.

                O arguido é titular somente de licença de detenção permanente no domicílio, relativamente às espingardas acima mencionadas. Assim sendo, bem sabia ser-lhe vedada a posse de qualquer tipo de munições, incluindo, munições com os calibres das espingardas que guardava no interior da sua residência.

O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente.

Ao agir da forma supra descrita, pretendia atingir no corpo do ofendido EE zonas vitais para a vida humana, com o intuito de lhe provocar a morte. Sabia, ainda, que, ao disparar aquela arma, àquela mencionada distância, em direcção à zona corporal descrita, como desejou e fez, com certeza tiraria a vida ao seu sobrinho EE, o que também quis e conseguiu.

Tinha conhecimento ser-lhe vedada a posse de munições, por não ser titular da respectiva licença para o efeito, no entanto, não se coibiu de tê-las no interior da sua residência.

Bem sabia que as suas condutas são proibidas e punidas por Lei.

Mais se provou que:

O arguido é primário.

Em liberdade habitava com a mulher e com uma filha de dezassete anos.

Apresenta um percurso profissional regular, com rendimentos satisfatórios que lhe permitia um nível de vida razoável.

A esposa do arguido tem graves problemas de saúde, o que tem deixado o arguido preocupado.

O arguido manifesta alguma rigidez pessoal, alguns traços de intolerância e uma forte impulsividade, mostrando-se necessária intervenção psicoterapeuta a esse nível.

O arguido manifesta algum arrependimento, embora o mesmo se prenda mais com a situação a que a sua conduta o conduziu.

No estabelecimento prisional tem recebido visitas da esposa e da filha.

Do pedido de indemnização cível:

O falecido e a assistente eram casados desde a década de oitenta.

Desse casamento nasceram os filhos CC e DD, também demandantes nos presentes autos.

Sempre manifestaram uma relação de respeito e amor recíproco.

A única actividade que a vítima desenvolvia era a agricultura nos terrenos da família, uma vez que um acidente de trabalho o deixou incapaz de exercer outras actividades.

O falecido e a sua esposa mantinham uma relação de apoio mútuo e incondicional. Eram vistos como um casal amigo e feliz.

Era um pai muito preocupado com os filhos, estando sempre disposto a apoiá-los, sendo ele e a 1ª demandante o suporte de estabilidade da vida dos filhos.

Desde há alguns anos o demandado e o ofendido não se relacionavam um com o outro devido ao facto de o primeiro não pretender que o segundo utilizasse um caminho situado junto à sua residência, situação que originou conflito entre ambos. No entanto, o ofendido não deixou de utilizar tal caminho quando necessitava.

No dia e altura em que ocorreram os factos, o demandado terá proferido uma expressão no sentido de que apesar de o ofendido passar para cima para o terreno, o mesmo já não passaria para baixo.

A 1ª demandante viu, após o demandado ter disparado o tiro, o seu companheiro soçobrar sem que nada pudesse fazer para o evitar. O demandante CC também se encontrava no local.

Após os factos e confrontado com o que tinha acontecido, o demandado ainda referiu que fez o que tinha a fazer.

A vítima tinha 51 anos à data da sua morte.

A demandante, antes dos factos em causa nos autos, era uma pessoa alegre, de trato fácil, tendo passado a padecer de um profundo desgosto, dor, angústia e depressão major, que a fazem sofrer tanto ao nível psíquico como físico.

Tem uma perda de apetite acentuada, perturbações do sono, sentimentos de solidão, perda de esperança no futuro. Tem sido acompanhada em sessões de psicoterapia individual que deverão continuar por tempo indeterminado.

A filha do casal e segunda demandante, em consequência da morte do pai, apresenta humor depressivo, períodos de impulsividade e tristeza profunda.

Apresenta grande ansiedade e sentimentos de perda, estando a ser medicada.

O 3º demandante apresenta um humor depressivo, uma tristeza profunda, uma grande ansiedade e dificuldades em dormir, em consequência da morte de seu pai. Está constantemente medicado.

Do pedido de indemnização cível deduzido pelo Instituto de Segurança Social;

Em consequência da morte do ofendido, o Instituto de Segurança Social, I.P. pagou à demandante BB a quantia de dois mil quinhentos e setenta e seis euros e setenta cêntimos a título de Subsídio por morte e Pensões de Sobrevivência, no período entre Outubro de 2013 e Março de 2013.

O ISS, IP continuará a pagar á viúva as pensões de sobrevivência enquanto esta se encontrar nas condições legais de a receber, com inclusão de um 13º mês de pensão em Dezembro e um 14º mês em Julho, pensões essas cujo valor mensal é, actualmente de cento e oitenta e um euros e noventa e quatro cêntimos.

Da contestação apresentada pelo arguido:

Eram frequentes as discussões entre o arguido e o ofendido.

O arguido actuou dominado por um sentimento de raiva inexplicável, motivado pelas desavenças reiteradas entre ambos.

Actualmente o arguido/demandado não aufere quaisquer rendimentos provenientes do seu trabalho, tendo sido promovido pela parte da entidade patronal o seu despedimento.

A esposa do arguido está desempregada, sofre de uma doença de origem tumoral, denominada adenoma da hipófise.

Vive com uma pensão de reforma de 355,56 euros.

A filha do arguido também sofre de asma brônquica.

O arguido é tido como muito trabalhador e perfeccionista por aqueles com quem desenvolveu relações laborais.

O crime de homicídio qualificado

O crime de homicídio qualificado, previsto no art. 132º do CP, constitui uma forma agravada do crime de homicídio simples p. e p. pelo art. 131º do CP, que constitui o tipo de ilícito, agravamento esse que se produz não através da previsão de circunstâncias típicas fundadas em maior ilicitude do facto, cuja verificação determinaria a realização do tipo, como acontece por exemplo no furto qualificado, mas antes em função de uma culpa agravada, de uma “especial censurabilidade ou perversidade” da conduta (cláusula geral enunciada no nº 1), revelada pelas circunstâncias indicadas no nº 2.

Estas circunstâncias constituem “exemplos-padrão”, ou seja, indícios da culpa agravada referida no nº 1, que constitui o elemento típico do homicídio qualificado (tipo de culpa). Assim, ainda que essas circunstâncias envolvam eventualmente uma maior ilicitude do facto, não é o simples acréscimo de ilicitude que determinará a qualificação do crime. Só se as ditas circunstâncias revelarem uma maior censurabilidade ou perversidade da conduta (só se ocorrer o tipo de culpa) se verificará a qualificação.

Assim, como meros indícios, as circunstâncias do nº 2 têm sempre que ser submetidas à cláusula geral do nº 1. Da interação entre os nºs 1 e 2 do art. 132º pode, pois, resultar a exclusão do efeito de indício do exemplo-padrão, e consequentemente a integração dos factos no crime de homicídio simples do art. 131º. Mas pode também, precisamente pelo seu caráter meramente indiciário de uma culpa especialmente agravada, admitir-se a qualificação do homicídio quando se constatar a substancial analogia entre os factos e qualquer dos exemplos-padrão.

Esta interação reflexa entre os dois números do art. 132º permite por um lado uma maior flexibilidade no tratamento dos casos concretos, e consequentemente na administração da justiça do caso, e por outro assegura a delimitação do tipo de homicídio qualificado em termos suficientemente rigorosos para que não seja lesado o princípio da legalidade.

Esta é, em traços muito sintéticos, a posição da doutrina maioritária, seguida correntemente pela jurisprudência, nomeadamente deste Supremo Tribunal, sendo aliás essa a posição que decorre cristalinamente do texto e da teleologia da lei, e foi também perfilhada no acórdão recorrido.[1]

O Tribunal Constitucional pronunciou-se muito recentemente sobre a questão, tendo decidido “julgar inconstitucional a norma retirada do nº 1 do art. 132º do CP, na relação deste com o nº 2 do mesmo preceito, quando interpretada no sentido de nela se poder ancorar a construção da figura do homicídio qualificado, sem que seja possível subsumir a conduta do agente a qualquer das alíneas do nº 2 ou ao critério de agravação a ela subjacente, por violação dos princípios constitucionais da legalidade e da tipicidade penais, garantidos pelo art. 29º da Constituição” (sublinhado nosso).[2]

Esta decisão, se bem a interpretamos, ao exigir que, para respeito do princípio da legalidade, a agravação do nº 2 do art. 132º só funcione quando a conduta é subsumível a alguma das alíneas desse nº 2, mas também quando ela é subsumível ao critério de agravação a ela subjacente, ratifica inteiramente a posição acima defendida.

Analisemos então o caso dos autos.

O Tribunal recorrido considerou haver elementos de facto reveladores de especial censurabilidade ou perversidade, indicando os seguintes (embora sem referência a nenhuma das alíneas no nº 2 do art. 132º): a relação de parentesco entre o arguido e a vítima, que eram, respetivamente, tio e sobrinho; ter o arguido agido por “motivo fútil”; e a “espera” que o arguido fez à vítima, EE, disparando quando ela não o podia ver.

O facto de o Tribunal não ter expressamente citado as alíneas que enquadrariam esses factos não é relevante, uma vez que, como ficou atrás referido, não é necessário que eles se enquadrem com precisão em qualquer das agravantes qualificativas, bastando que exista uma substancial analogia com elas, desde que indiciadora de uma especial censurabilidade ou perversidade do comportamento do agente.

Todavia, ao referir-se expressamente a “motivo fútil” e a “forma insidiosa atuar”, o Tribunal denuncia que estava implicitamente a reportar-se às als. e) e i) do nº 2 do art. 132º do CP.

Há, pois, que analisar os factos valorados pelo Tribunal recorrido como indiciadores de uma culpa agravada, para avaliar da correção da decisão.

Quanto ao primeiro ponto, a relação familiar entre arguido e vítima, dir-se-á que o relacionamento tio/sobrinho não está expressamente previsto em nenhuma das alíneas do nº 2 do art. 132º do CP. Os únicos relacionamentos familiares previstos são os que ocorrem entre ascendentes e descendentes – al. a); e entre cônjuges – al. b). Tal não impediria, porém, a invocação de analogia, caso a relação entre tio e sobrinho, nas circunstâncias do caso, se aproximasse francamente de uma relação paternal/filial.

Não é essa de forma alguma a situação dos autos. O arguido e a vítima tinham há muito relações tensas, não havendo sequer qualquer relacionamento de tipo familiar.

Aliás, os laços familiares não tiveram nenhuma influência (positiva ou negativa) na ação criminosa. A raiz dos factos está num conflito entre proprietários, sem qualquer interferência da relação familiar de facto existente entre arguido e vítima.

Consequentemente, nenhuma especial censurabilidade pode ser detetada na conduta do arguido sob este prisma.

E que dizer do “motivo fútil”, previsto na al. e)?

É geralmente entendido que assim se deve qualificar o motivo do agente quando revela uma frivolidade evidente, quando é absolutamente desproporcionado ao ser analisado em função das conceções éticas e culturais da comunidade.[3] Não é portanto do ponto de vista subjetivo do agente que a “futilidade” deve ser avaliada. O motivo pode ser importante para o agente, mas ser completamente inaceitável e desproporcionado para a comunidade e é esse o ponto de vista que prevalece. Aceitar o ponto de vista do agente como critério seria enfraquecer intoleravelmente a proteção do bem jurídico, no caso a vida humana.

Entendeu o Tribunal recorrido que, mau grado na zona em que o crime foi praticado serem frequentes as desavenças por motivos semelhantes, a “birra” por causa de terras constitui, “à luz de um homem médio”, um motivo fútil.

Considerou, pois, a oposição do arguido à passagem da vítima pelo caminho situado junto da sua habitação, que desencadeou a sua conduta homicida, como uma mera “birra”, especialmente censurável como motivação do homicídio.

Mas quem é aquele “homem médio”. É o homem médio do meio em que o crime ocorre ou um homem médio abstrato, tendo por paradigma o homem médio da cidade?

A resposta só pode ser o primeiro termo da alternativa. A futilidade é avaliada dum ponto de vista ético-cultural, é nesse enquadramento que a desproporcionalidade da motivação da conduta relativamente aos padrões comunitariamente aceitáveis tem de ser ponderada.

Nas comunidades rurais, a terra tem, além do valor patrimonial, um valor simbólico primordial, pelo que a defesa, real ou hipotética, da propriedade mobiliza emocionalmente, de forma intensa, a generalidade das pessoas, sendo consequentemente fonte de conflitos extremos, despertando paixões violentas, não raro dentro das próprias famílias, como foi o caso.

            Classificar como “birra” um conflito relacionado com o direito de propriedade da terra é ignorar precisamente toda a carga emocional que a terra envolve para essas comunidades.[4]

            No caso dos autos, o conflito entre o arguido e a vítima derivava da utilização por esta de um caminho que passava junto da habitação do arguido, passagem essa que este não queria que aquela utilizasse, daí resultando um conflito entre ambos que perdurava havia anos. Os factos dos autos foram desencadeados precisamente pela passagem, mais uma vez, da vítima pelo referido caminho, o que provocou uma discussão entre arguido e vítima e despertou naquele um sentimento violento, verbalizado com uma ameaça dirigida à vítima: “passas para cima, mas já não passas para baixo”.

            É, pois, no quadro de um conflito de propriedade já antigo, e perante a insistência da vítima em persistir no comportamento reprovado pelo arguido, que a motivação deve ser analisada.

            Este enquadramento factual afasta, pelas razões atrás expostas, a possibilidade de subsumir a motivação do arguido (claramente a da defesa do seu hipotético direito de propriedade) à “futilidade” a que se reporta a parte final da al. e) do nº 2 do art. 132º do CP.

            Por fim, entendeu o Tribunal recorrido que a forma como o arguido atuou, fazendo uma “espera” à vítima, disparando contra ela de local onde a vítima não o podia ver, retirando-lhe assim qualquer possibilidade de se defender, constitui uma “forma insidiosa de atuar”, e revela consequentemente uma especial censurabilidade.

            A al. i) do nº 2 do art. 132º do CP prevê a qualificação do homicídio quando seja utilizado veneno ou qualquer outro meio insidioso.

            A “insídia” caracteriza-se por um comportamento dissimulado, ardiloso ou traiçoeiro, colocando a vítima numa situação de indefesa. É um comportamento desleal, enganoso ou pérfido, que reduz a vítima à condição de presa fácil do agressor. A espera dissimulada, envolvendo completa surpresa da vítima perante a agressão, pode constituir inegavelmente uma atuação insidiosa, enquadrável na citada al. i), se confirmada em concreto a especial censurabilidade ou perversidade da conduta.

            Será esse o caso dos autos?

            É incontestável que o disparo letal foi efetuado pelo arguido do interior da sua residência, quando a vítima se aproximava, mas não estava em condições de observar o arguido. A vítima foi apanhada de surpresa nesse momento e não teve qualquer possibilidade de se defender. Houve efetivamente uma espera por parte do arguido, que ficou a aguardar o regresso da vítima e, ao vê-la aproximar-se, dissimuladamente atirou contra esta, numa posição em que ela não o podia avistar.

            O comportamento do arguido foi traiçoeiro, revelando inegável perfídia, enquadrável na especial censurabilidade ou perversidade prevista no art. 132º, nºs 1 e 2, do CP.

            Não se poderá contrapor que a vítima estava ou devia estar de sobreaviso para a possibilidade de ter de se defender de alguma agressão por parte do arguido, por ter havido uma discussão entre eles, tendo este, mais uma vez, avisado aquela para não utilizar aquele caminho, terminando por proferir uma ameaça: “passas para cima, mas já não passas para baixo”. Esta ameaça não era, porém, suficientemente explícita de um comportamento violento do arguido, de uma agressão, muito menos a tiro, quando muito indiciava uma “escalada” no conflito entre ambos. A vítima não tinha motivo para esperar a conduta do arguido e consequentemente adotar as cautelas adequadas. Foi, na realidade, completamente apanhada de surpresa, desprevenida e sem defesa contra a agressão.

            O arguido agiu, pois, insidiosamente.

Donde se conclui que a conduta do arguido é de enquadrar no crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131º e 132º, nºs 1 e 2, i), do CP.

            A assistente pretende que a conduta do arguido preenche a al. j) do nº 2 do citado art. 132º, pois ele teria atuado com “frieza de ânimo”.

            Na realidade, o arguido foi notificado em audiência da possibilidade de a sua conduta ser enquadrada nesse preceito. Contudo, o acórdão recorrido não considerou assim.

            Não tendo a assistente (nem o Ministério Público) recorrido desse acórdão, vale o princípio da proibição da reformatio in pejus (art. 409º do CPP), que impede a agravação da pena nessa situação.

            Em qualquer caso, dir-se-á sinteticamente que não procederiam os argumentos da assistente. Na verdade, a “frieza de ânimo” pressupõe uma atuação refletida, preparada com calma, atuando o agente com sangue frio e impassibilidade.[5]

            No caso dos autos, a atuação do arguido não revela sangue frio, antes uma ação despoletada pela discussão com a vítima e pelo arrastar do conflito com ela. Não há reflexão nem preparação do crime; há, sim, impulsividade emocional.

            Mantém-se, pois, a qualificação do crime de homicídio, nos termos atrás expostos.

            A agravação do homicídio qualificado

            O arguido foi condenado por um crime de homicídio qualificado, agravado pelo disposto no art. 86º, nº 3, da Lei das Armas, devido à utilização de arma de fogo (espingarda de caça de canos sobrepostos, marca Sarriuguarte).

            O arguido contesta a admissibilidade desta agravação, argumentando que a qualificação do homicídio arreda a possibilidade de simultaneamente ser aplicada a agravação prevista naquela disposição da Lei das Armas.

            Vejamos se lhe assiste razão.

            Estabelece o citado preceito:

            As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, exceto se o porte ou uso de arma for elemento do respetivo tipo de crime ou a lei já prever agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.

            Conforme resulta claramente do texto da lei, sem dar lugar a dúvidas, a agravação nela prevista, que se funda numa maior ilicitude da conduta, só é afastada quando o porte ou uso da arma já é punido, quer por ser elemento do tipo legal, quer por a lei prever agravação em função desse uso ou porte. Se o homicídio for qualificado em razão do uso de arma (al. h) do nº 2 do art. 132º do CP), não pode ser agravado pelo nº 3 do art. 86º da Lei das Armas.[6]

            Não é esse o caso dos autos. O homicídio foi qualificado em razão da maior censurabilidade/perversidade pela atuação insidiosa do arguido.

            O uso da arma de fogo pelo arguido não faz parte do tipo legal, nem foi a razão da agravação do homicídio.

            Consequentemente, a pena correspondente ao homicídio qualificado deve ser agravada nos termos do nº 3 do art. 86º da Lei das Armas, improcedendo a argumentação do arguido.

            Medida concreta da pena (atenuação especial)

Pretende o recorrente que a pena seja especialmente atenuada, ao abrigo do art. 72º, nº 2, b), do CP, por ter havido provocação da vítima.

Dispõe o preceito:


1. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2. Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
(…)
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
(…)

A atenuação especial funda-se, assim, na existência de circunstâncias que “diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena”, sendo alternativos e não cumulativos esses fundamentos. Ou seja, haverá atenuação especial quando a ilicitude ou a culpa se apresentarem claramente abaixo do padrão “normal”, ou ainda quando as exigências preventivas inerentes à aplicação da pena estiverem fortemente esbatidas.

            Entre as circunstâncias que podem revelar a diminuição acentuada da ilicitude ou da culpa conta-se a provocação da vítima, provocação essa que deve ser injusta.

            Entende o recorrente que tal circunstância se verifica no caso dos autos. Para tanto, invoca uma série de factos, muitos deles não dados como provados, como as repetidas ameaças anteriores proferidas pela vítima. Acrescenta que, no dia dos factos, a sua conduta “foi fortemente determinada pela discussão travada entre ambos e pelas ameaças da vítima, terá havido uma certa provocação por parte da vítima o que naquele dia apenas fez transbordar o copo…”.

            O certo é que se provou apenas o conflito, existente havia anos, sobre a passagem da vítima do caminho juto da residência do arguido, a discussão no dia dos factos, a persistência da vítima em passar e a ameaça logo proferida pelo arguido (“passas para cima, mas já não passas para baixo”).

            A atitude da vítima não pode, de forma alguma, ser considerada “provocação”. Ignora-se a quem assistia razão jurídica no dissídio sobre a passagem pelo caminho. Mas é incontestável que a vítima se achava no direito de passar e portanto agia no uso desse hipotético direito.

            Sendo assim, falham completamente os argumentos do arguido para sustentarem a atenuação especial da pena.

            Quanto à pena fixada, há que começar por ter em conta a moldura penal, que, atendendo à agravação do art. 86º, nº 3, da Lei das Armas, vai de 16 a 25 anos de prisão.

            Há que considerar os fins que a pena deve prosseguir (art. 40º do CP), que são fundamentalmente de ordem preventiva, geral e especial (quer na vertente repressiva, quer na reintegradora), não podendo a pena ultrapassar a medida da culpa.

            Na fixação da pena deve ainda atender-se a todas as circunstâncias do crime que não façam parte do tipo, nomeadamente a ilicitude e a culpa, os sentimentos manifestados pelo agente, as suas condições pessoais e a sua situação económica, a sua conduta anterior e posterior ao crime (art. 71º, nºs 1 e 2, do CP).

            No caso, é incontestável que quer a ilicitude, quer a culpa são muito acentuadas.

            São muito intensos os interesses da prevenção geral, atendendo ao valor do bem jurídico violado.

            Já são de menor dimensão as exigências de prevenção especial, considerando ser o arguido primário, tendo 53 anos à data dos factos, e estar inserido socialmente. Contudo, este elemento não é de especial valor neste tipo de crime, tendo o arguido revelado uma impulsividade que é censurável e preocupante.

            Numa ponderação global das circunstâncias do crime e das pessoais, e tendo em atenção os fins das penas, considera-se adequada a pena fixada, que aliás pouco excede o limite mínimo da moldura penal, medida essa que satisfaz os fins das penas e não excede a culpa.

            É irrelevante a desconsideração do “motivo fútil” como circunstância qualificativa do homicídio, já que a “insídia”, além de ser suficiente para a qualificação, justifica plenamente a pena fixada.

           

            Montante das indemnizações

            Contesta também o arguido o montante das indemnizações em que também foi condenado.

            Fá-lo porém sem sustentação em quaisquer argumentos que não sejam a sua débil situação económica.

            As indemnizações foram fixadas em 60 000,00 €, pela perda do direito à vida, a favor de todos os demandantes; em 40 000,00 €, pelas dores e sofrimento sentidos pela viúva; e em 20 000,00 € para cada um dos filhos.

            O montante dos danos não patrimoniais é fixado equitativamente pelo tribunal (art. 496º, nº 3, do Código Civil), devendo levar-se em conta o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso (art. 494º do mesmo diploma).

            Na fixação desse montante há, pois, que ter presente as regras da boa prudência, do bom senso, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação de todos os fatores em jogo, nomeadamente do valor do bem jurídico violado, no caso, o direito à vida.

            Há que considerar ainda que, sendo uma decisão baseada na equidade, com tudo o que ela contém de indeterminável e irredutível na tradução do juízo prudente do julgador sobre as circunstâncias do caso, a decisão só deverá ser censurada pelo tribunal superior se for claramente desconforme com essas circunstâncias, se for manifestamente inaceitável à luz dos factos apurados.[7]

            Como vimos, o recorrente, ao contestar os montantes das indemnizações, invoca somente a sua situação económica, que apelida de “débil” e “grave”. Provou-se efetivamente que ele não tem rendimentos do trabalho e que a mulher está desempregada, vivendo de uma pensão de reforma de 355,56 €.

            Contudo, a situação dos demandantes é igualmente penosa, quer do ponto de vista económico, quer pessoal/sentimental, em consequência da morte da vítima, que era o sustentáculo da família, mulher e filhos.

Há que considerar ainda a idade da vítima (51 anos), tendo portanto uma larga expetativa de anos de vida, em termos normais.

            O valor da vida humana é de primeira grandeza, o que se deve refletir no montante da indemnização.

            A culpa do arguido é muito elevada.

            Estas considerações convergem no sentido de que os montantes fixados, sendo significativos, não se mostram desproporcionados, quando analisados por um julgador prudente, não merecendo acolhimento a pretensão do recorrente/demandado.

            Em conclusão, improcede o recurso na sua totalidade.

           

            III. Decisão

            Com base no exposto, nega-se provimento ao recurso.

            Vai o recorrente condenado em 5 UC de taxa de justiça.

                                               Lisboa, 12 de março de 2015

Maia Costa (Relator)

Pires da Graça

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[1] Ver, desde logo Eduardo Correia, “Atas da Comissão Revisora do Código Penal”, p. 22; Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, pp. 25-28, e sobretudo Teresa Serra, Homicídio Qualificado, pp. 125-127 (em síntese).
Pronunciam-se em sentido oposto, ou seja, no sentido de se tratar de um tipo de ilícito, Fernanda Palma, “O homicídio qualificado no novo Código Penal Português”, Revista do Ministério Público, nº 15, pp. 59-74; Margarida Silva Pereira, Direito Penal II, Os Homicídios, pp. 39-67; Augusto Silva Dias, Crimes contra a vida e a integridade física, pp. 11-20, e, por último, João Curado Neves, “Indícios de culpa ou tipos de ilícito?”, Liber Discipulorum para Figueiredo Dias, pp. 721-757.
Na jurisprudência, ver, a título exemplificativo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 8.2.1984 (BMJ 334, p. 258), um dos primeiros a perfilhar esta orientação, e, mais recentemente, o acórdão de 27.5.2010, proc. nº 11/04.7GCABT.C1.S1 (do presente relator) e de 30.10.2013, proc nº 40/11.4JAAVR.C2.S1 (Cons. Pires da Graça).
[2] Acórdão nº 852/2014, publicado no DR, 2ª Série, de 10.3.2015.
[3] Assim Figueiredo Dias, loc. cit., pp. 32-33, e Maia Gonçalves, Código Penal Português, 17ª ed., p. 479. Na jurisprudência, ver o recente acórdão deste STJ de 19.2.2014, proc. nº 168/11.0GCCUB.S1 (Cons. Santos Cabral).
[4] Sobre este ponto, e reportando-se a hipóteses de facto próximas da dos autos, ver o acórdão deste STJ de 30.11.1983, BMJ 333, p. 376 (Cons. Villa-Nova) e o acórdão de 19.5.2004, proc. nº 1086/04 (Cons. Políbio Flor). Porém, em sentido oposto, e também perante uma situação idêntica, decidiu o acórdão de 13.3.2008, proc. nº 2589/07 (Cons. Rodrigues da Costa).
[5] Ver, a título exemplificativo, o acórdão deste STJ de 26.9.2007, proc. nº  2591/07 (Cons. Armindo Monteiro).
[6] Ver a este propósito o já citado acórdão deste STJ de 30.10.2013, proc. nº 40/11.4JAAVR.C2.S1 (Cons. Pires da Graça).
[7] Ver o acórdão deste STJ de 21.2.2007, proc. nº 4594/06 (Cons. Henriques Gaspar).