Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MANUEL CAPELO | ||
Descritores: | DIREITO DE PREFERÊNCIA ARRENDAMENTO PARA HABITAÇÃO PRÉDIO INDIVISO PRÉDIO URBANO PROPRIEDADE HORIZONTAL COMPRA E VENDA APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO | ||
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Data do Acordão: | 10/13/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA | ||
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Sumário : | I - A Lei n.º 63/77 de 25 de agosto estabeleceu o direito de preferência do arrendatário habitacional em caso de transmissão onerosa do local arrendado e, posteriormente, a RAU replicou no art. 47 e em termos idênticos esse mesmo direito. II - Na vigência desses dois diplomas o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência entendeu que quando não se achasse instituído o regime de propriedade horizontal e o direito de preferência existisse a favor dos locatários habitacionais, o arrendatário duma parte ou os arrendatários coligados podiam exercer o direito de preferência em relação à totalidade do prédio vendido onde se situasse o local arrendado; III - Havia ainda, na vigência desses dois diplomas um entendimento minoritário na doutrina e na jurisprudência que defendia a inadmissibilidade desse direito de preferência por a lei não contemplar no seu texto o direito de preferência de arrendatário de parte alíquota sobre a totalidade do prédio urbano indiviso e, também, porque constituído o direito de preferência do arrendatário sobre a sua condição de locador de um determinado e concreto arrendado, excederia esse fundamento a possibilidade de ele adquirir através da preferência a totalidade do imóvel constituído por várias partes integrantes arrendadas ou arrendáveis. IV - Com o NRAU e a redação do art. 1091 do CCivil passou a ser unânime na jurisprudência do STJ o entendimento de segundo o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado não tendo o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada. V - Tendo presente que à situação em concreto se aplica a Lei 63/77 e que a realização da venda do imóvel teve lugar em 1984 a interpretação desses normativos deve ser realizada tendo atenção às condições especificas do tempo em que são aplicados e estas condições determinam que entendamos, mesmo no âmbito de tais normativos que o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal não tem direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada, inscrevendo-nos na corrente de entendimento jurisprudencial que era minoritária e que, veio a evoluir para a que hoje é unanime no Supremo. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça Relatório AA demandou BB e marido CC, DD, EE e mulher FF, pedindo que seja reconhecido ao autor o direito a haver para si o prédio alienado - 2o andar, lado esquerdo, do prédio sito na Rua ..., freguesia ..., concelho e cidade ..., descrito sob o n° ...03 da ... Conservatória do Registo Predial ... e inscrito na respetiva matriz sob o art. ...75, atual 238 da referida freguesia ..., por virtude do seu direito real de preferência e, bem assim, ser declarada a transação efetuada a favor do autor, substituindo-se este aos l°s réus na compra e venda formalizada pela escritura pública e que teve por objeto o prédio referido e a condenação dos réus a entregar ao autor o valor das rendas vencidas e pagas no prédio, desde a data da aquisição até ao trânsito em julgado da sentença. Alegou, para tanto, que tomou de arrendamento o 2o andar do prédio descrito supra, em 1976. Em 2008, verificou que, em 1984, o prédio havia sido vendido pelos réus, 2a e 3o varão, à 1ª ré mulher, livre de quaisquer ónus e encargos, sem que lhe tivesse sido comunicada a intenção de se proceder à compra e venda em questão. É o único arrendatário do prédio, mantendo essa qualidade desde o tempo da alienação. Os réus BB e marido CC, aceitando a alienação do imóvel, em 1984, excecionaram a prescrição e caducidade do direito do autor, impugnaram o alegado e deduziram reconvenção, concluindo pela condenação do autor como litigante de má-fé e, na eventualidade da procedência da ação, a condenação do autor no pagamento de € 464.595, relativas a diversas obras de conservação e beneficiação do imóvel e com benfeitorias nele executadas."' No respeitante à prescrição (obrigação de preferência) sustentaram o decurso do prazo de mais de 20 anos, desde a celebração da escritura até à data da citação e no que concerne à caducidade alegaram que os réus, há mais de 20 anos que são detentores da posse - aquisição originária do direito de propriedade por usucapião, sendo que, em 1983, o autor assinou um documento no qual declarou não estar interessado na compra. Invocaram também a preterição de formalidades legais - no prédio existem outros andares arrendados pelo que, ex vi art. 1465 CPC -"Se já tiver sido efetuada a alienação a que respeita o direito de preferência e esse direito couber simultaneamente a várias pessoas, o processo para determinação do preferente segue os termos do art. 1460, com as alterações seguintes... - o que acarreta a improcedência da causa - fls. 51 e sgs. Replicou o autor, concluindo pela improcedência das exceções e reconvenção e pela absolvição do pedido como litigante de má-fé - fls. 143 e sgs. Na tréplica deduzida pelos réus, estes responderam às exceções opostas à reconvenção deduzidas na réplica - fls. 182 e sgs. Face ao falecimento da ré DD, em 2005, foram habilitados como sucessores, sua irmã - GG - os sucessores da irmã HH - II e JJ - e os sucessores da irmã KK - LL e MM (apenso A e decisão de fls. 299 a 300). Face ao falecimento do réu EE, em 16/2/2004, foram habilitados como sucessores - FF e NN (apenso B). Na pendência da ação faleceu o réu CC, tendo sido habilitados como seus sucessores BB (cônjuge sobrevivo) e os filhos -OO, PP, QQ, RR, SS, TT, UU, VV e WW (Apenso C). Instruídos os autos veio a ser proferida sentença que, julgando a ação improcedente, bem como o pedido de condenação do autor como litigante de má-fé, absolveu os réus e o autor dos pedidos. No que tange à reconvenção, a sua apreciação ficou prejudicada, porquanto no que à usucapião concerne os reconvintes não pediram o reconhecimento da aquisição originária da propriedade e o pedido formulado apenas se destinava, caso a ação fosse julgada procedente. A Relação na apelação julgou o recurso procedente e revogou a sentença julgando a ação procedente, reconhecendo-se ao autor o direito de haver para si o prédio alienado e identificado nas alíneas C), E), F) e G) (factos provados), por virtude do exercício do seu direito de preferência, declarando-se a transação efetuada a seu favor (autor), substituindo-se este aos l°s réus na compra e venda formalizada na escritura pública referida em C) (facto provado) e que teve por objeto o prédio supra identificado e condenam-se os l°s réus a entregar ao autor o valor das rendas vencidas e pagas no prédio, desde a data da aquisição até ao trânsito em julgado da sentença. Julgou a reconvenção procedente e condenou o autor a pagar o valor das obras realizadas no prédio identificado relegando-se o seu apuramento em incidente de liquidação. Interposto pelos réus recurso de revista concluem estes: (i) Consta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa que: “1. O autor é o único arrendatário do prédio que, desde o tempo da alienação, mantém essa qualidade; (ii) Tal formulação resulta seguramente de um evidente erro de escrita; (iii) O que deveria constar da matéria de facto provada é que: “o autor é o único arrendatário no prédio que, desde o tempo da alienação, mantém essa qualidade”; (iv) Desde logo, porque tal resulta de toda a documentação junta aos autos e que prova que o Autor é arrendatário do segundo andar esquerdo sito no prédio melhor identificados em c) e e) dos factos assentes; (v) Pelo que, nos termos do artigo 249 do CC e do artigo 614.º do CPC, deverá passar a constar do ponto nº 1, em conformidade com o supra exposto: “1. o autor é o único arrendatário no prédio que, desde o tempo da alienação, mantém essa qualidade”; (vi) Caso assim não se entenda então uma contradição manifesta e insanável na matéria assente; (vii) Consta da matéria assente que: “A - A 1 de Agosto de 1976, os herdeiros de XX, representados pelo cabeça de casal YY, na qualidade de senhorios e AA, como inquilino, subscreveram o instrumento junto por cópia a fls. 12-13, onde consta que entre eles foi ajustado o arrendamento do segundo andar esquerdo sito na Rua ... pela renda mensal de Esc. 1.512$00. B - A 10 de Março de 1983, o autor subscreveu o instrumento junto por cópia a fls. 97, denominado “DECLARAÇÃO”, com o seguinte teor: “AA, inquilino do segundo andar lado esquerdo do prédio sito na Rua ..., ... (antiga R. da ...) declara para os devidos e legais efeitos não estar interessado na compra do referido imóvel.” D - A 10 de Julho de 1985, foi lavrada a folhas 6v.-8 do Livro n° 225-E do 16° Cartório Notarial ..., a escritura pública de “ARRENDAMENTOS” certificada a fls. 81-86, onde consta que ZZ, em representação de CC e BB, deram de arrendamento: a) AAA, a sala A da loja com entrada pelo n° ..., pela renda mensal de Esc. 50.000$00, sendo destinado a salão de chá e venda de utilidades domésticas; b) BBB, as salas B e C da loja com entrada pelo n° ..., pela renda mensal de Esc. 20.000$00, destinado venda de artigos de decoração e prendas; c) CCC, a sala D da loja com entrada pelo n° ..., pela renda mensal de Esc. 20.000$00, destinada a salão de chá e venda de artigos de presentes e decorações; d) CCC, o Anexo, composto de sala ampla e cozinha, pela renda mensal de Esc. 50.000$00; e) DDD, o 1.º andar do anexo pela renda mensal de Esc. 50.000$00. (viii) Consta, igualmente, da matéria assente que: “1. O autor é o único arrendatário do prédio que, desde o tempo da alienação, mantém essa qualidade” (ix) As decisões são manifestamente contraditórias; (x) Não é possível considerar como provado que o Autor é o único arrendatário do prédio desde 1984 (o que, reitera-se, nunca foi alegado nem provado) e que esse mesmo Autor é arrendatário do segundo andar esquerdo no mesmo prédio desde 1984, conjuntamente com diversos ouros arrendatários; (xi) Pelo que, caso não se entenda que estamos perante um manifesto lapso de escrita deverá ser ordenada a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para resolução de tal contradição, nos termos e com os fundamentos previstos no artigo 682.º, n.º 3, do CPC Sem conceder (xii) Apesar de proceder à aplicação da Lei 63/77, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o referido tribunal omite in totum uma análise jurídica da mesma, especialmente em face dos factos apurados - a preferência de um arrendatário habitacional de um andar relativamente à alienação da totalidade do prédio; (xiii) Isto porque, de forma evidente, o local arrendado é o segundo andar esquerdo do prédio, não é o prédio na sua totalidade. O objeto do contrato de arrendamento (segundo andar esquerdo) e o objeto do exercício do direito de preferência que o Autor abusivamente pretende acionar (o prédio melhor identificado nas alíneas C) e E) dos factos assentes não têm a mesma identidade. (xiv) Conforme se disse, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa omite qualquer análise ao escopo e fundamento da atribuição ao arrendatário habitacional na Lei 63/77, legislação essa que foi revogada há cerca de trinta anos; (xv) Seguramente que a consagração de tal direito não é, nunca foi e nunca será, uma porta aberta à especulação imobiliária e à admissibilidade do enriquecimento abjecto que o Autor pretende obter nos presentes autos – a totalidade de um prédio urbano sito no centro de ... e cerca de 40 anos de rendas recebidas pelos Réus pelos arrendamentos (habitacionais, comerciais ou outros – cf. cláusula D) dos factos assentes) por si legalmente celebrados no prédio. (xvi) É assim necessário interpretar a legislação aprovada na década de 70 do século passado e revogada há mais de trinta anos; (xvii) Consta do preâmbulo da vetusta leu que o propósito da revolucionária legislação foi o de fomentar: “uma política de acesso à habitação própria”.; (xviii) Ora o caso que retratado nos autos em nada se reconduz à ratio legis supra transcrita na medida em que a decisão jurisprudencial acolhe um desbragado assalto à propriedade dos réus (propriedade imobiliária stricto sensu, mas também patrimonial – o Autor arroga-se a receber anos de renda de todos os arrendamentos existentes no prédio quando apenas é arrendatário do segundo andar esquerdo) que não encontra eco nem respaldo numa alegada proteção à habitação própria – o prédio que o Autor pretende adquirir por € 7,500.00; (xix) Aliás, o entendimento vertido no acórdão, nem sequer resulta do elemento literal da interpretação do artigo 1.º da Lei 63/77; (xx) Sendo que uma interpretação atualista da lei de 63/77 revogada na década de 90 do século passado também leva à conclusão que se defende da não existência do direito de preferência do arrendatário urbano de andar na alienação da totalidade do prédio com outros andar e, inclusivamente, finalidades distintas: habitação, comércio e serviços; (xxi) Interpretação que sai reforçada com o atual entendimento jurisprudencial sobre tal questão à face da Lei n.º 6/2006 de 27/2 que, depois de algumas hesitações iniciais, de forma praticamente unânime, reconhecem que os arrendatários habitacionais de andares não constituídos em propriedade horizontal não gozam de qualquer direito de preferência na alienação do imóvel. (xxii) Entre vários acórdãos, e citam-se apenas arestos deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça, veja-se, para citar apenas os mais recentes: Acórdão de 25.03.2021 proferido no âmbito do processo n.º 10307/16.0T8PRT.P2.S1 [relatora: Rosa Tching]; Acórdão de 09.03.2021 proferido no âmbito do processo n.º 2899/18.5T8ALM.L1.S1 [relator: Fernando Simões]; Acórdão de 07.11.2019 proferido no âmbito do processo n.º 14276/18.3T8PRT.P1.S2 [relatora: Maria do Rosário Morgado] e Acórdão de 21.01.2016 proferido no âmbito do processo n.º 9065/12.1TCLRS.L1.S1 [relator: Tavares de Paiva]; (xxiii) Pelo que da interpretação atualista (tal como consagrada no artigo 9.º do CC) aliada à teleologia da lei aplicável resulta evidente que não assiste direito de preferência do arrendatário habitacional de um andar na alienação da totalidade do prédio não constituído em propriedade horizontal o andar hipoteticamente objeto da preferência se insere; (xxiv) Pelo que o Tribunal da Relação de Lisboa violou o disposto no artigo 1.º da Lei 63/77, em face das necessidades interpretativas impostas pelo artigo 9.º do Código Civil; (xxv) E mesmo que hipoteticamente se entendesse que assistia ao Autor tal direito sempre o seu exercício seria ilegítimo por existência de abuso de direito; (xxvi) Neste particular o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa violou o disposto no artigo 334.º do Código Civil; (xxvii) A análise de abuso de direito pressupõe a resposta à seguinte pergunta é a seguinte: assumindo que o Autor é titular de um direito de preferência nos termos do disposto na Lei 63/77, resultante do arrendamento do segundo andar esquerdo, o fim sócio-económico desse direito tal como resulta dessa lei – o garantir a habitação própria – permite ao Autor tornar-se proprietário da totalidade do prédio melhor descrito nas alíneas C) e E) mediante o pagamento de cerca de € 7,500.00 de um prédio sito no centro de ... que em janeiro de 2009 tinha um valor comercial de € 846.662,00 (facto provado n.º 18) e exigir dos réus a totalidade das rendas recebidas pelos arrendamentos sucessivamente celebrados nesse prédio por um período superior a 38 anos? (xxviii) Não pode sem que a sua atuação consubstancie um evidente abuso do direito e, portanto, tal atuação seria ilegítima à face do disposto no artigo 334.º do Código Civil; (xxix) Acresce ainda que a norma que resulta do disposto do artigo 1.º da Lei n.º 63/77, com o sentido de que o titular de um contrato de arrendamento habitacional, que tem como objeto exclusivo um andar independente do prédio, tem direito de preferência na venda ou dação em cumprimento de todos os andares do imóvel / do prédio, que contém, aliás, unidades independentes que são dedicadas ao comércio e serviços, é inconstitucional, por violação do disposto nos artigos 1.º, 63.º, n.º 1 e 65.º, n.º 3 todos da CRP, o que desde já se alega para todos os efeitos legais; (xxx) Sendo, igualmente, inconstitucional a norma que resulta da conjugação do disposto nos artigos 416.º, 421.º e 1410.º do CC, no sentido que a sentença pela qual se efetiva o direito de preferência violado, valendo como título translativo da propriedade, pode fixar de forma ampla e abstrata que todos os proveitos da gestão desse imóvel, nos vários andares e unidades independentes que não correspondia à habitação do preferente, lhe têm de ser entregues, automaticamente, pelo adquirente original, independentemente do tempo passado ou de qualquer alegação ou prova de culpa na violação do direito de preferência, criando, por esta via, uma indemnização por responsabilidade objetiva no âmbito de uma ação destinada a decidir sobre a propriedade de um bem imóvel. Isto porque, tal norma viola o princípio da confiança, ínsito no Estado de Direito, a proibição de responsabilização automática, o direito de propriedade privada, o direito de iniciativa económica privada, o direito à habitação (que serve de base à preferência). … … Nas contra alegações os autores concluem que: “1ª - Do confronto da norma do nº 1 com a do nº 2 do art.º 1º da L 63/77, pode ser retirada a conclusão de que o legislador teve em vista a possibilidade do exercício do direito de preferência por arrendatário em prédio urbano no qual não haja sido instituído o regime da propriedade horizontal, relativamente à transmissão da totalidade do prédio e não apenas de fração autónoma. 2ª - Face a esta norma, o que importa verificar é se o que se arroga titular do direito de preferência é arrendatário na data da venda do prédio; 3ª - A verificação de tal condição tem de ser relativa ao prédio em questão. 4ª - Parece ser relativamente indiferente saber se o arrendatário é o “do” prédio ou “no” prédio, já que 5ª - Essa qualidade de arrendatário há-de sempre de ser aferida com relação ao prédio. 6ª - E, inegavelmente que, no caso dos autos, o A., ora Recorrido, é arrendatário do/no prédio desde 1/8/1976 (Factos Provados por documento e por acordo- A)). 7ª - A existência de uma relação locatícia entre o A. e o prédio em causa, no momento da alienação é o que importa para aplicação dessa norma. 8ª - Na letra da Lei (artº 1, nº 1 da Lei 63/77), quem tem o direito de preferência é o locatário habitacional “de imóvel urbano”. 9ª - Utiliza, assim, o legislador a preposição “de” para a relacionar com o objeto, o imóvel. 10ª - A preposição correta a empregar será “do” e não “no”, como os Recorrentes pretendem. 11ª - Não há, pois, que fazer qualquer critica à redação do Facto Provado 1), nem leva a qualquer retificação. 12ª - Não existe qualquer contradição quanto à matéria de facto provada, após manutenção da redação dada pelo Acórdão recorrido: o A. é arrendatário do 2º Esqº desde 1/8/1976, logo, é arrendatário do mesmo fogo em 28/6/1984 (data da alienação) e, em consequência é arrendatário do prédio sito na antiga Rua ..., atual Rua ..., ..., e de nenhum outro prédio, que, de resto, não está em discussão nos presentes autos. 13ª - A problemática levantada pelos Recorrentes, com esta discussão em torno do “do” e do “no”, passando pela inexistência de contrato de arrendamento do A. sobre a totalidade do prédio, mas, tão-somente, do 2º andar Esqº é puramente ficcional em face da lei, da doutrina e da jurisprudência. 14ª - Não restam dúvidas que ao caso dos autos são aplicáveis as normas da Lei 63/77: o Acórdão recorrido assim o fez, os Recorrentes não o contestaram e a lei assim o impõe (cfr. disposições conjugadas dos artºs 5º, nº 1; 7º, nº 1 e nº 12º todos do Código Civil). 15ª - O acesso do arrendatário de uma parte do imóvel à aquisição do prédio não constituído em propriedade horizontal, por via do exercício de preferência, consagrado no nº 1 do artº 1º da Lei 63/77, é a consagração do direito constitucional do direito à habitação (artº 65º, nº 2, al. c) CPC), uma vez que promove, por via da aquisição do prédio, uma estabilidade desse direito à habitação. 16ª - Isto vale dizer que, interpretar a norma do nº 1 do artº 1º da L. 63/77, no sentido de proporcionar ao arrendatário de apenas parte do prédio a possibilidade de aceder ao direito de propriedade prevista na constituição artº 62º CRP), é ver- lhe concretizado pelo Estado o direito, também constitucional (artº 65º, nº 2, al. c) CRP), do direito à habitação por via do acesso à habitação própria. 17ª - Atendendo à natureza do direito de preferência, não se vislumbra como pode o seu titular tornar-se um “especulador imobiliário” por via do seu exercício. 18ª - É que, o titular do direito de propriedade apenas tem direito a adquirir a coisa objeto do direito de preferência, neste caso o prédio, nas mesmas e exatas condições que o vendedor promover a sua venda. 19ª - O titular do direito de preferência, neste caso o arrendatário nada mais faz do que substituir-se ao terceiro interessado na compra. 20ª - Nenhuma vantagem económica ou pecuniária tem sobre este interessado, nem sobre o senhorio vendedor. 21ª - O exercício do direito de preferência pelo A. não resulta em qualquer “desbragado assalto à propriedade dos RR.” 22ª - O exercício do direito de preferência pelo arrendatário não traduz em qualquer limitação ao direito de propriedade do senhorio, uma vez que, como se disse, apenas se dá uma substituição do interesse de comprador pelo arrendatário, sem que este tenha qualquer vantagem económica ou pecuniária sobre o interessado comprador ou senhorio. 23ª - Se no caso “sub judice” existe essa aparência, ela é meramente aparente que não jurídica; pois, Em primeiro lugar houve em 1984 uma violação do direito de preferência do A., ao não lhe ter sido dado conhecimento da venda; depois, Ela foi-lhe ocultada durante 24 anos, precisamente pelos RR. ora Recorrentes e seus familiares, como resulta provado nos autos, O que o A. se propõe é exercer o direito constitucional e infra constitucional do direito à habitação e acesso à propriedade privada, pagando aos RR. Recorrentes o que eles pagaram pelo prédio, no momento em que ocorreu a violação do direito de preferência; e As consequências dessa violação (entrega do valor pago, haver para si o prédio e os respetivos frutos civis desde a alienação ilegítima) mais não é do que a consagração do efeito retroativo do exercício do direito de preferência, como unanimemente considera a doutrina e a jurisprudência como bem entendeu o Acórdão recorrido. 24ª - Relativamente ao quarto argumento, a proposição “de” da lei (nº 1 do artº 1º L.63/77) pressupõe, apenas, uma relação locatícia com o prédio, em situações em que o prédio não se encontra em regime de propriedade horizontal, quanto às situações em que o prédio se encontra em propriedade horizontal, cura o nº 2 desse artº 1º. 25ª - A propósito da questão do abuso do direito, não se olvida a matéria de facto dada como provada e não provada, em suma: O A. celebrou contrato de arrendamento em 1/8/1976 (Facto a)) Em 28/6/1984, o prédio foi vendido aos RR. Recorrentes (Facto B)) O A. é o único arrendatário do prédio que, desde o tempo da alienação, mantém essa qualidade (Facto I – na redação conferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa); Não ficou provado que o A. sabia desde agosto de 1984 da alienação do prédio. A aquisição do prédio objeto dos presentes autos só foi inscrito na Conservatória do Registo Predial (pelos RR. Recorrentes); em 2004. 26ª - Assim, forçoso é considerar que os RR., (BB e CC) tiveram 20 anos para se darem a conhecer, publicamente, por via do registo predial (talvez para poderem invocar o usucapião como desde a Contestação vêm fazendo), 27ª - Que só ao fim de 24 anos o A. pôde ter conhecimento da venda e dos seus elementos essenciais. 28ª - O que não é típico, nem normal. 29ª - Normal é, o proprietário de um prédio dar-se a conhecer aos inquilinos, logo que o adquire, seja por escrito ou contacto pessoal, o que nunca aconteceu; pois 30ª - Os RR. BB e CC, desde que adquiriram o prédio em 28/6/1984, sempre esconderam dos inquilinos, concretamente do A. e sua família, que haviam adquirido o prédio, bem como as condições de aquisição. 31ª - Em consequência, forçoso é concluir que o A. não atua em abuso do direito, mas, sim, apenas atua por via da presente ação quando tem condições para exercer o seu direito (quando tem conhecimento da venda e dos elementos essenciais do negócio). 32ª - Injustiça clamorosa seria os RR. obterem vencimento na ação quando nitidamente atuaram (BB e CC) ao longo de 24 anos (sempre) de forma a impedir o A. de exercer o seu direito de preferência, escondendo-lhe a aquisição do prédio. 33ª - O A. não atua nos presentes autos, antes exerce o seu direito no momento próprio, só não o tendo sido antes por virtude de os RR (BB e CC) lhe haverem sonegado ao longo dos anos (24) a informação de haverem adquirido o prédio. 34ª - A diferença de valores ―valor de aquisição e valor do prédio à data da propositura da ação― é o resultado por um lado da natureza do próprio direito de preferência e suas consequências e, por outro o longo número de anos que os RR (BB e CC) levaram escondendo do A. a aquisição do prédio. 35ª - O mesmo se diga quanto à entrega dos frutos civis do prédio desde a aquisição violadora do direito de preferência do A. é o resultado do efeito “ex tunc” do exercício do direito de preferência. 36ª - Quando se decidir pela existência de abuso do direito por parte do A. na instauração da presente ação, então, sim, estar-se-ia a violar os comandos constitucionais dos art.os 65º, nº 2, al. c) e 62º, nº 1, ambos da CRP, no que se traduziria numa decisão inconstitucional, por violação do direito à habitação e acesso à propriedade privada. 37ª - Se se analisar de perto a fundamentação do Ac. do Tribunal Constitucional nº 229/2020, que declarou com força obrigatória geral a inconstitucionalidade da norma do nº 8 do artº 1091º do Código Civil, na redação dada pela L. 64/2018, de 29 de Outubro, forçoso será concluir que o Tribunal Constitucional, numa interpretação atualista do novo ordenamento jurídico (o Acórdão é de 2020!) quando se debruça sobre a problemática da possibilidade de o arrendatário de apenas parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, poder preferir na aquisição da totalidade, quer à luz da L. 63/77, quer no presente, não considera tal interpretação com inconstitucionalidade. 38ª - Se por um lado considera que, no quadro da Lei 63/77, esse era o entendimento maioritário (teoria expansionista em detrimento da teoria local, na definição do Prof. Menezes Cordeiro) e que não feria a Constituição, na medida em que esta é neutra sobre a matéria, podendo o legislador ordinário optar por uma ou outra solução, e que não havia qualquer compreensão intolerável (inconstitucional) ao gozo do direito de propriedade pelo senhorio; por outro, considera que a solução ensaiada pela norma declarada inconstitucional (nº 8 do artº 1095º CCv), que previa a possibilidade da preferência do arrendatário em prédio não constituído em propriedade horizontal sobre parte alíquota desse direito (na proporção do arrendamento), essa, sim, era inconstitucional, por intolerável compreensão do direito de propriedade do senhorio e por impossibilidade legal de concretização do direito de propriedade do inquilino preferente, atendendo à natureza do regime da compropriedade. 39ª - É deste entendimento inconstitucional que a tese dos Recorrentes se aproxima: não pode o A. preferir sobre a totalidade do prédio, só o poderia se fosse sobre a parte respeitante ao seu arrendamento. 40ª - Isto vale por dizer que, não quisesse o legislador de 1977 atribuir ao arrendatário de parte do prédio a faculdade de preferir sobre a venda da totalidade e, seguramente, não tinha previsto a hipótese da preferência do arrendatário nessas condições; 41ª - Em conclusão: não é inconstitucional a interpretação do nº 1 do artº 1º da Lei 63/77, no sentido de permitir ao inquilino de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, preferir na venda da totalidade do mesmo. 42ª - Não se mostra violado o nº 1 do artº 62º do CRP, uma vez que não existe direito de propriedade privada violado. 43ª - No caso do senhorio, o que a lei lhe impõe é apenas e tão só a substituição do terceiro interessado na aquisição da totalidade do prédio por um determinado valor e condições, por outro nas mesmas condições, incluindo de valor, que é o arrendatário. 44ª - Não se mostra violado o artº 65º, nº 3 do CRP por não estar em causa qualquer direito aí consagrado. 45ª - A Decisão recorrida tem como fundamento a consideração de efeito retroativo do exercício do direito de preferência. 46ª - Assim sendo ―como é― há lugar a que a substituição entre adquirente e preferente se faça de molde a reconstituir a situação jurídica como se “ab initio” não tivesse havido a violação do direito de preferência. 47ª - Resulta, pois, a decisão de condenação na entrega do valor de rendas, puramente, do efeito retroativo do exercício do direito de preferência e não de qualquer responsabilidade civil que, no caso não existe. 48ª - E o mesmo se diga da obrigação do A. em pagar aos RR. o valor das obras: é fruto do efeito “ex tunc” do exercício do direito de preferência e não da responsabilidade civil. 49ª - Em conclusão: não há qualquer entendimento inconstitucional da conjunção das normas dos artºs 416º, 421º e 1410º do Código Civil na Douta decisão recorrida. 50ª - Deve, assim, ser negado provimento à revista interposta pelos RR. recorrentes e, em consequência, mantida in totum a douta decisão recorrida. … … Fundamentação Estão provados os seguintes factos A - A 1 de Agosto de 1976, os herdeiros de XX, representados pelo cabeça de casal YY, na qualidade de senhorios e AA, como inquilino, subscreveram o instrumento junto por cópia a fls. 12-13, onde consta que entre eles foi ajustado o arrendamento do segundo andar esquerdo sito na Rua ... pela renda mensal de Esc. 1.512$00. B - A 10 de Março de 1983, o autor subscreveu o instrumento junto por cópia a fls. 97, denominado "DECLARAÇÃO", com o seguinte teor: "AA, inquilino do segundo andar lado esquerdo do prédio sito na Rua ..., ... (antiga R. da ...) declara para os devidos e legais efeitos não estar interessado na compra do referido imóvel." C - A 28 de Junho de 1984, foi lavrada a folhas trinta e sete a folhas trinta e oito verso do livro de notas para escrituras diversas número noventa e um - B do extinto 11 ° Cartório Notarial ..., a escritura pública de "COMPRA E VENDA" certificada a fls. 20-22, onde consta que compareceram como outorgantes Dr. EEE, como procurador e em representação de D. DD, EE, D. BB, tendo os Io e 2o outorgantes declarado que pelo preço de um milhão e quinhentos mil escudos, de que dão quitação à compradora, livre de encargos, vendem à terceira outorgante, D. BB, o prédio urbano sito na Rua ..., número dois, tornejando para a Travessa ... a vinte e seis, freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n° ...30, a fls. 168 do ..., inscrito na respetiva matriz sob ò artigo ...38, com o valor matricial de Esc. 1.393.140$00, tendo a terceira outorgante declarado aceitar a venda nos termos referidos. D - A 10 de Julho de 1985, foi lavrada a folhas 6v.-8 do Livro n° 225-E do 16o Cartório Notarial ..., a escritura pública de "ARRENDAMENTOS" certificada a fls. 81-86, onde consta que ZZ, em representação de CC e BB, deram de arrendamento: a) AAA, a sala A da loja com entrada pelo n° ..., pela renda mensal de Esc. 50.000$00, sendo destinado a salão de chá e venda de utilidades domésticas; b) BBB, as salas B e C da loja com entrada pelo n° ..., pela renda mensal de Esc. 20.000$00, destinado venda de artigos de decoração e prendas; c) CCC, a sala D da loja com entrada pelo n° ..., pela renda mensal de Esc. 20.000$00, destinada a salão de chá e venda de artigos de presentes e decorações; d) CCC, o Anexo, composto de sala ampla e cozinha, pela renda mensal de Esc. 50.000$00; e) DDD, o 1.° andar do anexo pela renda mensal de Esc. 50.000$00. E - Está descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n° ...15 um prédio urbano sito na Rua ... (e não "... - erro ortografia), n°s. 4 e 6, composto de lojas, r/c, Io andar, quintal e anexo, cuja descrição em livro tinha o n° 1430, tendo estado inscrito na matriz sob o art. ...38, estando atualmente inscrito na matriz sob o art. ...71 da freguesia .... F - Pela Ap. ...7, de 2004/07/15, foi inscrita a aquisição a favor de EE, casado com FF e DD, por sucessão. G - Pela Ap. ...8, de 2004/07/15, foi inscrita a aquisição a favor BB, casada com CC, no regime da comunhão geral, por compra a EE e DD. Factos provados resultantes da discussão da causa: 1 - O autor é o único arrendatário do prédio que, desde o tempo da alienação, mantém essa qualidade. 2 - Ao subscrever o instrumento referido em B), o autor sabia que o prédio ia ser vendido. 3 - (alterado para não provado) 4 - A aquisição referida em C) apenas foi inscrita na Conservatória do Registo predial, em 2004. 5 - A 25 de Novembro de 1988, a ré BB celebrou, em seu nome, contrato de fornecimento de água do 1o andar esquerdo do prédio referido em C) e E). 6 - No r/c Dtº do mesmo prédio residia o cunhado e irmão dos réus, Eng. FFF. 7 - E no 1o andar esquerdo reside o filho dos réus, VV. 8 - Na ausência dos réus, são os referidos FFF e VV que recebem as rendas, nomeadamente do autor, mandam executar as reparações necessárias, quer no exterior, quer no interior dos andares, recebem as reclamações dos inquilinos, nomeadamente do autor, vistoriam o prédio. 9 - Tudo em representação dos réus BB e CC. 10 - Sendo que alguns dos recibos de rendas eram assinados pela ré BB. 11 - É a ré BB quem paga a taxa da Rede Geral de Esgotos, o imposto para o Serviço de Incêndios e a Contribuição Predial, posteriormente Contribuição Autárquica e agora IML 12 - Após 1984, os réus realizaram obras de reconstrução total e reconversão do n° 6, criando um pronto a comer equipado com duas cozinhas e duas instalações sanitárias, uma casa de chá-restaurante com cozinha completa e duas instalações sanitárias, uma galeria de arte e dois espaços comerciais-lojas que fazem parte integrante do pátio e três instalações sanitárias, incluindo estruturas, acabamentos, revestimentos, instalações especiais novas. 13 - Após 1984, foram executadas obras gerais no exterior que consistiram na substituição de rebocos, novas pinturas da totalidade do n° 4 e reparação e pintura das janelas. 14 - De 1984 a 2008, foram, efetuadas reparações regulares correntes, limpeza da cobertura, isolamento de algerozes e caleiras, reparação de trapeiras. 15 - Na década de 2000 foram executadas instalações especiais no n° 4 que incluíram: - coluna de distribuição de gás nova; - coluna eléctrica, incluindo campainhas e trincos novos; - coluna de água nova, com novas derivações e passagem dos contadores para caixa de escada; - reparação da caixa de escada, incluindo estuques novos, pinturas e remates. 16 - Na década de 2000, foram executadas obras de reparação geral no r/c esquerdo, incluindo igualmente todas as instalações novas. 17 - Na década de 2000, foram realizadas obras de reconstrução de nova garagem na cave do edifício com capacidade para 5 viaturas, com obras de contenção de estrutura, escavação e reforço do edifício. 18 - O prédio referido em C) e E) valia, em janeiro de 2009, € 846.662,00 … … O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das recorrentes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso, conforme prevenido nos arts. 635º n.º 4 e 639º n.º 1, ex vi, art.º 679º, todos do Código de Processo Civil. O conhecimento das questões a resolver na presente revista, delimitadas pelas conclusões, remete para decidir se deve ser alterada a redação do ponto 1 dos factos provados por erro de escrita ou, em alternativa, se existe contradição entre a matéria assente e o facto provado 1 que determine a remessa dos autos à Relação; em qualquer caso, saber se existe por parte dos autores direito de preferência na aquisição do imóvel identificado nos autos. … … Quanto à existência de erro de escrita que importe a alteração da redação do ponto 1 dos factos provados, sustentam os recorrentes que tendo ficado escrito neste ponto que “o autor é o único arrendatário do prédio que, desde o tempo da alienação, mantém essa qualidade” deveria antes constar que “o autor é o único arrendatário no prédio que, desde o tempo da alienação, mantém essa qualidade”; Esta alteração é sustentada pelos recorrentes no argumento segundo o qual, é absolutamente pacifico que o autor era arrendatário tão somente do segundo andar esquerdo e como assim, não poderia ter ficado expresso que o autor era arrendatário do prédio, mas sim no prédio, ou seja, não era arrendatário de todo o prédio, mas apenas de uma parte integrante dele. Afirmando os recorrentes que tal matéria não é uma irrelevância semântica nem uma especiosidade de estilo, mas uma verdadeira questão de tomo, o que observamos é que na economia da decisão recorrida essa alteração é em boa verdade irrelevante pela simples razão de ela (a decisão) não se ter baseado na ideia de o autor ser arrendatário de todo o prédio mas sim, e bem diferentemente como os recorrentes revelam entender nas suas alegações e conclusões, que a circunstância de ele ser arrendatário da parcela segundo andar esquerdo, e só dessa, lhe permitia no entanto em razão da lei aplicável à data da venda do imóvel poder preferir e adquirir a totalidade do imóvel. É na demonstração de ele ser arrendatário de uma parte integrante do imóvel, não em ser arrendatário de todas as partes integrantes e por isso de todo o prédio, que assenta a ratio de facto da decisão da primeira instância e da decisão recorrida. Nestes termos, que situa o objeto do recurso onde ele deve centrar-se com significado útil, isto é, a admissibilidade de preferência na aquisição da totalidade do prédio que não esteja constituído em propriedade horizontal por parte de quem seja (único) arrendatário de uma parcela (segundo andar esquerdo), é de todo irrelevante que se tenha escrito do em vez de no. Assim, sem necessidade de maiores explicações, improcedem nesta parte as conclusões de recurso dos recorrentes quanto ao pedido de alteração da matéria de facto por erro de escrita e quanto à remessa dos autos à Relação por existência de contradição entre a matéria de facto. … .. Entrando no objeto substantivo da revista, o direito de preferência do arrendatário, como qualquer outra figura jurídica, reflete antecedentes com contornos bem distintos dos atuais. Apesar de se tratar de um instituto com raízes profundas, a verdade é que a preempção, prelação ou direito de opção do arrendatário, tem uma existência relativamente recente no nosso ordenamento jurídico. O direito de preferência é uma faculdade que foi originalmente consagrada, no domínio do arrendamento, no primeiro quartel do século passado, não em relação a todas as categorias de arrendatários, mas apenas em benefício do arrendatário comercial ou industrial - este direito foi reconhecido àqueles arrendatários pelo art. 11.º da Lei n.º 1662, de 04-09-1924 sendo que esta faculdade foi estabelecida num momento em que a figura da propriedade horizontal ainda não era reconhecida no nosso ordenamento jurídico pelo que não se levantavam problemas quanto à situação jurídica do locado para efeitos de exercício da prelação. Decorridos quase vinte e cinco anos desde esse momento inaugural este direito legal deixou de se restringir àqueles arrendamentos, para abarcar, também, as situações de arrendamento para o exercício de profissão liberal, as quais passaram a ser-lhe equiparadas – cfr. o art. 22.º da Lei n.º 2030, de 22 de junho de 1948m diploma em que o direito de preferência do arrendatário passaria a ser assim designado, deixando de estar sob a denominação de um “direito de opção” - Contudo, o alargamento do âmbito de aplicação desta preferência legal manteve à margem os arrendamentos urbanos para fins habitacionais, situação que se manteve após a entrada em vigor do novo Código Civil - O Código Civil de 1966 acolheu, em termos limitados, o direito de preferência do arrendatário, enquadrando no art. 1117 as situações de arrendamento para comércio e indústria e operando no art. 1119.º operou uma remissão para as normas daqueles arrendamentos, sempre que em causa estivesse o arrendamento para o exercício de profissões liberais. Com a Lei n.º 63/77 de 25 de agosto o direito de preferência do arrendatário habitacional encontrou a sua primeira expressão entre nós, pretendendo-se, com a concessão desta faculdade aos arrendatários, “contribuir (....) ainda que em grau reduzido” para a política de acesso à habitação própria que havia sido salvaguardada na novíssima Constituição de 1976 - A concessão do direito de preferência ao arrendatário em caso de transmissão onerosa do local arrendado não é uma exclusividade do ordenamento jurídico português, tendo sido introduzido no direito alemão em 1993 -. Este diploma que foi o instrumento determinante da concessão daquela faculdade ao arrendatário habitacional, já tinha sido antecedido de esforços infrutíferos no sentido de conferir-lhe esse direito, no sentido de fazer proceder à equiparação entre arrendatários comerciais e arrendatários habitacionais prevendo, desta forma, a concessão da prelação a estes arrendatários - Sobre esta iniciativa vd. Januário Gomes in Arrendamentos Comerciais, 2ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 202; e Brandão Proença in “Para uma leitura restritiva da norma (art. 1091.º do Código Civil) relativa ao direito de preferência do arrendatário”, in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. II, Coimbra, Almedina, 2008, 941-942. Em termos mais recentes, a outorga do direito de preferência ao arrendatário habitacional foi reafirmada no art. 47 do RAU com a seguinte redação: “1. O arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano; 2. Sendo dois ou mais os preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.”. Esta norma, que replicou no essencial o art. 1º da Lei 63/77, teve a finalidade de uniformizar “em secção própria” a matéria respeitante à preferência do arrendatário que, com o passar do tempo, passou a divergir consoante a finalidade do arrendamento que estivesse em causa. Posteriormente, o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, manteve a preferência do arrendatário na compra e venda ou dação em cumprimento, repondo em vigor, no seu art. 3º, o art. 1091º, do CCivil, com a seguinte redação: “1 - O arrendatário tem direito de preferência: a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos; (…) 3 - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535.º 4 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º.”. Estas referências cronológicas devem ser acrescentadas com a indicação de o direito de preferência ter sido previsto e estabelecido num contexto que temporalmente se situa na sequência do primeiro conflito mundial, no qual, o princípio geral da autonomia privada em matéria de arrendamento foi substituído por um regime que restringia a liberdade das partes na conformação do contrato de arrendamento entendidos estes como vinculísticos. Arrendamentos caracterizados pelo pouco espaço de liberdade à autonomia privada, fazendo-se prevalecer os interesses dos arrendatários em detrimento dos senhorios, reduzindo a margem de manobra das partes para “ajustar regimes contratuais adequados” - vd. Brandão Proença “Para uma leitura restritiva da norma (art. 1091.º do Código Civil) relativa ao direito de preferência do arrendatário”, in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. II, Coimbra, Almedina, 2008, p. 940; António Sequeira Ribeiro in “Renda e encargos no contrato de arrendamento urbano”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. III, Direito do Arrendamento Urbano, Coimbra 2002, cit., p. 87-s e António Menezes Cordeiro in “O Novo Regime do Arrendamento Urbano: dezasseis meses depois, a ineficácia económica do direito”, in O Direito (139), 2007, V, p. 950-951. Porém, nos últimos anos que antecedem e incluem o do estabelecimento da disciplina normativa do NRAU, um conjunto de fatores indicadores da vontade de desenvolver o mercado de arrendamento liberalizado e uma releitura da realidade, pregressa e atual, voltou a centrar a liberdade contratual das partes e manifestou a inequívoca vontade de eliminar os elementos vinculísticos - vd. António Menezes Cordeiro in “A modernização do Direito português do arrendamento urbano”, in revista O Direito, ano 136.º (2004), II-III. p. 235-s. Temos por importante sublinhar este enquadramento temporal e axiomático na leitura dos diferentes diplomas, em que se contém o direito de preferência no arrendamento, porque estas referências são tópicas das questões que sempre estiveram presentes nas interpretações dos normativos que foram regulando a matéria desde a Lei 63/77. É assim que Menezes Cordeiro - in “O Novo Regime do Arrendamento Urbano: dezasseis meses depois, a ineficácia económica do direito”, in O Direito (139), 2007, V, p. 950-951 - sustenta a completa eliminação, no nosso ordenamento jurídico, desta prerrogativa do arrendatário, considerando que “A preferência desvaloriza o domínio e mantém vínculos fora de época”, do mesmo modo que Brandão Proença - in “Para uma leitura restritiva da norma (art. 1091.º do Código Civil) relativa ao direito de preferência do arrendatário”, in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. II, Coimbra, Almedina, 2008, p. 946 - defende que a manutenção da prelação em matéria de arrendamento significa um entrave à autonomia privada e que esta faculdade do arrendatário se torna especialmente problemática num sistema como o nosso, em que por força da política legislativa, vigora um princípio geral de autonomia da vontade. Também Rute Teixeira aborda a problemática para sublinhar que o legislador tem revelado uma expressão e vontade no sentido de “(re)garantir um maior espaço para o funcionamento da autonomia privada”, pelo que a manutenção do direito de prelação do arrendatário parece estar em “contraponto com o sentido geral da reforma” - in “O direito de preferência do arrendatário no ocaso do vinculismo – breves reflexões à luz da reforma de 2012”, in Cadernos de Direito Privado, CEJUR, 2013 (42), p.14. Descrito o quadro geral de evolução normativa e assente, sem sombra interpretativa, que existe direito de preferência por parte do arrendatário na compra do arrendado, as questões suscitam-se (e em verdade sempre se suscitaram) nos casos em que o locado não tem autonomia – quando o prédio não está sujeito ao regime da propriedade horizontal - , isto é, nas situações em que o arrendamento incide apenas sobre parte de um prédio não constituído em propriedade total. Nestas situações, o prédio composto por várias partes suscetíveis de utilização autónoma e independente, só pode ser encarado na sua globalidade, como sendo uma coisa única onde o locado não tem qualquer autonomia jurídica, sendo uma parte integrante e não cindível e autonomizável do prédio. São casos em que não existe, pois, qualquer coincidência entre o objeto do arrendamento - a parte do prédio indiviso locada - e o objeto a que respeita o direito de propriedade que se pretende adquirir através do exercício da prelação. Nas situações em que o objeto do arrendamento coincide com a totalidade de um edifício – v.g. uma moradia unifamiliar – e naqueles em que o prédio se encontre em regime de propriedade horizontal não se suscitam dúvidas sobre o exercício da preferência, este incide sempre sobre a parte do prédio que é objeto de locação, sobre o local arrendado. É nos outros casos, naqueles em que o arrendamento incide apenas sobre parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal que a circunstância de o locado não ter qualquer autonomia jurídica sendo, uma parte integrante da coisa única que é o prédio, é nestes casos dizíamos, que a descoincidência entre o objeto do arrendamento – a parte do prédio indiviso – e o objeto a que respeita o direito de propriedade que se pretende adquirir através do exercício da prelação, polariza as questões interessantes ao objeto desta presente revista. No conhecimento do mérito do recurso, centrado exclusivamente na apreciação do direito de preferência do arrendatário de prédio urbano com diversos espaços de locação, mas sem estar constituído em propriedade horizontal, deixamos expresso ser entendimento unânime, nomeadamente neste STJ, que a lei reguladora do direito de preferência é a vigente à data da celebração do ato de alienação, pois o direito legal de preferência configura uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário que só a prática do negócio translativo da propriedade, sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, o transforma em direito potestativo - cf., entre outros, o ac. Acs. STJ de 05.05.1994, in BMJ 437-477; de 09.03.1995, CJ, STJ, II, 1, 118-II; de 28.01.1997, processo n.º 87557 e 12.11.2009, processo n.º 1842/04.3TVPRT.S1, ambos in www.dgsi.pt.; de 21.01.2016, proc. nº 9065/12.1TCLRS.L1.S1 e o de 7-11-2019 desta mesma secção no proc. 14276/18.3T8PRT.P1.S2, in dgsi.pt. No caso em decisão, à data da outorga da escritura pública de compra e venda (28.6.1984) estava em vigor a lei 63/77 de 25 de agosto cuja redação dos três primeiros artigos se transcreve: “ Artigo 1º 1. O locatário habitacional de imóvel urbano tem o direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do mesmo. 2. O locatário habitacional de fração autónoma de imóvel urbano também goza do direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento da respetiva fração. Artigo 2.º 1. Quando mais de um locatário habitacional exercer o direito de preferência, abrir-se-á entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante. 2. Quando num imóvel urbano existirem um ou mais locatários habitacionais e um ou outros de diferente natureza, também com direito de preferência, proceder-se-á nos termos do número anterior. Artigo 3.º Ao direito de preferência previsto nesta lei é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º do Código Civil.”. Na vigência destes preceitos, a jurisprudência maioritária dos tribunais superiores entendia que, quando não se achasse instituído o regime de propriedade horizontal e o direito de preferência existisse a favor dos locatários, habitacionais ou para comércio ou indústria, o arrendatário duma parte ou os arrendatários coligados podiam exercer o direito de preferência em relação à totalidade do prédio vendido onde se situe o local arrendado; se a propriedade horizontal estivesse constituída, o direito de preferência limitar-se-ia à fração respetiva – cf. acs. STJ de 26.09.1981, BMJ 409-779, de 10.04.1986, BMJ 356-333, de 03.10.1989, BMJ 390-408, e de 28.01.1997, in CJ, STJ, T I, ano I, pág. 77, Acs. da RP de 25.07.1985, CJ X-4-241, de 16.06.1988, BMJ 378-785, de 04.7.1989, BMJ 389-646. Os argumentos avançados blasonavam a finalidade de a preferência concretizar a política de acesso à habitação própria, com consagração constitucional, como evidenciado no preâmbulo do diploma; o eventual afrontamento da lei no caso de se acolher o sentido contrário; e, a consagração de licitação entre vários preferentes que, não podendo ocorrer entre arrendatários de frações autónomas de prédio constituído em propriedade horizontal, teria o seu campo de aplicação aos arrendatários de partes de prédios não constituídos em propriedade horizontal com direito de preferência relativamente à totalidade do prédio. Como antes aludimos e agora repetimos, o D.L. n.º 321-B/90, de 15 de outubro, que aprovou o Regime de Arrendamento Urbano (RAU), confrontado com a existência de regimes não coincidentes de preferências comerciais e habitacionais no Código Civil e naquele diploma, revogou-os e uniformizou a matéria nos seguintes termos: Artigo 47.º (Direito de Preferência) 1. O arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano. 2. Sendo dois ou mais preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante” O confronto desta redação com a redação daqueles artigos 1117.º do Código Civil e 1.º e 2.º da Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto, evidencia que o legislador mantendo o essencial não reproduziu totalmente os textos anteriores: por um lado, ao invés de continuar a falar no direito de preferência do prédio arrendado ou do imóvel urbano passou a referir do local arrendado; por outro lado, no preâmbulo afirmou que “Nessa tarefa codificadora, teve-se sempre a preocupação de valorar os textos anteriores perante a jurisprudência dos tribunais de Portugal (…) Nesta linha e na medida do possível foram mantidos os textos anteriores quando, sobre eles, houvesse já uma concretização jurisprudencial que importasse conservar” e manteve consagrado a licitação entre dois ou mais preferentes. A jurisprudência e doutrina maioritárias, na interpretação deste preceito, seguiram o entendimento anterior: o arrendatário de parte indivisa tem direito de preferência na venda da totalidade do prédio urbano – cf. Acs. de 26.09.1991, BMJ 409.º - pag. 779, de 08.10.1992, BMJ 420.º- pag. 502; de 28.01.1997, CJ, STJ. T.V, ano I, pag. 77; de 13.02.1997, CJ, STJ, T.V, ano I, pag. 104; de 10.12.1997, BMJ – 472.º-454; de 30.04.1997, processo n.º 885/96 , 2.ª secção, Cons. Pereira da Graça; de 02.06.1999, Co. Ac. STJ, VII, 2.º, 129; de 22.10.1999, BMJ, 490-270; de 13.01.2000, revista n.º 991/99 – 2.ª secção; de 29.04.2003, revista n.º 706/2003 – 6.ª secção, de 06.07.2004, proc. 07B1554 e de 31.05.2007, processo n.º 07B1554, in www.dgsi.pt, ; de 20.10.2009, revista n.º 563/2001.S1, de 22.10.2009, revista n.º 446/09.9YFLSB, de 12.11.2009, revista n.º 1842/04.3TVPRT.S1, de 25.03.2010, revista n.º 5541/03.5TBVFR.P1.S1, de 12.01.2012, revista n.º 72/2001.L1.S1; Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 6.ª Edição, Almedina, 2002, pag. 314; Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3.ª Edição, Almedina, pags. 639 e 640; Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 1.ª Edição, 2000, pág. 247, nota 1; Pires de Lima/Antunes Varela, CCAnot, II, cit. anot. 8 ao art. 47.º RAU; Luís Miguel Monteiro, Direito e Obrigações Legais de Preferência no Novo Regime Jurídico do Arrendamento Urbano, Lisboa, 1992, AAFDL; Agostinho Cardoso Guedes, o Direito de Preferência (2006), 172-208. Os argumentos subjacentes a este entendimento eram: o alargamento do direito de preferência a todos os arrendamentos urbanos vinculísticos (que não apenas os destinados a comércio, indústria, profissões liberais ou habitação) e a consagração de novos direitos de preferência, designadamente a favor dos titulares de novo arrendamento e do senhorio em caso de trespasse; a manutenção das designações de “prédio urbano” e “fração autónoma”, o que implicaria que a limitação ao local arrendado apenas diria respeito aos casos de venda de prédio já constituído em propriedade horizontal; a manutenção da norma que mandava proceder à licitação em caso de concurso de preferente, que ficaria sem campo de aplicação caso não se perfilhasse o entendimento de que estes poderiam preferir na totalidade do prédio e o teor do preâmbulo do diploma. Todavia, não só a alteração da redação assinalada, mas sobretudo ela, tornou mais destacável o entendimento contrário, ou seja, o de o inquilino duma fração de um prédio não constituído em propriedade horizontal não ter direito de preferência no caso de o senhorio pretender vender o prédio todo – cf. Ac. STJ de 30.04.1997, BMJ 466º - 501 e de (cf. o Ac. de 17-12-98, 99B466, e na doutrina M. Januário Gomes, in Arrendamentos Comerciais, 2.ª ed. P. 204 e Oliveira Ascensão, Subarrendamento e Direitos de Preferência no Novo Regime de Arrendamento Urbano, in R.O.A., ano 51.º, I, 1991, p.68. e em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, III vol., p. 255. Esta posição fundou-se na argumentação de a lei contemplar com relevância preferencial a fração autónoma ou o prédio urbano, pelo que, se o arrendamento tem por objeto a fração autónoma e ela é vendida, ou se tem por objeto o prédio urbano e ele é vendido, existe nestes casos direito de preferência do arrendatário; a lei não contempla no seu texto o direito de preferência de arrendatário de parte alíquota sobre a totalidade do prédio urbano indiviso, pelo que defendê-lo não teria arrimo legal e contrariaria a própria lei; a regra da licitação entre os preferentes tem aplicação no caso de o prédio ou a fração poder ter vários arrendatários e cada um deles pretender exercer o respetivo direito; a expressão “local arrendado” constitui um explicação relativamente à legislação precedente - vd. em recensão dos argumentos o ac. STJ de 21 janeiro de 2016 no proc. 9065/12.1TCLRS. L1.S1. Observando a Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que reescreveu o art. 1091.º do Código Civil, acima transcrito, este obteve como redação que: “1 - O arrendatário tem direito de preferência: a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos;” Normativo que pela alteração da Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro ficou a constar “ “1 - O arrendatário tem direito de preferência: a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de dois anos;” Perante esta redação, aqueles que já antes defendiam a inexistência de direito de preferência para os arrendatários de partes integrantes do prédio não constituído em propriedade horizontal mantiveram essa posição reforçando - como antes demos nota - que a própria existência de preferência do arrendatário está destituída de sentido e que essencial é ser-se arrendatário do concreto espaço da locação. Pelo que passou a ser unânime na jurisprudência deste tribunal o entendimento segundo o qual atento o teor do artigo 1091.º, n.º1, al. a), do CC, na redação da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado não tendo o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada – vd. por todos ac. STJ de 7-11-2019 no proc. 14276/18.3T8PRT.P1.S2 desta mesma secção; de 25-3-2021 no proc. 10307/16.0T8PRT.P2.S1 e de 18-10-2018 no proc. 3131/16.1T8LSB.L1.S1. O confronto da fórmula utilizada pelo legislador com as anteriores constantes dos artigos 1117.º do Código Civil, 1.º e 2.º da Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto e artigo 47.º do RAU revela que se manteve a preferência do arrendatário na compra e venda e dação do local arrendado, como já constava do RAU (fundamento em que se filiava, na vigência do RAU, aquela segunda corrente minoritária), ao invés do prédio urbano ou imóvel, constante dos artigos 1117.º do original CC e 1.º e 2.º da Lei n.º 63/77; foram excluídas as designações prédio urbano e fração autónoma; deixou de existir a menção à licitação entre dois ou mais preferentes, fundamento em que a primeira corrente maioritária se firmava. Do exposto retemos que se no âmbito da Lei 63/77 e na posterior (o RAU) a doutrina e jurisprudência maioritária eram no sentido da aceitação que o locatário de parte integrante de um prédio não constituído em propriedade horizontal podia preferir na compra da totalidade do imóvel, exorbitando assim o espaço do próprio arrendado porque era esta a forma de garantir a preferência sobre a parte locada - a alternativa era admitir a preferência em mais ou não admitir de todo a preferência -, Existia, no entanto, ainda que minoritária, uma corrente interpretativa na jurisprudência e na doutrina que como assinalámos propendia a excluir a preferência naqueles casos. Não era, pois, unânime nem unívoca a interpretação dessas normas e a dissensão orbitava em torno de uma leitura das regras e dos princípios existentes à data como agora, e que reportavam à autonomia da vontade privada e ao art. 62.º/1 da CRP segundo o qual “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão” sem embargo do art. 1305 do CC dispor que “dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”. Esta nota de que mesmo num tempo de entendimento maioritário havia argumentos e decisões minoritárias que reportavam a determinados aspetos que estiveram sempre presentes na evolução normativa posterior, fazem ainda sublinhar que nos casos de preferência de arrendatário de prédio não constituído em propriedade horizontal com várias partes integrantes o direito que cabe ao arrendatário, enquanto tal, não tem a extensão da totalidade do imóvel, existindo alguma estranheza naturalística (que não normativa) em a preferência poder nestes casos oferecer ao arrendatário a extensão do seu direito para fora dos seus limites, havendo quase que um imperativo lógico no sentido de a preferência ser, por regra, limitada ao local arrendado. Ainda neste aspeto, se a situação do prédio não constituído em propriedade horizontal for a de existirem várias (ou todas) as partes integrantes locadas, percebe-se que a solução de facultar essa preferência encontra algum alicerce equitativo “quando mais de um locatário habitacional exercer o direito de preferência, abrir-se-á entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante”. Poder-se-ia até questionar a partir da redação do art. 1 da Lei 63/77 se ela não apontaria para os casos de prédio urbano compreendendo um único espaço de locação habitacional (no que prédio urbano coincidiria com o arrendado) e para os casos de frações autónomas, situações em que o arrendado seria, digamos assim, uma unidade coincidente. Mesmo que tal interpretação não tivesse sido sufragada sequer na tese minoritária, não pode deixar de se ter em linha de conta que, num caso como o agora em decisão, um único arrendatário de uma parte integrante pudesse ter acesso à aquisição da totalidade do prédio e de todas as suas partes integrantes quando, se a natureza jurídica desse mesmo imóvel obedecesse à propriedade horizontal, essa mesma realidade lhe estaria vedada. Veja-se que não está em causa com o direito de preferência a perda de um arrendamento, mas sim a conquista da propriedade do arrendado e, por extensão, a totalidade de um prédio, o que suscita, e suscitou desde a entrada em vigor da Lei 63/77 uma reflexão indiciária no domínio da equidade e proporcionalidade. Os defensores do acesso através da preferência à totalidade do prédio supõem sempre na sua argumentação um quadro de pluralidade de arrendatários num imóvel não constituído em propriedade horizontal e não apenas um arrendatário apto a exercer a preferência sobre outras partes integrantes do prédio - vd. Aragão Seia, in Arrendamento..., p. 327 - advertindo que aquilo que o legislador não quis foi permitir o exercício da prelação aos locatários de frações juridicamente autonomizadas (os casos de prédio constituído em propriedade horizontal) sempre que houvesse a alienação onerosa de outras partes do edifício. Ora, talvez possamos pensar que se em termos estritamente normativos esta interpretação cobre as exigências da autonomia jurídica que num caso é a fração autónoma e no outro só pode ser o próprio prédio, não pode deixar de registar-se uma diferença significativa e significante quando um único arrendatário é admitido a preferir em todas as restantes partes locadas e locáveis se for o único locatário (ou se os outros não quiserem responder à preferência). Não cremos facilmente que admitir a preferência nos termos da Lei 63/77 ou no art. 47 nº1 do RAU signifique que o local arrendado é o prédio (na sua totalidade com varias partes integrantes locáveis ou locadas) mas simplesmente que, para exercer o direito de preferência como arrendatário com possibilidade de aceder á propriedade do locado sobre a sua parte integrante, a única forma é admitir que a preferência se estenda a todo o prédio como uma espécie de extra necessário, dependente de ser o único arrendatário ou de os restantes não terem querido preferir. Como referiu a este propósito Menezes Cordeiro, e faz pensar, transformar o inquilino de uma parte integrante (de um fogo) em dono do prédio (só) porque este não estava em propriedade horizontal, é uma operação de todo fora do objetivo legal, mais se insere numa lógica lucrativa de negócios imobiliários” - in Códigos Comentados da Clássica de Lisboa – Lei do Arrendamento Urbano Anotadas, Coordenação: António Menezes Cordeiro, Almedina, 2014, pág. 261-. Nascendo o direito de preferência do direito de arrendamento este tem justificação na relação próxima (tendencialmente duradoura) entre o arrendatário e a coisa locada, num ajuste de equilíbrio e proporcionalidade entre o primeiro e o segundo de forma que aquele não exceda este quanto ao objeto, e antes haja rigorosa identidade entre a extensão da coisa locada e a da coisa preferida. Seja como seja, importa neste momento, sabendo que a lei em vigor à data da alienação do imóvel era a 63/77 de 25 de agosto, determinar que interpretação devemos realizar desses normativos. Como observámos no relatório, a primeira instância e a relação foram coincidentes a decidir que o arrendatário tinha preferência sobre a totalidade do imóvel não constituído em propriedade horizontal porque era ele à data da alienação único arrendatário de uma das partes integrantes e locáveis. Porém, enquanto a sentença entendeu, com base na matéria de facto provada, ter existido abuso de direito por parte do arrendatário, uma vez eu desde agosto de 1984 sabia da alienação do prédio, a decisão da apelação alterando a matéria de facto fixada, julgou este facto como não provado e entendeu, em consequência, que não se verificavam os requisitos do abuso de direito revogando a decisão recorrida. Na apreciação do mérito da revista tomamos a matéria de facto apurada e destacamos que a alienação do imóvel foi realizada em 28 de junho de 1984 e a ação foi proposta em 4 de dezembro de 2008, isto é, 23 anos depois. Não se questionando o desconhecimento do autor/arrendatário da alienação do imóvel por parte do senhorio/proprietário e tendo presente que é aplicável a Lei 63/77, a primeira tarefa a empreender é a de saber se deve simplesmente, como o fez a decisão recorrida, determinar-se que com base nessa lei e na adesão ao entendimento maioritário que ela provocou até 2006 o arrendatário tinha preferência na totalidade do imóvel por este não estar constituído em propriedade horizontal, embora fosse apenas locatário de uma única parte integrante. Por outro lado, pode defender-se, como já se defendia então, que mesmo no âmbito de aplicação dessa lei que é preferível o entendimento minoritário e que a decisão a proferir deverá ser a de indeferimento do reconhecimento do direito de preferência. Cremos, no entanto, que a abordagem à problemática em presença excede o simples decalque e remissão para uma posição tida num determinado momento por maioritária ou noutro por minoritária. Deixámos anteriormente exposto que um mesmo problema, o exercício do direito de preferência por um arrendatário de uma parte integrante de um prédio não constituído em propriedade horizontal, foi tendo ao longo do tempo diversa abordagem normativa e jurisprudencial, a partir da interpretação das normas em vigor, sem que alguma vez tenha havido unanimidade. E as diferenças interpretativas radicaram, sempre, na forma como se deveria à luz dos princípios e como eles enformam a realidade, se poderia aceitar ou não que um direito de propriedade oferecido pela qualidade de se ser arrendatário pudesse exceder o substrato locatício dessa qualidade (o arrendado) para se estender a partes não abrangidas pelo locado. Este impasse, presente na interpretação desde a Lei 63/77, nunca foi abandonado tendo sido (em nosso entender) mais a realidade que a lei a fazer inverter o entendimento. Sabemos que a redação do art. 1091 do CCivil pela NRAU tem diferenças relativamente à redação do art. 47 da RAU ou do art. 1º da Lei 63/77, porém, no essencial o pomo discordatário da interpretação reportava a saber se perante as diferentes redações dos normativos era admissível defender a recusa do direito de preferência do arrendatário, se esta se traduzisse na aquisição de mais do que o arrendado – podem ver-se neste sentido as considerações expendidas no ac. do TC nº 299/2020 que declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade da norma constante do n.º 8 do artigo 1091.º do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 64/2018, de 29 de outubro, norma que admitia a preferência do arrendatário de prédio não constituído em propriedade horizontal restringindo a preferência à sua “quota”. Deixamos desde já referido que, a admissibilidade de uma interpretação minoritária no domínio de vigência da Lei 63/77 e da RAU continha uma apreensão valorativa da realidade, dos princípios e das próprias normas que acolhia um determinado entendimento, dificultado não pela realidade nem pelos princípios, sim pelos normativos e pelo modo não totalmente claro como se encontravam redigidos. E é neste âmbito de tensão entre a realidade e as normas que poderia suscitar-se a problemática que no domínio do direito constitucional encerra o conceito de mutações constitucionais, traduzindo a ideia de a interpretação/aplicação das normas (constitucionais) ter de ter sempre em conta as circunstâncias da sua situação histórica – vd. Joaquim de Sousa Ribeiro in “Mutações constitucionais um conceito vazio?” Estudos em memória do Conselheiro Artur Maurício, Coimbra Editora p. 601 e 602 . Partindo do pressuposto metódico do positivismo normativista – o da estrita separação entre a realidade e o direito – a conclusão a que se poderia chegar seria inversa por ser o normativo que capitularia perante os factos, perante a realidade. Tudo se resume a saber se através da verificação de uma mutação da realidade se altera o sentido da norma sem que o seu texto mude, podendo nessa mutação influir elementos de apreciação diversos fornecido pela atualidade da realidade em presença. Aceitando que a norma e o texto da norma não se confundem caberia ao intérprete mormente à jurisprudência extrair de cada enunciado linguístico com intenção normativa um sentido adequado à época e contexto – Joaquim Sousa Ribeiro op. cit. p. 605. Não se trata de atribuir força vinculativa à realidade, o que seria uma arbitrariedade dependente da vontade de cada um que lesse a lei, mas antes saber se a mudança registada cabe no âmbito de uma estrutura normativa e naquela parcela da norma que é mutante. Neste sentido mudanças de entendimento que provoquem roturas de orientação jurisprudencial não cabem nas “mutações” porque resultam de uma reponderação que deixa intocados os parâmetros da valoração contidos no normativo. A norma integrando tanto um comando jurídico (o programa normativo) como o segmento da realidade regulada (o âmbito normativo) permitiria que uma relevante alteração na realidade poderia levar a uma a uma modificação o conteúdo da norma - Joaquim Sousa Ribeiro op. cit. p. 605. Afastamos, no entanto, a possibilidade de incluir na interpretação das normas do direito de preferência do arrendatário esta teoria da mutação porque o seu âmbito de origem e de aplicação (controversa) se circunscreve às normas constitucionais que, como sabemos, acolhem uma ideia de valor e não regulam, como as normas jurídicas civis, segmentos concretos e determinados de realidade. Acolhem uma ideia de valor em que se funda um programa normativo elipticamente enunciado, fornecendo uma certa direção de sentido regulador que através da mediação constitutiva do intérprete é concretizável em normas de conteúdo determinado. São normas que contêm princípios com plasticidade adaptativa sensíveis a alterações valorativas. Existe, contudo, uma lição relevante desta abordagem que é a da atenção à realidade regulada, que deve ser interpretada segundo os normativos num esforço de reconstituição do pensamento legislativo, contando com a unidade do sistema, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições especificas do tempo em que é aplicada - art. 9 nº1 do CCivil. Percebemos que o contexto normativo não muda simplesmente quando a lei muda por vontade do legislador, existindo um processo de dialética (hegeliana) que vai percorrendo o tempo e contando com todos os subsídios doutrinários e jurisprudenciais daqueles que se vão cruzando com a realidade, mesmo que a lei se mantenha a mesma. E é isso que coloca a questão de saber como o intérprete deve agir quando está a aplicar uma lei mais de 23 anos depois quando essa mesma lei foi fundadora de um direito (de preferência do arrendatário) mereceu um entendimento maioritário mas não unânime, entendimento esse que a evolução da realidade veio a inverter com base numa outra lei que no entanto não realizou (nem declarou ter realizado) um corte com a lei anterior, antes a enunciou em termos que deixa verdadeiramente intocada a polémica interpretativa inicial - saber se o arrendatário de parte de um imóvel não constituído em propriedade horizontal o pode adquirir na totalidade – e fornecendo até uma norma o nº 8 do art. 1091 (que veio a ser julgada inconstitucional) que pretendia responder a essa questão sempre presente desde que existe preferência do arrendatário, da forma enunciada pela corrente então minoritária. Tendo isto presente, deve aceitar-se que interpretar a norma tendo atenção às condições especificas do tempo em que é aplicada impõe que não nos coloquemos em 1984 a aplicar a lei, mas sim no tempo presente, pelo menos por referência à data do início do litígio em tribunal e nesta interpretação cabe (tem de caber) mais que a visão mundividente daquele tempo. Intervém a evidência de uma norma tida maioritariamente por permissiva e expansionista, quanto ao direito de preferência do arrendatário de parte integrante de prédio não constituído em propriedade horizontal quanto à totalidade do imóvel, ter evoluído a partir de uma realidade já existente para um sentido restritivo e localista, reforçando o que naquele pregresso momento era minoritário. Pode objetar-se a esta interpretação atualizada pela realidade subsequente que a culpa não é do arrendatário e que se este tivesse sabido mais cedo da venda teria preferido ou, até, que a lei apenas mudou em 2006 e a ação foi proposta em 2008. Porém, o que dizemos e aceitamos, não é que se a ação tivesse sido proposta mais cedo a decisão interpretativa seria outra (maioritária). Não fomos chamados a decidir em tempo anterior e por isso não é esse juízo hipotético e retroagido que cumpre agora realizar. Tem de decidir-se com base na norma aplicável interpretando-a na sua própria letra e também com os elementos relevantes para compreensão da realidade e dos preceitos que dispomos no tempo em que estamos a fazer a sua aplicação. Deste modo, o texto da lei 63/77, o seu art. 1º, não fechava o entendimento de se poder recusar o direito de preferência ao arrendatário que o fosse apenas de parte integrante de um imóvel com mais partes e não constituído em propriedade horizontal e, aceitando ser nesse âmbito de vigência da norma bastante mais frequente a jurisprudência aceitar a preferência sobre a totalidade do imóvel, em verdade não só a inexistência de unanimidade (com os fundamentos que deixamos expostos e subscrevemos) toda a evolução posterior a partir do mesmo núcleo de preocupações normativas e a leitura juridicamente significante do tempo e da realidade, determina que, na interpretação da lei 63/77 e sua aplicação ao caso dos autos, entendamos não dever ser reconhecido ao arrendatário de uma única parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal e que contém outras partes locáveis, o direito de preferência, máxime, sobre a totalidade do imóvel. Assim procede a presente revista devendo a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que no entendimento de não ser reconhecido ao autor o direito de preferência, julga improcedentes os pedidos formulados na ação pelos autores … … Síntese conclusiva - A Lei n.º 63/77 de 25 de agosto estabeleceu o direito de preferência do arrendatário habitacional em caso de transmissão onerosa do local arrendado e, posteriormente, a RAU replicou no art. 47 e em termos idênticos esse mesmo direito. - Na vigência desses dois diplomas o entendimento maioritário da doutrina e da jurisprudência entendeu que quando não se achasse instituído o regime de propriedade horizontal e o direito de preferência existisse a favor dos locatários habitacionais, o arrendatário duma parte ou os arrendatários coligados podiam exercer o direito de preferência em relação à totalidade do prédio vendido onde se situasse o local arrendado; - Havia ainda, na vigência desses dois diplomas um entendimento minoritário na doutrina e na jurisprudência que defendia a inadmissibilidade desse direito de preferência por a lei não contemplar no seu texto o direito de preferência de arrendatário de parte alíquota sobre a totalidade do prédio urbano indiviso e, também, porque constituído o direito de preferência do arrendatário sobre a sua condição de locador de um determinado e concreto arrendado, excederia esse fundamento a possibilidade de ele adquirir através da preferência a totalidade do imóvel constituído por várias partes integrantes arrendadas ou arrendáveis. - Com o NRAU e a redação do art.1091 do CCivil passou a ser unânime na jurisprudência do STJ o entendimento de segundo o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado não tendo o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada. - Tendo presente que à situação em concreto se aplica a Lei 63/77 e que a realização da venda do imóvel teve lugar em 1984 a interpretação desses normativos deve ser realizada tendo atenção às condições especificas do tempo em que são aplicados e estas condições determinam que entendamos, mesmo no âmbito de tais normativos que o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal não tem direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada, inscrevendo-nos na corrente de entendimento jurisprudencial que era minoritária e que, veio a evoluir para a que hoje é unanime no Supremo. … … Decisão Pelo exposto, acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar procedente a revista e em consequência, revogar a decisão recorrida, julgando improcedentes os pedidos formulados na ação. Custas pelos recorridos Lisboa, 13 de outubro de 2022 Relator: Cons. Manuel Capelo 1º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Tibério Nunes da Silva 2º adjunto: Sr. Juiz Conselheiro Nuno Ataíde das Neves |