Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | PAULO FERREIRA DA CUNHA | ||
Descritores: | ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS PROIBIÇÃO DE CONFIANÇA DE MENORES E INIBIÇÃO DE RESPONSABILIDADES PARENTAIS PODERES DE COGNIÇÃO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA MEDIDA CONCRETA DA PENA PENA ÚNICA | ||
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Data do Acordão: | 09/28/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I - Condenado a 14 anos de prisão por crimes de abuso sexual perpetrados nas pessoas de duas filhas menores, inibição do exercício de responsabilidades parentais e indemnizações às vítimas, o recorrente recorreu para a Relação (que confirmou a sentença) e ulteriormente para este STJ. Em extensas Conclusões, o recorrente considerou que o acórdão recorrido enfermaria de incorreta decisão sobre a matéria de facto, com violação do princípio in dubio pro reo, que conexionou com a alegação de que não teria sido levado na devida conta o depoimento que a mãe das vítimas prestou durante o julgamento na 1.ª instância. Entendeu ainda que o tribunal teria errado na interpretação e aplicação do direito, que a medida concreta da pena aplicada seria excessiva, e que não deveria ter sido arbitrada compensação às menores. II - Porém, atentos os limites legais do âmbito do recurso para o STJ, o objeto do presente acórdão apenas pode incidir sobre a medida da pena única. É sabido que, segundo o art. 432.º, n.º 1, do CPP, se pode recorrer para o STJ (inter alia, naturalmente, centrando-nos no que agora importa): “b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art. 400.º”. Ora o art. 400.º, n.º 1, do CPP veda a recorribilidade para o STJ decisões de dupla conformidade condenatória em que a pena aplicada não é superior a 8 anos de prisão, conforme refere a al. f), preceituando a inadmissibilidade de recurso: “f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;”. Todas as penas parcelares em que o recorrente foi condenado são inferiores à aludida fasquia dos 8 anos de prisão. Pelo que não pode haver recurso de nenhuma delas. Há inúmera jurisprudência nesse sentido. III - Estando, por razões de competência, o STJ impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, encontra-se do mesmo modo defeso de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão. Estão também excluídos da apreciação vícios da decisão indicados no art. 410.º do CPP nulidades e aspetos relacionados com o julgamento dos crimes que constituem o seu objeto, aí se incluindo apreciação da prova, qualificação jurídica dos factos e determinação da pena, inter alia. Não é aqui legalmente possível curar de quaisquer questões subjacentes ou emergentes, sejam elas substantivas, processuais, ou mesmo de constitucionalidade, desde que, como é o caso, afirmem com o cerne da questão decidida (que é, na verdade, já res judicata) uma conexão tão profunda que como que se acolham à sombra da decisão já tomada, confirmativa da decisão proferida em 1.ª instância. Cf. acórdão STJ de 26.06.2014, apud acórdão do STJ de 27.05.2015, Proc.º n.º 352/13.2 PBOER.L1.S1; acórdão deste STJ, de 24-02-2021, Proc.º n.º 7447/08.2TDLSB.L1.S1; ac. STJ de 22-09-2021, Proc.º n.º 90/16.4JBLSB.C1.S1. IV - A regra fundamental (dir-se-ia trave-mestra) do nosso sistema de recurso para o STJ é a do recurso da matéria de direito (cf. art. 434.º do CPP). Não está, porém, vedado a este tribunal o conhecimento, em situações específicas, de matéria de facto. O STJ pode, oficiosamente, conhecer de eventuais vícios da decisão recorrida (n.º 2 do art. 410.º do CPP), os quais devem emergir do texto da decisão recorrida, por si só ou em combinação com as regras da experiência, se a sua sanação se revelar necessária, no conhecimento do mérito do recurso. Pode (e deverá) o STJ apreciar os vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP quando tal se revele indispensável para proferir a decisão de direito (cf. o acórdão de fixação de jurisprudência 7/95, publicado no DR, I série A, n.º 298, de 28-12-1995). Ou seja, o direito que se quer justamente apurar clama pela justa apreciação do facto, não se podendo conformar com deficiências ou lacunas graves no seu apuramento. Mas só quando realmente haja de, por esse motivo superior, abdicar da regra geral da especialidade da função do STJ, que é de conhecimento de direito. V - Analisando detidamente o acórdão recorrido, não se evidencia (nem sequer vislumbra) qualquer vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, nem erro notório na apreciação da prova, suscetíveis de afetar a decisão de direito, e que por essa razão devesse este tribunal conhecer. Foi integralmente observado o disposto nos arts. 97.º, n.º 5, e 374.º, n.º 2, do CPP, havendo aliás sido expostos integralmente os motivos de facto e de direito da decisão condenatória. VI - A intervenção do STJ no controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa (cf. acórdão deste STJ de 2010-09-23, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1, com inúmera jurisprudência). Tem-se assim considerado que a pena se deve manter quando se revele, em geral, o acerto dos vários enfoques analíticos e judicatórios em questão (v.g. ac. STJ, Proc. n.º 14/15.6SULSB.L1.S1 - 3.ª Secção, 19-09-2019). VII - Tendo presentes os critérios legais e princípios de proporcionalidade (balizados doutrinal e jurisprudencialmente), a pena única atribuída não merece reparo. Os limites ou balizas da pena a aplicar estariam dada a panóplia de crimes praticados e as respetivas penas parcelares, entre os 6 anos de prisão (correspondente à pena parcelar mais elevada), e os 164 anos e 2 meses de prisão, valor correspondente à soma de todas as penas aplicadas aos vários crimes. Porém, com o limite inultrapassável de 25 anos de prisão, determinado pelo n.º 2 do art. 77.º do CP. Segundo o art. 77.º, n.º 1, do CP - na “medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” – tem sido unânime a doutrina e a jurisprudência do STJ quanto à necessidade de atender à imagem global dos factos, extraindo todas as conexões que relevem para apurar, numa dimensão unitária, a gravidade do ilícito total e a personalidade que é possível extrair da interconexão dos factos criminosos (cf., v.g., ac. do STJ, de 03-10-2019, Proc. n.º 2072/13.9JAPRT.1.S1). VIII - A sentença proferida é justa, adequada, proporcional e necessária. Os factos são plúrimos, o arguido atuou com dolo direto e intenso, a ilicitude e culpa elevadas. Utilizando as vítimas como meros objetos de satisfação dos seus intuitos libidinosos e de supremacia ou afirmação de poder. E a personalidade do arguido não é de molde a tranquilizar: o hábito de alcoolismo poderá ser potenciador de novos ilícitos. Avulta na personalidade do arguido, que exala dos factos, indiferença e até cinismo, “sem entraves de consciência nem preocupação com as consequências dos seus actos”. IX - Assim, nunca poderia cogitar-se a aplicação de uma pena única que pudesse vir a ser tão baixa que colocasse em risco os limites mínimos de prevenção. Como seria o caso de uma pena que consentisse a suspensão da sua execução, como pretendido pelo recorrente. Exige-se, pois, quer em prevenção especial quer em prevenção geral, e não ultrapassando a sua culpa, uma pena não abaixo do razoável para manter as expetativas sociais de defesa da legalidade. X - Tudo ponderado, a pena aplicada não se revela desproporcional nem contrária às regras da experiência, nem às exigências de prevenção e não excede a culpa do arguido. No intervalo entre 6 e 25 anos, 14 anos é uma pena abaixo do nível médio, matematicamente possível, sendo que o facto global é grave e há perigo de reincidência pela personalidade do arguido, remetendo para elevadas necessidades de prevenção geral e especial. Os parâmetros estabelecidos pelos critérios legais ínsitos nos arts. 40.º, 71.º e 77.º do CP foram assim respeitados. Pelo que a pena única se revela adequada e proporcional à gravidade e pluralidade dos factos e ao nível de perigosidade do agente. Não podendo, consequentemente, afirmar-se existir desproporcionalidade no quantum da pena do cúmulo jurídico operado, foi mantida a pena, confirmando-se o acórdão recorrido. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I Relatório 1.O arguido AA, mais detidamente identificado nos autos, foi condenado: a) pela prática, em autoria material e concurso efetivo, de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo art.º 171 n.º 1 e 2 e 177 n.º 1 a) do Código Penal (ofendida BB, aos 6 anos de idade) na pena de 6 anos de prisão; de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo art.º 171 n.º 1 e 177 n.º 1 a) do Código Penal (ofendida BB, aos 8 anos de idade) na pena de 2 anos e 4 meses de prisão; de trinta crimes de abuso sexual de criança, previstos e punidos pelo art.º 171 n.º 1 e 2 e 177 n.º 1 a) do Código Penal (ofendida BB) na pena de 5 anos de prisão por cada crime; de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo art.º 171 n.º 1 e 177 n.º 1 a) do Código Penal (ofendida CC) na pena de 2 anos e 4 meses de prisão; de um crime de abuso sexual de criança, previsto e punido pelo art.º 171 n.º 1 e 177 n.º 1 a) do Código Penal (ofendida CC) na pena de 2 anos de prisão; de três crimes de abuso sexual de criança, previstos e punidos pelo art.º 171 n.º 3 b) e 177 n.º 1 a) do Código Penal (ofendida CC) na pena de 6 meses de prisão por cada um dos crimes. Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 14 anos de prisão. b) foi ainda condenado na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, nos termos previstos pelo art.º 69.º -C n.º 3 Código Penal, relativamente à menor BB, por 14 anos, e na pena acessória de inibição do exercício de responsabilidades parentais, nos termos previstos pelo art.º 69.º-C n.º 3 Código Penal, relativamente à menor CC, por 7 anos. c) e ainda foi condenado a pagar à ofendida menor BB a quantia de 15.000,00€ (quinze mil euros) a título de reparação pelos danos sofridos, com juros contados desde a data desta decisão até ao pagamento, nos termos do disposto no art.º 82.º-A n.º 1 Código de Processo Penal, e à ofendida menor CC a quantia de 8.000,00€ (oito mil euros), a título de reparação pelos danos sofridos, com juros contados desde a data desta decisão até ao pagamento, nos termos do disposto no art.º 82.º-A n.º 1 Código de Processo Penal, bem como no pagamento da taxa de justiça que se fixou em 3 UCs. 2.O arguido interpôs recurso desta decisão para o Tribunal da Relação ..., que confirmou integralmente a decisão recorrida. 3. Interpõe ainda, inconformado, o presente recurso para este Supremo Tribunal de Justiça. 4. São as seguintes as Conclusões da sua motivação de recurso: “1 - O presente Recurso, tem como objeto toda a matéria de direito do douto Acórdão proferido nos presentes autos, que mantém a decisão de condenar o aqui Recorrente /Arguido, à prática da pena de 14 ( catorze ) anos de prisão efetiva, em virtude de abusos sexuais perpetrados sobre as suas filhas menores, bem como ao pagamento da quantia de 15.000,00 € à menor BB e quantia de 8.000,00 € à menor CC; II - DA VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DA INOCÊNCIA E IN DUBIO PRO REO 2 - Tal como referido, o designado como Recorrente /Arguido, vem acusado da prática de vários crimes de abuso sexual de crianças, perpetrados contra as aqui Ofendias BB E CC, menores e ambas suas filhas.; 3 - Para o efeito, o presente Tribunal a quo decidiu manter a decisão de que o aqui Recorrente/ Arguido, agiu de forma consciente e com intenção, tendo em conta, a idade e a condição da filha, tendo para o efeito chamado a BB para dentro do carro estacionado no largo junto a casa, abriu o fecho das calças, retirou e exibiu o seu pénis, pediu à menor que nele desse um beijo e introduziu o seu órgão na boca da menor, agarrando a mesma pela cabeça, ao mesmo tempo que efetuava movimentos; 4 - Para o Tribunal a quo,” tal conduta repetiu-se depois em número indeterminado de vezes, dentro da residência, nos termos referidos no facto 6, sendo que os actos passaram a ser precedidos da exibição de filmes pornográficos de anime, o que aconteceu até altura indeterminada”; 5 - Em cada uma dessas 30 actuações , “o arguido retirou e exibiu o seu pénis e introduziu-o na boca da menor, para alémde ao longo desse tempo ter apalpado o corpo da filha, mamas, zona genital e nádegas, se ter roçado nela e ainda a ter culpado pelo seu pénis erecto, tendo lhe ainda feito após os 10/11 anos, insistências para amanutenção de relações sexuais (de cópula, querendo introduzir a “cabecinha do pénis)”. 6 - No que concerne, à ofendida CC, apurou-se que o arguido de forma deliberada e bem consciente do que fazia, designadamente da idade e da condição de sua filha, chamou a CC ao quarto, estando ele despido da cinta para baixo e exibiu à filha de 8 anos filmes pornográficos de adultos em práticas sexuais, designadamente a manter relações de sexo oral, peticionando à menor para lhe beijar a pila o que ela fez, instando depois a menor a agarrar-lhe o pénis e a efectuar movimentos ascendentes e descendentes com as mãos, o que a mesma acatou e efectuou, ao mesmo tempo que o arguido lhe apalpava, por cima da roupa, a zona das mamas”; 7 - Todavia, temos que o presente Acórdão proferido pelo presente Tribunal a quo, omitiu de forma clara, a apreciação do princípio da presunção de inocência e do princípio in dúbio pro reo. 8 - Para tal, o presente Acórdão não levou em linha de conta o depoimento prestado pela mãe das menores, o que não se compreende dado que, o referido pela menor BB aconteceu por diversas vezes, estando a sua mãe em casa, fato esse que foi omitido propositadamente pela menor aquando da sua declaração para memória futura; 9 - A verdade é que tal depoimento prestado pela mãe das menores demonstrava-se essencial para que, o Recorrente fosse ilibado das acusações que lhe eram imputadas, ou caso assim não entendesse, criava sérias dúvidas acerca da prática dos fatos, o que ilibava o Recorrente da prática de tais fatos; 10 - Para o efeito, tal depoimento da mãe das menores foi considerado pelo Tribunal a quo, como sendo uma opinião pessoal , parcial e facciosa, e não acredita que o Arguido tenha praticado os fatos e encontra-se em completa negação , desvalorizando ainda o relato presencial da filha , e sendo fundado numa mera crença, e estado de negação de quem não quer ver os fatos”; 11 - Ora, o depoimento da mãe das menores, foi desconsiderado, em virtude de a mesma referir que quando se encontrava em repouso absoluto em virtude da gravidez dos seus filhos gémeos, e que por isso, não podia afirmar com veemência que a sua filha BB estaria sempre à sua beira; 12 - Por seu lado, desconsiderou também o presente Tribunal a quo, o depoimento da mãe das menores, quando a mesma referiu que, sendo a casa onde habitam pequena, que se o Recorrente / Arguido se levantasse da cama, e se dirigisse ao quarto das menores que, a mesma se aperceberia; 13 - Contrariamente, ao aludido, o depoimento da mãe das menores é preciso e categórico, relatando os fatos como estes ocorreram de fato, e apenas foi desconsiderado por estar em contradição, com o referido pela menor BB; 14 - Temos que, às imprecisões por parte da menor BB, são classificadas como “ alguma falta de exatidão no relato ser normal como consequência do passar do tempo; da situação traumática vivida e de vergonha em proceder ao relato”; 15 - Não se entendendo, como é que o presente Tribunal a quo, adotou uma dualidade de critérios, para os dois depoimentos, quando o depoimento prestado pela menor, dado de forma livre e espontânea, nunca revelou qualquer vergonha, e tendo -o feito da forma mais natural possível; 16 - Pelo que, a mãe das menores ao ter sido questionada, e contando o que realmente se passava como poderá ser classificado como sendo parcial e facciosa, quando apenas a mesma contou a verdade, e que claramente criava sérias dúvidas quanto aos fatos de que o Recorrente vinha acusado. 17 - Assim, a fundamentação apresentada pelo Tribunal a quo, que leva à desconsideração do depoimento da mãe das menores, apenas revela que não foi tido em conta a certeza e veemência que o mesmo foi prestado, levando-nos a concluir que esta desconsideração, é apenas consequência de construção aparentemente lógico dedutiva, completamente desfasada e, inclusive, contrária à factualidade prestada; 18 - Pelo que, o Tribunal a quo sustentou a sua decisão em fatos não provados e nem sequer alegados, prejudicando, assim o silogismo judiciário; 19 - É evidente assim que, a insuficiência para a decisão da matéria de fato provada, leva-nos claramente à violação do princípio in dúbio pro reo; 20 - Por conseguinte, é notório que, nos presentes autos, foi pelo menos criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos fatos que suportaram a condenação do Recorrente! 21 - Claramente, diferente do referido no Acórdão, dado que, n ão só ficou cabalmente provado que o Recorrente não praticou os crimes em que foi condenado, como foi criada uma claríssima dúvida razoável quanto aos fatos pelo quais o Arguido foi condenado e quanto à culpa deste, pela que a sua absolvição aparece como sendo a única atitude legitima a ser adotada; 22 - Pelo exposto, o presente Tribunal a quo , violou , ainda o disposto no nº 2 do artigo 32º da Constituição da República Portuguesa; AINDA, SEM PRESCINDIR, III - DO NÃO PREENCHIMENTO DOS ELEMENTOS DO CRIME DE ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS 23 - Tendo por base, os elementos descritos, o Recorrente não praticou qualquer tipo de crime de abuso sexual de crianças.; 24 - O artigo 171º nº 1 do C.P, estabelece que “ quem pratica um crime de abuso sexual de criança quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa. Já nos termos do n.º 2 a pena a aplicar é agravada se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, também é é punido, mas agora nos termos da alínea a) do n.º 3 do artigo 171.º, quem importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo 170.º, a saber: quem praticar perante o menor actos de carácter exibicionista ou o constranger a contacto de natureza sexual”; 25 - Porém, “ o conteúdo sexual do acto pode assumir diferente natureza, o que alcança directo reflexo ao nível da moldura abstracta da pena a aplicar, sendo que para o que nos interessa, delimitar entende-se “ por ato sexual de relevo, por um lado, e, por outro, por cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos”. 26 - O elemento objetivo do tipo de ilícito em apreço exige, igualmente que, “ o acto sexual se possa considerar de relevo, o que impõe ao intérprete que afaste da tipicidade não apenas os actos insignificantes ou bagatelares, mas que investigue do seu relevo na perspectiva do bem jurídico protegido, o que equivale a dizer que dizer que importa que o acto represente um entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima, exigindo -se, ainda igualmente que o acto seja praticado com a vítima ou na vítima. Nessa conformidade, não será punido nos termos do n.º 1 do artigo 171.º do CP, mas apenas como acto exibicionista que integra a alínea a) do n.º 3 deste preceito – por referência ao crime de importunação sexual previsto e punido no artigo 170.º do CP –, o constrangimento a acto sexual de relevo praticado pelo agente ou por terceiro(s) perante a vítima”; 27 - Pese embora, a Lei Penal noutros tipos de abuso sexual destaque o ato sexual de relevo, a verdade é que o mesmo não acontece no artigo 171 º do C.P, isto é, não fornece uma densificação do conceito, nem casuística exemplificativa; 28 - O que leva a que, quem julga tenha margem de apreciação em função das realidades sociais; das conceções dominantes e da própria evolução dos costumes; 29 - O tipo legalem análise criminaliza, assim, a «importunação sexual» de outra pessoa através de duas condutas distintas: a prática, perante outra pessoa, de atos de caráter exibicionista; e o constrangimento de outra pessoa a contacto de natureza sexual, sendo que após a revisão do Código Penal de 2007, em matéria de criminalidade sexual, e com esta nova criminalização, a lei penal passou a distinguir, atenta a gravidade que representam em relação ao bem jurídico protegido, três categorias de atos: num primeiro plano, e como atos menos graves, estão os “atos de caráter exibicionista” e “os contactos de natureza sexual”; num segundo plano, estão os atos que integram o conceito de “ato sexual de relevo”; num terceiro plano estão os atos sexuais mais graves ou, na designação de Figueiredo Dias, “especiais atos sexuais de relevo” (cópula, coito anal e oral e penetração vaginal e anal com objetos ou partes do corpo)”, in Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 105/2013, de 20 fevereiro 2013; 30 - Admitindo-se, por mera hipótese académica que tendo o Arguido inerente à menor BB “ procedido ao ato de abrir o fecho das calças, retirar e exibir o pénis e introduzi-lo na boca da menor , assim como apalpar as suas mamas , a sua zona genital e as nádegas, quer por baixo da roupa que vestia , em contacto directo com a pele, quer por cima da roupa, roçar a zona genital nas costas da menor ou aproximar-se pela frente, encostar-se à zona genital desta e exibir-lhe o seu pénis erecto e dizer-lhe “olha o que tu fizeste!”, ocorreram pelo menos entre 2016 anos, até pelo menos 2019, quando a menor completou 12 anos, e pelo menos 30 vezes, coincidindo com as ausências da progenitora em tarefas escolares”; 31 - No que concerne, à menor CC “ apurou-se , depois que numa ocasião subsequente o arguido voltou a exibir à menor filmes de adultos em práticas sexuais, designadamente a manter relações de sexo oral, ao mesmo tempo que lhe apalpava as mamas; 32 - Contudo, tais comportamentos, não tem o relevo exigido pelo n.º 1 do artigo 171.º do Código Penal, porque ocorreu apenas cinco vezes, com cada uma das referidas crianças, (ii) porque ocorreu em público e porque, como primeira abordagem do género, é suscetível de ter deixado dúvida, em meninas tão jovens, quanto ao seu propósito; 33 - Na eventualidade de tais comportamentos terem sido praticados pelo Recorrente não entravam de forma significativa a livre determinação sexual das vítimas; 34 - Os sobreditos comportamentos do aqui Recorrente / Arguido, integram a previsão da alínea a) do n.º 3 do artigo 171.º do Código Penal, ou seja, crimes de importunação sexual, na modalidade de constrangimento a contacto de natureza sexual; 35 - A forma como eventualmente, o Recorrente / Arguido tocou as menores não reveste natureza sexual, sendo que o Recorrente acariciou por cima das roupas que as mesmas envergavam, na zona do peito/tronco, barriga e ombros; 36 - As carícias têm origem etimológica de festas e mimos, que se traduz num toque suave com a mão , como demonstração de afeto ou carinho! 37 - Já no que se refere ao elemento subjetivo do tipo de ilícito em apreço, “ exige a verificação de dolo , pelo menos sob a forma de dolo eventual, necessário relativamente à totalidade dos elementos constitutivos do tipo objetivo de ilícito”; 38 - No caso em apreço a verdade é que não se verifica, a prática do crime de abuso sexual de crianças, visto não se verificar nem o elemento objetivo , nem o elemento subjetivo subjacente ao crime em causa; 39 - Face ao exposto, os sobreditos comportamentos do Arguido não integram a prática de qualquer crime; AINDA SEM PRESCINDIR, IV - DA DESPROPORCIONALIDADE MEDIDA DA PENA APLICADA 40 - A pena única aplicada ao Recorrente sempre que ser reduzida, pois foi aplicada partindo de uma moldura máxima que excede a legalmente prevista na lei, em violação do que se encontra estatuído na lei processual penal, art. 77.º CP; 41 - Na decisão recorrida, no que toca à operação de determinação da pena única e respetiva fundamentação, não consta qualquer avaliação da personalidade do arguido ou da sua consideração conjunta com os factos; 42 - Atentando, no artigo 71 º nº 1 do C.P, para a determinação da medida da pena está o Tribunal vinculado a critérios definidos em função da culpa do agente e de exigências de prevenção, devendo para o efeito o Tribunal atender a todas as circunstâncias que possam ser consideradas a favor ou contra o agente, entre as quais se encontram as referidas, de forma não taxativa, nas alíneas a) a f) do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal; 43 - Como elementos base, para a determinação da pena contam-se o grau de ilicitude do facto, o modo de execução e as respetivas consequências, sendo importante referir que nos termos do n.º 1 do artigo 40.º do Código Penal, a aplicação de uma pena visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do autor do crime na sociedade, não podendo, em caso algum, ultrapassar a medida da culpa (n.º 2); 44 - Na determinação das penas, considerando as circunstâncias elencadas no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal , com destaque, ainda, para as circunstâncias em que os crimes ocorreram, para a mediana gravidade das suas consequências, para o carácter primário da delinquência, e para a personalidade do Arguido; 45 Face ao exposto, deverá ser aplicado ao aqui Recorrente uma pena mais equilibrada e adequada a cumprir as suas finalidades, e não tão exagerada como foi aplicada ! V - DO ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO ÀS MENORES 46 - Tendo por base, o supra alegado, e não tendo o Recorrente praticado os crimes em que foi condenado, deve o arbitramento da indemnização às menores ser julgado improcedente por não provado. Nestes termos e nos melhores do DIREITO, deve ser dado provimento ao presente RECURSO, e por via disso ser revogado o Acórdão recorrido , e em consequência o Recorrente ser ABSOLVIDO , do crime abuso sexual de crianças nos termos do artigo 171 e artigo 177º do C.P., em que foi condenado, bem como do respetivo ARBITRAMENTO DE REPARAÇÃO ÀS MENORES. Fazendo -se assim, INTEIRA E SÁ JUSTIÇA !” 5. O Digno Procurador-Geral Adjunto no tribunal a quo pronunciou-se em significativa resposta, concluindo que a decisão recorrida “se mostra devidamente fundamentada de facto e de direito e não viola qualquer norma jurídica, pelo que deverá ser mantida improcedendo o recurso do arguido”. 6. Neste Supremo Tribunal de Justiça, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer, tendo concluído: “1) dever ser rejeitado, por legalmente inadmissível, o recurso interposto pelo arguido AA, no que se refere à sua condenação pelos crimes de abuso sexual de criança, medida das penas parcelares aplicadas e todas as demais questões com eles relacionadas, e, 2) dever ser julgado improcedente o recurso, na parte relativa à medida da pena única imposta”.
7. Foi cumprido o disposto no art. 417.º, n.º 2 do CPP, tendo-se o Recorrente manifestado nos seguintes termos: “AA , Recorrente, nos autos à margem referenciados , notificado que foi do prazo de 10 dias para pronunciar-se acerca do parecer do MP, vem prescindir daquele prazo. Nestes termos e nos melhores DO DIREITO, requer-se a V. Exa que se digne a admitir o supramencionado, seguindo-se os demais termos legais.” Efetuado o exame preliminar, remeteu-se o processo a vistos legais e de seguida à Conferência, de acordo com o disposto no art. 419.º do CPP. II Fundamentação: Do Acórdão recorrido Particularmente relevante se afigura a factualidade do Acórdão recorrido, sem prejuízo, como é óbvio, da atenção que merece a integralidade do mesmo: «…– Factos Provados Discutida a causa, provou-se que: 1. O arguido AA é pai de BB, nascida em .../.../2007 e de CC, nascida em .../.../2011. 2. As menores são filhas do arguido e de DD, com quem o mesmo é casado desde 2006, tendo o casal fixado residência na Rua ..., na .... 3. Para além das duas menores supra identificadas, integravam o mesmo agregado e residiam na mesma casa, a referida em 2., os filhos gémeos do casal, nascidos a .../.../2013. 4. Quando a menor BB tinha cerca de 6 anos de idade, o arguido chamou-a para o interior do Opel ... da família, de cor ..., estacionado num largo próximo da residência, onde ouvia música cristã, abriu o fecho das calças, retirou e exibiu o seu pénis, pediu à menor que nele desse um beijo e introduziu o seu órgão na boca da menor, agarrando a mesma pela cabeça, ao mesmo tempo que efectuava movimentos. 5. Explicou à BB que era normal e que todos os pais faziam aquilo às suas filhas. 6. Tal actuação repetiu-se depois, até 2016, em número indeterminado de vezes, no interior da residência, no quarto, na cama do casal ou na cozinha, sempre que a progenitora não estava em casa. 7. Esses actos passaram, após aquela primeira ocasião, a ser precedidos da exibição à menor de filmes pornográficos, de “anime” (banda desenhada com representações realísticas de menores), o que ocorreu até altura indeterminada. 8. Quando a menor BB tinha 8 anos e se encontrava no seu quarto, durante a noite, o arguido abeirou-se da mesma, colocou a língua em contacto com zona da vagina da filha, efectuando movimentos, durante alguns minutos, após o que se ausentou do quarto. 9. O arguido pretendeu repetir a conduta noutra ocasião, mas a menor reagiu, fingindo ter acordado assustada e o arguido acabou por se ausentar do quatro sem perpetrar os seus intentos. 10. À medida que a menor foi crescendo o arguido passou também a apalpar as suas mamas, a sua zona genital e as nádegas, quer por baixo da roupa que vestia, em contacto directo com a pele, quer por cima da roupa. 11. Ainda nas mesmas ocasiões, na residência, o arguido aproximava-se da menor, colocando-se nas suas costas, altura em que roçava a sua zona genital nas nádegas da menor BB. 12. Outras vezes, aproximava-se pela frente da menor, encostava-se à zona genital da mesma, após o que lhe exibia o seu pénis erecto, dizendo-lhe que tal apenas acontecia por culpa da menor, dizendo-lhe “olha o que tu fizeste!”. 13. Os actos acabados de descrever, em 4. (abrir o fecho das calças, retirar e exibir o pénis, introduzi-lo na boca da menor, agarrando a mesma pela cabeça, ao mesmo tempo que efectuava movimentos) e em 10., 11. e 12., repetiram-se, no interior da residência, designadamente no quarto do arguido, na cama do casal, pelo menos 30 vezes, desde 2016 (Novembro) até pelo menos 2019, quando a menor BB completou 12 anos, coincidindo com as ausências da progenitora para os seus estudos em horário nocturno. 14. De 2016 a 2019 a mãe das menores frequentou o ..., em horário nocturno, pelo menos 2 vezes por semana e a partir de 2019 passou a frequentar a ... diariamente, também em horário nocturno. 15. O arguido chegou ainda, em várias ocasiões, seguramente após os 10/11 anos da menor, a dizer-lhe que queria ter relações sexuais com a mesma, dizendo-lhe que ela ia gostar e que ia ser bom, sendo que a menor inventava desculpas para não se sujeitar a tais práticas, dizendo-lhe até que estava com o período menstrual. 16. Ainda assim, o arguido insistia, dizendo-lhe que apenas iria introduzir a “cabecinha”, referindo-se ao seu pénis. 17. Após perfazer 11 anos de idade, a menor começou a recusar, às vezes, sujeitar-se aos actos de natureza sexual que lhe eram infligidos pelo arguido e, por essa razão, caso a menor não satisfizesse os intentos e desejos do arguido, o mesmo obrigava-a a efectuar tarefas domésticas como “castigo” para tal recusa. 18. E a menor percebeu que o arguido começou a chamar a sua irmã mais nova, CC, desconfiando que o mesmo também mantinha práticas sexuais com aquela. 19. No dia 27.05.2021 a menor BB revelou os factos à sua progenitora, que nada fez, não denunciando os factos, o que apenas veio a suceder em 20-07-2021, por denúncia efectuada pela sua avó materna e pela sua tia. 20. Pelo menos no período situado entre o terceiro quadrimestre de 2019 e até 15.02.2020 o arguido igualmente sujeitou a sua filha CC, então com 8 anos de idade, a práticas e contactos sexuais, o que ocorreu em 5 ocasiões distintas, sempre no interior da habitação familiar, no quarto do arguido, ao final da tarde, antes ou após o jantar, aproveitando a ausência da progenitora, que desde o ano de 2019 estudava à noite, na .... 21. Na primeira ocorrência o arguido chamou a menor ao quarto, estando ele despido da cinta para baixo e exibiu à filha de 8 anos filmes pornográficos de adultos em práticas sexuais, designadamente a manter relações de sexo oral. 22. Após pediu à menor e para lhe “beijar a pila”, o que aquela fez. 23. Instou despois a menor a agarrar-lhe o pénis e a efectuar movimentos ascendentes e descendentes com as mãos, o que a mesma acatou e efectuou, ao mesmo tempo que o arguido lhe apalpava a zona das mamas. 24. Nessa situação, quando o arguido percebeu que a progenitora estava a chegar e a entrar em casa, disse à menor para não contar nada do sucedido à mãe, nem à sua irmã, nem aos avós, pois caso contrário iria preso. 25. Numa outra ocasião, dentro daquele período temporal, o arguido voltou a exibir à menor, a partir do telemóvel, os filmes pornográficos de adultos do tipo atrás referido, ao mesmo tempo que lhe apalpava a zona das mamas. 26. Voltou a chamar a menor ao quarto e a exibir-lhe os filmes pornográficos do tipo descrito em 21. em três ocasiões mais, naquele período temporal. 27. O arguido praticou os factos descritos aproveitando-se do ascendente e da relação de parentalidade que mantinha com as menores, por ser pai das mesmas, com quem se encontrava numa relação familiar e de coabitação, e, apesar disso, não se coibiu de praticar tais actos. 28. Ao agir da forma descrita, o arguido actuou com a intenção que concretizou de dar satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, utilizando, para tanto, as menores, suas filhas, em actos sexuais, designadamente através de apalpões no corpo, actos de masturbação, sexo oral, por meio de conversas e expondo-as a actividades sexuais, indiferente às suas idades e às consequências de tal actuação sobre as mesmas. 29. E sabia também o arguido que ao actuar da forma descrita, perturbava e estava a prejudicar, de forma séria, o desenvolvimento da personalidade das menores BB e CC, suas filhas, menores de 14 anos, que ofendia os seus sentimentos de criança, pondo em causa o seu são desenvolvimento psicológico, afectivo e da consciência sexual daquelas. 30. O arguido agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, ciente de que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei. Outros factos apurados em audiência 31. O arguido está em prisão preventiva à ordem dos autos desde 14.12.2021, tendo sido afastado da residência familiar em Julho de 2021, por decisão de familiares das menores e contra a vontade da mãe destas. 32. A mãe das menores, DD, pretende retomar a vida matrimonial com o arguido, tendo sempre mantido o contacto com este, através de visitas, fazendo-se acompanhar pela filha CC pelo menos até Outubro de 2021. 33. A menor BB vive com os avós maternos na Rua ..., ...,º andar, na ... e a menor CC vive, durante a semana, com a mãe e irmãos, no ... da mesma residência (descrita em 2). 34. O exercício das responsabilidades parentais das duas menores foi regulado, por acordo, por sentença homologatória de 01.02.2022, incumbindo estas responsabilidades aos avós maternos, em primeira linha. 35. A avó materna, em audiência, declarou nada ter a opôr à atribuição de reparação/indemnização às netas, não tendo havido por outro meio manifestação expressa de oposição à tal atribuição. 36. O arguido não tem antecedentes criminais 37. O arguido, nascido no ..., provém de família composta pelos pais e 6 irmãos, com relacionamento pautado por laços carinhosos e gratificantes. 38. A sua infância feliz foi perturbada pela saída do pai do agregado, por discórdias conjugais, acontecimento vivenciado pelo próprio como doloroso e profuso de sentimentos de confusão, de abandono e de desvalorização da sua pessoa, associado aos comportamentos de revolta e à ocorrência de dificuldades de realização académica, de insucesso escolar, de alguns comportamentos de rebeldia e de uso de haxixe. 39. O pai, porém, manteve a proximidade aos descendentes e contribuiu com as devidas pensões de alimentos às crianças aos cuidados da mãe, tendo a fratria iniciado precocemente actividade laboral contributiva para a satisfação das necessidades da família. 40. Contra a sua vontade, AA abandonou a escolarização, desprovido de qualquer qualificação profissional e, habilitado com o 4º ano, passou a desempenhar, ainda em criança, as funções de ... numa fábrica de ..., entretanto, seguidas do exercício das funções de .... 41. A sexualidade era assunto familiar interdito pelo que a educação sexual de AA decorreu através da descoberta própria quer de modo indirecto, por primazia dos meios de comunicação como as novelas, as revistas e alguns filmes bem como, pelo questionamento junto dos irmãos mais velhos, dos pares e alguma partilha de experiências sexuais com pares femininos. 42. AA sofreu a perda de um filho, de relacionamento amoroso que manteve com uma anterior namorada. 43. O arguido chegou a Portugal em 2004, então com cerca de 26 anos de idade, onde tinha já dois irmãos e um outro em ..., casado com uma prima de DD, nascida a .../.../1989, que assim conheceu. 44. Casaram em 11.11.2006, e passaram a residir no ... e os sogros no andar de cima da actual morada, sita na Rua ... .... ..., em propriedade pertencente aos sogros e com espaço exíguo. 45. Durante os primeiros dois anos de permanência em Portugal, AA exerceu a actividade de ... tendo, posteriormente, estabelecido contrato de trabalho com a E..., S.A, actividade profissional mantida até ser detido. 46. O período de gravidez dos filhos gémeos, nascidos a .../.../2013, foi de risco, e obrigou a intervenção cirúrgica, tendo DD que permanecer em repouso até ao nascimento ….. dos filhos, com posterior agravamento do seu estado de saúde. 47. Estes acontecimentos foram vivenciados pelo arguido com angústia, desespero e aumento do uso de álcool, problemas negados e escondidos tentando prosseguir com um quotidiano profissional e familiar, de crescente alheamento de uma estratégia de solução e das relações familiares. 48. Após terem sido conhecidos pela família os factos pelos quais está acusado, AA aproveitou o seu período de férias laborais para se alojar em ... no domicílio do seu irmão EE, ali tendo permanecido e exercido actividade laboral para amealhar o dinheiro suficiente para arrendar o quarto na ..., sito na Rua ... ..., no qual permaneceu alguns meses antes da privação da liberdade. 49. AA projecta retomar o alojamento neste quarto, provavelmente partilhado com o seu irmão FF, e o exercício profissional na referida entidade patronal e, progressivamente, decidir sobre o futuro do seu casamento e filhos, sendo que o retomar da conjugalidade e permanência na habitação conta com a oposição familiar (mas não da esposa) para salvaguarda das vítimas. 50. Em meio prisional o arguido mostra-se disciplinado e demonstra preocupação com este confronto com a justiça penal. 51. Mantém-se ocupado como .... 52. Ainda que reconheça a ilicitude criminal a actos de idêntica natureza aos do presente processo, AA está centrado na sua realidade de privação da liberdade, demonstrando dificuldades em se pronunciar de modo inequívoco sobre as tipologias criminais e em reconhecer a gravidade destas na autodeterminação sexual das vítimas. 53. DD, a esposa, demonstra fragilidade emocional com a sua actual situação familiar e apresenta um discurso centrado em si, nas suas carências económicas e na falta do marido. 54. Recorre constantemente à necessidade de ela própria e de as filhas perdoarem AA, segundo os cânones da religião que professa, focando as dimensões de perdão e de concessão de segunda ou de nova oportunidade ao pai das menores. 55. DD considerava que a dinâmica familiar era adequada, porém, com algumas discussões decorrentes do comportamento de abuso de álcool por parte do arguido, entendendo que a terem acontecido alguns dos factos descritos, no que não acredita, teriam sido ocasionados neste contexto de intoxicação pelo álcool. 56. Na unidade de residência do agregado familiar do arguido e dos seus sogros, onde estão integradas as menores, é desconhecida a actual situação de AA sendo atribuida a sua ausência ao facto de estar a trabalhar por turnos. 57. Mantém o apoio dos irmãos e é bem visto por pessoa amiga do casal. IV Fundamentação Do Direito A Questões Processuais Prévias 1. Do Conhecimento, em geral Não se vislumbram quaisquer motivos que impeçam o conhecimento do recurso por este Supremo Tribunal de Justiça. 2. Do objeto, em geral É consensual que, sem prejuízo do conhecimento oficioso de certas questões legalmente determinadas – arts. 379.º, n.º 2 e 410, n.º 2 e 3 do CPP – é pelas Conclusões apresentadas em recurso que se recorta ou delimita o âmbito ou objeto do mesmo (cf., v.g., art. 412.º, n.º 1, CPP; v. BMJ 473, p. 316; jurisprudência do STJ apud Ac. RC de 21/1/2009, Proc. n.º 45/05.4TAFIG.C2, Relator: Conselheiro Gabriel Catarino; Acs. STJ de 25/3/2009, Proc. n.º 09P0486, Relator: Conselheiro Fernando Fróis; de 23/11/2010, Proc. n.º 93/10.2TCPRT.S1, Relator: Conselheiro Raul Borges; de 28/4/2016, Proc. n.º 252/14.9JACBR., Relator: Conselheiro Manuel Augusto de Matos). B 1. Do pedido do recorrente ao thema decidendum 1.1. Sintetizando, o recorrente considera o seguinte, nas suas extensas Conclusões: a) que o Acórdão recorrido enferma de incorreta decisão sobre a matéria de facto, b) com violação do princípio in dubio pro reo, que conexiona com a alegação de que não teria sido levado na devida conta o depoimento que a mãe das vítimas prestou durante o julgamento na primeira instância; c) que o tribunal errou na interpretação e aplicação do direito; d) que a medida concreta da pena aplicada seria excessiva; e) que não deveria ter sido arbitrada compensação às menores. 1.2. Porém, atentos os limites legais do âmbito do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o objeto do presente acórdão apenas pode incidir sobre a alínea d) do ponto precedente, ou seja, a medida da pena única. De tal se curará já de seguida, em sede de poderes de cognição deste Tribunal. 2. Dos poderes de cognição do STJ, em geral É sabido que, segundo o art. 432.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, se pode recorrer para o STJ (inter alia, naturalmente, centrando-nos no que agora importa): “b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”. Ninguém ignora, na comunidade jurídica, que o art. 400.º, n.º 1, do Código de Processo Penal veda a recorribilidade para o STJ decisões de dupla conformidade condenatória em que a pena aplicada não é superior a 8 anos de prisão, conforme refere a alínea f), preceituando a inadmissibilidade de recurso: “f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;”. Ora todas as penas parcelares em que o recorrente foi condenado são inferiores à aludida fasquia dos 8 anos de prisão. Pelo que não pode haver recurso de nenhuma delas. Têm sido várias vezes citadas na jurisprudência deste Tribunal algumas sínteses jurisprudenciais (com dimensão doutrinal), com importância para a concreta interpretação dos poderes de cognição. Diz-se, com efeito, no Acórdão deste STJ, de 11.03.2020 (Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves): “só é admissível recurso de decisão confirmatória da Relação quando a pena aplicada for superior a 8 anos de prisão, quer estejam em causa penas parcelares ou singulares, quer penas conjuntas ou únicas resultantes de cúmulo jurídico. Irrecorribilidade que é extensiva a todas as questões relativas à atividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação, incluída a fixação da matéria de facto, nulidades, os vícios lógicos da decisão, o princípio in úbio pro reo, a escolha das penas e a respetiva medida. Em suma, todas as questões subjacentes à decisão, submetidas a sindicância, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais, referentes à matéria de facto ou à aplicação do direito, confirmadas pelo acórdão da Relação, conquanto a pena aplicada, parcelar ou conjunta, não seja superior a 8 anos de prisão. Trata-se de jurisprudência uniforme destes Supremo Tribunal, adotada e seguida no recente Ac. de 19/06/2019, desta mesma secção, onde se decidiu: “As questões subjacentes a essa irrecorribilidade, sejam elas de constitucionalidade, processuais e substantivas, enfim das questões referentes às razões de facto e direito assumidas, não poderá o Supremo conhecer, por não se situarem no círculo jurídico-penal legal do conhecimento processualmente admissível, delimitado pelos poderes de cognição do Supremo Tribunal”. E ainda se aduz no Acórdão deste STJ, de 16-03-2021 (Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves): “I - A norma dos artigos 432.º, n.º 1, al. b) e 400.º, n.º 1, al. f) do CPP, consagra a irrecorribilidade de acórdãos da Relação que confirmem a decisão condenatória da 1.ª instância, contanto não tenha sido aplicada pena superior a 8 anos de prisão. II - Salvo disposição legal expressa, as mesmas questões já duplamente apreciadas e uniformemente decididas por tribunais de duas instâncias, não podem legitimar mais uma reapreciação em 2.º grau recurso, pelo STJ. III - Irrecorribilidade extensiva a todas as questões relativas à actividade decisória que subjaz e que conduziu à condenação, incluída a matéria de facto, nulidades, vícios lógicos da decisão, o princípio in dubio pro reo, a qualificação jurídica, a escolha das penas e a respectiva medida. Em suma, todas as questões subjacentes à decisão, submetidas a sindicância, sejam elas de constitucionalidade, substantivas ou processuais.”. Atente-se ainda no Acórdão deste STJ, de 11-03-2021, Relatora Conselheira Helena Moniz: “II - Tendo em conta o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. e), do CPP, onde se impede a possibilidade de recurso das decisões do Tribunal da Relação que apliquem pena de prisão não superior a 5 anos de prisão, e o disposto no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, onde apenas se admite (a contrario) o recurso de acórdãos da Relação que, confirmando decisão anterior, apliquem pena de prisão superior a 8 anos, e sabendo que, segundo a jurisprudência deste STJ, ainda que a pena única seja superior a 8 anos de prisão, se analisa a recorribilidade do acórdão relativamente a cada crime individualmente considerado, necessariamente temos que concluir não ser admissível o recurso das condenações relativas a cada crime, do Tribunal da Relação, quando seja aplicada pena não superior a 5 anos de prisão; e das condenações em pena de prisão superiores a 5 anos de prisão e não superiores a 8 anos de prisão, quando haja conformidade com o decidido na 1.ª instância.”. E analise-se o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 14.03.2018, proferido no Proc.º n.º 22/08.3JALRA.E1.S1 (Relator: Conselheiro Lopes da Mota), de que retomamos a seguinte passagem: “1. Só é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, limitado ao reexame de matéria de direito, de acórdãos das Relações proferidos em recurso que apliquem penas superiores a 8 anos de prisão ou que apliquem penas superiores a 5 anos e não superiores a 8 anos de prisão em caso de não confirmação da decisão da 1.ª instância. Esta regra é aplicável quer se trate de penas singulares, aplicadas em caso de prática de um único crime, quer se trate de penas que, em caso de concurso de crimes, sejam aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) ou de penas conjuntas aplicadas aos crimes em concurso. 2. O regime de recursos para o STJ definido pelas normas dos artigos 400.º, n.º 1, al. e) e f), e 432.º, al. b), do CPP, efectiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam internacionalmente o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos fundamentais (artigos 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais). O artigo 32.º, n.º 1, da Constituição não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição, isto é, de um duplo grau de recurso, em relação a quaisquer decisões condenatórias. 3. Garantido o duplo grau de jurisdição em matéria de facto e em matéria de direito, têm os sujeitos processuais à sua disposição duas vias possíveis de exercer o direito ao recurso: querendo impugnar a decisão em matéria de facto (incluindo a arguição dos vícios da decisão a que se refere o artigo 410.º do CPP) e em matéria de direito, devem usar a via de recurso para o tribunal da Relação (artigos 427.º e 428.º do CPP), qualquer que seja a pena aplicada; limitando o recurso a matéria de direito, a lei impõe caminhos distintos, consoante a pena aplicada, que define o critério de competência dos tribunais superiores: se a pena não exceder 5 anos de prisão, o conhecimento do recurso é da competência do tribunal da Relação (artigo 427.º do CPP); se for superior a 5 anos, tal competência pertence ao STJ (artigos 432.º e 434.º do CPP), o qual, em caso de concurso de crimes, deve conhecer de todas as questões, de direito, relativas às penas aplicadas a cada um deles e à pena conjunta aplicada aos crimes em concurso (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017). 4. O conhecimento do recurso implica que o tribunal ad quem aprecie e decida, oficiosamente ou a pedido do recorrente, todas as questões de direito relacionadas com o objecto e âmbito do recurso da sua competência, incluindo das nulidades relativas à decisão recorrida que constitui o objecto do recurso, as quais, sendo admissível recurso, nele devem ser arguidas (artigo 379.º, n.º 2, do CPP). 5. Como tem sido afirmado na jurisprudência do STJ, estando este, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, está também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respectivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspectos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as questões relativas à apreciação da prova, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como de questões de inconstitucionalidade suscitadas nesse âmbito. (…)” 3. Da irradiação da impossibilidade de conhecimento Estando, por razões de competência, o Supremo Tribunal de Justiça impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, encontra-se do mesmo modo impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão. Estão também excluídos da apreciação vícios da decisão indicados no artigo 410 do CPP nulidades e aspetos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objeto, aí se incluindo apreciação da prova, qualificação jurídica dos factos e determinação da pena, inter alia. Sintetizando: não cabe (nem é legalmente possível), neste contexto, curar de quaisquer questões subjacentes ou emergentes, sejam elas substantivas, processuais, ou mesmo de constitucionalidade, desde que, como é o caso, afirmem com o cerne da questão decidida (que é, na verdade, já res judicata) uma conexão tão profunda que como que se acolham à sombra da decisão já tomada, confirmativa da decisão proferida em 1.ª Instância. Dito noutra clave, na formulação do Acórdão do STJ de 26.06.2014, apud Acórdão do STJ de 27.05.2015, Proc.º n.º 352/13.2 PBOER.L1.S1. (Relator: Conselheiro Raul Borges): «[t]oda a decisão referente a crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão, incluindo questões conexas como a violação do princípio in dubio pro reo, invalidade das provas, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, violação do n.º 2 do art. 30.º do CP, qualificação jurídica dos factos, consumpção entre os crimes em concurso, violação do princípio da proibição da dupla valoração, reincidência e medida das penas parcelares, já conhecidas pela Relação, não são susceptíveis de recurso para o STJ, por força dos arts. 400.º, n.º 1, als. c) e f), e 432.º, n.º 1, al. b), do CPP». Atente-se ainda, mais recentemente, no seguinte ponto (III) o Sumário do Acórdão deste STJ, de 24-02-2021, proferido no Proc.º n.º 7447/08.2TDLSB.L1.S1 (Relator: Conselheiro Sénio Alves). “Esta irrecorribilidade abrange, em geral, todas as questões processuais ou de substância que tenham sido objecto da decisão, nomeadamente, as questões relacionadas com a apreciação da prova, com a qualificação jurídica dos factos, concurso efectivo de crimes/crime continuado e com a determinação das penas parcelares. A não apreciação dessas questões elencadas pelo reclamante é, portanto, consequência directa da rejeição do recurso, quanto às penas parcelares.” Também parece relevante chamar à colação o acórdão de 22-09-2021 (Processo nº 90/16.4JBLSB.C1.S1, 3ª Secção), como feito pelo Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto neste STJ nos presentes autos: “Cabe recordar, brevitatis causa, o art. 400, do CPP, que estatui, no seu n.º 1: ‘1 - Não é admissível recurso: f) De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos”. Assim, nos termos deste normativo, conjugado com o disposto no art. 432, nº 1, al. b), também do CPP, o acórdão do Tribunal da Relação é irrecorrível na parte em que confirma as condenações da 1ª Instância (princípio da dupla conforme condenatória) relativas aos crimes em que as penas parcelares foram fixadas em medida não superior a 8 anos de prisão. E, tal como se sumariou no acórdão deste Supremo Tribunal de 14/03/2018, “5. Como tem sido afirmado na jurisprudência do STJ, estando este, por razões de competência, impedido de conhecer do recurso interposto de uma decisão, está também impedido de conhecer de todas as questões processuais ou de substância que digam respeito a essa decisão, tais como os vícios da decisão indicados no artigo 410.º do CPP, respectivas nulidades (artigo 379.º e 425.º, n.º 4) e aspectos relacionadas com o julgamento dos crimes que constituem o seu objecto, aqui se incluindo as questões relativas à apreciação da prova, à qualificação jurídica dos factos e à determinação da pena correspondente ao tipo de ilícito realizado pela prática desses factos ou de penas parcelares de medida não superior a 5 ou 8 anos de prisão, consoante os casos das alíneas e) e f) do artigo 400.º do CPP, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como de questões de inconstitucionalidade suscitadas nesse âmbito.” Consignou-se ainda no sumário daquele acórdão: “2. O regime de recursos para o STJ definido pelas normas dos artigos 400.º, n.º 1, al. e) e f), e 432.º, al. b), do CPP, efectiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, traduzida no direito de reapreciação da questão por um tribunal superior, quer quanto a matéria de facto, quer quanto a matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam internacionalmente o Estado Português ao sistema internacional de protecção dos direitos fundamentais (artigos 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Protecção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais). O artigo 32.º, n.º 1, da Constituição não consagra a garantia de um triplo grau de jurisdição, isto é, de um duplo grau de recurso, em relação a quaisquer decisões condenatórias.” Acresce que, tal como se realça no texto daquele acórdão, o Tribunal Constitucional pronunciou-se já sobre esta questão, nomeadamente no acórdão 186/2013, de 4 de Abril, decidindo não julgar inconstitucional a norma da al. f), do nº 1, do art. 400, do CPP, na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos de prisão não pode ser objecto de recurso para o STJ a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão.” Há, pois, uma difusibilidade ou irradiação consequencial à rejeição do recurso das penas parcelares, como que “contaminando” de impossibilidade a apreciação de elementos com tal matéria conexos. 4. Possibilidade abstrata de conhecimento excecional de facto e impossibilidade concreta de tal conhecimento É também sobejamente sabido que a regra fundamental (dir-se-ia trave-mestra) do nosso sistema de recurso para o STJ é a do recurso da matéria de direito. Recorde-se o texto do artigo 434.º do Código de Processo Penal: “O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”. Portanto, não está vedado a este Tribunal o conhecimento, em situações específicas, de matéria de facto. Com efeito, o conhecimento do recurso (em matéria penal) na parte em que é admissível acarreta que, no âmbito da sua competência, o STJ analise e delibere o pedido do recorrente, ou, oficiosamente, todas as questões de direito relacionadas com o objeto e âmbito do recurso, nessa parte, com vista à boa decisão destes. A delimitação fundamental do recurso ao reexame da matéria de direito não obsta a que o STJ, oficiosamente, conheça de eventuais vícios da decisão recorrida (n.º 2 do artigo 410.º do CPP), os quais devem emergir do texto da decisão recorrida, por si só ou em combinação com as regras da experiência, se a sua sanação se revelar necessária, no conhecimento do mérito do recurso. Trata-se de vícios da decisão, da elocução decisória em matéria de facto que se revelam no texto da decisão e se patenteiam a partir dele, por si só ou conjuntamente com as regras da experiência, não de erros de julgamento da matéria de facto, cujo conhecimento, da competência do tribunal da Relação (artigos 427.º e 428.º do CPP), se encontra subtraída ao STJ (cfr. acórdão deste STJ, de 02.10.2019, Proc. n.º 3622/17.7JAPRT-P1.S1, citando o acórdão de 15.12.2011, Proc. 17/09.0TELSB.L1.S1 (Relator: Conselheiro Raul Borges), e profusa jurisprudência neste referida, in www.dgsi.pt). Em suma: pode (e deverá) o STJ apreciar os vícios do art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal quando tal se revele indispensável para proferir a decisão de direito (cf. o acórdão de fixação de jurisprudência 7/95, publicado no DR, I série A, n.º 298, de 28.12.1995). Ou seja, o direito que se quer justamente apurar clama pela justa apreciação do facto, não se podendo conformar com deficiências ou lacunas graves no seu apuramento. Mas só quando realmente haja de, por esse motivo superior, abdicar da regra geral da especialidade da função do STJ, que é de conhecimento de direito. Ora, compulsado o acórdão recorrido, não se evidencia (nem sequer vislumbra) qualquer vício de insuficiência da matéria de facto para a decisão, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, nem erro notório na apreciação da prova, suscetíveis de afetar a decisão de direito, e que por essa razão devesse este Tribunal conhecer. A resposta do Digno Magistrado do Ministério Público na Relação ... é muito eloquente: “Acresce que tanto o Acórdão da primeira instância, como aquele proferido neste Tribunal da Relação se encontram devidamente fundamentados, tendo sido integralmente observado o disposto nos art.ºs 97.º, n.º 5, e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, já que nos dois se expuseram integralmente os motivos de facto e de direito da decisão condenatória.
Por outro lado, na peça recursiva o arguido apenas volta a insistir na argumentação já usada anteriormente ignorando a pertinência e profundidade das análises feitas ao que veio sucessivamente defendendo e às conclusões no sentido da manifesta improcedência do que invocou .
Assim, em concreto, neste recurso torna a usar o depoimento que a mãe das vítimas prestou durante o julgamento na primeira instância, introduzindo esse argumento a coberto de umapretensaviolação do princípioindúbiopro reo cometida noAcórdão deque pretende agora recorrer.
Ora, a sua leitura da matéria de facto assente num depoimento que foi descredibilizado no Acórdão do Juízo Central Criminal ... e novamente desvalorizado na decisão deste Tribunal da Relação, não faz qualquer sentido, constituindo apenas uma manifestação desesperada de alguém que não tem nada de válido para argumentar.”
E ilustra com este passo significativo do Tribunal de 1.ª Instância:
(…) o tribunal desvalorizou o depoimento da mãe das crianças, pois em audiência de julgamento, emitiu uma opinião pessoal, parcial e facciosa, e não acredita que o arguido tenha praticado os factos e encontra-se em completa negação, desvalorizando ainda o relato presencial da filha. Por isso, o depoimento desta testemunha é fundado numa mera crença, e num estado de negação de quem não quer ver os factos. Na verdade, o recorrente pretende opor e substituir-se ao tribunal recorrido, que adquiriu a sua convicção noutros elementos de prova bem mais estruturados, coesos e credíveis, desinteressado e baseado em elementos de prova objetivos não distorcidos pela emoção. O tribunal recorrido, ainda nos depoimentos da testemunha EE, irmão do arguido e da testemunha GG, amiga do casal. Foi determinante para a formação da sua convicção do tribunal recorrido a perícia médico legal em psicologia forense, a fls. 123 e seguintes, decorrente de entrevistas realizadas em 28.09.2021 e 19.10.2021, referente à menor CC, com 10 anos de idade, que conclui que a menor apresenta desenvolvimento cognitivo dentro dos parâmetros normativos; mostrou capacidade narrativa e mnésica, capacidade para distinguir a realidade da fantasia; apresentou, sobre os factos, relato espontâneo e inteligível, com estrutura lógica, coerente, detalhada, admitindo falta de memória relativamente a datas e pormenores - o que se considera normal, atenta a sua idade - e sem indicadores de que o que relata seja produto da sua imaginação ou induzido por terceiros; referiu dinâmicas em regra associadas a abusos sexuais, como a sexualização da relação e a cooperação. Apresenta, ao nível do funcionamento psicoafectivo e estado emocional, alterações significativas, como ansiedade e ambivalência de sentimentos relativamente ao progenitor, com elevada afectividade, apesar das vivências abusivas que descreveu, relatando saudades, perdão e até tentativa de justificar os actos, e ao mesmo tempo vergonha e receio das consequências negativas para a família, como o receio da prisão do pai, de ser separada dos irmãos e colegas, de ir para orfanato (sendo que tais possibilidades lhe terão sido transmitidas pela mãe, sua principal figura de referência), tudo constituindo factor de elevado stress para a menor, que continuou a ter contactos com o pai,mesmo após o afastamento deste da residência, promovidos pela mãe, bem como, a perícia médico legal em psicologia forense, a fls. 131 e seguintes, decorrente de entrevistas realizadas em 28.09.2021 e 19.10.2021, referente à menor BB, com 13 anos de idade, que igualmente conclui que a menor apresenta desenvolvimento cognitivo dentro dos parâmetros normativos. Por isso, lendo a decisão recorrida, desde logo constatamos que inexiste qualquer vício ou insuficiência da sentença, pois dela não ressalta qualquer erro manifesto na apreciação da prova, que teria de ser uma falha grosseira e ostensiva na análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se deram, factos provados inconciliáveis entre si, factos incompatíveis entre si ou conclusões são ilógicas ou inaceitáveis. Assim sendo, é manifesto que a matéria de facto dada como provada na decisão recorrida, encontra-se devidamente fundamentada, sendo certo que não se evidencia no recurso, em que medida as provas produzidas impunham uma decisão diversa daquela que veio a ser dada. Pelo contrário, verifica-se ter a decisão seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova, não surgindo a decisão como uma conclusão ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum na apreciação das provas. Por outro lado, em lado algum do seu texto da decisão recorrida se pode depreender que o tribunal tenha agido e decidido em estado de incerteza dubitiva.” À vista do que vem de ser exposto, não se vislumbrando sequer no texto do acórdão da Relação que tivessem sido dados como provados factos que notoriamente estão errados e são totalmente inverosímeis e contrários às regras comuns da lógica, da razão e da experiência, ou seja, que o aresto enferme do vício do erro notório na apreciação da prova invocado pelo recorrente, o recurso deve ficar circunscrito à questão da medida da pena única. 5. De todas as questões levantadas pelo recorrente, tão somente releva, para a decisão, a questão da medida da pena única: perguntando-se, pois: a medida da pena será excessiva? É do que se tratará imediatamente a seguir. C Da medida da pena única 1. Parâmetros gerais Como é sabido, e aceite na communis opinio, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça na concretização da medida da pena, ou melhor, no controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada, sendo entendido de forma uniforme e reiterada que “no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada”- cf. Acs. de 09-11-2000, Proc. n.º 2693/00 - 5.ª; de 23-11-2000, Proc. n.º 2766/00 - 5.ª; de 30-11-2000, Proc. n.º 2808/00 - 5.ª; de 28-06-2001, Procs. n.ºs 1674/01 - 5.ª, 1169/01 - 5.ª e 1552/01 - 5.ª; de 30-08-2001, Proc. n.º 2806/01 - 5.ª; de 15-11-2001, Proc. n.º 2622/01 - 5.ª; de 06-12-2001, Proc. n.º 3340/01 - 5.ª; de 17-01-2002, Proc. n.º 2132/01 - 5.ª; de 09-05-2002, Proc. n.º 628/02 - 5.ª, CJSTJ 2002, tomo 2, pág. 193; de 16-05-2002, Proc. n.º 585/02 - 5.ª; de 23-05-2002, Proc. n.º 1205/02 - 5.ª; de 26-09-2002, Proc. n.º 2360/02 - 5.ª; de 14-11-2002, Proc. n.º 3316/02 - 5.ª; de 30-10-2003, CJSTJ 2003, tomo 3, pág. 208; de 11-12-2003, Proc. n.º 3399/03 - 5.ª; de 04-03-2004, Proc. n.º 456/04 - 5.ª, in CJSTJ 2004, tomo 1, pág. 220; de 11-11-2004, Proc. n.º 3182/04 - 5.ª; de 23-06-2005, Proc. n.º 2047/05 - 5.ª; de 12-07-2005, Proc. n.º 2521/05 - 5.ª; de 03-11-2005, Proc. n.º 2993/05 - 5ª; de 07-12-2005 e de 15-12-2005, CJSTJ 2005, tomo 3, págs. 229 e 235; de 29-03-2006, CJSTJ 2006, tomo 1, pág. 225; de 15-11-2006, Proc. n.º 2555/06 - 3.ª; de 14-02-2007, Proc. n.º 249/07 - 3.ª; de 08-03-2007, Proc. n.º 4590/06 - 5.ª; de 12-04-2007, Proc. n.º 1228/07 - 5.ª; de 19-04-2007, Proc. n.º 445/07 - 5.ª; de 10-05-2007, Proc. n.º 1500/07 - 5.ª; de 14-06-2007, Proc. n.º 1580/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 220; de 04-07-2007, Proc. n.º 1775/07 - 3.ª; de 05-07-2007, Proc. n.º 1766/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 242; de 17-10-2007, Proc. n.º 3321/07 - 3.ª; de 10-01-2008, Proc. n.º 907/07 - 5.ª; de 16-01-2008, Proc. n.º 4571/07 - 3.ª; de 20-02-2008, Procs. n.ºs 4639/07 - 3.ª e 4832/07 - 3.ª; de 05-03-2008, Proc. n.º 437/08 - 3.ª; de 02-04-2008, Proc. n.º 4730/07 - 3.ª; de 03-04-2008, Proc. n.º 3228/07 - 5.ª; de 09-04-2008, Proc. n.º 1491/07 - 5.ª e Proc. n.º 999/08 - 3.ª; de 17-04-2008, Procs. n.ºs 677/08 e 1013/08, ambos desta secção; de 30-04-2008, Proc. n.º 4723/07 - 3.ª; de 21-05-2008, Procs. n.ºs 414/08 e 1224/08, da 5.ª secção; de 29-05-2008, Proc. n.º 1001/08 - 5.ª; de 03-09-2008, no Proc. n.º 3982/07 - 3.ª; de 10-09-2008, Proc. n.º 2506/08 - 3.ª; de 08-10-2008, nos Procs. n.ºs 2878/08, 3068/08 e 3174/08, todos da 3.ª secção; de 15-10-2008, Proc. n.º 1964/08 - 3.ª; de 29-10-2008, Proc. n.º 1309/08 - 3.ª; de 21-01-2009, Proc. n.º 2387/08 - 3.ª; de 27-05-2009, Proc. n.º 484/09 - 3.ª; de 18-06-2009, Proc. n.º 8523/06.1TDLSB - 3.ª; de 01-10-2009, Proc. n.º 185/06.2SULSB.L1.S1 - 3.ª; de 25-11-2009, Proc. n.º 220/02.3GCSJM.P1.S1 - 3.ª; de 03-12-2009, Proc. n.º 136/08.0TBBGC.P1.S1 - 3.ª; e de 28-04-2010, Proc. n.º 126/07.0PCPRT.S1” (cf. Acórdão deste STJ de 2010-09-23, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1). Assim, como é sabido, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem reiteradamente enfatizado que, na concretização da medida da pena, deve partir-se de uma moldura de prevenção geral, definindo-a, depois, em função das exigências de prevenção especial, sem ultrapassar a culpa do arguido. Como assinala o Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias, “(2) a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite, máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico” (Direito Penal, vol. I, p. 84 e Direito Penal, vol. II, pp. 227-228 (sendo importante o diálogo que com estas ideias encetam os Conselheiros Simas Santos e Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, 7.ª ed., Lx., Rei dos Livros, p. 192). Atente-se ainda neste passo do Acórdão de 2010-09-2, proferido no Proc.º n.º 10/08.0GAMGL.C1.S1: “Ou seja, devendo ter um sentido eminentemente pedagógico e ressocializador, as penas são aplicadas com a finalidade primordial de restabelecer a confiança colectiva na validade da norma violada, abalada pela prática do crime, e, em última análise, na eficácia do próprio sistema jurídico-penal”. Cf. ainda os acórdãos deste STJ de 08-10-97, Proc. n.º 976/97, e de 17-12-97, Proc. n.º 1186/97, (in Sumários de Acórdãos, n.º 14, pág. 132, e n.º s 15/16, novembro/dezembro 1997, pág. 214). Importará ainda salientar que a jurisprudência deste Supremo Tribunal sublinha que a sua intervenção no controle da proporcionalidade com que há que pesar os crimes e as penas não é ilimitada e que o quantum da pena se deve manter quando se revele, em geral, o acerto dos vários enfoques analíticos e judicatórios em questão (v.g. Ac. STJ, Proc. n.º 14/15.6SULSB.L1.S1 - 3.ª Secção, 19-09-2019). 2. Da Pena única, do geral ao concreto. Como é bem sabido, a pena única deve determinar-se pela ponderação de fatores do critério que consta do art. 77.º, n.º 1, in fine, do Código Penal: “1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.” Considerando, assim, as evidentes necessidades de prevenção no caso em concreto, o respetivo grau de culpa e de ilicitude, que são muito elevados, entende-se que a pena única de modo algum excede um quadro de razoabilidade e proporcionalidade e é adequada e necessária para se cumprirem as finalidades preventivas, enquadrando-se nos padrões admissíveis de justiça e, até, se revelando, face à factualidade provada. 3. Proporcionalidade, et alia 3.1. Da Proporcionalidade e da Proporcionalidade penal em geral Atentem-se, antes de mais, nos parâmetros essenciais convocados no Acórdão deste STJ de 19-01-2022, proferido no Proc.º n.º 327/17.2T9OBR.S1 (Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves). “Sustenta-se no Acórdão de 30/11/2016, deste Supremo Tribunal,[17- Proc. 804/08.6PCCSC.L1.S1, www.dgsi.pt/Jstj.] que: “a medida da pena unitária a atribuir em sede de cúmulo jurídico reveste-se de uma especificidade própria. Por um lado, está-se perante uma nova moldura penal, mais ampla, abrangente, com maior latitude da atribuída a cada um dos crimes. Por outro, tem lugar, porque se trata de uma nova pena, final, de síntese (…)”. A proporcionalidade e a proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, deverá obter-se através da ponderação da gravidade dos crimes do concurso (enquanto unidade de sentido jurídico), as caraterísticas da personalidade do agente neles revelado (no conjunto dos factos ou na atividade delituosa) e a dimensão da medida das penas parcelares e da pena conjunta no ordenamento punitivo. “A pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção – dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes”. Assim, “se a pena parcelar é uma entre muitas outras semelhantes, o peso relativo do crime que traduz é diminuto em relação ao ilícito global, e portanto, só uma fracção menor dessa pena parcelar deverá contar para a pena conjunta”. “É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, face à grande criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras”. Se a aplicação de qualquer pena deve ser orientada pelo princípio da proporcionalidade (à gravidade do crime, ao grau e intensidade da culpa e às necessidades de reintegração do agente), essa orientação deve ser especialmente ponderada quando se determina o quantum da pena conjunta. Tanto porque a moldura penal resultante da soma das penas aplicadas a cada um dos crimes do concurso pode assumir amplitude enorme e/ou atingir molduras com limiar superior muito elevado, não raro, iguais ao máximo de pena consentida, quanto porque os crimes englobados no concurso podem incluir-se apenas na pequena criminalidade, “uma das manifestações típicas das sociedades modernas”, tratando-se de uma realidade distinta da criminalidade grave, quanto à sua explicação criminológica, ao grau de danosidade social e ao alarme coletivo que provoca. Por isso, não poderá deixar de ser diferente, numa e na outra, não só a espécie como também a medida concreta da reação formal. O legislador deixou claramente expressa a vontade de conferir tratamento distinto àquelas fenomenologias criminais.” Têm estas considerações plena aplicação no caso, em tela de fundo. Podendo também convocar-se, no mesmo registo, a explicitação constitucional sobre as várias dimensões ou modalidades de que se reveste a proporcionalidade (designadamente nos Acórdãos nº 632/2008, n.º 187/2001 e Acórdão n.º 634/93 do Tribunal Constitucional). A lição de síntese do referido Acórdão deste STJ de 19-01-2022, proferido no Proc.º n.º 327/17.2T9OBR.S1 (Relator: Conselheiro Nuno Gonçalves), pela sua clareza, merecerá ser recordada, pelo menos início do Sumário, o que, como se verá, será linha seguida neste aresto: “I - No vigente regime penal, a função primordial do direito penal é a de tutelar os bens jurídicos tipificados, de modo a assegurar a paz jurídica dos cidadãos. II - A culpa na execução do facto, estabelece o limiar máximo acima do qual a pena aplicada é excessiva, subalternizando à «paz» comunitária a dignidade humana do agente. III - Entre aquele limiar mínimo e este limiar máximo, o modelo de individualização da pena judicial completa-se com a finalidade de prevenção especial de socialização. IV - O abuso sexual de crianças e de menores dependentes, violando a autodeterminação sexual e do harmonioso desenvolvimento da personalidade global das crianças na esfera sexual, demandam assertiva reafirmação da validade do bem jurídico e da vigência da proteção penal. V - O concurso de crimes, por opção de política criminal, é punido com uma pena única, obtida através da ponderação dos factos cometidos e da personalidade do agente.”. Convoque-se ainda nesta sede geral, brevitatis causa (para maiores desenvolvimentos, P. Ferreira da Cunha, Em torno do princípio da proporcionalidade, “Revista do Ministério Público”, n.º 168, outubro-dezembro de 202, pp. 95-120); Jürgen Schwabe (coletânea original) / Leonardo Martins (organização e introdução da ed. em português) — 50 Anos de Jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão, Montevideo, Fundação Konrad Adenauer, 2005, p. 89: “A aplicação do critério da proporcionalidade como limite dos limites não se confunde com uma ponderação de bens, interesses ou valores jurídicos, mas representa a busca ‘do’ meio necessário de intervenção, assim entendido ((como)) o meio adequado de intervenção (adequado ao propósito da intervenção) que seja, em face da liberdade atingida, o menos gravoso. Aplicar o critério da proporcionalidade significa, portanto, interpretar e analisar o propósito perseguido pelo Estado e o meio de intervenção em si, no que tange às suas admissibilidades e à relação entre os dois. Esta deve poder ser caracterizada como uma relação de adequação e necessidade, nos seus sentidos técnico-jurídicos.”. É, pois, num sentido técnico-jurídico rigoroso, já seguido pela jurisprudência e acolhido pela doutrina, que se encara a proporcionalidade, e jamais como uma vaga imagem da régua de Lesbos (não a original, referida por Aristóteles nas Éticas a Nicómaco), quiçá entre a equidade e alguma modalidade de pensamento tópico-problemático, em que, no limite, podem entrar considerações de pura subjetividade. 3.2. Elementos ponderadores em concreto Diga-se, desde já, que não é, de modo algum, exagerada, nem tampouco de, qualquer forma, errada, a forma como foi calculada a pena única. Nem o respetivo resultado ponderador. Deve atender-se, na apreciação desta questão, à moldura penal abstrata em que o cúmulo jurídico de que resultou a pena única aplicada se desenhou. Os limites ou balizas da pena a aplicar estariam, dada a panóplia de crimes praticados e as respetivas penas parcelares, entre os 6 anos de prisão (correspondente à pena parcelar mais elevada), e os 164 anos e 2 meses de prisão, valor correspondente à soma de todas as penas aplicadas aos vários crimes. porém, com o limite inultrapassável de 25 anos de prisão, tal como determinado pelo n.º 2 do artigo 77.º do Código Penal. Para definir a medida da pena única deverá atender-se aos critérios vertidos no artigo 77.º, n.º 1, do CP (cf., v.g., Jorge de Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crimes reimpressão, Coimbra, Coimbra Editora, 2005, p. 291 e Maria João Antunes, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra, Coimbra Editora, 2013, p. 57). Em relação aos critérios gerais, podem ser “valoradas circunstâncias já consideradas na fixação das penas parcelares, desde que essas circunstâncias sejam reportadas ao conjunto dos factos e à apreciação geral da personalidade do agente. É essa avaliação global, que não se confunde com a ponderação das circunstâncias efetuada relativamente a cada crime, que é necessariamente parcelar, que releva para a determinação da medida da pena conjunta. São, pois, avaliações diferentes de factos diferentes (porque a parte não se confunde com o todo), não havendo por isso dupla valoração das mesmas circunstâncias” (acórdão do STJ, Relator: Conselheiro Maia Costa, 09-10-2019, Proc. n.º 600/18.2JAPRT.P1.S1 - 3.ª Secção; na doutrina, Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, reimpressão, cit., p. 292). No que se refere aos critérios do art.º 77, n.º 1, do CP - na “medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente” – tem sido unânime a doutrina e a jurisprudência do STJ quanto à necessidade de atender à imagem global dos factos, extraindo todas as conexões que relevem para apurar, numa dimensão unitária, a gravidade do ilícito total e a personalidade que é possível extrair da interconexão dos factos criminosos (assim, por exemplo, entre outros, Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, cit., p. 291 ou Rodrigues da Costa, O Cúmulo Jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ, “Julgar”, n.º 21, 2013, pp. 174 e 175, e na jurisprudência do STJ, v.g., Ac. do STJ, Rel. Cons. Nuno Gomes da Silva, 03.10.2019, Proc. n.º 2072/13.9JAPRT.1.S1- 5.ª Secção). Geralmente, em relação à personalidade, afirma-se a necessidade de aferir se os factos demonstram que se tratou de um comportamento ocasional, episódico, pontual, ou, pelo contrário, se é possível extrair dos mesmos uma tendência ou carreira criminosa, sendo que, apenas nesta última situação, será de atribuir um efeito agravante. De todo modo, a avaliação da personalidade prende-se com todos os aspetos que podem emergir da globalidade dos factos e relevem para a determinação da pena unitária, em consonância com as finalidades preventivas que lhe estão subjacentes. Alguns fatores que habitualmente se atende, entre outros, são os seguintes: a amplitude temporal da atividade criminosa; a diversidade dos tipos legais praticados; a gravidade dos ilícitos cometidos; a intensidade da atuação criminosa; o número de vítimas; o grau de adesão ao crime como modo de vida; as motivações do agente; as expetativas quanto ao futuro comportamento do mesmo. Todos esses elementos foram levados em conta e resultam na pena única aplicada, que é moderada, atenta a barbaridade dos atos cometidos. A lei, ao mandar atentar nos factos e na personalidade do agente remete para uma consideração global, em que uns e outros dialogam no seu diferente sentido e peso relativo. O Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias (e vária jurisprudência com ele é concorde), aponta também para um critério holístico na escolha da medida da pena única. Assim, “(…) como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. (…) De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)” (Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, p. 291). Ainda na perspetiva holística, note-se o Acórdão deste STJ de 06.02.2019, proferido no Proc.º n.º 71/15.5JDLSB.S1: “(…) impõe-se uma apreciação global dos factos, tomados como conjunto, e não enquanto mero somatório de factos desligados, na sua relação com a personalidade do agente. Essa apreciação deverá indagar se a pluralidade de factos delituosos corresponde a uma tendência da personalidade do agente, ou antes a uma mera pluriocasionalidade, de carácter fortuito ou acidental, não imputável a essa personalidade, para tanto de-vendo considerar múltiplos factores, entre os quais a amplitude temporal da actividade criminosa, a diversidade dos tipos legais praticados, a gravidade dos ilícitos cometidos, a intensidade da actuação criminosa, o número de vítimas, o grau de adesão ao crime como modo de vida, as motivações do agente, as expectativas quanto ao futuro comportamento do mesmo». A questão de se saber se se trata da expressão de uma tendência criminosa (uma parafilia), ou uma simples pluriocorrência (ou pluriocasionalidade) de factos criminosos é deveras relevante. Deve ponderar-se que o número elevadíssimo de crimes e o largo tempo em que foram praticados não pode deixar de ser fator a considerar. O Acórdão recorrido, sempre invocando, doutas e pertinentes referências doutrinais e jurisprudenciais, não meramente adjacentes ou eruditas, mas com interesse prático e objetivo para a decisão da causa, explicitou as razões da manutenção da pena única, com clareza e evidenciando equilíbrio e prudência. Depois de importantes factos e considerações, a finalizar, expressa: “(…) a pena única foi fixada após ponderação dos factos relativos a todos os crimes e à personalidade do arguido, nomeadamente, considerando que ‘os factos delituosos têm natureza semelhante já que são crimes contra a autodeterminação sexual das filhas; as vítimas são duas, com idades bem abaixo dos 14 anos; os crimes foram cometidos ao longo de pelo menos 6 anos, quase sempre na privacidade do lar. A personalidade do arguido, espelhada nos factos que praticou e na sua postura perante a tipologia criminal abstrata, mostra-se a de um indivíduo com facilidade em delinquir neste âmbito, sem entraves de consciência nem preocupação com as consequências dos seus actos. Provém, no entanto, de família regular, tem hábitos de trabalho e não tem condenações anteriores. Não sendo conhecidos no seu meio social os factos em apreciação, não goza de imagem negativa e mantém o apoio dos irmãos. É relativamente jovem.’ Assim, temos uma conduta contra as filhas do recorrente, durante anos, sendo a conduta global merecedora de máxima censurabilidade pois espelha graves desvios de personalidade do arguido, revelando uma elevada tendência para a prática de delitos de feição sexual, pelo que a medida da pena única apresenta-se assim proporcionada e adequada.” A sentença proferida é, no respetivo contexto, justa, adequada, proporcional e necessária. Os factos são plúrimos, como referido, arguido atuou com dolo direto e intenso, a ilicitude e culpa elevadas. Utilizando as vítimas como meros objetos de satisfação dos seus intuitos libidinosos e de supremacia ou afirmação de poder. Esta ideia de reificação ou coisificação (redução a objeto, a meio) neste tipo de crimes, sem dúvida ecoará, em pano de fundo, o contraste com o imperativo ético kantiano (Kant, Schriften zur Ethik und Religionsphilosophie: “Age de tal maneira que uses a tua humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio”). Na verdade, pode certamente afirma-se que tais condutas implicam despersonalização da vítima, feita objeto, “meio” e não fim da ação. Confiscam-lhe a qualidade de plena pessoa, pois a vítima é desapossada violentamente da mesma pelo agressor. Vários têm desenvolvido esta ideia de transformação da vítima destes crimes em mero objeto. Concretamente de “objeto de prazer sexual alheio” fala Francisco Muñoz Conde, Derecho Penal. Parte Especial, 9.ª ed., Valência, Tirant lo Blanch, 1993, p. 416. Estão em causa, e consubstanciam o ilícito global a ter em consideração na determinação da pena única, nada menos Há, como se disse, um grau muito elevado de culpa. Na reiteração criminosa não encontrará “meia desculpa” – mas, pelo contrário, houve muitas ocasiões de refletir e de perseverar (perseverare diabolicum, como diria a formulação de Bernardo de Claraval) na grave atitude criminosa. Todos os elementos (também não encontrando álibi no excesso de consumo de álcool) revelam uma personalidade transtornada num sentido parafílico, egoísta e insensível. Dos Autos se extrai que a gravidade dos factos (agora, em cúmulo, considerando o “facto global” e a respetiva “culpa global”) e a personalidade do arguido necessitam, em prevenção especial, de uma censura não laxista, que o desmotive de voltar a delinquir no futuro, e de molde ainda a que a comunidade se não sinta ameaçada e descrente nas capacidades reconstitutivas da paz social do sistema jurídico (agora em prevenção geral). Evidentemente que se entrelaçam as duas prevenções e apontam ambas para uma punição que não trivialize estas condutas. Crimes de abuso sexual e de violação de crianças não só causam repulsa e do alarme sociais profundos na comunidade circundante, como, sendo mediaticamente noticiados, criam no conjunto da sociedade (que é também o destinatário se não mesmo partícipe da ordem jurídica) sentimentos de anomia. Além disso, não se trata apenas de um sentimentos subjetivo ou de comoção de massas de algum modo superficial, mas, pelo contrário, estão em causa bens jurídicos valiosos, que constituem insofismavelmente pilares da ordem social e da consciência jurídica geral, tendo, assim, uma componente ético-social. São alguns dos mínimos do ordenamento jurídico de que fala o Prof. Doutor Jorge de Figueiredo Dias (que também nos recorda a importância da culpa, outro relevante elemento ético-penal), num passo aliás habitualmente citado: “(2) a pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite, máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico” (Direito Penal, vol. I, p. 84 e Direito Penal, vol. II, pp. 227-228” . O potencial alarme social (e não um simples alarido superficial, mas com raízes axiológicas fundas) é, pois, notório com o tipo de atos como os do arguido. Mas importa matizar as questões. Como tem assinalado Claus Roxin, entre outros, o que não deixa de ser recordado, entre nós por Figueiredo Dias, há também uma compreensão social de situações de diminuição da culpa, e a aceitabilidade comunitária de que possa existir uma menor exigibilidade, em certos casos, da tutela de bens jurídicos (Idem, Direito Penal, I, p. 83 e Direito Penal, vol. II, p. 230, e ainda Simas Santos e Leal-Henriques, Noções de Direito Penal, cit., p. 188). Mas nunca poderá estar em causa cogitar-se a aplicação de uma pena única que pudesse vir a ser tão baixa que colocasse em risco os limites mínimos de prevenção. Como seria o caso de uma pena que consentisse a suspensão da sua execução, como pretendido pelo recorrente (v.g. “a pena a aplicar deve ser suspensa na sua execução”, ponto 2.º das Conclusões; “se verificam os pressupostos para a suspensão da aplicação da pena de prisão, previstos no artigo 50º. do Código Penal”, ponto 8.º das Conclusões). 3.5. Vetores de apreciação factual Mandando a lei atender aos factos e à personalidade do agente, recorde-se este passo, citado pelo Tribunal recorrido, que já encerra abundantes informações sobre ambas as questões a ponderar: “O arguido agiu, sempre, com dolo directo e com culpa elevada, aproveitando-se do ascendente e poder de autoridade que, como pai, tinha sobre as suas vítimas, crianças suas filhas, a quem tinha o dever de proteger a cuidar. Não protegeu nem cuidou, antes agiu indignamente, como o opressor a quem elas tinham que se sujeitar e a quem não podiam escapar. Tratou de convencer a filha BB, de 6 anos, que o que lhe fazia era normal, que todos os pais o faziam com as filhas, como forma de normalizar o acto e melhor controlar a criança, totalmente indiferente às consequências que a sua conduta causaria no desenvolvimento psíquico e sexual da filha. Tratou ainda de quase culpabilizar esta sua filha, envolvendo-a nos actos, ao atribuir-lhe a responsabilidade pelo seu pénis erecto ao dizer-lhe “olha o que fizeste”. Desenvolveu uma multiplicidade de condutas, bem para além do necessário para o preenchimento dos tipos legais de crime referidos, que incluíram a exibição de filmes pornográficos de anime à sua filha mais velha e mais tarde insistência em propostas de relação sexual. Actuou com recurso ao medo e ao poder, subjugando a vítima BB e jogando com os sentimentos de afecto da vitima CC, ao dizer-lhe que iria preso se ela contasse, colocando assim sobre as costas desta criança de 8 anos a responsabilidade pelo que pudesse vir a acontecer. Revelou uma indiferença absoluta relativamente ao sofrimento das vítimas suas filhas, a quem privou de uma infância e adolescência harmoniosa e sem traumas. A ilicitude de cada uma das suas condutas e da actuação global é muito elevada, considerando o n.º de actuações, o período de tempo em que se desenrolaram, particularmente no que se reporta à vítima BB, à actuação sobre duas filhas; a idade das menores, bem abaixo dos 14 anos; a actuação dentro do próprio domicílio. O arguido não prestou declarações em audiência, pelo que se desconhece a sua postura perante os crimes, não havendo, pois, qualquer tipo de arrependimento a valorar. No entanto, apurou-se que AA está centrado na sua realidade de privação da liberdade, demonstrando dificuldades em pronunciar-se de modo inequívoco sobre as tipologias criminais e em reconhecer a gravidade destas na autodeterminação sexual das vítimas, o que, associado ao tipo de actos que persistiu em desenvolver durante anos, indicia uma personalidade desviante e distorcida, portanto atreita à continuação da prática de actos pervertidos, surgindo a oportunidade, o que eleva as necessidades de prevenção especial. No tipo de crime em causa as necessidades de prevenção geral são igualmente elevadas, pela necessidade de preservar o direito ao desenvolvimento livre de todos os aspectos da personalidade das crianças e jovens e pelos sentimentos de horror que crimes como o dos autos geram na comunidade, exigindo uma reafirmação robusta da validade das normas violadas. Em favor do arguido pesa, unicamente, ter hábitos de trabalho, não ter antecedentes criminais e continuar a gozar do favor da sua própria família e da esposa, que, centrada na sua pessoa, antepõe a necessidade do perdão, com vista à reconstrução da sua vida conjugal, à protecção das próprias filhas, filhas (especialmente a mais velha) que assim se viram duplamente desamparadas por quem as devia proteger.” Por isso, foram devidamente ponderadas, entre outras circunstâncias, os elevados graus de ilicitude e culpa, o modo de execução, a multiplicidade de condutas, a manipulação psíquica sobre a filha BB, de 6 anos, e a culpabilização desta, as relevantíssimas consequências psíquicas causadas nas ofendidas, o aproveitamento da relação de paternidade, o desprezo pelo sofrimento e pelo desenvolvimento psíquico e sexual das filhas, os longos anos que durou a conduta, a idade das ofendidas, bem abaixo dos 14 anos, a intensidade do dolo, as elevadas exigências de prevenção geral, as necessidades de prevenção especial, a idade do arguido e a postura do arguido em julgamento. (…) Na verdade, a fixação de uma pena inferior revelar-se-ia desajustada e incapaz de assegurar as finalidades da punição, concretamente, a prevenção geral positiva ou de integração, finalidade primeira da aplicação da pena. ** Quanto à pena única, temos uma moldura com o limite mínimo de 6 anos de prisão, e o limite máximo de 25 anos de prisão, o tribunal julgou ajustada a pena única de 14 anos de prisão. Dispõe o artº 77º nº 1 e 2 do Código Penal que quando o agente tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, em cuja medida são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente; a moldura penal do concurso tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas em concurso. Por isso, dentro da moldura do concurso, a pena única é fixada atendendo aos critérios gerais da culpa e prevenção (art. 71.º e 40.º do Código Penal) e à regra específica da punição do concurso constante do sobredito art. 77º nº 1 do Código Penal, olhando o conjunto dos factos para aferir da gravidade do comportamento, e avaliar se os mesmos revelam uma tendência criminosa ou uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade do arguido (Cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, p. 291). Ora, vimos que a pena única foi fixada após ponderação dos factos relativos a todos os crimes e à personalidade do arguido, nomeadamente, considerando que “os factos delituosos têm natureza semelhante já que são crimes contra a autodeterminação sexual das filhas; as vítimas são duas, com idades bem abaixo dos 14 anos; os crimes foram cometidos ao longo de pelo menos 6 anos, quase sempre na privacidade do lar. A personalidade do arguido, espelhada nos factos que praticou e na sua postura perante a tipologia criminal abstrata, mostra-se a de um indivíduo com facilidade em delinquir neste âmbito, sem entraves de consciência nem preocupação com as consequências dos seus actos. Provém, no entanto, de família regular, tem hábitos de trabalho e não tem condenações anteriores. Não sendo conhecidos no seu meio social os factos em apreciação, não goza de imagem negativa e mantém o apoio dos irmãos. É relativamente jovem.” Elementos que contribuem para a história de vida e compreensão da personalidade do arguido podem retirar-se da matéria de facto apurada, designadamente: “36. O arguido não tem antecedentes criminais 37. O arguido, nascido no ..., provém de família composta pelos pais e 6 irmãos, com relacionamento pautado por laços carinhosos e gratificantes. 38. A sua infância feliz foi perturbada pela saída do pai do agregado, por discórdias conjugais, acontecimento vivenciado pelo próprio como doloroso e profuso de sentimentos de confusão, de abandono e de desvalorização da sua pessoa, associado aos comportamentos de revolta e à ocorrência de dificuldades de realização académica, de insucesso escolar, de alguns comportamentos de rebeldia e de uso de haxixe. 39. O pai, porém, manteve a proximidade aos descendentes e contribuiu com as devidas pensões de alimentos às crianças aos cuidados da mãe, tendo a fratria iniciado precocemente actividade laboral contributiva para a satisfação das necessidades da família. 40. Contra a sua vontade, AA abandonou a escolarização, desprovido de qualquer qualificação profissional e, habilitado com o 4º ano, passou a desempenhar, ainda em criança, as funções de ... numa fábrica de ..., entretanto, seguidas do exercício das funções de .... 41. A sexualidade era assunto familiar interdito pelo que a educação sexual de AA decorreu através da descoberta própria quer de modo indirecto, por primazia dos meios de comunicação como as novelas, as revistas e alguns filmes bem como, pelo questionamento junto dos irmãos mais velhos, dos pares e alguma partilha de experiências sexuais com pares femininos. 42. AA sofreu a perda de um filho, de relacionamento amoroso que manteve com uma anterior namorada. 43. O arguido chegou a Portugal em 2004, então com cerca de 26 anos de idade, onde tinha já dois irmãos e um outro em ..., casado com uma prima de DD, nascida a .../.../1989, que assim conheceu. 44. Casaram em 11.11.2006, e passaram a residir no ... e os sogros no andar de cima da actual morada, sita na Rua ... .... ..., em propriedade pertencente aos sogros e com espaço exíguo. 45. Durante os primeiros dois anos de permanência em Portugal, AA exerceu a actividade de ... tendo, posteriormente, estabelecido contrato de trabalho com a E..., S.A, actividade profissional mantida até ser detido. 46. O período de gravidez dos filhos gémeos, nascidos a .../.../2013, foi de risco, e obrigou a intervenção cirúrgica, tendo DD que permanecer em repouso até ao nascimento prematuro dos filhos, com posterior agravamento do seu estado de saúde. 47. Estes acontecimentos foram vivenciados pelo arguido com angústia, desespero e aumento do uso de álcool, problemas negados e escondidos tentando prosseguir com um quotidiano profissional e familiar, de crescente alheamento de uma estratégia de solução e das relações familiares. 48. Após terem sido conhecidos pela família os factos pelos quais está acusado, AA aproveitou o seu período de férias laborais para se alojar em ... no domicílio do seu irmão EE, ali tendo permanecido e exercido actividade laboral para amealhar o dinheiro suficiente para arrendar o quarto na ..., sito na Rua ... ..., no qual permaneceu alguns meses antes da privação da liberdade. 49. AA projecta retomar o alojamento neste quarto, provavelmente partilhado com o seu irmão FF, e o exercício profissional na referida entidade patronal e, progressivamente, decidir sobre o futuro do seu casamento e filhos, sendo que o retomar da conjugalidade e permanência na habitação conta com a oposição familiar (mas não da esposa) para salvaguarda das vítimas. 50. Em meio prisional o arguido mostra-se disciplinado e demonstra preocupação com este confronto com a justiça penal. 51. Mantém-se ocupado como .... 52. Ainda que reconheça a ilicitude criminal a actos de idêntica natureza aos do presente processo, AA está centrado na sua realidade de privação da liberdade, demonstrando dificuldades em se pronunciar de modo inequívoco sobre as tipologias criminais e em reconhecer a gravidade destas na autodeterminação sexual das vítimas.”
Em síntese: os factos são crimes plúrimos, crimes contra a autodeterminação sexual das filhas do arguido, perpetrados nas pessoas de duas menores (e de idades abaixo dos 14 anos), insiste-se, filhas do arguido, por um período dilatado, de pelo menos 6 anos. Como ocorre muitas vezes, quem comete este tipo de crimes não evidencia socialmente um tipo de desajustamento ou perversidade, antes o faz a coberto da privacidade do lar, e contra vítimas relativamente às quais tinha deveres de proteção e cuidado. Por isso, não é rotundamente relevante (embora seja favorável) que o arguido tenha hábitos de trabalho e seja primário. Além de que, não sendo conhecidos no seu meio social os factos em apreciação, não goze de imagem negativa e mantenha o apoio dos irmãos. Já, pelo contrário, é muito relevante que a personalidade do arguido, espelhada nos factos que praticou e no seu posicionamento perante a tipologia criminal abstrata, se revele como “a de um indivíduo com facilidade em delinquir neste âmbito, sem entraves de consciência nem preocupação com as consequências dos seus actos”. Recorde-se ainda este trecho da matéria de facto provada: “27. O arguido praticou os factos descritos aproveitando-se do ascendente e da relação de parentalidade que mantinha com as menores, por ser pai das mesmas, com quem se encontrava numa relação familiar e de coabitação, e, apesar disso, não se coibiu de praticar tais actos. 28. Ao agir da forma descrita, o arguido actuou com a intenção que concretizou de dar satisfação aos seus instintos lascivos e libidinosos, utilizando, para tanto, as menores, suas filhas, em actos sexuais, designadamente através de apalpões no corpo, actos de masturbação, sexo oral, por meio de conversas e expondo-as a actividades sexuais, indiferente às suas idades e às consequências de tal actuação sobre as mesmas. 29. E sabia também o arguido que ao actuar da forma descrita, perturbava e estava a prejudicar, de forma séria, o desenvolvimento da personalidade das menores BB e CC, suas filhas, menores de 14 anos, que ofendia os seus sentimentos de criança, pondo em causa o seu são desenvolvimento psicológico, afectivo e da consciência sexual daquelas. 30. O arguido agiu sempre de forma voluntária, livre e consciente, ciente de que as suas descritas condutas eram proibidas e punidas por lei.” 4. Considerações finais Ponderem-se, com efeito, as importantes aportações do Acórdão deste STJ de 22-01-2020, proferido no Proc.º n.º 430/16.6GABRR.S1 (Relatora: Conselheira Teresa Féria):_ “A especial vulnerabilidade da criança associada à gravidade dos danos causados ao desenvolvimento da sua personalidade fundamenta a necessidade da sua especial proteção no tocante a quaisquer condutas de natureza sexual que, com elas ou nelas, sejam levadas a cabo. Estas condutas de sexualização forçada das crianças, designada como violência sexual pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos, são por este caraterizadas como uma das formas de obstaculização do gozo e exercício dos seus mais elementares direitos. Daí que a Convenção dos Direitos da Criança, vigente na ordem interna desde 21 de outubro de 1990, estabeleça, nos seus artigos 19º e 34º, que as crianças têm o direito a estar protegidas de todas as formas de violência sexual. Não obstante, é um facto público e notório que os abusos sexuais a crianças são uma conduta criminosa com elevada incidência. No estudo realizado pela UNICEF ([23])em 2014 afirma-se mesmo que se estima que cerca de 120 milhões de raparigas, com idade inferior a 20 anos, já tenha sido sujeita a relações sexuais forçadas ou à prática de qualquer ato sexual sem o seu consentimento. Esse mesmo estudo indica serem de diferente natureza as consequências de se haver sofrido um abuso sexual. Para além das eventuais consequências físicas diretas, como a exposição ao HIV ou a gravidez precoce, também se verificam comportamentos de autoagressão, desenvolvimento de distúrbios alimentares, como bulimia e anorexia. Igualmente é afetada a saúde mental, sendo frequente, na adolescência a ocorrência de “depressão, isolamento, comportamento suicida, autoagressão, queixas somáticas, actos ilegais, fugas, consumo de substâncias e comportamento sexual inadequado”. ([24]) Notas: [23] “Hidden in Plain Sight” http://files.unicef.org/publications/files/Hidden_in_plain_sight_statistical_analysis_EN_3_Sept_2014.pdf. [24] “Características dos Abusadores Sexuais” – Ana Garrido Nascimento – Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar da Universidade do Porto – pag. 36. No que toca às exigências de prevenção especial, se é certo que os elementos positivos, favoráveis ao arguido já referidos (conquanto matizados), algo atenuariam o alarme perante a possibilidade de reincidência, a verdade é que o hábito de alcoolismo poderá ser um fator potenciador de novos ilícitos. Por outro lado, avulta na personalidade do arguido que exala dos factos, indiferença e até cinismo (cf. ponto 12 dos factos provados), “sem entraves de consciência nem preocupação com as consequências dos seus actos”. *** Em suma, a culpa do arguido é muito elevada, pelo desvalor das ações que quis empreender e concretizou e do desvalor dos resultados que procurou e conseguiu efetivar. A sua personalidade do arguido (pesem todas as invocações e alguns elementos de facto já apontados) não é de molde a tranquilizar a comunidade quanto ao seu comportamento futuro (que, contudo, se deseja venha a ser normativo, aproveitando da possibilidade de repensar a sua vida, até porque ainda é jovem), reclamando-se quer em prevenção especial quer em prevenção geral, e não ultrapassando a sua culpa, uma pena não abaixo do razoável para manter as expetativas sociais de defesa da legalidade. Ponderando o exposto e a moldura penal em concreto, a pena aplicada não se revela desproporcional nem contrária às regras da experiência, nem às exigências de prevenção e não excede a culpa do arguido. Entre 6 e 25 anos, 14 anos é uma pena abaixo do nível médio, matematicamente possível, sendo que o facto global é grave e há perigo de reincidência pela personalidade do arguido, remetendo para elevadas necessidades de prevenção geral e especial. Os parâmetros estabelecidos pelos critérios legais ínsitos nos artigos 40.º, 71.º e 77.º, do Código Penal foram assim respeitados. Pelo que a pena única se revela adequada e proporcional à gravidade e pluralidade dos factos e ao nível de perigosidade do agente. Não podendo, consequentemente, afirmar-se existir desproporcionalidade no quantum da pena do cúmulo jurídico operado, é a mesma de manter, confirmando-se o Acórdão recorrido. IV Dispositivo Termos em que, decidindo em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça se acorda em negar provimento ao recurso, confirmando integralmente o Acórdão recorrido. Custas pelo arguido – art.º 513.º n.º 1 do CPP -, fixando-se a taxa de justiça em 6 UCs - art.º 8.º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais. Taxa de Justiça: 6 UCs Supremo Tribunal de Justiça, 28 de setembro de 2022 Dr. Paulo Ferreira da Cunha (Relator) Dr.ª Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta) Dr. Sénio Alves (Juiz Conselheiro Adjunto) |