Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2141/13.5TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GARCIA CALEJO
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE COMARCA
TRIBUNAL DO TRABALHO
ACORDO DE PRÉ-REFORMA
SUSPENSÃO DO TRABALHO
CONTRATO MUTUO
PENSÃO DE REFORMA
Data do Acordão: 12/01/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática:
ORGANIZAÇÃO JUDICIÁRIA - TRIBUNAIS JUDICIAIS DE PRIMEIRA INSTÂNCIA / TRIBUNAIS DO TRABALHO / COMPETÊNCIA CÍVEL.
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - TRIBUNAL / COMPETÊNCIA INTERNA / COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA.
DIREITO DO TRABALHO - CONTRATO DE TRABALHO / SUSPENSÃO DO CONTRATO / CESSAÇÃO DO CONTRATO / MODALIDADES DE CESSAÇÃO DO CONTRATO DE TRABALHO / CADUCIDADE.
Doutrina:
- Alberto Reis, Comentários ao Código de Processo Civil, 1.º, p. 110.
- Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, p. 94.
Legislação Nacional:
CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1152.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 64.º, 65.º.
CÓDIGO DO TRABALHO (CT) / 2003: - ARTIGOS 356.º, N.º1, AL. A), 358.º, 384.º, AL. A), E 387.º, AL. C),
CÓDIGO DO TRABALHO (CT) / 2009: - ARTIGOS 11.º, 340.º AL. A) E 343.º, AL. C),
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 211.º, N.º 1.
LEI DE ORGANIZAÇÃO DE FUNCIONAMENTO DOS TRIBUNAIS JUDICIAIS, LEI N.º 3/99 DE 13-1 (LOFTJ): - ARTIGO 85.º, AL.B).
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 25-3-2009, IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I - Para determinação da competência em razão da matéria, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo autor, pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante.

II - A competência dos tribunais de comarca determina-se por um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias que não estiverem conferidas aos tribunais de competência especializada.

III - Compete aos tribunais de trabalho, nos termos do art. 85.º, al. b), da LOFTJ (aplicável ao caso), conhecer em matéria cível “das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho”, donde resulta que a competência desses tribunais está directamente dependente do exercício de um direito derivado de uma relação laboral.

IV - Face ao regime legal então em vigor, com a pré-reforma o trabalhador reduzia ou suspendia a sua prestação de trabalho, mantendo, porém, o direito a receber do empregador uma prestação pecuniária mensal até à sua passagem à situação de pensionista. Durante o período de pré-reforma, o trabalhador mantinha os direitos decorrentes do acordo firmado com a entidade patronal.

V - No caso dos autos, através do primeiro contrato celebrado pelas partes (em 29-05-2007), o réu, entrou numa situação de pré-reforma (com efeitos a partir de 31-05-2007). Neste momento o contrato de trabalho ficou suspenso (mas não extinto), mantendo o direito a receber do empregador uma prestação pecuniária mensal até à sua passagem à situação de pensionista, tendo sido em razão deste imperativo que se fixou a prestação de pré-reforma (cláusula 3.ª do acordo de pré-reforma) a pagar ao réu. pela sua entidade patronal.

VI – Posteriormente, as partes celebraram um novo contrato, que apelidaram de mútuo e, segundo o qual, a autora se comprometeu a garantir ao réu, o adiantamento do valor estimado da pensão de reforma (com início a 01-06-2008).

VII - O mútuo, conforme consta no documento, foi concedido pela entidade patronal, a ora autora, ao seu trabalhador, o réu, para garantir o valor estimado da reforma.

VIII - A pensão de velhice veio a ser deferida ao réu em 23-04-2010, mas com data de início em 12-03-2008, donde decorre que a pensão de velhice foi concedida ao réu retroactivamente.

IX - A partir da sua passagem à reforma cessa a relação laboral do trabalhador, em relação à sua entidade patronal, como flui do disposto nos arts. 384.º, al. a), e 387.º, al. c), do CT, vigente à data dos factos (hoje arts. 340.º al. a) e 343.º, al. c), do actual CT).

X - Dada a data em que se deve ter como finda a relação laboral (12-03-2008), não se poderá dizer que, na altura da realização do contrato de mútuo, persistia a relação laboral do réu em relação à sua entidade patronal.

XI - A causa de pedir dos autos (empréstimo concedido sem que o beneficiário tenha devolvido a quantia mutuada), não era, nem decorria, do contrato de trabalho vigente entre as partes, emergindo (antes) de uma relação de âmbito puramente cível, pelo que a competência para dirimir o pleito deverá pertencer aos tribunais comuns.
Decisão Texto Integral:

             Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

                       

                       

                       

                        1-1- AA, S.A. instaurou a presente acção declarativa de condenação contra BB, alegando, em síntese que, em 29 de Maio de 2007, na qualidade de entidade patronal, celebrou com o R. o acordo de pré-reforma que constitui o documento cuja cópia consta de fls. 19 a 22. No âmbito da cláusula 9ª do referido acordo, o R. deveria requerer à entidade oficial competente a passagem à situação de reforma. Em 17 de Julho de 2008, A. e R. acordaram que a primeira emprestaria ao R., até que a este fosse concedida a passagem à reforma antecipada, o montante de € 1.500 (mil e quinhentos euros) por mês (14 catorze meses por ano). No âmbito do referido contrato, a primeira prestação de empréstimo teria lugar em 01 de Junho de 2008 e o prazo do empréstimo findava na data em que o R. começasse a receber directamente do Centro Nacional de Pensões, a sua pensão de reforma, tendo-se, ainda, o R. comprometido a informar a A. da data na qual começasse a receber tal pensão. Nos termos do já mencionado contrato de mútuo, o reembolso do empréstimo deveria ser integralmente realizado no prazo de 10 (dez) dias a contar da data em que o segundo outorgante recebesse do Centro Nacional de Pensões a importância retroactiva da sua pensão de reforma. A A. emprestou ao R. o valor mensal acordado, de Junho de 2008 a Maio de 2010 (conforme extracto de conta corrente relativa ao R. e recibos de vencimentos de Julho de 2008 a Maio de 2010, aí mencionados), nos montantes mensais que indica. A A., apenas em 23 de Março de 2010, foi notificada pelo Instituto de Segurança Social IP – Centro Nacional de Pensões, do deferimento da pensão de reforma ao R., com efeitos reportados à data de 12 de Março de 2008. Acontece que, ao contrário do que previa a cláusula 9ª do acordo de pré-reforma, o R. não informou a A. em como lhe tinha sido deferido o pedido de pensão a título de reforma. Na ausência de reembolso dos montantes emprestados, o que era devido ao abrigo da cláusula 4ª do contrato de mútuo, nos termos supra expostos, a A. notificou o R. para regularizar o saldo devedor de € 42.000,00 (quarenta e dois mil euros), por meio de carta registada, datada de 19 de Dezembro de 2011, sendo que o R. respondeu, através de carta datada de 9 de Dezembro de 2012, na qual referiu ter procedido à transferência bancária no montante de € 13.496,40 (treze mil quatrocentos e noventa e seis euros e quarenta cêntimos) por conta da dívida para com a A., montante que esta reconhece ter recebido. Ficou, assim, por liquidar, relativamente ao «contrato de mútuo», a quantia de € 28.503,60.

                       Concluiu pedindo que o R. seja condenado a pagar-lhe o montante de € 34.236,31 (trinta e quatro mil duzentos e trinta e seis euros e trinta e um cêntimos) a título de reembolso de empréstimo» e os «juros de mora vincendos, calculados à taxa legal em vigor para os juros comerciais sobre o montante referido, desde 03/05/2010 até integral e efectivo pagamento do montante relativo ao reembolso do empréstimo, os quais se contabilizam, em € 5.079,99 (cinco mil e setenta e nove euros e noventa e nove cêntimos).

                       O R. contestou tendo, além do mais, deduzido a excepção dilatória da incompetência material do tribunal, defendendo ser competente o Tribunal do Trabalho de Loures.

                       Por decisão proferida em 02-1-2014, foi julgada procedente a deduzida excepção da incompetência material, com a consequente absolvição do R. da instância.

                         

                       1-2- Não se conformando com esta decisão, dela recorreu a A. de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa tendo-se aí, por acórdão de 9-7-2015, julgado improcedente o recurso, confirmando-se a sentença recorrida.

                       

                       1-3- Irresignada com este acórdão, dele recorreu a A. para este Supremo Tribunal, recurso que foi admitido como revista e com efeito devolutivo.

                       

                       A recorrente alegou, tendo das suas alegações retirado as seguintes conclusões:

                       A. Faz-se notar, antes de mais, que, sobre factualidade muito semelhante (quase idêntica) em sede do Proc. 83/14.6TTLSB.L1 que correu termos no Processo Tribunal da Relação de Lisboa, 7ª Secção e em que eram partes a ora Recorrente e outro ex-trabalhador da mesma, decidiu a Relação (sem votos de vencido) como se segue (ver Doc. 1 que ora se junta):

                        " (...) Dispõe o artigo 85.° da LOFTJ que "compete aos tribunais do trabalho conhecer, em matéria cível… b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho".

 A propósito da interpretação do preceito em causa, escreveu-se no Ac. Do STJ de 16.11.2010, P. 981/07.3TTBRG.S1, rel., Cons. Sousa Grandão, in www.dgsi.pt, que "Basta compaginar o teor daquela alínea b) com o da sequente alínea o) para se perceber que "as questões emergentes" ali configuradas não abarcam todas as questões surgidas entre a entidade patronal e o trabalhador; se assim fosse, quedaria injustificado o comando da alínea o), pois que todas elas já seriam integráveis na sobredita previsão antecedente (cfr. Ac. STJ de 3/5/2000, in CJ do STJ Ano VIII, Tomo 2, página 39). Sendo assim, é forçoso reconhecer que as "questões" elencáveis na alínea b) são apenas aquelas que possam integrar o núcleo essencial (que não acessório, complementar ou dependente) da relação de trabalho" (...)

A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da acção. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respectivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão" (...)

Tal empréstimo deriva da vontade das partes (mesmo que com várias razões subjacentes) e não de qualquer cláusula contratual ou de AE.

Embora subjacente tenha a relação laboral referida, o crédito invocado na acção, tal como configurado pelo A, não "emerge" dessa relação. O pagamento da prestação de pré-reforma processa-se no âmbito do acordo de suspensão do contrato individual de trabalho [E é processado até à data da reforma].

Já o pagamento das prestações mensais do empréstimo processa-se numa fase em que o R. já requereu a passagem à situação de reforma, vindo a ser reformado, por velhice, com efeitos reportados à data de 31.11.2008.

Não se pode, assim, dizer, que o pedido da A. emerge da relação de trabalho subordinado, por ser o reembolso do montante mutuado, ao abrigo do acordo celebrado, que está em causa.

(...) conclui-se ser o tribunal cível, o competente para conhecer da presente acção. (...)".

                        B. Já nos autos, o entendimento do Tribunal da Relação partiu do pressuposto de o acordo de pré-reforma e o posterior contrato de mútuo visaram ambos a cessação do contrato trabalho, o que, salvo devido respeito, é errado!

                       C. O que aconteceu é que o contrato de mútuo foi celebrado num determinado contexto factual, no qual, efectivamente, havia sido celebrado um acordo de pré-reforma entre as partes. Nessa sede, o R./Recorrido havia-se obrigado a requerer a passagem da sua situação à reforma até uma determinada data (12 de Março de 2008) de e é apenas após essa data (17 de Julho de 2008) que é celebrado o contrato de mútuo.

                       D. Mas daqui não decorre que o contrato de mútuo tenha sido celebrado com vista à cessação da relação laboral! Tratou-se, antes - no contexto da vontade que ambas as partes tinham na cessação da relação laboral, expressa no acordo de pré-reforma ao qual se seguiria a passagem à reforma do R./Recorrido - de uma liberalidade da A./Recorrente, no sentido de minimizar os efeitos de não ter sido concedida imediatamente a passagem à reforma do R./Recorrido (cujo pedido era responsabilidade sua, do R./Recorrido - ver cláusula 9.° n.° 1 do dito acordo, junto como Doc. 1 da PI).

                        E. De facto, encontramo-nos perante a situação descrita no artigo 85.° al) o) da LOFTJ ("(...) Das questões entre sujeitos de uma relação jurídica de trabalho (...), quando emergentes de relações conexas com a relação de trabalho, por acessoriedade, complementaridade ou dependência (...)) embora não se verifique a cumulação desse pedido com outro para o qual o tribunal seja directamente competente - e daí não se aplicar aquela alínea.

                        F. É que, como foi muito bem observado por esse Digno STJ: "(...) Basta compaginar o teor daquela alínea b) com o da sequente alínea o) para se perceber que "as questões emergentes" ali configuradas não abarcam todas as questões surgidas entre a entidade patronal e o trabalhador: se assim fosse, quedaria injustificado o comando da alínea o), pois que todas elas já seriam integráveis na sobredita previsão antecedente (cfr. Ac. S.T.J. de 3/5/2000 in C.J. do S.T.J; Ano VIII, Tomo 2, página 39) (...) ".

                        G. Já seria de considerar de outra forma caso decorresse da relação laboral que vinculava as partes a obrigação de a A./Recorrente efectuar adiantamentos da pensão de reforma ao R./Recorrido enquanto a sua passagem à situação de reforma não fosse concedida (quer por meio de IRCT ou de cláusula de contrato individual de trabalho). Aí, estaríamos, efectivamente, perante a situação descrita na alínea b) do artigo 85.° da LOFJT "b) Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho".

                       H. No caso em apreço, nem o Acordo de Empresa aplicável, nem o contrato individual de trabalho celebrado entre as partes impunha aquela obrigação, pelo que os empréstimos concedidos pela A./Recorrente ao R./Recorrente foram consequência de uma liberalidade da primeira e não de qualquer obrigação laboral assumida entre as partes.

                       I. Na verdade, entende-se que, para que se possa analisar a aplicação do Direito ao caso concreto (ou seja, a aplicação do artigo 85°, alínea b) da Lei n.° 3/99, de 13 de Janeiro - LOFTJ - e sua correcção), haverá que analisar três temas:

 i.   O que constitui "causa de pedir"?

ii. Qual foi, no caso concreto, a causa de pedir nos autos, tal como configurada pela A./ Recorrida?

iii. Tendo em consideração a causa de pedir configurada pela A./Recorrente nos autos, o artigo 85.° al) b) da LOFTJ era aplicável, no caso concreto?

                        J. Quanto ao conceito de causa de pedir: é entendimento jurisprudencial, pacífico, o facto de a competência do tribunal em razão da matéria, no confronto do tribunal do trabalho com as instâncias cíveis, ser essencialmente determinada à luz da estrutura do objecto do processo, envolvida pela causa de pedir e pelo pedido, formulados na petição inicial, independentemente da estrutura civil ou laboral das normas jurídicas substantivas aplicáveis.

                        K. De facto, todo o pedido tem de ter uma "justificação", um "fundamento", sendo esses fundamentos e justificações correspondentes a factos que devem ser alegados num articulado, para que se possa formular, a final, o pedido correspondente.

                        L. De acordo com o princípio do dispositivo, a regra é a de que às partes incumbe afirmar os factos essenciais integrantes da causa de pedir e aqueles em que se baseiem as excepções (art. 264°, n°1,CPC).

                       M. Note-se, ainda, que nos termos do artigo 5.° do CPC (cuja epígrafe é "Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal"), cabe às partes alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir, devendo, ainda ser considerados pelo juiz "os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar" .

                       N. Interessará, agora, distinguir entre "factos essenciais" (que constituem, verdadeiramente, a causa de pedir) e "factos complementares" que desempenham uma função acessória, que decorrem necessariamente dos outros ou os antecedam, mas que não constituem, em si, a causa de pedir.

                       O. Conforme se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de data de 25-06-2013 (Processo n.° 5261/05.6TVLSB.L1-1), consultável em www.dgsi.pt, quanto a "factos complementares": " (...) Assim, os factos complementares serão aqueles que, na economia de uma fattispecie normativa complexa, desempenham claramente uma função secundária ou acessória relativamente ao núcleo essencial da causa de pedir ou da defesa - podendo, por exemplo, tratar-se de factos circunstanciais negativos (susceptíveis de originar dúvida fundada sobre se ainda se trata de um elemento circunstancial constitutivo de uma causa petendi complexa ou, pelo contrário, de um facto impeditivo a alegar pela contraparte - sirva de exemplo, na acção de despejo para habitação própria do senhorio, a alegação de que este ainda não tinha utilizado a faculdade de denúncia) ou de factos que, na normalidade das situações da vida e segundo as regras de experiência, já fluem de outros (estando, por isso, de algum modo implícitos na alegação dos primeiros - sirva de exemplo, em acção de responsabilidade civil extracontratual fundada numa relação comitente/comissário devidamente concretizada, a expressa alegação de que o facto danoso ocorreu no exercício das funções de comissário). (...)".

                       P. Cumpre, ora, descortinar, à luz do supra exposto, qual foi a causa de pedir invocada pela A./Recorrente na sua petição inicial ("PI"), tal como configurada pela última (e qual o pedido associado a tal causa de pedir).

                       Q. A causa de pedir da A./Recorrida, tal como configurada por esta na sua PI, ou seja, aquela que fundamentou, ou justificou o pedido de restituição dos montantes emprestados ao R. e nunca restituídos (pedido), foi: (i) a concessão de vários empréstimos ao R./Recorrente pela A./Recorrida, a qual foi formalmente reduzida a escrito, em sede do contrato de mútuo celebrado entre as Partes (junto como Doe. 2 da PI), assim como (ii) o incumprimento, por parte do R./Recorrido, da obrigação de restituição dos empréstimos.

                       R. Face a esta causa de pedir, pediu a A./Recorrente a restituição dos montantes mutuados ao R./Recorrido, acrescidos dos juros de mora legais (pedido); assim, os factos essenciais, alegados pela A./Recorrida, foram os que respeitavam àqueles empréstimos e à falta da sua restituição, sendo factos meramente complementares aqueles referentes ao contexto factual anterior ao da concessão dos ditos empréstimos.

                        S. Ou seja, são factos complementares, e não essenciais, o facto de as partes terem tido um vínculo laboral, no passado, (e de, nos termos do acordo de pré-reforma celebrado entre as partes enquanto vigorava o dito contrato de trabalho, incumbir ao R./Recorrente requerer a concessão da sua passagem à reforma), ou mesmo a motivação (subjectiva) da A./Recorrente que a levou a decidiu conceder os empréstimos.

                       T. Na verdade, aqueles factos (complementares, referidos no número anterior) apenas foram expostos em sede da PI pela A./Recorrente para que o Tribunal de Primeira Instância compreendesse, de forma clara, qual era o prazo de restituição dos empréstimos, tal como havia ficado acordado entre as Partes.

                        U. Assim, a causa de pedir, em causa, nos autos, não era (nem decorria de) (i) o contrato de trabalho vigente entre as partes (que cessou com a concessão do estatuto de reformado e atribuição de pensão de velhice ao R./Recorrido, com efeitos à data de 12.03.2008), (ii) nem o Acordo de Pré-reforma celebrado entre as partes em data de 29 de Maio de 2007, que cessou no mesmo momento (da passagem à reforma do R./Recorrido), nos termos da respectiva cláusula 11º n.°2 al.) a).

                       V. Quanto à aplicabilidade do artigo 85.° al) b) da LOFTJ: nos termos do artigo 18.° da LOFTJ "são da competência dos tribunais judiciais as causas que, em razão da matéria, não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional"; já o artigo 65.° do mesmo diploma legal determina que "as leis da organização judiciária determinam quais são as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada".

                      W. Em matéria cível, a competência dos tribunais do trabalho vem elencada no artigo 85.° da LOFTJ, mais estabelecendo a alínea b) daquele artigo que: "Das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho".

                       X. Conforme se pode ler no Acórdão do STJ de 16-11-2010 (Processo n.° 981/07.3TTBRG.S1), consultável em www.dgsi.pt, sobre a alínea b), do art. 85.°, da LOFTJ: " (...) As "questões" a que alude a alínea b), do art. 85.°, da LOFTJ, são apenas aquelas que possam integrar o conteúdo essencial (que não acessório, complementar ou dependente) da relação de trabalho.

IV - O que a previsão contida na citada alínea b) tem de substancial - nexo de emergência de uma relação de trabalho subordinado - é a natureza do direito que se pretende ver acautelado, tornando-se mister que ele provenha - ou seja emergente - da violação de obrigações que, para o demandado, resultem de uma relação jurídica laboral, esteja ou não ela extinta. (...)

Basta compaginar o teor daquela alínea b) com o da sequente alínea o) para se perceber que "as questões emergentes" ali configuradas não abarcam todas as questões surgidas entre a entidade patronal e o trabalhador: se assim fosse, quedaria injustificado o comando da alínea o), pois que todas elas já seriam integráveis na sobredita previsão antecedente (cfr. Ac. S.T.J. de 3/5/2000 in C.J. do S.T.J; Ano VIII, Tomo 2, página 39). (...)".

                        Y. Ora, sempre se terá de concluir que não decorria, da relação laboral mantida entre as partes, qualquer obrigação para a A./Recorrente perante o R./Recorrido, no que respeitava o adiantamento de pensão de reforma, pelo que aquela decisão (de concessão dos empréstimos), nem integrava o seu núcleo essencial.

                       Z. Não tivesse a A./Recorrente emprestado os montantes em causa ao R./Recorrido, este nada lhe poderia exigir, no âmbito de quaisquer obrigações que pudessem emergir da relação laboral.

                       AA. O que acontece, é que o R./Recorrente passou à situação de reforma com efeitos retroactivos!

                       BB. Entendeu, necessariamente, o Tribunal da Relação que o contrato de mútuo tinha sido celebrado no contexto da relação laboral e que era consequência daquela, com o que não se concorda.

                       CC. Ora, não se concebe ser possível considerar, por um lado, que entre Julho de 2008 e Maio de 2010 estava vigente um contrato de trabalho entre as partes e que, ao mesmo tempo, no mesmo período temporal, o Recorrido tivesse direito (desde 12 de Março de 2008, data em que perfez os 60 (sessenta) anos), ao reconhecimento da situação de pensionista e às pensões de reforma correspondentes - as quais foram por si recebidas e aceites.

                       DD. Juridicamente, não é possível ser reconhecido, simultaneamente, ao R./Recorrido, o estatuto (i) de trabalhador e (ii) de reformado, no período contido entre 12 de Março de 2008 e Maio de 2010!

                       EE. De facto, nos termos do artigo 343.° al) c) do Código do Trabalho, o contrato de trabalho cessa com a reforma do trabalhador (concedida pelo ISS,IP com efeitos a 12 de Março de 2008, data que deve ser tida em consideração para efeitos de caducidade do contrato de trabalho mantido entre as partes).

                       FF. Ora, os mútuos foram concedidos pela A. entre Dezembro de 2008 e Abril de 2010 (espaço temporal em que a situação de reformado do R./Recorrente já foi reconhecida).

                       GG. Ora, os mútuos foram concedidos pela A. entre Dezembro de 2008 e Abril de 2010 (espaço temporal em que a situação de reformado do R./Recorrente já foi reconhecida).

                       HH. Há que esclarecer, em termos cronológicos, qual a natureza das relações jurídicas mantidas entre as partes que deve ser reconhecida:

d) até data de 28 de Maio de 2007: vigência de contrato de trabalho por tempo indeterminado celebrado entre A. e R.;

e) de 29 de Maio de 2007 até 11 de Março de 2008: Situação de pré-reforma do R. (acordo junto como Doc.1 da PI) - altura em que o contrato de trabalho se encontrava vigente, mas suspenso;

f) a partir de 12 de Março de 2008: situação de reformado do R. (e passagem à reforma naquela data, reconhecida retroactivamente pelo ISS, IP, conforme confessado nos artigos 25.° a 27.° da Contestação do R. e conforme decorre do Doc. 25 junto à PI, com consequente pagamento das pensões de velhice a partir dessa data).

                       II. Diga-se, ainda, que para além dos motivos óbvios, nem se poderia verificar haver relação laboral naquelas datas, porquanto, nos termos do artigo 11.° do Código de Trabalho ("CT"): "Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas".

                       JJ. E, também, nos termos do artigo 1152.° do Cciv., "Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob autoridade e direcção desta".

                       KK. Ora não houve, no período em causa, entre 01 de Junho de 2008 e o último de 31 de Maio de 2010, qualquer prestação de actividade intelectual ou manual da parte do R./Recorrente no âmbito de organização da A./Recorrente e sob a autoridade desta - tendo sido pagas, referentes a essas datas e períodos, pensões de velhice ao R./Recorrente pelo ISS,IP.

                        LL. Mais se faz notar que nos termos do artigo 258.° n.° 1 do Código de Trabalho "Considera-se retribuição a prestação a que, nos termos do contrato, das normas que o regem ou dos usos, o trabalhador tem direito em contrapartida do seu trabalho", sendo 4 (quatro) os seus elementos constitutivos:

i. a atribuição de um conjunto de valores;

ii. a obrigatoriedade da sua atribuição;

iii. a periodicidade da sua atribuição; e

iv. ser contrapartida da prestação de trabalho (elemento que não se verifica in casu, uma vez que não existiu qualquer prestação de trabalho por parte do R./Recorrente durante a vigência do contrato de mútuo).

                       MM. Chegados a este ponto, cumpre concluir que a aplicação do artigo 85° al) b) da LOFTJ é incorrecta, sendo que a causa dos Autos era da competência dos tribunais genéricos (varas cíveis).

                       NN. De facto, existem várias decisões judiciais que consideraram que o tribunal competente era o tribunal comum, face ao mesmo tipo de factualidade do que a dos autos, ou seja, em que os empréstimos foram concedidos por uma parte que já fora empregadora da outra parte (sendo certo que, em tais decisões, decorria do Acordo de Empresa celebrado entre a TAP e o Sindicato de Pilotos da Aviação Civil, a obrigação de adiantar as pensões de reforma até que o CNP concedesse as mesmas) (foi o caso (i) do Processo n° 1021/05.2YXLSB, que correu termos no 7.° Juízo Cível da Comarca de Lisboa; e (ii) da decisão da 13.a Vara Cível de Lisboa, 1,° Secção, em sede do Processo n.° 87/05.0TVLSB (ver Doe. 2 e Doc. 3 em anexo).

                       OO. Acresce que o entendimento de que se aplica aquele artigo 85° al.) b) da LOFTJ conduziria ao absurdo de ser factualmente impossível a A./Recorrente poder recorrer aos Tribunais de competência especializada (Trabalho) para exercer o seu direito à restituição, já que, no momento em que o ISS.IP reconheceu, com efeitos a 03-11-2008, que deveria ser atribuída a pensão de velhice ao R:/Recorrido (e, portanto, a condição e estatuto de reformado) já tinham prescrito quaisquer créditos laborais ao abrigo do contrato de trabalho celebrado com a A./Recorrente (artigo 337° n.° 1 do Código de Trabalho: "O crédito de empregador ou de trabalhador emergente de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho").

                        PP. Quer isto dizer que, considerar que se aplica in casu aquele artigo 85° al) b) da LOSJ, sendo certo que nunca seria possível recorrer aos Tribunais de competência especializada em Trabalho, por estarem prescritos os créditos no momento em que podiam ser exigidos, é vedar à A./Recorrente o direito ao acesso aos Tribunais!

                        QQ. Note-se que o que está, aqui, em causa, é o direito constitucionalmente consagrado de acesso ao direito e tutela jurisdicional efectiva acesso à Justiça (artigo 20° nº 5 da Constituição da República Portuguesa "Para defesa dos direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos").

                         

                       O recorrido contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação do acórdão recorrido.

                       

                        Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir:

                       

                        II- Fundamentação:

                       2-1- Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente, apreciaremos apenas a questão que ali foi enunciada (art. 639º nºs 1 e 2 do Novo C.P.Civil).

                        Nesta conformidade, será o seguinte o tema a apreciar e decidir:

                        - Se o tribunal comum é o competente para conhecer do presente pleito e, consequentemente, se o tribunal do trabalho é materialmente incompetente para apreciar e decidir a acção.                   

                       

                        2-2- Com interesse para a decisão, foram dadas como assente pela Relação a seguintes circunstâncias de facto:

                       - Foi celebrado, em 29-05-2007, entre A. e R. um acordo de “pré-reforma”, com cópia junta a folhas 19 a 22, nos termos dos artigos 356º a 362º do Código do Trabalho, na redacção então vigente, através do qual as partes acordaram na suspensão do contrato de trabalho, com efeitos a partir de 31-05-2007.

                       - Em 17-06-2008 foi celebrado entre A. e R. um outro acordo que denominaram de “Contrato de Mútuo”, com cópia junta a folhas 23 e 24, do qual consta que tendo o ora R. requerido a passagem à situação de reforma antecipada, até à conclusão do processo, a ora A., garantia o adiantamento do valor estimado da pensão de reforma, concedendo-lhe “a título de adiantamento da pensão… um empréstimo de valor estimado ao do somatório das suas pensões de reforma no período que medeia a data do pedido de passagem à situação de reforma e a do pagamento da respectiva pensão por parte do Centro Nacional de Pensões”.

                       - A pensão de velhice só veio a ser deferida ao ora R. em 23-04-2010, ainda que com data de início em 12-03-2008.

                       

                       Na presente revista a recorrente sustenta, em síntese, que o pagamento das prestações mensais do empréstimo que fundamenta a causa de pedir processa-se numa fase em que o R. já requereu a passagem à situação de reforma, vindo a ser reformado, por velhice, com efeitos reportados à data de 31.11.2008. Não se pode, assim, dizer, que o pedido da A. emerge da relação de trabalho subordinado, por ser o reembolso do montante mutuado, ao abrigo do acordo celebrado, que está em causa, pelo que se deve concluir ser o tribunal cível, o competente para conhecer da presente acção. O entendimento do Tribunal da Relação partiu do pressuposto de que o acordo de pré-reforma e o posterior contrato de mútuo visaram ambos a cessação do contrato trabalho, o que é errado. O que aconteceu é que o contrato de mútuo foi celebrado por o R. se ter obrigado a requerer a passagem da sua situação à reforma até uma determinada data (12 de Março de 2008), sendo que é apenas após essa data (17 de Julho de 2008) que é celebrado o contrato de mútuo. Este não foi celebrado com vista à cessação da relação laboral. Tratou-se, antes (no contexto da vontade que ambas as partes tinham na cessação da relação laboral, expressa no acordo de pré-reforma ao qual se seguiria a passagem à reforma do R./recorrido) de uma liberalidade da A., no sentido de minimizar os efeitos de não ter sido concedida imediatamente a passagem à reforma do R.. A causa de pedir, em causa, nos autos, não era, nem decorria, do contrato de trabalho vigente entre as partes (que cessou com a concessão do estatuto de reformado e atribuição de pensão de velhice ao R./recorrido, com efeitos à data de 12.03.2008), nem o acordo de pré-reforma celebrado entre as partes em data de 29 de Maio de 2007, que cessou no mesmo momento (da passagem à reforma do R./recorrido), nos termos da respectiva cláusula 11º nº 2 al.) a), mas sim do contrato de empréstimo celebrado pelas partes.

                        Vejamos:

                       A questão que se coloca é a de se saber se o tribunal judicial onde a acção foi proposta é, ou não, materialmente competente para conhecer do objecto da acção. As instâncias entenderam que não e, por isso, declararam o tribunal comum onde a acção foi interposta como materialmente incompetente para tramitar e julgar a acção, absolvendo o R. da instância.

                       Como nos parece pacífico, para determinação da competência em razão da matéria, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo A., pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante, ou nas doutas palavras de Alberto Reis, é assim que se caracteriza o “modo de ser do processo” (in Com. 1º, 110). Quer dizer que, para se fixar a competência dos tribunais em razão da matéria, deve atentar-se à relação jurídica material em debate e ao pedido dela emergente, segundo a versão apresentada em juízo pelo demandante.

                       A competência em razão da matéria, “deriva da competência das diversas espécies de tribunais dispostos horizontalmente, isto é, no mesmo plano, não havendo entre elas uma relação de supra-ordenação e subordinação”, sendo que “na definição desta competência a lei atende à matéria da causa, quer dizer, ao seu objecto encarado sob o ponto de vista qualitativo – o da natureza da relação substancial pleiteada. Trata-se pois de uma competência ratione materiae. A instituição de diversas espécies de tribunais e da demarcação da respectiva competência obedece a um princípio de especialização, com as vantagens que lhe são inerentes[1].

                       O art. 85° da LOFJT (Lei de Organização de Funcionamento dos Tribunais Judiciais (Lei 3/99 de 13/1 – LOFTJ -, aplicável ao caso vertente) estabelece que compete aos tribunais de comarca preparar e julgar os processos relativos a causas não abrangidos pela competência de outros tribunais. É que os tribunais de comarca, constituindo os tribunais regra dentro da organização judiciária, gozam de competência não descriminada, gozando os demais, competência em relação às matérias que lhes são especialmente cometidas. A competência dos tribunais de comarca determina-se, pois, por um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias que não estiverem conferidas aos tribunais de competência especializada. Em sentido idêntico estipula o art. 64º do C.P.Civil que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Na mesma direcção aponta o art. 211º nº 1 da Constituição da República Portuguesa ao estabelecer que “os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais”.

                        Estabelece, por sua vez, o art. 65º do C.P.Civil que “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotados de competência especializada”.

                       Neste sentido, no que toca à competência dos tribunais do trabalho, estabelece o art. 85º al. b) da LOFTJ que compete a esses tribunais conhecer em matéria cível “das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho”.

                        Deste dispositivo resulta, para o que aqui importa, que a competência dos tribunais do trabalho, está directamente dependente do exercício de um direito derivado de uma relação laboral.

                        Determina o art. 11º do Código do Trabalho actual que “contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas[2]. No mesmo sentido dispõe o art. 1152º do C.Civil que “o contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta”.

                       A característica essencial de tal contrato reside na existência da subordinação jurídica do trabalhador em relação à pessoa a quem o serviço é prestado. Como se refere no Acórdão deste STJ de 25-3-2009 (in wwww.dgsi.pt/jstj.nsf) “é pacífico que a subordinação jurídica do trabalhador à entidade patronal constitui o elemento essencialmente caracterizador do contrato de trabalho, que o diferencia de outros vínculos afins, designadamente do contrato de prestação de serviços”.

                        Nesta conformidade poder-se-á dizer que a competência material dos tribunais de trabalho assenta no exercício de um direito derivado de uma relação laboral assente numa subordinação jurídica do trabalhador à entidade patronal. Daí a lei falar, para efeitos de competência do foro laboral, de “questões emergentes de relações de trabalho subordinado”.

                       Como a Relação considerou assente, foi celebrado, em 29-05-2007, entre A. e R. um acordo de “pré-reforma”, com cópia junta a folhas 19 a 22, nos termos dos artigos 356º a 362º do Código do Trabalho de 2003 então vigente, através do qual as partes acordaram na suspensão do contrato de trabalho, com efeitos a partir de 31-05-2007.

                       Estabelecia o art. 356º Código do Trabalho que “considera-se pré-reforma a situação de redução ou de suspensão da prestação do trabalho em que o trabalhador com idade igual ou superior a cinquenta e cinco anos mantém o direito a receber do empregador uma prestação pecuniária mensal até à data da verificação de qualquer das situações previstas no n.º 1 do artigo 361.º”.

                       Estipulava, por sua vez, o art. 361º nº 1 al. a) que a situação de pré-reforma se extinguia com a passagem à situação de pensionista por limite de idade ou invalidez.

                        Por outro lado, decorria do art. 358º que o trabalhador em situação de pré-reforma tem os direitos constantes do acordo celebrado com o empregador.

                       Destes dispositivos resulta, com interesse para o caso vertente, que com a pré-reforma o trabalhador reduz ou suspende a sua prestação de trabalho, mantendo, porém, o direito a receber do empregador uma prestação pecuniária mensal até à sua passagem à situação de pensionista. Durante o período de pré-reforma, o trabalhador mantém os direitos decorrentes do acordo firmado com a entidade patronal[3].

                       Foi ainda dado como provado pela Relação que em 17-06-2008 foi celebrado entre A. e R. um outro acordo que denominaram de “Contrato de Mútuo”, do qual consta que, tendo o ora R. requerido a passagem à situação de reforma antecipada até à conclusão do processo, a ora A. garantia o adiantamento do valor estimado da pensão de reforma, concedendo-lhe “a título de adiantamento da pensão… um empréstimo de valor estimado ao do somatório das suas pensões de reforma no período que medeia a data do pedido de passagem à situação de reforma e a do pagamento da respectiva pensão por parte do Centro Nacional de Pensões”.

                        Em relação a este contrato a 1ª instância considerou que “…o documento de fls. 23 e 24 (o denominado “contrato de mútuo”) configura um acordo pelo qual a autora se comprometeu a adiantar ao réu, durante a vigência do contrato de trabalho, uma determinada quantia mensal a título da adiantamento de pensão de reforma até à data …em que este passasse efectivamente e com efeitos retroactivos a data do acordo de pré-reforma, à situação de reforma, altura em que este reembolsaria a autora da totalidade das quantias mensais que esta sucessivamente lhe foi adiantando. Da própria petição inicial e do acordo de fls. 23-24, desde logo resulta tratar-se aqui do reembolso, não do montante entregue a título de mútuo civil, antes de prestações efectuadas no âmbito de uma relação de natureza laboral, estabelecida entre as partes, prestações essas, cujo reembolso pelo réu constitui a causa de pedir da pretensão formulada pela autora no processo”. Considerou, por esta razão, que a presente acção deveria ter sido instaurada no tribunal do trabalho e não na jurisdição comum.

                       No mesmo sentido afirmou, de essencial, o douto acórdão recorrido que “ao contrário do que defende a apelante o acordo de pré-reforma e o posterior acordo que denominaram de “Contrato de Mútuo”, foram celebrados na vigência do contrato de trabalho, visando, a cessação do mesmo, nos termos acordados. E até ser concedida ao Autor a pensão de velhice o contrato de trabalho, embora suspenso, manteve-se em vigor (cf. artigos 356º a 361º do Código do Trabalho de 2003 – aprovado pela Lei n.º 99/2003 - e os artigo 318º e 322º do CT de 2009 – aprovado pela Lei 7/2009). Por se inserir entre as questões atinentes à cessação do contrato, a questão objecto da presente acção, não pode deixar de ser considerada como uma questão emergente de um contrato de trabalho subordinado. Não está em causa, como defende a apelante, uma mera obrigação emergente de um contrato de mútuo civil”. Conclui, assim, pela competência do tribunal do trabalho, com a consequente improcedência do recurso.

                       Somos em crer que a posição das instâncias não foi correcta.

                        Através do primeiro contrato celebrado pelas partes (em 29-05-2007), o R. entrou numa situação de pré-reforma (com efeitos a partir de 31-05-2007). Neste momento o contrato de trabalho ficou suspenso (mas não extinto), mantendo, como se viu acima, o direito a receber do empregador uma prestação pecuniária mensal até à sua passagem à situação de pensionista, tendo sido em razão deste imperativo que se fixou a prestação de pré-reforma (cláusula 3ª do acordo de pré-reforma), a pagar ao R. pela sua entidade patronal (cláusula 2ª do mesmo acordo).

                       Posteriormente as partes celebram um novo contrato, que apelidaram de mútuo e, segundo o qual, a A. se comprometeu a garantir ao R., o adiantamento do valor estimado da pensão de reforma (com início a 1-6-2008).

                       É precisamente neste contrato que a A. fundamenta a presente acção.

                        O mútuo, conforme consta no documento, foi concedido pela entidade patronal, a ora A., ao seu trabalhador, o R., para garantir o valor estimado da reforma.

                       Foi dado como assente que a pensão de velhice veio a ser deferida ao R. em 23-04-2010, mas com data de início em 12-03-2008. Ou seja, a pensão de velhice foi concedida ao R. retroactivamente.

                       O contrato de mútuo foi celebrado em 17-7-2008, sendo que a situação de pré-reforma se extingue, como se viu, com a passagem à situação de pensionista por limite de idade ou invalidez do trabalhador. A partir da sua passagem à reforma cessa a relação laboral do trabalhador, em relação à sua entidade patronal, como decorre do disposto nos arts. 384º al. a) e 387º al. c) do Código do Trabalho vigente à data dos factos (hoje arts. 340º al. a) e 343° al.) c) do actual Código do Trabalho).

                       No caso, os efeitos da relação laboral do R. devem ter-se com terminados em 12-3-2008 (se bem que só em 23-4-2010 se tenha definido a sua situação de reforma). Dada a data em que se deve ter como finda a relação laboral, não se poderá (agora) dizer que, na altura da realização do contrato de mútuo, persistia a relação laboral do R. em relação à sua entidade patronal, sendo também incorrecto dizer-se que ele foi celebrado com vista à cessação da relação laboral.

                       Segundo cremos, a efectivação do contrato de mútuo resultou de uma prodigalidade da A. ao R. de forma a obviar e minimizar os efeitos de não lhe vir a ser concedida imediatamente (logo que o respectivo requerimento foi efectuado) a sua a passagem à reforma, com o consequente pagamento da respectiva pensão. Daí falar-se, nos termos do contrato, de um “adiantamento do valor estimado da pensão de reforma”, antecipação monetária que o R. se comprometeu a devolver quando recebesse retroactivamente a sua pensão de reforma. Em razão de não ter devolvido o montante monetário adiantado, é que a A. interpôs a presente acção[4].

                        A causa de pedir dos autos (empréstimo concedido sem que o beneficiário tenha devolvido a quantia mutuada), não era, nem decorria, do contrato de trabalho vigente entre as partes (que, repete-se, cessou com a concessão do estatuto de reformado e atribuição de pensão de velhice ao R./recorrido, com efeitos a partir de 12.03.2008[5]), pelo que nos parece que ela emerge de uma relação de âmbito puramente cível, se bem que se possa aceitar que, subjacente à realização do contrato em questão, possam estar razões inerentes à circunstância de o demandado ser trabalhador da A..[6] Daqui resulta que o empréstimo, embora tenha sido motivado pela relação laboral, não emerge dessa relação. O pagamento das prestações mensais relativas ao empréstimo, de que resultou o crédito invocado pela A., processou-se numa fase em que o R. já havia requerido a passagem à situação de reforma, vindo a ser reformado com efeitos retroactivos, nos termos já acima referenciados.

                        Evidentemente que não se trata aqui de saber da justeza da pretensão da A. na pretendida devolução do quantia monetária que entregou ao R., mas tão só o de saber qual o tribunal competente para apreciar a questão. E neste sentido, como nos parece bom de ver, está em causa uma obrigação emergente de um contrato de mútuo civil e não uma questão emergente do contrato de trabalho que se estabeleceu entre A. e R., pelo que a competência para a dirimir deverá pertencer aos tribunais comuns.

                        Quer dizer que o acórdão recorrido será revogado.

                        III- Decisão:

                        Por tudo o exposto, concede-se a revista, declarando-se que são competentes para conhecer do pleito os tribunais comuns (onde a acção foi interposta), devendo os autos prosseguir os seus ulteriores termos.

                        Custas pelo recorrido.

                        Elabora-se o seguinte sumário (arts. 679º e 663º nº 7 do C.P.Civil):

                        Para determinação da competência em razão da matéria, é necessário atender-se ao pedido e especialmente à causa de pedir formulados pelo A., pois é desta forma que se pode caracterizar o conteúdo da pretensão do demandante.

                       A competência dos tribunais de comarca determina-se por um critério residual, sendo-lhes atribuídas todas as matérias que não estiverem conferidas aos tribunais de competência especializada.

                       Compete aos tribunais de trabalho, nos termos do art. art. 85º al. b) da LOFTJ (aplicável ao caso) conhecer em matéria cível “das questões emergentes de relações de trabalho subordinado e de relações estabelecidas com vista à celebração de contratos de trabalho”, donde resulta que a competência desses tribunais está directamente dependente do exercício de um direito derivado de uma relação laboral.

                        Face ao regime legal então em vigor, com a pré-reforma o trabalhador reduzia ou suspendia a sua prestação de trabalho, mantendo, porém, o direito a receber do empregador uma prestação pecuniária mensal até à sua passagem à situação de pensionista. Durante o período de pré-reforma, o trabalhador mantinha os direitos decorrentes do acordo firmado com a entidade patronal.

                       No caso dos autos, através do primeiro contrato celebrado pelas partes (em 29-05-2007), o R. entrou numa situação de pré-reforma (com efeitos a partir de 31-05-2007). Neste momento o contrato de trabalho ficou suspenso (mas não extinto), mantendo o direito a receber do empregador uma prestação pecuniária mensal até à sua passagem à situação de pensionista, tendo sido em razão deste imperativo que se fixou a prestação de pré-reforma (cláusula 3ª do acordo de pré-reforma) a pagar ao R. pela sua entidade patronal (cláusula 2ª do mesmo acordo).

                       Posteriormente as partes celebram um novo contrato, que apelidaram de mútuo e, segundo o qual, a A. se comprometeu a garantir ao R., o adiantamento do valor estimado da pensão de reforma (como início a 1-6-2008).

                        O mútuo, conforme consta no documento, foi concedido pela entidade patronal, a ora A., ao seu trabalhador, o R., para garantir o valor estimado da reforma.

                       A pensão de velhice veio a ser deferida ao R. em 23-04-2010, mas com data de início em 12-03-2008, donde decorre que a pensão de velhice foi concedida ao R. retroactivamente.

                       A partir da sua passagem à reforma cessa a relação laboral do trabalhador, em relação à sua entidade laboral, como flui do disposto nos arts. 384º al. a) e 387º al. c) do Código do Trabalho vigente à data dos factos (hoje arts. 340º al. a) e 343° al.) c) do actual Código do Trabalho).

                       Dada a data em que se deve ter como finda a relação laboral (12-3-2008), não se poderá dizer que, na altura da realização do contrato de mútuo, persistia a relação laboral do R. em relação à sua entidade patronal.

                        A causa de pedir dos autos (empréstimo concedido sem que o beneficiário tenha devolvido a quantia mutuada), não era, nem decorria, do contrato de trabalho vigente entre as partes, emergindo (antes) de uma relação de âmbito puramente cível, pelo que a competência para dirimir o pleito deverá pertencer aos tribunais comuns.

                       

Lisboa, 1 de Dezembro de 2015

Garcia Calejo (Relator)

Helder Roque

Gregório Silva Jesus

______________
[1] Manuel Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, pág. 94
[2] O art. 10º do C. do Trabalho de 2003 estabelecia de forma substancialmente idêntica que “Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, sob a autoridade e direcção destas
[3] Actualmente, face ao C. do Trabalho vigente, o regime em questão é idêntico como se vê através do disposto nos arts. 318º a 322º.
[4] É claramente plausível e compreensível que, recebendo o R. as pensões de reforma retroactivamente, tivesse que devolver os adiantamentos feitos pela A., precisamente, no “valor estimado da pensão de reforma”.
[5] Ou seja, com consequências anteriores à efectivação ao contrato de mútuo.
[6] Empréstimo concedido com a provável finalidade de proteger socialmente o trabalhador da delonga do recebimento da pensão de reforma.