Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
216/14.2TBVPA.G2-A.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: PAULO FERREIRA DA CUNHA
Descritores: RECURSO
ALÇADA
ALÇADA DA RELAÇÃO
Data do Acordão: 09/29/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECLAMAÇÃO - ART.º 634 CPC
Decisão: INDEFERIR A RECLAMAÇÃO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I.O Tribunal da Relação de Guimarães, não recebeu o recurso para este Supremo Tribunal de Justiça (de revista e, subsidiariamente, de revista excecional), pela irrecorribilidade do Acórdão da Relação, em razão do valor: por o montante da causa caber nos limites da alçada da Relação (que é hoje de 30.000,00 euros, conforme o art. 44 LOSJ). E o recurso ordinário só ser admissível na previsão do art.º 629, n.º 1 do CPC. Sendo que o valor da causa é de 19 900 euros, não procedendo (para efeitos da sua alteração e consideração nesta sede) que outros valores, mais altos, se encontrem em jogo ulteriormente, nas propostas emitidas em carta fechada relativas à venda do imóvel (considerado indivisível) raiz de toda esta lide.

II.Trata-se meramente se esclarecer a razão da decisão do relator, que já se considera bastante. Como pano de fundo da teorização do recurso, v. Ac. deste STJ no Proc.º n.º 1320/17.0T8CBR.C1-A.S1, de 26.112019, (publicado in dgsi.pt: http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/1ad94c0f8d97792c802584be0055114b?OpenDocument). Donde resulta, inter alia, a plena constitucionalidade de uma não completa permeabilidade do sistema à proliferação não legalmente contemplado dos recursos.

III.Estando o valor em litígio já abrangido (contido) pela alçada da Relação, tal constitui um obstáculo intransponível para a admissibilidade do recurso. E tal duplamente, dir-se-ia no “fogo cruzado” das estatuições quer do art. 629, n.º 2, al. d), quer do art. 672. Nenhum deles permite a superação dessa questão, por assim dizer prejudicial.

IV.Pelo exposto, confirma-se a decisão individual posta em crise, considerando-se, tal como no despacho, que, “não procedendo nenhuma exceção que permita acolher a revista (ainda que excecional), a reclamação não pode ter acolhimento”.
Decisão Texto Integral:

Supremo Tribunal de Justiça

1ª Secção

Proc.° n.° 216/14.2TBVPA.G2-A.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I Relatório

1. AA e   Esposa,  BB, referenciados nos autos, apresentaram reclamação da decisão do Tribunal da Relação de Guimarães, que não recebeu o recurso para este Supremo Tribunal de Justiça (de revista normal e, subsidiariamente, de revista excecional).

2.0 não recebimento do referido recurso baseou-se na irrecorribilidade do Acórdão da Relação, em razão do valor: por o montante da causa caber nos limites da alçada da Relação (que é hoje de 30.000,00 euros, conforme o art. 44.° LOSJ). E o recurso ordinário só ser admissível na previsão do art. 629.°, n.° 1 do CPC.

3.Com efeito, o valor da causa é de 19 900 euros, não procedendo (para efeitos da sua alteração e consideração nesta sede) que outros valores, mais altos, se encontrem em jogo ulteriormente, nas propostas emitidas em carta fechada relativas à venda do imóvel (considerado indivisível) raiz de toda esta lide.

4.A contraparte, CC, pronunciou-se em favor da rejeição do recurso, alegando, essencialmente e inter alia, a alçada e a inocorrência das exceções do n.° 2 do art. 671.° do CPC.

5.A Veneranda Relação pronunciou-se pelo não recebimento do recurso, firmando-se fundamentalmente também na exclusão liminar em função da alçada.

6.Dado este obstáculo legal, claramente evidente dos autos, e não procedendo nenhuma exceção que permita acolher a revista (ainda que excecional), a reclamação não pôde ter acolhimento, havendo sido proferido despacho do Relator, pelo exposto, indeferindo a reclamação e mantendo o despacho reclamado.

7.Do aludido despacho viriam AA e esposa a reclamar, insistindo na admissibilidade do recurso para este Supremo Tribunal. Nos termos seguintes (transcrição do texto):

"AA e esposa, Reclamantes  nos autos  à margem
referenciados, vêm aos mesmos, mui respeitosamente, notificados que foram do
Douto Despacho de fls. , através do qual, indeferiu a reclamação e manteve o despacho reclamado, expor e requerer a V
a Exa o seguinte:

Os ora reclamantes/recorrentes, e uma vez que se não conformam de forma alguma com o douto despacho supra, vêm, ao abrigo do preceituado no art.° 652° n.° 3 do Código de Processo Civil, requerer que sobre a matéria do douto despacho que não admitiu o recurso interposto, recaia um acórdão;

Certo é que, é entendimento dos ora reclamantes, salvo devido respeito e melhor opinião, que o recurso deve ser admitido, na medida em que este foi interposto como Revista com fundamento no preceituado na alínea d) do n.° 2 do artigo 629° e 674° n.° 1 alínea c) do CPC, e subsidiariamente como Revista Excecional, ao abrigo do preceituado na alínea a) do n.° 1 do artigo 674° nos termos do preceituado no art.° 672° n.° 1 alínea c) do C. P. Civil;

Ora, contrariamente ao entendimento do Sr. Relator, nada obsta a que o recurso seja admitido excecionalmente, na medida em que, reunidos se mostram os, requisitos plasmados em tal normativo;

Certo é que,
Não sendo admitida a revista excecional, e estando em causa, como invocado foi pela ora recorrente, que existe contradição jurisprudencial, tal pode servir de fundamento da revista normal ao abrigo do preceituado no art.° 629° n.° 2 do C.P.C., desde que se mostrem cumpridos os requisitos formais da sua admissibilidade ali previstos;

Ora,

Diz-nos aquele normativo na sua alínea d) que:

"2-Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso (...):

d) Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme."

Como tem sido entendido, este fundamento de revista circunscreve-se a recursos de decisões proferidas pela Relação em casos em que o acesso ao terceiro grau de jurisdição estaria vedado por razões estranhas à alçada da Relação.

A este respeito escreve Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5" edição, em anotação a este preceito:

"Foi repristinada a solução semelhante que já constara do art. 678.°, n.° 4, do CPC de 1961 (...), reabrindo-se, assim, a possibilidade de acesso ao terceiro grau de jurisdição em casos em que tal estaria vedado por razões estranhas à alçada da Relação, ou seja, em que o único impedimento ao recurso reside em motivos de ordem legal estranhos ao valor do processo ou da sucumbência, em confronto com o valor da alçada da Relação.

Desta forma, ampliaram-se as possibilidades de serem dirimidas pelo Supremo Tribunal de Justiça contradições jurisprudenciais que, de outro modo, poderiam persistir, pelo facto de, em regra, surgirem em ações em que, apesar de terem um valor processual superior à alçada da Relação, não se admite o recurso de revista."

Para a sua admissibilidade deve ser observado o disposto no art. 637°, n°2, do CPC, no qual se preceitua que:

"O requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade; quando este se traduza na invocação de um conflito jurisprudencial que se pretende ver resolvido, o recorrente junta obrigatoriamente, sob pena de imediata rejeição, cópia, ainda que não certificada, do acórdão fundamento."
Ora, a este respeito, nas respetivas alegações, a recorrente citou o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, e juntou cópia, ainda que não certificada, do acórdão-fundamento.

Neste sentido veja-se acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido no âmbito do processo 143/11.5TBCBT.G1.S2 disponível em www.dgsi.pt

Assim, pelo exposto, entende a recorrente que o recurso por si interposto deve ser admitido, o que se requer;

Por todo o exposto e pelo mais que Vas Exas Doutamente suprirão, mui respeitosamente requerem, ao abrigo do preceituado no art. 652° n.° 3 do C. P. Civil, que sobre a matéria do douto despacho supra, recai um acórdão, com o que se fará plena e reparadora

JUSTIÇA"

II Fundamentação

1.Embora se considere absolutamente bastante a fundamentação da decisão singular, em nome do princípio da cooperação processual, consagrado no art. do CPC, e em prol do esclarecimento cabal das partes, caberão breves considerações adicionais, explicitando o sentido da decisão.

2.A teleologia da existência de alçadas liga-se certamente ao velho princípio traduzido pelo brocardo de minimis non curat praetor. Com relevo sobretudo no princípio da bagatela ou insignificância, especialmente relevante a nível penal, não deixa de ter acolhimento em todos os ramos jurídicos, e obviamente no cível.

Não pode esquecer-se que o praetor, Ieia-se hodiernamente o tribunal, em cada instância, tem em princípio uma alçada que traduz o valor do que lhe é próprio (e terá de se quedar nela, em princípio) e do que pode subir a instância superior. A tradução em valor pecuniário das causas, certamente uma simplificação e reducionismo, não deixa de ser uma forma prática de traduzir essa necessidade de não eternizar os pleitos. E, assim, uma teleologia em alguma medida solidária do que ocorre também para o caso julgado. Como se dizia na Grécia (e Aristóteles traduziu), e como é mister em muitas coisas da vida, ananké stenai - ou seja, "é preciso parar em algum lugar". Sendo o Direito uma ordem da vida ("serviço de vida" dizem alguns), que procura evidentemente a Justiça, sabe-se que outro dos seus valores mais correntes é o da segurança, que em muitos casos se traduz simplesmente pelo "saber-se em que lei se vive". É esse o "grau zero" da própria Justiça.

Ora grande seria a instabilidade e insegurança que se introduziria pela imprecisão ou subjetividade das regras dos recursos, nomeadamente se as lides sempre pudessem eternizar-se e repetir-se, por erosão do princípio do caso julgado, por abertura eterna dos recursos, ou por imprecisão das regras da alçada. Por isso é que as legislações de vários países (umas mais prolixas que outras - a estabilidade das decisões em países muçulmanos parece - aos olhos profanos - ter subtilezas muito mais complexas que noutros, por exemplo) procuram precisar bem as condições gerais e excecionais da subida e reapreciação de julgados.
Em tese geral: do mesmo modo que ao inconformado perdedor de uma causa pode ser simpática a abertura de mais uma possibilidade de instância reapreciadora do seu caso, preferindo o que crê ser justiça, a seus olhos, à estabilidade da Justiça, também à contraparte que já se encontra satisfeita e se identifica com a justiça feita, merece mais apreço a estabilidade do decidido. São pontos de vista naturalmente diversos.

Ora a Justiça, equidistante, imparcial, e terceira, sabe que por um lado é necessária estabilidade no decidido, mas, por outro, não pode deixar de olhar com bons olhos uma correção de injustiças que possam ter passado nas malhas do sistema. Pelo que tem de aceitar recursos, revisões e afins. Só que até certo ponto, e dentro das regras que, com a sabedoria da experiência, foi estabelecendo. Seria intolerável, e injusto mesmo, que, em nome até. de um qualquer simples fumus de injustiça sem fim se permitisse a postulação da lide sem limites, e independentemente do valor da mesma. Designadamente (de novo se fala em tese geral, como é óbvio) dando lugar a um frenesim querelador, designadamente fustigado já por Racine, e que em alguns lugares do mundo, como na China, era severamente condenado tradicionalmente.

São estas não mais que observações da cultura e do senso comum no mundo jurídico, que apenas se recordam como enquadramento.

3.Não cabe, porém, historiar nem sequer traçar o panorama do sistema das alçadas em Portugal, nem a sua conexão com os recursos admissíveis, nomeadamente para este Supremo Tribunal de Justiça. Apenas se anotará que se encontra bastante sedimentada a mecânica do recurso de revista, constante dos arts. 671 ss. do CPC.

Pela vasta panorâmica que traça e a pluralidade de situações que contempla, com
fundamentação detida, refira-se em especial,
brevitatis causa, o Ac. deste STJ no Proc.°
n.° 1320/17.0T8CBR.C1-A.S1, de 26 de novembro de 2019, relatado pela Conselheira
Clara                    Sottomayor                    (publicado                    in                   
dgsi.pt:

http://www.dgsi.pt/isti.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/lad94c0f8d97792c80 2584be0055114b?OpenDocument), o qual, além de desfazer ideias erróneas sobre um alargamento não legalmente contemplado dos recursos, convoca importante doutrina e jurisprudência pertinentes, para que se remete. Aí se encontrará o pano de fundo da teorização que se perfilha, conforme agora se transcreve:

«I - Só é admissível recurso de revista excecional, caso se verifiquem os pressupostos gerais atinentes ao valor da causa e à sucumbência.

II - O recurso prescrito na alínea d) do n.° 2 do artigo 629.° do CPC tem como justificação o objetivo de garantir que não fiquem sem possibilidade de resolução conflitos de jurisprudência verificados entre acórdãos das Relações, em matérias que, por motivos de ordem legal que não dizem respeito à alçada do tribunal, nunca poderiam vir a ser apreciadas pelo Supremo Tribunal de Justiça - como por exemplo, em sede de insolvência (artigo 14.°, n.° 1, do CIRE), expropriações (artigo 66.°, n.° 5, do Código das Expropriações) ou providências cautelares (artigo 370.°, n.° 2, do CPC).

III - Se todos os acórdãos da Relação em contradição com outros acórdãos da Relação admitissem a revista "ordinária" nos termos do artigo 629.°, n.° 2, al. d), CPC, deixaria necessariamente de haver qualquer justificação para construir um regime de revista excecional para a contradição entre acórdãos das Relações tal como se encontra no artigo 672.°, n.° 1, al. c), CPC. Sempre que se verificasse uma contradição entre acórdãos das Relações seria admissível uma revista "ordinária", não havendo nenhuma necessidade de prever para a mesma situação uma revista excecional».

4.Do Sumário do referido aresto importa ainda sublinhar um aspeto de enquadramento que não se deverá descurar, nesta sede. A plena constitucionalidade de uma não completa permeabilidade do sistema à proliferação não legalmente contemplado dos recursos. Assim, refere-se, a terminar a referida síntese: "IV - A jurisprudência do Tribunal Constitucional vem assumindo que a Constituição não impõe que o direito de acesso aos tribunais, em matéria cível, comporte um triplo ou, sequer, um duplo grau de jurisdição, apenas estando vedado ao legislador ordinário uma redução intolerável ou arbitrária do conteúdo do direito ao recurso de atos jurisdicionais, manifestamente inexistente nas normas do Código de Processo Civil relativas aos requisitos de admissibilidade do recurso de revista.".

5.Um dos princípios liminares e cristalinos, que decorre da Lei (que não pode deixar de ser entendida como padrão, para mais se a sua leitura não é complexa, obscura, anfibológica - como ocorre in casu) é que, estando o valor em litígio já abrangido (contido) pela alçada da Relação, tal constitui um obstáculo intransponível para a admissibilidade do recurso. E tal duplamente, dir-se-ia no "fogo cruzado" das estatuições quer do art. 629, n.° 2, al. d), quer do art. 672. Nenhum deles permite a superação dessa questão, por assim dizer prejudicial. Outras considerações, ainda que doutas (e eventualmente de muito mérito, mas de iure constituendo), não podem ser nesta sede acolhidas, e esbarram com este sistema, que foi o instituído, que é o atual direito, de iure constituto.

6.Pelo exposto, confírma-se a decisão individual posta em crise, considerando-se, tal como no despacho, que, "não procedendo nenhuma exceção que permita acolher a revista (ainda que excecional), a reclamação não pode ter acolhimento".

III

Nestes termos, confirma-se a decisão do Relator, e mantém-se, igualmente, o despacho reclamado, como aquele havia feito.

Custas pelo reclamante. Notifique-se

Supremo Tribunal de Justiça, 29 de setembro de 2020

Paulo Ferreira da Cunha (Relator)

Maria Clara Sottomayor

Alexandre Reis