Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | TIBÉRIO NUNES DA SILVA | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA LIQUIDAÇÃO DE PATRIMÓNIO LEGITIMIDADE INVENTÁRIO PARTILHA DA HERANÇA QUINHÃO HEREDITÁRIO APREENSÃO MASSA INSOLVENTE | ||
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Data do Acordão: | 03/21/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | O Administrador da insolvência carece de legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança a que pertence o quinhão hereditário da insolvente, interessada directa nessa partilha. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I AA, na qualidade de administrador da Massa Insolvente de BB, requereu o presente processo de inventário por óbito da mãe da Insolvente, CC. Arguida, nos autos, pelo cabeça-de-casal, a ilegitimidade da Massa Insolvente de BB para requerer o inventário, foi proferida decisão, em 31-10-2021, que julgou procedente a excepção dilatória de ilegitimidade da Requerente e absolveu o cabeça-de-casal e demais requeridos da instância, nos termos conjuntos dos arts. 30.º, 278.º n.º 1 al. d) e n.º 3, a contrario sensu, 576.º 1 e 2, e 577.º al. e), 1085.º, n.º 1, al. a), a contrario sensu, todos do Código de Processo Civil. Inconformada, a Massa Insolvente, por intermédio do Sr. Administrador, interpôs recurso de apelação, para o Tribunal da Relação de Guimarães, onde veio a ser proferido acórdão que julgou a apelação improcedente, mantendo a decisão recorrida. Ainda irresignada, interpôs recurso de revista excepcional, pelo fundamento previsto no art. 672º, nº1, al. c), do CPC, ou, assim não se entendendo, na al. a), do mesmo preceito, concluindo o seguinte: «i. A douta decisão recorrida negou legitimidade ao recorrente administrador para requerer a partilha da herança da mãe da insolvente, por entender que agia no processo, não em nome da insolvente, ou como representante, mas na qualidade de substituto processual, e portanto como parte autónoma; ii. Actuando como substituto processual, ele é a parte e não o representante da parte, e segundo tal pressuposto formal, não pode considerar-se interessado directo; iii. Ao contrário, no acórdão fundamento, considera-se que o administrador judicial actua em representação do insolvente ou falido, ou seja, como representante legal (“os poderes de que o devedor fica privado são atribuídos ao administrador de insolvência”), podendo assim requerer inventário; iv. Visto que a questão dirimida num e noutro acórdãos é a mesma (legitimidade ou ilegitimidade do administrador para requerer inventário), e o quadro legislativo (insolvencial e processual) deve considerar-se idêntico, como se explicita na alegação que aqui se dá por reproduzida, deve a revista ser admitida com este fundamento; v. Não sendo porventura admitido o recurso com fundamento na oposição de acórdãos (artº 672 nº 1 alª c) CPC, requere-se a sua admissão com fundamento no artº 672 nº 1 alª a) CPC, considerando a falta de jurisprudência superior, a relevância da questão que subjaz ao recurso, e a necessidade de aprofundamento interpretativo da lei, para que a aplicação do direito resulte esclarecida e fique salvaguardada a sua certeza e segurança; por outro lado, as consequências de decisões em sentidos diversos são intoleráveis, não havendo uma racionalidade que as suporte; tudo a concorrer para que seja devidamente clarificada a questão em litígio; vi. O douto acórdão recorrido considera a intervenção do administrador de insolvência, no processo de inventário, para partilha da herança da mãe da insolvente, como substituto processual, agindo assim como parte e não como representante legal da insolvente; vii. Todavia, é como representante (do devedor) que a letra da lei expressa a intervenção do administrador na acção em causa, na medida em que lhe confere legitimidade para as acções que interessam à massa insolvente, as intentadas após a declaração de insolvência (artº 81 nº 4 CIRE); esta legitimidade atribuída pelo legislador ao administrador está conexionada, como dos seus termos resultam, com um interesse directo e legítimo, adveniente da utilidade da procedência da acção (artº 30 nº 2 CPC); viii. Certo é que à intervenção na acção, como representante, ou como substituto processual (decisão recorrida), subjazem realidades jurídicas ou institutos bem diferenciados, e propósitos distintos, pelo que não faz qualquer sentido afirmar que o legislador utilizou o termo representante, quando queria referir-se a substituto; através da representação, o representante não se substitui à parte processual, enquanto na substituição, o substituto é que é a própria parte, sendo assim realidades jurídicas muito diferenciadas; ix. Portanto, quando o legislador (disposições do artº 81-4 e 85-3 do CIRE) admite na primeira o administrador como representante do insolvente, e na segunda como seu substituto, vê-se que expressou com rigor o que entende por representação e o que entende por substituição, e que aplica os conceitos a realidades jurídicas bem diversas, como a jurisprudência e doutrina as representa; deste modo, não pode afirmar-se, como se afirma no douto acórdão recorrido, que o que o legislador expressou por “representante” pode ou deve significar “substituto processual”; x. Tal forma de interpretação viola o princípio básico da interpretação, assente no artº 9 nº 2 e 3 CC, segundo o qual não pode aceitar-se um sentido da lei, que não tenha nesta um mínimo de correspondência verbal; e a ultrapassar-se este mínimo de correspondência verbal, já não estamos no domínio da lei, mas do arbítrio; xi. Por outro lado, o elemento teleológico da lei deve corresponder aos propósitos do legislador, e a estes não devem andar alheios os interesses da massa insolvente e da própria insolvente (no caso em apreço), pressuposto da intervenção do administrador, que ficam incontestavelmente mais salvaguardados se for concretizada a partilha sucessória; além de que compete ao administrador de insolvência, no âmbito dos seus poderes de administração (artº 55 CIRE), rentabilizar os meios activos de que dispõe, actuando no melhor interesse da massa insolvente e do próprio insolvente (artº 184 CIRE); xii. Partilha esta que não pode ser arredada por qualquer esforço interpretativo, pois o herdeiro legitimário (mesmo insolvente) não pode ser privado do direito de suceder, do direito a que lhe sejam transmitidos os bens por sucessão, e do direito de requerer a sua divisão; este último qualifica-o a lei de direito irrenunciável e imprescritível (artº 2033 nº 1 e 2101 CC); xiii. E assim, em obediência aos fins da lei e imperativo da mesma, se o insolvente, por si, não pode intervir em partilha judicial ou extrajudicial (falta de capacidade de exercício), e se não pode ser privado desses direitos de designação, sucessão, transmissão e partilha, então impõe-se que a lei supra essa incapacidade específica (artº 2, 27 e 28 CPC; artº 26 CRP); xiv. Portanto, só através do instituto de representação vai o insolvente usufruir dos direitos consignados na lei e de que não pode ser privado; e se os demais interessados da herança não tomarem a iniciativa da partilha (como não tomaram), não deve impedir-se que o insolvente (por meio do seu representante) a tome, como tomou (81 nº 4 CIRE; 1085 nº 1 alª a) CPC); xv. Assim a interpretação colhida nos termos do douto acórdão, a de que o insolvente não pode requerer nem ser requerido no processo de inventário, e a de que o administrador não pode representar o insolvente (para suprir a sua incapacidade), implica que o insolvente nunca poderá ver concretizado o seu quinhão hereditário, o mesmo é dizer que a interpretação da lei, acolhida no douto acórdão, priva o insolvente de um dos direitos fundamentais – o direito de propriedade e o direito de ver transmitida, pela via sucessória, a parte do acervo que lhe toca (artº 2033 CC e artº 17 e 62 CRP); xvi. A interpretação que o tribunal fez, decidindo como acaba de se expor, é vincadamente inconstitucional, por violar, entre outros, os princípios do direito de propriedade, da sucessão, e de tutela jurisdicional efectiva (entre outros, artº 17, 20 e 62 da CRP) xvii. Decidindo como decidiu, fez o tribunal uma errada interpretação das disposições referidas no recurso e parte conclusiva, e ainda a do artº 1085 CPC (na medida em que afastou do direito de requerer inventário um herdeiro legitimário), com a consequente violação das mesmas.» Termina, pedindo a revogação do acórdão e a prolação de decisão que declare a legitimidade do administrador da insolvência para instaurar o inventário judicial. Não houve contra-alegações. Face à existência de dupla conforme, remeteram-se os autos à Formação, que considerou verificar-se a invocada situação de contradição de acórdãos e entendeu também preencher-se a previsão da al. a) do nº 1 do art. 672º do CPC. * Sendo o objecto dos recursos definido pelas conclusões quem recorre, para além do que for de conhecimento oficioso, assume-se, in casu, como questão central a de saber se o administrador da insolvência pode, em representação da devedora e no que concerne à composição da massa insolvente, requerer o inventário para partilha da herança da qual faça parte um quinhão hereditário daquela (devedora/insolvente). II Na decisão proferida na 1ª Instância, questionou-se se a massa insolvente da herdeira declarada insolvente, por sentença transitada em julgado, poderá integrar o conceito de interessado directo na partilha para efeitos do disposto no n.º 1, al. a) do art. 1085.º do Código de Processo Civil. Adoptou-se o entendimento constante do Ac. da Relação de Lisboa datado de 24-09-2020, Processo n.º 31/20.4T8MTA.L1-2, Rel. Borges Carneiro, publicado em www.dgsi.pt, cujo sumário é do seguinte teor: “I – O artigo 1085º, do CPCivil trata de duas matérias bastante distintas: – o nº 1, al. a), regula a legitimidade processual, ou seja, define quem tem legitimidade para ser parte principal no processo de inventário; – o nº 2, als. a) e b), regula a legitimidade para a prática de atos processuais, isto é, define que atos podem ser praticados pelos interessados nele referidos. II – Subsistirá ilegitimidade, conducente à absolvição da instância, sempre que o inventário venha a ser requerido por quem não seja interessado na respetiva partilha. III – A massa insolvente não sendo interessada direta na partilha por óbito do pai da insolvente, não pode requerer a abertura do respetivo processo de inventário. IV – A interessada direta insolvente não tem legitimidade para requerer ou ser requerida no processo de inventário. V – O administrador da insolvência, na qualidade de substituto processual da insolvente, não tem legitimidade para requerer processo de inventário da herança. VI – O administrador da insolvência, na qualidade de substituto processual da insolvente, tem legitimidade para num processo de inventário ser requerido em substituição do interessado direto insolvente.” Considerou-se, entre o mais que aqui se dá por reproduzido, que: «A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo – art. 46º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE). […] Logo, o quinhão hereditário da insolvente na herança por óbito da inventariada passou a integrar a massa insolvente (no momento da declaração da insolvência, quando a abertura da sucessão ocorre em momento anterior àquela declaração, ou em momento posterior, quando o óbito e abertura da sucessão ocorre após a declaração de insolvência e na pendência do processo). Assim sendo, o direito integrado na referida massa corresponde a uma quota-parte da insolvente no património da herança da inventariada, ou seja, o seu quinhão hereditário. Esta integração de quinhão hereditário na massa insolvente, património de afetação por definição legal, não atribuiu àquela massa a qualidade de sucessor legal da inventariada. A qualidade de sucessor legal da inventariada permanece na esfera jurídica da insolvente, que sempre seria interessada direta na partilha, pelo que a massa insolvente não tem legitimidade para requerer o inventário. […] Por outro lado, a própria insolvente, ao perder os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário (transmitidos para o administrador de insolvência) e sendo imponíveis à massa insolvente quaisquer atos praticados pela insolvente sobre esse quinhão, não tem, por tal razão, legitimidade para ser parte no processo de inventário. […] Também concordamos, neste ponto, com a douta lição do Acórdão citado supra, na medida em que tal substituição processual não permite atribuir legitimidade ativa ao administrador de insolvência para requerer inventário por óbito da progenitora da insolvente. Assim será porque os direitos da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário, e não sobre o preenchimento desse quinhão com certos e determinados bens. […] Concluindo, o administrador da insolvência, atuando em juízo como substituto processual da interessada insolvente, e não como seu representante, não é interessado direto na partilha (e nem a massa insolvente, representada pelo seu administrador). A requerente nestes autos constitui um património autónomo distinto da pessoa jurídica da herdeira (interessada direta na partilha), pelo que tal massa insolvente não é sucessora da inventariada, carecendo de interesse direto na partilha e, logo, de legitimidade para requerer o inventário. Pelo que se impõe considerar a procedência da invocação da exceção dilatória de ilegitimidade ativa da requerente e consequentemente decretar a absolvição dos requeridos da instância, nos termos conjuntos dos arts. 30.º, 278.º n.º 1 al. d), 576.º 1 e 2, e 577.º al. e), 1085.º, n.º 1, al. a), a contrario sensu, todos do Código de Processo Civil.» No Acórdão recorrido, que manteve a decisão da 1ª Instância, considerou-se, designadamente, que: «Nestes casos, apreendido o quinhão hereditário e passando o mesmo a fazer parte da massa insolvente, o interessado direto/insolvente deixa de ter legitimidade para requerer ou ser requerido no processo de inventário (v. Miguel Teixeira de Sousa/Carlos Lopes do Rego/António Abrantes Geraldes/Pedro Pinheiro Torres (ob. Cit., p. 32) pois com a declaração de insolvência perdeu os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário, não sendo oponíveis à massa insolvente quaisquer atos praticados pelo insolvente sobre esse quinhão (são ineficazes os atos realizados pelo insolvente em violação do disposto no número 1 do artigo 81º, nos termos previstos no n.º 6 deste preceito). Porém, a apreensão de quinhão hereditário integrante da massa insolvente não confere a esta a qualidade de sucessor legal da inventariada, qualidade que não se transfere para a massa insolvente por força da declaração de insolvência; o insolvente, não obstante perder os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário, e, por isso, carecer de legitimidade para ser parte no processo de inventário, designadamente para requerer a sua instauração, não perde a qualidade de sucessor, in casu de herdeiro legitimário, tal como é atribuída pelo legislador civil. Assim, a massa insolvente não só não é sucessora, como não é interessada direta na partilha. […] Ora, a massa insolvente, não só não ganha a qualidade de sucessora da inventariada, como não é diretamente beneficiada pela partilha, não vendo a sua esfera jurídica ser atingida, de forma imediata e necessária, pelo modo como se organiza e concretiza a partilha do acervo hereditário pois o que está em causa é o quinhão hereditário apreendido e não o seu preenchimento com bens concretos. Assim, concordamos com o tribunal a quo quando afirma que a “concreta composição do quinhão hereditário da insolvente apreendido, que resultaria da partilha em inventário, só reflexa ou indiretamente afeta os interesses da massa insolvente, atenta a sua funcionalização enquanto património de afetação”, carecendo a massa insolvente de legitimidade ativa para requerer a instauração de processo de inventário por óbito da mãe da insolvente. E quanto ao administrador da insolvência, estatui o n.º 4 do já referido artigo 81º do CIRE que assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência. Não obstante a lei se referir, de modo equivoco, à representação do insolvente para os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, a verdade é que, ao contrário do que defende a Recorrente, entendemos que o administrador não atua em juízo como representante do insolvente mas como parte, como substituto processual do insolvente, recaindo a sua atuação no âmbito da substituição processual (ou legitimidade indireta) que ocorre “quando é admitido como parte no processo quem não é sujeito da relação jurídica deduzida em juízo” (Anselmo Castro, Direito Processual Civil Declaratório, vol. III, Almedina, 1982, p. 391) sendo que o substituto processual age no processo em seu nome (e não em nome de outrem, como ocorre com o representante) e no seu próprio interesse, mas litigando sobre direito alheiro (Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio Nora, Manuel de Processo Civil, ob. Cit., p. 732 e 733). […] Em face do exposto, temos, pois, de concluir que recaindo os direitos da massa insolvente sobre o quinhão hereditário, e não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens, quer a massa insolvente, quer o administrador da insolvência, não têm legitimidade para requerer a instauração de processo de inventário por óbito da mãe da insolvente, não merecendo, por isso, censura o despacho recorrido, que deve ser confirmado.» Defende a Recorrente que é como representante (do devedor) que a letra da lei expressa a intervenção do administrador na acção em causa, na medida em que lhe confere legitimidade para as acções que interessam à massa insolvente, as intentadas após a declaração de insolvência (artº 81º, nº 4 CIRE); esta legitimidade atribuída pelo legislador ao administrador está conexionada, como dos seus termos resultam, com um interesse directo e legítimo, adveniente da utilidade da procedência da acção (artº 30, nº 2 CPC). Diz ainda que, quando o legislador, nos arts. 81-4 e 85-3 do CIRE, admite, na primeira disposição, o administrador como representante do insolvente e, na segunda, como seu substituto, vê-se que expressou com rigor o que entende por representação e o que entende por substituição e que aplica os conceitos a realidades jurídicas bem diversas, como a jurisprudência e a doutrina as representam; deste modo, não pode afirmar-se, como se afirma no douto acórdão recorrido, que o que o legislador expressou por “representante” pode ou deve significar “substituto processual”. A Recorrente estribou-se no Ac. da Rel. do Porto de 15-04-2010, Rel. Amaral Ferreira, Proc, 144/09.3TBPNF.P1, publicado em www.dgsi, tirado ao abrigo do regime anterior ao do CIRE, mas nele se considerando que: «Embora ao caso não seja aplicável o CIRE, o regime nele estabelecido não diverge substancialmente do anterior, sendo até mais desenvolvido e completo. Na verdade, estabelece o artº 81º desse diploma legal, que a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente (nº 1); interdita ao devedor a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros susceptíveis de penhora, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo (nº 2); que o administrador da insolvência assume todos os poderes de que o devedor fica privado bem como a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência (nsº 1 e 3 a 5) e que são ineficazes os actos realizados pelo insolvente em contravenção ao disposto nºs 1 e 2 (nº6). Pode, assim, concluir-se que estando os bens que integram o património a partilhar em processo de inventário incluídos na massa falida, tem o respectivo administrador legitimidade, enquanto representante do interessado falido, para requerer processo de inventário.»
No mesmo sentido, podem ver-se o Ac. da Rel. de Coimbra de 09-11-2021, Rel. Paulo Correia, Proc. 40/21.6T8TBU.C1, e o Ac. da Rel. de Évora, de 07-04-2022, Rel. Rui Machado e Moura, Proc. 2374/21.0T8ENT.E1, em www.dgsi.pt. No sentido defendido no acórdão recorrido, e no que tange às Relações, para além do citado Ac. da Rel. de Lisboa de 24-09-2020 (Rel. Borges Carneiro), vejam-se os Acs. da Rel. de Coimbra de 09-11-2021, Rel. Freitas Neto, Proc. 94/21.5T8OHP.C1; da Rel. de Lisboa de 28-04-2022, Rel. António Moreira, Proc. 5879/20.7T8ALM.L1-2 e da Rel. de Coimbra, de 10-05-2022, Rel. Pires Robalo, Proc. 775/22.6T8LRA.C1, em www.dgsi.pt. O Supremo Tribunal de Justiça já também se pronunciou sobre esta matéria, no recentíssimo Acórdão de 09-11-2022, Rel. Ana Resende, Proc. 775/22.6T8LRA.C1.S1, publicado em www.dgsi.pt e em cujo sumário se exarou o seguinte: «O Administrador da insolvência carece de legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança, a que pertence o quinhão hereditário apreendido para a massa insolvente do co-herdeiro.» Vejamos. De acordo com o disposto no art. 30º do CPC, o autor é parte legítima quando tem interesse directo em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse directo em contradizer, exprimindo-se o interesse em demandar pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha, e, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor. Por norma, a legitimidade é aferida pela forma como o autor desenha, de início, a relação material controvertida, o que é aplicável ao critério normal de determinação da legitimidade, por referência à legitimidade singular e directa, conforme é referido por Lopes do Rego, in Comentário ao Código de Processo Civil, Almedina, Coimbra, 1999, p. 46. Já no que concerne à legitimação extraordinária, traduzida na exigência de litisconsórcio ou da atribuição de legitimidade indirecta, a situação é diferente, considerando-se, relativamente a esta, que a efectiva titularidade da relação legitimante é “conditio sine qua non” da legitimação de quem se apresta a exercer interesses alheios (ibid.). Como observam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, no Código de Processo Civil Anotado, vol. I, Almedina Coimbra, 2018, p. 59, situações há em que é a própria lei que identifica o detentor da legitimidade activa ou passiva, como nos casos excepcionais em que se concede o direito de acção a sujeitos que são titulares de um interesse indirecto, de que é exemplo a acção sub-rogatória (art. 606º do C. Civil), permitindo-se que o credor actue, contra terceiro, como substituto legal do devedor, no que tange a direitos de conteúdo patrimonial que a este competem, excepto se, por sua própria natureza ou disposição da lei, só puderem ser exercidos pelo respectivo titular. No que se refere à legitimidade para requerer o inventário, há que observar o disposto no art. 1085º, nº1, do CPC: «1 - Têm legitimidade para requerer que se proceda a inventário e para nele intervirem, como partes principais, em todos os atos e termos do processo: a) Os interessados diretos na partilha e o cônjuge meeiro ou, no caso da alínea b) do artigo 1082.º, os interessados na elaboração da relação dos bens; b) O Ministério Público, quando a herança seja deferida a menores, maiores acompanhados ou ausentes em parte incerta.» Estando em causa o quinhão hereditário de uma interessada directa que foi declarada insolvente, importará ter em conta o preceituado no art. 81º, nºs 1 a 6, do CIRE: «1 - Sem prejuízo do disposto no título X, a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência. 2 - Ao devedor fica interdita a cessão de rendimentos ou a alienação de bens futuros susceptíveis de penhora, qualquer que seja a sua natureza, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha ou de bens que adquira posteriormente ao encerramento do processo. 3 - Não são aplicáveis ao administrador da insolvência limitações ao poder de disposição do devedor estabelecidas por decisão judicial ou administrativa, ou impostas por lei apenas em favor de pessoas determinadas. 4 - O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência. 5 - A representação não se estende à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, salvo expressa disposição em contrário. 6 - São ineficazes os actos realizados pelo insolvente em violação do disposto nos números anteriores, respondendo a massa insolvente pela restituição do que lhe tiver sido prestado apenas segundo as regras do enriquecimento sem causa, salvo se esses actos, cumulativamente: a) Forem celebrados a título oneroso com terceiros de boa fé anteriormente ao registo da sentença da declaração de insolvência efectuado nos termos dos n.os 2 ou 3 do artigo 38.º, consoante os casos; b) Não forem de algum dos tipos referidos no n.º 1 do artigo 121.º».
Refere-se, a propósito da legitimidade para requerer o inventário no caso de um dos interessados directos ter sido declarado insolvente, na obra O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil, de Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes, Pedro Pinheiro Torres, Almedina, Coimbra, 2020, pp. 32-33, o seguinte:
«Pode suceder que o quinhão hereditário de um interessado directo tenha sido penhorado ou que um dos interessados directos tenha sido declarado insolvente. Nestas situações, o interessado directo não tem legitimidade para requerer (dif. RE 22/12/17 (219/15)) ou para ser requerido no inventário, dado que, segundo o disposto do art. 819.° CC, é inoponível à execução qualquer acto do executado sobre o quinhão penhorado e, segundo o estabelecido no art. 81.°, n.°s 1 e 6, CIRE, o insolvente perde os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário e são inoponíveis à massa insolvente quaisquer actos praticados pelo insolvente sobre esse quinhão (RL 11/4/19 (171/17)). Disto decorre que o interessado executado ou insolvente não tem legitimidade para ser parte no processo de inventário. Isto justifica, no âmbito da substituição processual (ou legitimidade indirecta), as seguintes soluções: a) O administrador é o substituto processual do interessado insolvente (art. 81.°, n.° 4, CIRE). Este preceito refere-se, de modo equívoco, a uma função de representação do insolvente: a verdade é que o administrador actua em juízo como parte, e não como representante do insolvente (que seria então a parte representada). Isto significa que o administrador da insolvência vai actuar no processo de inventário como substituto processual do interessado insolvente. O interessado executado não tem nenhum substituto processual designado na lei, certamente porque não é comum que haja que actuar quanto aos bens penhorados fora do processo executivo. No entanto, uma das situações em que esta actuação é pensável é precisamente a penhora de quinhão em bens indivisos, dado que esta penhora não pode inibir a faculdade de qualquer contitular requerer a divisão da coisa comum ou a partilha da universalidade comum. Nesta hipótese, suscita-se o problema de saber quem vai estar em juízo em substituição do executado. A resposta só pode ser a de que qualquer credor exequente ou reclamante pode assumir a substituição no processo divisório do contitular executado. b) Pode perguntar-se se a legitimidade que é reconhecida ao administrador da insolvência ou ao credor exequente ou reclamante, na qualidade de substituto processual do interessado executado ou insolvente, lhe permite requerer a divisão da coisa comum ou o inventário para partilha da universalidade comum. A resposta tem de ser negativa, dado que os direitos dos credores exequentes e reclamantes e da massa insolvente recaem sobre o quinhão hereditário, não sobre o preenchimento desse quinhão com determinados bens. Disto decorre que o credor exequente ou reclamante e o administrador da insolvência não têm legitimidade para requerer a divisão da coisa ou o inventário da herança, mas têm legitimidade para nestes processos serem requeridos em substituição do interessado directo executado ou insolvente.» No art. 2101º do C. Civil estabelece-se que qualquer co-herdeiro ou o cônjuge meeiro tem o direito de exigir a partilha quando lhe aprouver, não podendo renunciar-se ao direito de partilhar, embora se possa convencionar que o património se conserve indiviso por certo prazo, que não exceda cinco anos, prazo que, no entanto, é renovável, uma ou mais vezes, por nova convenção. Como se refere no mencionado Ac. do STJ de 09-11-2022, trata-se de um direito que, pela sua própria natureza, ou disposição legal, só pode ser exercido pelo seu titular, com exclusão da legitimidade indirecta, sofrendo limitações quando esse titular se encontre em situação de insolvência. E prossegue-se, referindo o seguinte (com destaque nosso, a negrito): «Na verdade, como se sabe, em termos breves, segundo resulta do art.º 81, n.º 1, e 2 do CIRE, a declaração de insolvência priva o insolvente, por si, e nos casos em que tem uma posição ativa, dos poderes de administração e de disposição (…) dos bens integrantes da massa insolvente, abrangendo esta todo o património do devedor à data da declaração da insolvência, bem como os bens e os direitos que ele adquira na pendência do processo, com vista à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, n.º1, do art.º 46, também do CIRE. Decorre do mencionado art.º 81, n.º4, do CIRE, que o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos patrimoniais que interessem à insolvência, não se estendendo contudo à intervenção do devedor no âmbito do próprio processo de insolvência, seus incidentes e apensos, n.º 5, do mesmo preceito legal, porquanto estão em causa “interesses pessoais” do devedor/insolvente, e não dos credores, em função dos quais a intervenção do administrador de insolvência está orientada (…), mas que não são irrelevantes, em termos dos respetivos desfechos para a satisfação dos débitos de cuja titularidade se arrogam os credores, no processo de insolvência. Assim, na articulação dos regimes enunciados, avulta que apontado o direito de exigir a partilha como direito pessoal, embora de carácter indubitavelmente patrimonial, o respetivo titular insolvente está impossibilitado de o exercer, não o podendo igualmente fazer o administrador da insolvência, face à indelével pessoalidade desse direito, em substituição [do] seu titular, ele sim interessado direto na partilha.» Observa-se, ainda, que nada obsta a que o administrador da insolvência intervenha no inventário, por da herança a partilhar fazer parte o quinhão hereditário, para viabilizar o efeito útil da partilha, mas também na defesa dos credores da insolvência, salvaguardando no respetivo decurso os respectivos interesses. A Recorrente defende que a interpretação colhida no acórdão recorrido, a de que o insolvente não pode requerer nem ser requerido no processo de inventário, e a de que o administrador não pode representar o insolvente (para suprir a sua incapacidade), implica que o insolvente nunca poderá ver concretizado o seu quinhão hereditário, o mesmo é dizer que a interpretação da lei, acolhida no douto acórdão, priva o insolvente de um dos direitos fundamentais – o direito de propriedade e o direito de ver transmitida, pela via sucessória, a parte do acervo que lhe toca (artº 2033 CC e artº 17 e 62 CRP) e tal interpretação é vincadamente inconstitucional, por violar, entre outros, os princípios do direito de propriedade, da sucessão, e de tutela jurisdicional efectiva (entre outros, artº 17, 20 e 62 da CRP). Conforme referem Teixeira de Sousa e Outros, no trecho citado, «segundo o estabelecido no art. 81.°, n.°s 1 e 6, CIRE, o insolvente perde os poderes de administração e de disposição do quinhão hereditário e são inoponíveis à massa insolvente quaisquer actos praticados pelo insolvente sobre esse quinhão (RL 11/4/19 (171/17))», do que «decorre que o interessado executado ou insolvente não tem legitimidade para ser O legislador entendeu limitar os poderes do insolvente (e para além dos que constam do CIRE, há outros avulsos), em regra, até ser encerrado o processo (art. 233º, nº1, a), do CIRE), limitação que se conjuga com a salvaguarda de outros direitos ou interesses legalmente protegidos. Conforme referem Gomes Canotilho e Vital Moreira, em anotação ao art. 26º da Constituição da República Portuguesa, a Constituição admite restrições (embora não totais) à capacidade civil, as quais só podem ter lugar nos casos previstos na lei e nos termos nela definidos (“Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, 4ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p. 465). Salvo o devido respeito, não se vê como possa ser ofendido o direito de propriedade da insolvente e do direito de esta lhe ver transmitido o que lhe caberia por via sucessória, quando, no que lhe concerne, se verifica, desde logo, uma situação de indisponibilidade, por o quinhão hereditário estar “adstrito” à massa insolvente. E, como é referido no mencionado Ac. do STJ de 09-11-2022, não se mostra “que a restrição apontada, não sanável pela substituição do administrador da insolvência, contenda de forma muito mais gravosa do que as demais decorrentes da declaração de insolvência para o devedor afetado por essa declaração”. No que tange à legitimidade do administrador da insolvência para o inventário, não deixa de se admitir que se verifique, da sua parte, uma intervenção, como se referiu, mas tal não abrange, pelas sobreditas razões, o direito de o requerer. Entende-se, pelo exposto, que a interpretação em apreço não viola os invocados princípios constitucionais. Improcede a revista. * Sumário (da responsabilidade do relator) O Administrador da insolvência carece de legitimidade para requerer a abertura do inventário para partilha da herança a que pertence o quinhão hereditário da insolvente, interessada directa nessa partilha. III Pelo que se deixou exposto, nega-se provimento à revista, mantendo-se a decisão recorrida. - Custas pela Recorrente. * Lisboa, 21-03-2023 Tibério Nunes da Silva /Relator) Nuno Ataíde das Neves Sousa Pinto |