Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JOÃO CURA MARIANO | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA MATERIAL TRIBUNAL DE COMÉRCIO ADMINISTRADOR SOCIEDADE ANÓNIMA REMUNERAÇÃO CONVENÇÃO DE ARBITRAGEM INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA ADMISSIBILIDADE DE RECURSO RECURSO DE REVISTA DECISÃO INTERLOCUTÓRIA | ||
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Data do Acordão: | 02/24/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITDO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I. A expressão exercício de direitos sociais, utilizada pelo legislador na alínea c), do n.º 1, do artigo 128.º, da LOSJ, para delimitar a competência dos tribunais de comércio, não deve ser equiparada a direitos dos sócios, mas sim a direitos específicos do regime do direito das sociedades, competindo àqueles tribunais decidir os litígios emergentes de relações jurídicas conformadas pela legislação que especificamente rege as sociedades comerciais, designadamente o Código das Sociedades Comerciais. II. Assim, o julgamento de uma ação em que um administrador de uma sociedade anónima reclama dessa sociedade o pagamento da remuneração das funções de administrador compete aos tribunais de comércio. | ||
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Decisão Texto Integral: | * I - Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca ... - juízo central cível ... - Juiz ..., foi proposta ação declarativa, com processo comum, em que o Autor pede a condenação da Ré no pagamento de € 119.619,20, acrescidos de juros de mora vincendos. Alega o Autor, em síntese, o seguinte: - foi o único acionista da Ré e ... desde 2009, tendo em 2013 alienado 50% das suas ações, além de sempre ter exercido funções de ... do grupo de que a Ré faz parte e do qual é a sociedade holding. - o Autor foi suspenso das funções de ... da Ré em 20 de Outubro de 2017, com posterior destituição, não tendo a Ré procedido ao pagamento das remunerações pelo exercício daquele cargo que se encontravam em dívida na data da sua destituição e que somam € 102.847,94, a que acrescem juros de mora vencidos e vincendos.
Contestou a Ré, defendendo a sua absolvição do pedido.
Foi proferido despacho saneador tabelar em que se refere que o tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território, tendo-se determinado o prosseguimento do processo.
A Ré interpôs recurso para o Tribunal da Relação ... saneador, na parte em que o tribunal se declarou competente em razão da matéria.
O recurso foi julgado improcedente por acórdão proferido em 15.12.2021.
A Ré interpôs recurso de revista desta decisão para o Supremo Tribunal de Justiça, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo: (1) O presente recurso vem interposto do Acórdão Recorrido, no qual o Tribunal a quo julgou improcedente o recurso de apelação apresentado pela ora Recorrente, confirmando assim o despacho proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância, no sentido da sua competência material para o conhecimento do objeto da ação em causa. (2) Não se conformando, todavia, com o seu teor, considera a Recorrente que o Acórdão Recorrido deve ser revisto e substituído por outro que conclua pela incompetência absoluta do Tribunal Judicial da Comarca ... para dirimir a presente causa, pelos seguintes fundamentos: (3) Primeiro, estaremos perante uma exceção de incompetência absoluta por preterição do tribunal arbitral que implica a absolvição da Recorrente da instância, em face do disposto nos termos dos artigos 96.º, alínea b), 97.º, 98.º, 278.º, n.º 1, alínea a) e 577.º, alínea a), todos do CPC: (4) No Acórdão Recorrido, o Tribunal a quo julgou improcedente a argumentação da Recorrente de que ocorreu uma preterição do tribunal arbitral por considerar que (i) se trata de uma questão nova e que, por isso, não podia sequer dela tomar conhecimento, e que (ii) o Acordo Parassocial em causa não é aplicável no caso sub judice face à sua resolução datada de 21.11.2017 e reconhecida pela Sentença Arbitral. (5) Quanto ao primeiro fundamento de indeferimento, importa referir que ainda que possamos estar perante uma questão que não é de conhecimento oficioso, a verdade é que a alegação da Recorrente, em sede de recurso, não padece de qualquer problema de tempestividade. (6) A doutrina e a jurisprudência enunciada supra são pacíficas no sentido de que (i) a exceção dilatória de preterição do tribunal arbitral pode ser arguida “enquanto decisão final relativa ao mérito da causa não transitar em julgado” e que (ii) pode ser arguida em sede de recurso, devendo, nesse caso, o tribunal de recurso apreciar e julgar essa questão – vd. doutrina de ABRANTES GERALDES, PAULO PIMENTA, PIRES DE SOUSA, LEBRE DE FREITAS E PAIS DE AMARAL e jurisprudência supra enunciada. (7) Por isso, andou mal – salvo o devido respeito – o Tribunal a quo a não apreciar esta questão e a não deferir a mesma. (8) Quanto ao segundo fundamento de indeferimento, importa salientar que a resolução do Acordo Parassocial a partir de 21.11.2017 não obsta à aplicação do mesmo a todas as questões que sejam provenientes do mesmo, nomeadamente no que toca a questões que são prévias à data de resolução. (9) Recorde-se que o crédito remuneratório alegado pelo Recorrido se funda no alegado não pagamento de remunerações devidas por referência ao mês de outubro de 2017, i.e. prévio, à resolução. Por isso, o argumento de que à data da propositura da ação (22.03.2021) já se encontrava resolvido o Acordo Parassocial e que, por isso, a convenção de arbitragem não é aplicável, não pode colher. (10) Mais: se assim for, então o mesmo raciocínio implica que não haja lugar à apreciação do pretenso direito do Recorrido à remuneração, porquanto esse direito emerge do Acordo Parassocial e à data da propositura da ação (22.03.2021) o mesmo já se encontrava resolvido. (11) Deste modo, ou se considera que o Acordo Parassocial, e a convenção de arbitragem nele contida, é aplicável, ou se considera que o Acordo Parassocial não é aplicável, não havendo lugar à aplicação da convenção de arbitragem (prevista na cláusula 22.12), mas também não havendo lugar à apreciação sobre o direito à remuneração do Recorrido (previsto na cláusula 10.ª). (12) Mais ainda: em rigor, a resolução de um acordo parassocial ou de um qualquer contrato apenas implica a extinção dos deveres primários de prestação; não implica a extinção de deveres secundários de indemnização (incluindo os decorrentes de cláusulas penais) e de deveres acessórios de conduta; e muito menos implica a extinção dos efeitos de cláusulas compromissórias – vd. doutrina de MENEZES CORDEIRO e de ANTUNES VARELA supra enunciada. (13) Para além disso, é absolutamente pacífico na doutrina e jurisprudência que a invalidade ou ineficácia de um acordo no qual se insere uma cláusula compromissória não afeta a validade ou eficácia dessa cláusula compromissória. Trata-se do chamado princípio da autonomia da Cláusula compromissória – vd. doutrina de ANTÓNIO SAMPAIO CARAMELO, PEDRO SIZA VIEIRA, NUNO FERREIRA LOUSADA e jurisprudência supra citada. (14) Assim, defende a Recorrente que, pelos motivos supra enunciados, o Recorrido deveria ter apresentado a sua pretensão junto dos tribunais arbitrais, sendo os tribunais judiciais absolutamente incompetentes para dirimir este litígio. (15) Segundo – subsidiariamente –, estamos perante uma exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria: (16) Importa, desde logo, começar por esclarecer que o ora Recorrido peticiona nos presentes autos um crédito remuneratório que alegadamente lhe é devido pelo exercício do cargo de ... da Recorrente e não como mero ... da Recorrente. Tal resulta de forma expressa e inequívoca do artigo 34.º da Petição Inicial. (17) Salvo o devido respeito, o Tribunal a quo incorre, desde logo, num lapso que afeta todo o seu raciocínio jurídico. É que o Tribunal a quo considera que o crédito remuneratório em causa advém do exercício de um mero cargo ... (...), desconsiderando que, na verdade, advém do exercício do cargo de ... (...). (18) Só este lapso explica a conclusão do Tribunal a quo no sentido de que “não está em discussão ou apreciação qualquer questão ou direito dito societário ou social”, o que está, salvo o devido respeito, desprovido de sentido. (19) Estando em discussão a remuneração de um administrador, está, naturalmente, em causa um direito societário ou social, o qual, segundo as regras de distribuição da competência dos tribunais, terá necessária e exclusivamente que ser dirimida pelos tribunais com competência em matéria comercial/societária. (20) O conceito de “direitos sociais”, referido no artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ, tem de ser aferido por referência à jurisprudência, porquanto o mesmo não foi definido pelo legislador – vd. jurisprudência, nomeadamente do Supremo Tribunal de Justiça, supra citada. (21) Resulta claro da jurisprudência constante, que a expressão legal “direitos sociais” não respeita apenas a direitos e deveres dos sócios, englobando também os direitos e deveres dos administradores. (22) Tais direitos sociais – onde se incluem os direitos e deveres de administradores – são revestidos de especialidade própria do Direito Societário e, como tal, litígios onde os mesmos se discutem devem, naturalmente, ser aferidos por tribunais especializados para o efeito, sob pena de estarmos a subverter a competência especializada dos tribunais, que se encontra definida no artigo 65.º do CPC e na LOSJ. (23) A verdade é que, no enquadramento jurídico atualmente existente, não existe qualquer fundamento lógico e material que imponha a não centralização no tribunal especializado de todas as matérias relativas a essa mesma especialização. Em concreto, as normas de distribuição da competência atualmente vigentes implicam, sob pena de o sistema ser desvirtuado, que as questões de natureza societária sejam dirimidas pelos juízos de comércio (24) Note-se que a doutrina é praticamente unânime no sentido de qualificar a remuneração como um direito dos administradores, bem como em identificá-la como parte da orgânica societária – vd. doutrina supra citada. (25) A remuneração é uma componente essencial do estatuto jurídico societário do administrador, sendo, em regra, fixada pelo órgão supremo da sociedade, composto por todos os sócios, e responsável pela formação da sua vontade - i.e. a assembleia geral. (26) O direito à remuneração dos administradores corresponde, por isso, a um direito social – relativo ao estatuto jurídico societário. (27) In casu, os montantes que o Recorrido peticiona nos presentes autos correspondem a uma alegada remuneração resultante do exercício do cargo de administrador da Recorrente. Sendo que esse alegado direito do Recorrido é, por si, fundado no artigo 399.º do CSC – cfr. artigo 31.º da Petição Inicial. (28) É, por isso, isento de dúvidas que estamos perante um direito de natureza social e não meramente civil. A sua regulação é operada na lei societária – no mencionado artigo 399.º do CSC – e não na lei civil. A matéria em causa é de feição intrinsecamente societária, pelo que a sua análise implica necessariamente um conhecimento especializado deste ramo do Direito. (29) Pelo exposto resulta que estamos perante uma ação relativa a um exercício de um direito social, pelo que a análise deste litígio só poderá recair na competência de um juízo de comércio, e não no juízo central cível .... (30) Perante tudo quanto se expôs, impõe-se a conclusão de que estamos perante uma exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria do Tribunal a quo, ao abrigo dos artigos 64.º e 65.º, 96.º, alínea a) e 577.º, alínea a) todos do CPC e do artigo 128.º, n.º 1, alínea c) da LOSJ, que implica a absolvição da Ré, ora Recorrente, da instância nos termos do artigo 278.º, n.º 1, alínea a) do CPC. (31) A incompetência absoluta em razão da matéria do tribunal é uma questão de conhecimento oficioso (artigo 578.º CPC), não carecendo de ser alegada pelas partes em sede de articulados para que se produzam os seus devidos efeitos. (32) Por todos os motivos supra expostos, deve o Acórdão Recorrido ser substituído por outro que conheça da exceção dilatória de preterição do tribunal arbitral e da exceção dilatória de incompetência absoluta em razão da matéria e absolva a ora Recorrente da instância.
O Autor apresentou contra-alegações em que invocou a inadmissibilidade do recurso.
* II – Da falta de notificação da interposição de recurso O Autor vem arguir, em primeiro lugar, que não foi notificado pela Recorrente da interposição de recurso. A falta de notificação alegada tem como consequência a impossibilidade de se presumir que a parte contrária teve conhecimento do ato cuja notificação foi omitida, pelo que, tratando-se, no caso, de uma interposição de recurso, o recorrido enquanto não for dela notificado, está sempre a tempo de responder. No entanto, tendo o aqui recorrido apresentado a resposta ao recurso, deve a mesma ser considerada como atempadamente apresentada, ficando sanado o vício alegado.
III - Objeto do recurso O Autor argui a inadmissibilidade do recurso quando questiona a decisão do tribunal recorrido sobre a incompetência absoluta do tribunal, por desrespeito de uma convenção de arbitragem, alegando que, estando em causa um acórdão do Tribunal da Relação que apreciou uma decisão interlocutória da 1.ª instância, não se verifica nenhuma das situações em que é admissível o recurso e que estão previstas nas duas alíneas do artigo 671.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. O Autor, nas suas alegações, defende a admissibilidade deste segmento do recurso, devido ao mesmo ter o seu fundamento na violação das regras da competência em razão da matéria, pelo que, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, a), do Código de Processo Civil, seria sempre admissível recurso. Efetivamente, o recurso foi interposto de um acórdão do Tribunal da Relação que apreciou uma decisão interlocutória proferida na 1.ª instância – despacho saneador tabelar, na parte em que diz que o tribunal é competente em razão da matéria –, pelo que só é admissível recurso de revista desse acórdão se estivermos perante uma decisão que admita sempre recurso, nos termos do artigo 629.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, ou quando ela se mostra em contradição com acórdão do Supremo Tribunal de Justiça (artigo 671.º, n.º 2, do Código de Processo Civil). A Recorrente alega que estamos perante a invocação de uma incompetência em razão da matéria, que é uma das situações em que é sempre admissível recurso, nos termos da alínea a), do referido artigo 629.º, n.º 2, do Código de Processo Civil. Nesta alínea acolhem-se as situações em que o fundamento do recurso é a violação das regras da competência internacional, da competência em razão da matéria ou da hierarquia, ou na ofensa do caso julgado. O fundamento do recurso em causa, nesta parte, é a violação de uma convenção de arbitragem. Apesar desta violação gerar uma incompetência que no atual Código de Processo Civil é catalogada no artigo 96.º do Código de Processo Civil, como absoluta, ao lado (mas em alíneas diferentes) das incompetências internacional, em razão da matéria e da hierarquia, ela não se confunde com uma incompetência em razão da matéria, uma vez que não é a temática do litígio que define o tipo de tribunal competente, mas sim uma escolha consensual das partes nesse sentido. E também não se justifica uma equiparação desta incompetência absoluta em relação às que são referidas no artigo 629.º, n.º 2, a), do Código de Processo Civil, uma vez que as regras violadas nestas situações são regras de ordem pública inerentes ao facto de o Estado Português poder exercer a jurisdição, de o litígio se inscrever na ordem jurisdicional dos tribunais judiciais e de, dentro destes, ser respeitada a competência em razão da hierarquia e da matéria, razões que não se colocam relativamente aos tribunal arbitrais, que encontram fundamento no princípio da autonomia privada e da liberdade contratual [1]. Daí que, tal como não é do conhecimento oficioso a incompetência por violação de pacto de arbitragem (artigo 97.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), também não é sempre admissível o recurso de uma decisão sobre este tipo de competência, uma vez que não há um interesse público que justifique a intervenção de todos os graus de jurisdição existentes. Não se inserindo este fundamento do recurso na alínea a), n.º 2, do artigo 629.º, do Código de Processo Civil, nem em qualquer outra das suas alíneas, e não se verificando qualquer outra situação que permita o conhecimento pelo Supremo Tribunal de Justiça de recurso de acórdão do Tribunal da Relação que tenha apreciado decisão interlocutória da 1.ª instância, não é admissível este fundamento do recurso de revista. Assim, tendo em consideração as conclusões das alegações de recurso, o conteúdo da decisão recorrida e a acima referida delimitação, cumpre apenas apreciar se o ... é incompetente em razão da matéria para conhecer do mérito desta ação.
* III - O direito aplicável 2. Da incompetência, em razão da matéria, do Juízo Central Cível A competência dos tribunais judiciais, no âmbito da jurisdição civil, é regulada conjuntamente pelo estabelecido nas leis de organização judiciária e pelas disposições do Código de Processo Civil, repartindo-se a jurisdição pelos diferentes tribunais, segundo a matéria, o valor da causa, a hierarquia judiciária e o território (artigo 60.º do Código de Processo Civil). As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais e das secções dotadas de competência especializada (artigo 65.º do Código de Processo Civil). No artigo 40.º, n.º 2, da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ), aprovada pela Lei nº 62/2013, de 26 de agosto, anuncia-se que nela se determina a competência, em razão da matéria, entre os tribunais judiciais de primeira instância, estabelecendo as causas que competem aos juízos de competência especializada e aos tribunais de competência territorial alargada. Os tribunais judiciais de 1.ª instância são, em regra, os tribunais de comarca (artigo 79.º da LOSJ, os quais se desdobram em juízos, a criar por Decreto-Lei, que podem ser de competência especializada, de competência genérica e de proximidade, podendo ser criados, além de outros, os juízos cíveis e os juízos de comércio (artigo 81.º, n.º 1 e 3, da LOSJ). Enquanto estes últimos têm as suas competências definidas no artigo 128.º da LOSJ, os juízes cíveis têm uma competência residual para julgar as causas em matéria cível (artigos 117.º, n.º 1 e 119.º, n.º 1, da LOSJ). Esta ação foi proposta no Juízo Central Cível do Tribunal da Comarca ..., o qual se considerou competente para conhecer da causa, o que foi confirmado, em recurso, pelo Tribunal da Relação. No entanto, a Ré entende que a competência, em razão da matéria, para conhecer do objeto da causa, é do Juízo de Comércio ..., uma vez que respeita ao exercício de direitos sociais. Como é entendimento uniforme, a competência em razão da matéria dos tribunais judiciais determina-se em face da causa de pedir e do pedido formulados pelo demandante, pois são estes os elementos que definem qual a temática da ação. A Autora pretende que a Ré seja condenada a pagar-lhe um quantitativo correspondente às remunerações que lhe são devidas pelo exercício do cargo de ... da Ré. Será que, com esta causa de pedir, se pode considerar que a presente ação corresponde ao exercício de um direito social, com vista à determinação da competência dos juízos de comércio, nos termos da alínea c), do n.º 1, do artigo 128.º, da LOSJ [2] ? O Tribunal da Relação deu uma resposta negativa a esta questão, por entender que o conceito de direitos sociais, para efeitos de aplicação do disposto naquele preceito, apenas diz respeito a direitos inerentes à qualidade de sócio de uma dada sociedade, decorrentes do próprio contrato de sociedade e tendentes à proteção de sócio no âmbito dos seus interesses sociais, citando em apoio desta sua posição vários arestos dos tribunais superiores. Efetivamente são numerosas as decisões dos tribunais da Relação [3] e algumas do Supremo Tribunal de Justiça [4] que, para apurar a competência dos Tribunais de Comércio referida na alínea c), do n.º 1, do artigo 128.º, da LOSJ, efetuam a distinção entre os direitos dos sócios que visam a proteção dos seus interesses sociais e aqueles outros direitos de que são titulares independentemente da sua qualidade de sócios, sendo essa qualidade irrelevante para o exercício do direito. Embora a redação da fundamentação destes arestos, por vezes, possa gerar alguns equívocos, na sua grande maioria, apenas visam definir quais são os direitos dos sócios, cuja apreciação cabe aos tribunais de comércio, não perfilhando necessariamente uma leitura restritiva da alínea c), do n.º 1, do artigo 128.º, da LOSJ, no sentido de limitar os direitos sociais apenas aos direitos dos sócios, excluindo da competência dos tribunais de comércio o exercício de quaisquer outros direitos previstos no regime jurídico das sociedades comerciais [5]. A criação dos juízos do comércio foi orientada pelo objetivo de melhorar a administração da justiça quando os conflitos emergem de aspetos específicos do direito comercial, incluindo o direito das sociedades comerciais, não existindo quaisquer razões que justifiquem que apenas os direitos dos sócios e não quaisquer outros que emergem da aplicação de normas que regem especificamente as sociedades comerciais possam beneficiar de uma apreciação e tratamento tecnicamente especializado. Daí que, pese embora a noção jurídica societária de direitos sociais surja, por vezes, no direito substantivo, reportada aos direitos dos sócios [6], essa expressão utilizada pelo legislador na alínea c), do n.º 1, do artigo 128.º, da LOSJ, não deva ser equiparada, para efeito de determinação da competência dos tribunais de comércio, a direitos dos sócios, mas sim a direitos específicos do regime do direito das sociedades, competindo àqueles tribunais decidir os litígios emergentes de relações jurídicas conformadas pela legislação que especificamente rege as sociedades comerciais, designadamente o Código das Sociedades Comerciais [7]. Relativamente à aplicação do direito societário, não é compreensível atribuir aos tribunais especializados para apreciar as questões comerciais, competência para julgar exclusivamente as ações onde estivesse em discussão direitos dos sócios, excluindo os demais litígios tendo por tema o regime das sociedades comerciais, não se vislumbrando qualquer razão que justifique essa distinção. Tal posição restritiva traça, arbitrariamente, uma linha de fronteira artificial no interior de uma matéria com um espaço próprio, não havendo razões para imputar o desenho dessa linha ao legislador, uma vez que é indiferente na execução de uma política de justiça, a relação da distribuição dos processos judiciais entre tribunais pertencentes á mesma ordem jurisdicional, como são os tribunais cíveis e os tribunais de comércio [8]. Para determinar se os tribunais de comércio são os competentes para julgar esta ação, há, pois, que apurar se o pedido deduzido e a respetiva causa de pedir respeitam a matéria especificamente regida pelo direito societário. Está em causa um pedido de condenação de uma sociedade anónima no pagamento das remunerações de um seu administrador. As sociedades comerciais, como pessoas coletivas, necessitam de órgãos que exprimam a sua vontade e a representem. Nas sociedades anónimas um desses órgãos é a administração que é preenchida por um ou mais administradores, estabelecendo-se uma relação jurídica complexa entre estes e a sociedade, composta por uma multiplicidade de direitos e deveres recíprocos. É objeto de controvérsia a qualificação da natureza jurídica desta relação [9], opinando uns que estamos perante um negócio unilateral que é apenas constituído pela eleição do administrador [10], outros que a configuram como uma pura relação contratual, uma vez que seguidamente à eleição se segue a aceitação do cargo, fechando-se um acordo [11], outros ainda que consideram estarmos perante uma união de negócios jurídicos constituída pelo ato eleitoral e pelo subsequente acordo celebrado entre a sociedade e o seu administrador [12], Independentemente da sua qualificação, a relação negocial que se estabelece entre a sociedade e o seu administrador, encontra extensa regulamentação no Código das Sociedades Comerciais, nos artigos 390.º e seguintes, estando o direito à remuneração sujeito às regras constantes do artigo 399.º, além do constante nos estatutos da sociedade, o qual determina o seguinte: 1 - Compete à assembleia geral de acionistas ou a uma comissão por aquela nomeada fixar as remunerações de cada um dos administradores, tendo em conta as funções desempenhadas e a situação económica da sociedade. 2 - A remuneração pode ser certa ou consistir parcialmente numa percentagem dos lucros de exercício, mas a percentagem máxima destinada aos administradores deve ser autorizada por cláusula do contrato de sociedade. 3 - A percentagem referida no número anterior não incide sobre distribuições de reservas nem sobre qualquer parte do lucro do exercício que não pudesse, por lei, ser distribuída aos acionistas. A remuneração do administrador não se encontra totalmente na disponibilidade das partes contraentes, obedecendo a regras específicas do direito societário, além que é uma matéria que estará relacionada com as funções desempenhadas por um administrador de uma sociedade anónima, as quais também se encontram submetidas a um regime legal específico e detalhado. Assim, apesar de não estarmos perante o exercício de um direito de um sócio, uma vez que o Autor, apesar de ter essa qualidade, não é esta que fundamenta o direito invocado, estamos perante a aplicação de direito que está sujeito a um regime específico da legislação sobre sociedades comerciais, o que exige especial preparação técnica, experiência e sensibilidade, suscitando a ultrapassagem de dificuldades e complexidades que podem repercutir-se na respetiva solução, pelo que, para o seu julgamento, estão mais vocacionados os tribunais a que foi atribuída competência especializada nessa área (tribunais do comércio), em comparação com os tribunais cíveis, cuja competência é residual. Por esta razão, entendemos que Juízo Central Cível ... não é o tribunal competente para julgar a presente ação, devendo a Ré ser absolvida da instância (artigo 99.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), pelo que o recurso deve ser julgado procedente, com a consequente revogação do acórdão recorrido.
* Decisão Pelo exposto, acorda-se em julgar procedente o recurso e, em consequência: - revoga-se o acórdão recorrido; - julga-se incompetente, em razão da matéria, o Tribunal Central Cível ... para tramitar e julgar a presente ação; - absolve-se a Ré da instância.
* Custas do recurso e da ação pelo Autor.
* Notifique.
*
Lisboa, 24 de fevereiro de 2022
João Cura Mariano (relator)
Fernando Baptista
Vieira e Cunha _________ [1] ABRANTES GERALDES, Recursos em Processo Civil, 6.ª ed., Almedina, 2020, pág. 50, nota 60, PAULO PIMENTA, Processo Civil Declarativo, 2.ª ed., Almedina, 2017, pág. 138, nota 302, e o acórdão do S.T.J. de 8.11.2018, Proc. 22574/16 (Rel. Rosa Tching). |